Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

JUNHO 1954

4 de Junho de 1954 – Sexta-feira

Vivo a eternidade que não principiei e que nunca acabarei. Eternidade, eternidade, como tu me fazes sofrer! Tu não principiaste nem acabarás para mim. Eu vivo-te, odeio-te e contra ti me revolto e contra Deus. Ó eternidade, ó vida que me fizeste perder o meu Deus, o meu Jesus, a minha querida Mãezinha! Não posso consentir em tal perda. Não posso sentir nem recordar que foi por toda a eternidade que perdi estes tão queridos Amores! Que saudades dos primeiros sábados, do meu colóquio com a Mãezinha! E tudo o mais, meu Deus, tudo o mais! Que tormento para a minha alma! Quero afirmar-me, quero agarrar-me ao Céu e não tenho nada a que possa segurar-me. Que abandono, que tormento! Perder todas as coisas divinas depois de ter perdido as humanas. Perder todo o conforto e apoio do Céu, depois de ter perdido todo o conforto e auxílio da terra. Lá vou indo na minha cavação tão profunda, tão profunda que apavora. São tão raras, tão raras as cavadelas. Parece-me que levam mais de um século a dar cada uma, mas cansam-me tanto, tanto a alma. Ela está sempre banhada em suores. Só o sustentar nas mãos tal instrumento fatiga-me o corpo e a alma, leva-me a maior abatimento. O corpo desfeito pela dor ressente-se com o sofrimento da alma. É para ele maior tormento. Vejo o túmulo, aquele túmulo que me escondeu, aquele túmulo que a morte exigiu e as trevas e a mesma morte continuam a exigir. À volta dele é um prado e jardim florido. Por dentro morte e trevas. Por fora verduras, lírios, açucenas que verdejam, vida que vive e faz sobreviver sempre. Nada disto é meu. Minha é a miséria e inutilidade. A inutilidade rouba-me os meus sofrimentos, os meus sacrifícios, as minhas ânsias de me dar ao Senhor e às almas. Como o livro do meu coração quer falar, expandir-se!... Como são infinitas as minhas ânsias de amar a Jesus e de O fazer amar e de Lhe entregar a humanidade inteira! A inutilidade tudo abafa e até este livro me rouba. O meu calvário, o meu horto tão cheio de agonia é por mim espezinhado e esquecido. Nada disto vivo, porque parece que nada disto foi para mim.

― Ó meu Deus, ó meu Deus, em Vós confio. Creio, Jesus, creio. Valei-me com a Mãezinha.

Assim caminhei hoje para o cimo da montanha, abrindo-se a terra em fendas. Aqui me engolia, acolá me dava para voltar a ser engolida.

Creio, meu Deus, creio. À minha agonia e morte veio Jesus buscar-me. Chamou por mim.

― “Vem, minha filha, dá-Me a tua mão.”

Abrindo um curral, mas este curral era Jesus, sempre levando-me pela mão, fez que eu entrasse e disse-me:

― “Vem para mim, tem coragem! Eu sou o teu Jesus.”

Eu, sempre sustentada pelas mãos do Senhor, à entrada do curral, que me parecia ser Ele. Principiaram a entrar ovelhas nutridas, umas atrás das outras; todas tinham um lugar e nunca mais deixavam de entrar.

― “Vês, minha filha, estas ovelhinhas são as almas que os teus sofrimentos a Mim conduzem.”

Não sei dizer como fiquei, fora de mim. Se assim é, Jesus, como creio, eu quero ficar na terra e nela sofrer até ao fim do mundo.

― “Não, minha filha, o teu Céu está perto, mas lá a tua missão continua e as almas, essas ovelhinhas nutridas, continuam a salvar-se como se sofresses. Estende-me as tuas mãos.”

Estendi-as. Jesus colocou-me nelas um vaso. Este vaso estava cheio duma semente que não conheci. Para cima do vaso sobressaía como que uma pinha. De cada biquinho da pinha saía uma chama e todas reunidas faziam uma só chama.

― “Semeia, minha filha, na terra esta semente. É a minha semente. Enriquece com ela as almas. Incendeia nos corações este amor. É o meu amor. Sofre, sofre, acode ao mundo.”

Desapareceu Jesus, desapareceu o vaso. Fiquei sozinha entre as trevas.

― Creio, Jesus, creio e que o meu “creio”seja eterno, em acção de graças por sempre em Vós confiar e confiada de nunca deixar de crer.

À minha frente estava uma montanha. Não tentei subi-la. Chegava ao Céu. Não podia passar além. Sozinha, cheia de pavor, bradava:

― Jesus, onde estais? Vinde em meu socorro.

Ele saiu-me por entre a rocha a trabalhar; martelava, cinzelava. Era um bom artista. Pegou-me pela mão.

― “Vem, minha filha, trabalha, trabalha. Repara a justiça de meu Pai. Sofre, sofre. Acode ao mundo que não quer escutar a minha voz. Tu és o lírio e açucena perfumada. Com tal perfume atrais as almas a Mim. A tua vida é toda a minha vida. Oh, como Eu quero que ela se leia e compreenda! É cheia de prodígios divinos. Ela tem ensinamentos do presépio ao calvário. Antes de Eu vir à terra e depois de Eu vir à terra. A minha vida em ti não é para ti. A luz que em ti brilha não é para te luminar a ti, mas a toda a humanidade.

Recebe a gota do meu Divino Sangue. Só vives desta vida. É só Jesus que te faz viver. Fica na cruz, fica na cruz. Sofre, sofre o teu indizível sofrimento.”

Fiquei logo na minha costumada agonia a fazer os meus pedidos ao Senhor sem sentir que Ele tinha vindo até mim e a parecer-me que nunca O veria.

― Creio, Jesus, sou a tua vítima.

11 de Junho de 1954 – Sexta-feira

Os meus suspiros abafados, a minha dor escondida! Abafo-os por amor de Jesus e amor aos homens. Só à luz da eternidade será visto e compreendido o que abafei, a dor que escondi. É com Jesus e com a Mãezinha que eu falo das coisas escondidas. São os Seus Divinos Corações o depósito, o cofre dos meus segredos. É indizível e nunca compreendida a minha ansiedade de consolações e de alegrias. Ah! Se surgisse de qualquer parte alguém que me satisfizesse, saciando estas ânsias infinitas de consolações e de alegrias!... Não o encontro.

Meu Deus, meu Deus, como o meu coração está faminto! Só os corações, as almas da terra inteira o poderiam encher. Ele é tão grande, tão grande!... É maior que o mundo. Que alegria, Jesus, que alegria se o mundo inteiro entrasse nele! Desfaleço, morro de ansiedade. Tenho fome de Jesus. Queria amá-Lo com a maior loucura de amor, mas ai! A minha vida… Sinto bem que é uma vida perdida, uma vida inútil. A inutilidade, Senhor, custa tanto!... Roubou-me a vida, roubou-me e rouba-me tudo o que na vida surgiu e vai surgindo. Como aparecer diante de Deus?!... Sem nada, sem nenhum merecimento e vivendo eu para Jesus, sofrendo por Jesus e não tendo nada diante da Sua divina presença. Não posso falar… Sinto enorme necessidade, infinita necessidade de falar do livro do meu coração e esconder-me com ele ao mesmo tempo. A ignorância não me deixa, as forças não me permitem. Que a minha dor, as amarguras da minha alma sejam o livro que fala e o abrigo que o esconde.

O coração abre-se como um vulcão de fogo e é ao mundo que ele quer incendiar. Meu Deus, meu Deus, ai que necessidade de falar deste vulcão de fogo e de o fazer compreender!

― Aceitai, Senhor, o meu sacrifício e este desfalecimento que me leva à eternidade que eu vivo, à eternidade que espero.

Martírio da alma, martírio do corpo aumentam. Na minha escavação com os suores da alma e de cada vez mais dolorosos, mas o meu sepulcro, na superfície, parece falar. As suas verduras, este prado de que já lhe vejo o fim, é de cada vez mais florido. O silêncio da morte fala, o prado distancia-se e as flores cada vez mais belas e mais numerosas.

― Meu Jesus, na minha morte, na minha inutilidade, na minha cruz, sou sempre a Vossa vítima.

O meu calvário é por mim sempre desprezado. Forçada, segui o seu caminho. Caminhava e sempre a deitar fora do meu peito o coração. Parecia-me que corações nasciam para eu sempre deitar para fora de mim. Atirava-os à terra. Chamava por Jesus e pela Mãezinha. O meu “creio” repetia-o com frequência.

― Ó meu Deus, não Vos pertencer! Ó Jesus, ó Mãezinha, ai de mim, que Vos perdi! Hei-de acreditar, hei-de confiar. Creio que nunca Vos perderei.

Assim veio Jesus ao meu encontro, pegou-me no meu coração e meteu-o dentro do Seu peito. Em seguida, sentou-se no coração em trono de realeza. O trono estava todo adornado de flores e trepadeiras viçosas que a sua verdura encontrava com as pétalas brancas. Subiram à maior altura, faziam sombra ao trono em que Jesus estava sentado. Falou-me assim o meu Sumo Bem:

― “Minha filha, é meu o teu coração, é meu e sê-lo-á sempre. Tu não o deitaste fora, mas foram as almas de quem tu és vítima que lançam ao mundo, à lama, à podridão os seus corações. Entregam-nos a Satanás. Desprezam o meu Sangue, os méritos do Calvário. Os teus sofrimentos vão buscá-los às garras de Satanás. Levam-nos de novo a aproveitarem-se do meu Sangue divino, a virem ao meu Coração. Sabedoria divina! Não é a ciência dos homens, a eloquência das palavras, mas sim a verdadeira vida de Cristo, o verdadeiro significado da alma vítima e reparadora. Como Jesus gosta dos humildes e pequeninos! Aqui me delicio no trono do teu coração, aqui suavizo a minha dor e o meu coração deixa de sangrar. A ciência divina subiu em ti, subiu à maior altura e tu, a tua alma humilhada, pequenina e escondida como a violeta.

Como Deus é grande! Grandes faz as Suas obras! Acode às almas. Fala-lhes, fala-lhes. Acode ao mundo. Ai, o pobre mundo! Eu queria, Eu queria que tudo quanto lhes dizes chegasse aos confins da terra, como há-de chegar a tua vida, o brilho da luz que em ti fiz brilhar.”

― Ó Jesus, quero a Vossa vontade divina. Amparai-me, fortalecei-me, iluminai-me, dai-me a vida que estou morta. Creio, Jesus, creio.

Quando falava para Jesus, já não O via nem O sentia. O trono tinha desaparecido do meu coração. Só a morte reinava, morte que me levava sempre a repetir: creio, creio, creio!... Veio de novo a vida ao encontro deste meu “creio”, levantou-me da morte o meu Jesus. Em Suas mãos trazia um lírio, uma açucena e uma palma. Meteu-me tudo na minha mão direita e atravessou-mas sobre o peito…

― “Lírio e açucena, sinais de alvura e pureza. Palma, sinal de martírio. São os símbolos que te oferece Jesus. És mártir de Portugal, és mártir da humanidade inteira. O que se faz aos mártires, o que se diz dos mártires está dito tudo. Entendam os doutores da Igreja. Aqui fica manifestada a minha divina vontade. Acode ao mundo que é teu filho. Acode à humanidade, de quem és mãe. Sofre, sofre, sofre. Coragem, coragem! Tende muita coragem.

Recebe a gota do meu Divino Sangue. Fortalece-te, vive, faz viver.”

Depois de receber o Sangue de Jesus, Ele fugiu novamente. Fiquei a fazer-Lhe os meus pedidos. Não fiquei como de costume logo na dor. Eu não vivia na terra. Passado um bom bocado de tempo, veio uma pomba branca pousar sobre a minha cabeça. Pouco depois, voou-me para o peito e nele fez o seu ninho. De dentro do ninho, sobre os meus lábios, poisava o biquinho. Passava para mim não sei o quê. Aproximou-se Jesus e disse-me:

― “Sobre ti pousou o Divino Espírito Santo. Está a comunicar-te toda a Sua vida. Avante! Fala às almas! Fica na cruz!”

Logo fiquei num sofrimento bem doloroso q ter que repetir o meu “creio” muitas e muitas vezes.

18 de Junho de 1954 – Sexta-feira

Estou no meu martírio a redobrá-lo ainda mais por ter de falar de mim, ou melhor, da minha dor. Custa-me imenso. Não queria dizer nada. Tenho vergonha, escandalizo-me a mim mesma. Não escandalizarei mais alguém? Sempre a falar da dor, deste sofrimento inexplicável! Mas como modificá-lo, se outra coisa não tenho?! O meu sofrimento é tão grande, tão grande, tão infinito!... Só Jesus o conhece, só Ele o pode vencer. Eu sei que não sou eu.

O dia da festa da Santíssima Trindade e da Mãezinha no Sameiro foi para mim uma agonia mortal. Tinha morrido, se Jesus não fizesse a graça de me conservar a vida. O meu Paizinho espiritual estava na minha mente ligado com a Mãezinha do Céu. Era uma festa em que não devíamos nem podíamos estar separados. Daqui nasciam as mais dolorosas e tristes recordações. Deus e o homem! Como este veio ao contrário dos desígnios do Senhor! Na terra nunca, nunca poderei dizer o que sofri e sofro. Só à luz da eternidade haverá tal visão. Com tão variadas e tristes recordações, com tão tremenda e dolorosa agonia fixei no Céu os olhos da minha alma. Não podia movê-los. Tinham que estar sempre firmes para não cair no desespero.

Estou a passar a data da minha estadia na Foz, 11 anos; martírio sobre martírio. Quanto mais dor e humilhação, mais ódio e incompreensão. Por tudo o Senhor seja bendito!

O meu pão de cada dia, o meu pavor são as almas que se abeiram de mim. Causa-me pavor, e o coração não pode separar-se delas. Por elas quero dar o sangue e a vida. Quero-as todas para Jesus, com todos os corações numa só chama de amor. Não posso falar das almas nem desta ânsias. Não resisto. Estou sempre à espera das consolações e alegrias.

― Senhor, quem poderá dar-mas?! Que angústia, que angústia!

O meu túmulo, a minha escavação, a minha inutilidade e eternidade não param. Tenho que viver tudo isto, mesmo sem vida. Tenho que sentir toda a dor e sempre estar de mãos vazias. Nesta manhã, depois de receber o meu Jesus, foi tão dolorosa a minha morte e inutilidade, um abismo se abriu a engolir tudo. Repeti tanto o meu “creio” a Jesus…

― Meu Senhor, parece-me mentir-Vos a Vós e mentir-me a mim mesma. Dai-me coragem para que eu repita o meu “creio” sem crer, sem acreditar e Vos diga que Vos amo, sem ter vida, sem viver para Vós, sem sentir o Vosso amor.

Apunhalava-me a mim mesma. Fazia-o com toda a crueldade. Subi para o Calvário, sempre num desprezo e ódio infernal contra ele. Estendi-me no mundo. Nele bebi todo o veneno. Em seguida, apertei o coração, enleei nele grossas e negras cadeias para que nenhum veneno saísse dele. Fiz o mesmo à língua para a não deixar mover, nem deitar fora o veneno apanhado.

― Creio, Jesus, creio!

Assim chegaram as três horas. Jesus demorou-se. Não vinha. Apoderou-se de mim o temor. Perdi a Jesus, perdi a Mãezinha e talvez para sempre. Meu Deus, que fiz eu que Vos desgostasse para não virdes mais… Caí prostrada por terra. Já não podia mais. Veio então Jesus, ajoujado sob o peso, não sei, mas Ele fez-me sentir que era da justiça de Seu Pai. Ai! Que dor ao vê-Lo. Ele não podia caminhar. Suspirava e as Suas lágrimas banhavam-Lhe o rosto. Caiu por terra junto de mim.

― “Minha filha, minha querida filha, não posso com a minha agonia. A mesma terra que te serve de leito será o meu. Chora comigo nas mesmas lágrimas. Sente igualmente a dor do meu Divino Coração. O mundo, o mundo, os pecadores, são a causa de tudo isto. Não foste tu a beber o veneno. És a vítima daqueles que o bebem. Não foste tu a prender o coração e a língua com cadeias, mas sim o demónio, para que não mais possa ter remédio. És tu com a tua dor, com esta moeda mais cara a comprares estas almas e com a minha fortaleza a quebrar-lhes as cadeias, para que sejam curadas, voltem à graça, venham a Mim. Não há crime nenhum de que não sejas vítima. Aqui ficam bem gravadas a sabedoria e a ciência de Deus.”

― Ó Jesus, para mim as Vossa lágrimas, a Vossa dor, o Vosso ajoujamento; a nada me poupo, mas quero que não sofrais. Só quero a Vossa força e graça.

Jesus levantou-se sorridente, tomou a formosura de Deus. Levantou-me a mim, estreitou-me ao Seu Divino Coração, acariciou-me e disse-me:

― “É todo teu o meu coração, com todas as riquezas, com todo o amor.”

E desapareceu. Novamente fiquei desfalecida. Não pude ir à Sua procura. Creio, Jesus. Fiquei sempre a repeti-lo. Ouvi-o gritar ao longe!

― “Minha filha, vítima querida, acode-me. Vêem sobre Mim os pecadores, o mundo com todos os seus crimes.”

Gritei-Lhe também com todo o coração: Jesus, sou a Vossa vítima! Libertado, de novo chegou Ele ao meu encontro.

― Para que me fugis, Jesus? Não vedes como sou fraquinha e não posso ir à Vossa procura?

― “Vai o teu coração, minha filha, e é esse que Eu quero. O teu desfalecimento é humano, mas o coração vive só o divino. Dor e cruz, cruz e dor; dor e cruz, dor e amor, será sempre a tua vida. Depois de pouco mais de um século em que Eu coloquei a cruz nesta terra, veio a vítima para ela. Não era preciso mais nada para tudo ser compreendido. É à terra, ao lodo e à podridão que a vítima vai buscar e purificar as almas. Calvário, calvário, calvário ditoso!

Portugal, Portugal, Portugal ditoso! Mundo, humanidade inteira cheia de perdão, misericórdia e amor dados por este calvário.

Recebe a gota do meu Divino Sangue. A tua vida, divino alimento! Enche-te para dares. Fica na cruz, sempre na cruz! Coragem, coragem! Não deixes as almas perderem-se. Não deixes cair sobre a terra a justiça de meu Pai, dela tão aproximada. Coragem na cruz, coragem na dor!”

Desapareceu o meu Sumo Bem, sem me dar tempo a fazer-Lhe os meus pedidos. Misturados com o meu “creio” não deixei de Lhos fazer. Tenho medo do mundo, tenho medo de viver!

― Valei-me, Jesus, valei-me!

25 de Junho de 1954 – Dia do Sagrado Coração de Jesus

A vida sem Jesus e a Mãezinha, a vida sem o Céu, como poder viver, meu Jesus?! Como poder passar neste vale de lágrimas? Perdi tudo do Céu, depois de perder tudo da terra.

― Ó meu Deus, eu creio, eu creio. Não permitais que a amargura da mina alma, o meu desfalecimento cheguem a ponto de Vos ofender.

Vagueio, vagueio noite e dia por entre trevas e morte, como quem quer alguma coisa e não sossega sem que a encontre. Nada encontro, com nada me satisfaço, todo o esforço é perdido, tudo é inútil para mim. Oh! Como eu me agarro a Jesus e à Mãezinha, invocando os Seus nomes, bradando-Lhes com toda a força de alma e coração! Agarro-me sem sentir o seu apoio, e o meu brado perde-se na mortandade da humanidade.

― Ó meu Deus, ó meu Deus, a quem recorrer? Em quem confiar?... Em Vós, só em Vós!... Creio, creio!

Falar as minhas ânsias de amor e de dar almas a Jesus, falar do livro do meu coração e de todas as agonias da minha alma é-me inteiramente impossível. Aumenta-me o martírio por nada saber, nem poder dizer. O coração lá vai ecoando e vai absorvendo em si o mundo inteiro como se fora uma mangueira. Ai, ai, como ele vai trazendo a si tudo, tudo quanto encontra, mesmo toda a podridão e nunca está satisfeito.

Custa-me tanto, tanto saber que o meu médico sofre por minha causa a grande humilhação, o grande sofrimento!... Eu que queria ser o alívio de todos e sou a causa de tantos sofrerem! Mas agora ele que em tudo se podia defender humilha-me talvez para fazer vontades. Eu só peço a Jesus que ele faça em tudo a Sua divina vontade.

― Meu Deus, como os homens na sua ignorância são a causa de tão grande martírio. Tudo por Vós e pelas almas! Sou a Vossa vítima! As minhas amarguras só vós as conheceis.

Estou cansadíssima com a minha vida trabalhadora, morta e inútil, mas sempre canseirosa. Os suores da alma acompanham bem as do corpo. Como eu trabalho sob mundos, sob mundos! Ansiava tanto, tanto o Dia do Sagrado Coração de Jesus. Tenho fome d’Ele. Queria comê-Lo mais e mais. Recebi-O pela manhã e logo depois de Ele entrar no meu coração pedi-Lhe muito amor, pedi-Lhe muitas graças e a graça de crer sempre n’Ele, mesmo sem crer. Ele na Sua infinita bondade segredou-me no fundo do coração estas palavras:

― “Dá-te, dá-te, dá-te, minha filha, consome-te no meu amor, por amor às almas.”

A ansiedade do Seu amor, a ansiedade de viver o Seu dia durou no decorrer das horas, mas sempre na maior tortura da alma. Caminhei para o Calvário. Atraiçoava-me a mim mesma e feria-me cruelmente com toda a espécie de tormentos. Olhava-me a mim mesma com olhares aterradores e desesperadores. Cheia de ódio e vingança, fugia do Calvário.

Mas, ah, no meu íntimo havia um novo contraste! Apertava o coração, espremia o seu sangue até à última gota. Quanto mais ódio e sofrimentos, mais compaixão, mais ternura, mais amor. O coração não tinha mais sangue a dar. Não é para mim exprimir a minha dor. Quanto sofri com coisas tão diferentes! Sempre a chamar pelo Céu, sempre a repetir o meu “creio” no meio de toda a treva, morte e abandono. Creio, creio, creio!

Veio Jesus quando repetia o meu “creio” nesta luta dolorosa.

― “Minha filha, minha filha, coragem, coragem! Crê, crê! A vítima não tem outro caminho; a vítima generosa tem de reparar por tudo. Tens em ti a vida do mundo, a vida de Deus. O mundo a ferir-me cruelmente, a atraiçoar-me, a fugir-me. Eu, cheio de compaixão, misericórdia e perdão a oferecer-lhe o meu Sangue até à última gota, a dar-Me todo por ele. Crê, crê! Previne-te bem, filha amada. Tens de viver da fé, tens de viver do “creio”. É a fase mais dolorosa da vítima. É montanha, são castelos que atingem a maior altura. Dá-te, consome-te, confia, que o teu Céu está perto.”

― Ó Jesus, não sei a melhor forma de me dar a Vós. Não sei como consolar-Vos e dar-Vos as almas. Guiai a minha vida, auxiliai-me nos meus caminhos! Sou a Vossa vítima.

Falava sozinha. Jesus não estava.

― Creio, meu Jesus, creio. Por amor, dai-me o Vosso amor. Creio, ó meu Deus, onde estais Vós? Não vejo nem tenho força para caminhar.

Voltou Jesus, alegre, com o Seu Divino Coração nas mãos incendiado numa só chama.

― “Aceita, no dia do meu Divino Coração, dou-te, renovo-te a oferta do meu Divino coração. Tudo quanto ele tem é teu: riquezas, amor, misericórdia e perdão. Por ti tudo será dado às almas. És o segundo canal por onde passa para o mundo tudo o que é meu. Eu passo para a minha Bendita Mãe, primeiro canal celeste, e Ela passa para o teu, porque és a primeira vítima por Mim escolhida na terra. As almas recebem tudo por ti à medida que o quiserem receber. Quanto mais ansiarem pureza e amor, maior será a abundância que recebem.”

Eu tinha o Coração Divino de Jesus dentro do meu peito. Ardia numa labareda elevadíssima. Jesus deixou uma espécie de veiazinha saliente e compridinha que penetrou no íntimo do meu coração e pelo qual passava a gota do Seu Divino Sangue. Por ela o meu coração bebia sofregamente. Estava cheio. Jesus satisfê-lo.

― “Dá esta vida! Tem coragem! O mundo, o mundo cruel, as almas, as almas necessitam de vítimas que assim se imolam. Dá-me tudo, dá-me tudo. Acode a Portugal, acode ao mundo! Ó justiça, ó justiça de Deus!”

― Jesus, por amor, dai-me amor! Por amor, amparai-me; por amor, fortalecei-me; por amor, atendei às minhas preces; por amor, salvai e perdoai ao mundo. Creio, creio em Vós. Sou a Vossa vítima.

As minhas preces foram feitas na ausência de Jesus, mas creio que Ele as ouviu e há-de atender a elas.

   

PARA QUALQUER SUGESTÃO OU INFORMAÇÃO