Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

MAIO 1954

7 de Maio de 1954 – Sexta-feira

Meu Deus, como se pode sofrer assim?! Eu quero abafar, quero esconder a dor, mas não posso mais. Meu Deus, como se sofre, como se pode sofrer desta forma? Humildemente, Senhor, diante de Vós quero-Vos pedir perdão. O sofredor sois Vós. Perdoai-me o meu queixume, o meu desabafo. Vós dois o portador da minha cruz, o Senhor das minha amarguras; sois Vós, só Vós a beber o amargo do meu fel. Como me atrevo, Senhor, a queixar-me? Depois de reconhecer a minha miséria, vi que não sou capaz de suportar uma pequenina parcela da minha cruz sem o Vosso auxílio, Senhor. Dias amargos, dias dolorosos de profundas e sentidas lágrimas foram os que se passaram. A minha pobre natureza não pode ser mais fraca. A vontade está pronta, sempre pronta para tudo o que Vos aprouver, meu Amor. Escondo, escondo muito os sofrimentos para não ser causa de os meus sofrerem. Bem sabeis, Jesus, que é assim, é só por Vós e pelas almas. Eu aceito esta vida de tão doloroso martírio. Sem ver a Jesus, sentia que da Sua sacrossanta cabeça se desprendiam espinhos, como pétalas de flores que os ventos desfolham e se vinham espetar na minha cabeça. Sentia que mãos cruéis de lança em punho me alanceavam o coração e me cravavam muitos punhais. Que dor, que dor! Quanto sofri, meu Deus! Da mesma forma, sem ver a Mãezinha, vinham as setas do Seu Santíssimo Coração. Os olhos da alma viam tudo que pareciam vir dos ares. O coração adivinhava donde vinham dos espinhos e tudo o mais. Da nada valia eu dizer o meu “creio” a Jesus. Eu estava sozinha, morta, num completo abandono. As trevas da minha alma escureceram toda a terra. Na superfície dela o túmulo, e nos abismos eu a continuar a minha tarefa. Lágrimas interiores, suores no mais íntimo banhavam-me toda. Rouba-me tudo. Assim se aproximou o horto e o calvário, nestas indizíveis agonias e sofrimentos. Sempre, sempre, num aumento de loucura de amar a Jesus, de O fazer amado, de Lhe dar todas as almas; pensar no Seu amor, numa ofensa feita ao Seu Coração e na condenação das almas ao inferno, não posso, não aguento. As almas humilham-me porque vejo a minha miséria. Não sou o que elas pensam. Ao mesmo tempo, causam-me pavor e tédio. Assim fui subindo no meu calvário, num ódio satânico como sentimento e que para mim era calvário morto, calvário perdido, sem existência. Bem repetia o meu “creio” a Jesus, mas a morte nada deixava viver, a inutilidade nada deixava aparecer. Triste amargura! Principiei a ouvir uma voz muito ao longe que por entre as trevas me falava com carinho:

― “Minha esposa, esposa minha, minha esposa, esposa querida, que vives a vida do teu Esposo e fazes que as almas vivam a mesma vida do Esposo, tem coragem, tem coragem. A tua morte é uma ressurreição contínua das almas. A tua inutilidade, toda útil, toda útil para as mesmas almas. Repara, repara nos veados sequiosos que vêm beber de ti.”

Não vi a Jesus, mas senti que Ele era a fonte e eu o depósito dessa fonte, o qual se abria e espalhava pela terra. Corriam veados sem conta a beberem dessa água que saía do depósito do meu coração. Foram os olhos da alma que viram esta multidão de veados. Nunca mais deixavam de beber. Oh! Como eles tinham sede! Caí como morta. Tudo desapareceu, não sei por quantos momentos. À voz de Jesus eu vivi, mas sem poder levantar-me. Sem ver, nem saber o caminho, principiei a chorar com os olhos da minha alma. Abeirou-se de mim o meu Senhor, levantou-me e com os Seus vestidos enxugou-me as lágrimas.

― “Coragem, minha filha, falta tão poucochinho para a tua entrada no Céu! Consentes em ficar nos mesmos sofrimentos, a receberes os mesmos espinhos, lanças, punhais e setas? É o mundo perdido, é o mundo perverso que assim tenta ferir-me. Ai dele, ai dele! Cai a justiça de meu Pai, cai a justiça de meu Pai, se depressa, depressa não houver uma renovação de vida. Tem coragem, fala às almas.

Faz que Portugal se eleve para Mim. Faz que Portugal seja grato aos benefícios, aos meios de salvação que do Céu tem recebido. Fala-lhes, fala-lhes de minha bendita Mãe. Faz que Ela seja amada neste ano todo d’Ela, todo a Ela consagrado, neste ano tão teu, tão teu. Eu quero, Eu quero que ele em tudo seja teu. Tem a certeza que as almas não vão como vêm para junto de ti.

Recebe a gota do meu Divino Sangue. Vive, vive! Fortalece-te para poderes fazer viver as almas, as almas para Mim. Dá-lhes a vida que de Mim recebem.

Dá ao teu Paizinho, todo, todo o meu amor e diz-lhe (mas diz-lhe que é uma afirmação de Jesus) que os seus entes queridos já estão no Céu. Preparei-os na terra pelo sofrimento, para depressa voarem para Mim.”

― Obrigada, Jesus, muito obrigada. Não esqueçais os meus pedidos. Aceito a Vossa cruz. Quero a Vossa vontade divina.

Estas últimas palavras foram ditas só com fé. Não sentia a presença de Jesus, mas logo os mesmos espinhos e o mais que ficou dito vieram aumentar o meu martírio. No meio do meu martírio, fui recebendo tudo, repetindo o meu “creio” e actos de amor e de aceitação à vontade do Senhor.

14 de Maio de 1954 – Sexta-feira

Piso e repiso no mesmo ponto. Não tenho outra coisa, não posso falar de outra coisa a não ser da dor. Se os céus falassem, podia ser que todos compreendessem quanto seu sofro. O Céu não fala, mas a minha pretensão também não é mostrar-me, mas sim esconder-me para sempre. Não quero mostrar quanto sofro, mas tenho a necessidade de explodir de gravar neste caderno o que é a dor e todas as ansiedades de mais e mais sofrer por Jesus, de mais e mais se dar a Jesus e às almas.

Que pobrezinha eu sou! Parece-me que não posso com mais dor. É tal a fome de dor por amor de Jesus que queria engolir, possuir em mim um mundo de dor. O livro do meu coração não pode ser lido, não sabe ser compreendido por criaturas humanas: só à luz, só à luz da eternidade. Queria gravar em todos os corações, em letras de fogo, a palavra “amor”, para que eles não soubessem viver nem amar a não ser a Jesus. Oh! Como quero que Ele seja amado! Que loucura, que loucura! Não sei exprimi-la!

Foi no dia 13 celebrada no meu quarto a Santa Missa. Não deixarei de pedir à Mãezinha para suprir por mim a minha incompetência, a minha inigualável ignorância. Não sei acompanhar a Jesus, não sei assistir à Missa. Neste dia, enquanto ela foi celebrada, não gozei, mas passei o tempo noutro mundo de maior suavidade. Ao terminar da Santa Missa, caí logo na maior tristeza, no maior abismo se sofrimento. Os espinhos de Jesus vinham para mim, a lança, punhais e setas da Mãezinha. Oh! Tristeza e dor infinitas! Sempre a sofrer, sempre pobrezinha!... Sempre a trabalhar, sempre sem nada!... Sempre no meu ofício de cavador lá para os abismos com os meus suores e sempre na inutilidade e na morte. O meu túmulo fala, prega, ensina. O que foi a minha vida, mesmo no silêncio mortal. Agora novo sofrimento me veio apavorar e atormentar a alma. Tenho uma necessidade infinita, mas infinita, infinita de receber consolações e alegrias. Ai, meu Deus, não é isto que eu busco. Só as quero para Vós. Mas como, Senhor, se a necessidade parece minha? Que saudades infinitas de alegrias! O coração cansa-se, desfalece por tanto amor, por tanto sofrer. Estou sempre à espera de quem me possa consolar e alegrar. Nunca chega esse momento. Meu Deus, meu Deus, que tormento! Quero o mundo todo, todo a dar-me consolação, a dar-me alegria! É o contrário: tudo é dor, tudo é revolta contra mim. Sofrer, sofrer, sofrer sempre por Vosso amor, ó Jesus!

Com a perda de Jesus e da Mãezinha não sou capaz de viver o horto e o calvário. Tudo me foi roubado. Hoje, quando alguém me forçou a subir a montanha, eu sentia que me despiam de vestes brancas e me deixavam umas negras e apodrecidas. Que mundo de podridão em mim! A minha agonia era tão grande que me levava ao sentimento de nunca ter visto a Jesus, de nunca Lhe ter falado nem aproveitado o Seu Sangue Divino.

Jesus, Mãezinha, eu creio, eu creio. Vivo sem esperança, creio sem o sentimento da minha fé. Creio, ó meu Deus, eu creio! Valei-me, valei-me!

Neste tão grande combate e grande amargura, ouvi a voz de Jesus:

― “Chama, chama pelo Céu, minha filha. Ele não te falta. Tu não perdeste a Jesus, nem a Mãezinha, mas sim tem-Los mais em ti, possui-Los mais e mais. Chama, chama! Sempre chega ao Céu um brado aflito. E como não chegar o teu que leva a grandeza da dor e agonia mais profunda que atingiu o seu auge? Confia, minha filha! Também ecoa no mais alto dos céus o brado com as promessas de Jesus, do teu Esposo. Tu amas-Me com o maior amor; nunca perdeste a Jesus, nem a Mãezinha, nem jamais perderás. És a maior vítima por Mim escolhida. Hás-de perseverar até ao fim. Preparei-te para tão grande martírio. Pedi-te esta imolação. Nada me negaste nem vais negar. O mundo, minha filha, o mundo está perdido. Não Me escuta, não Me atende. Aí vem sobre ele a justiça de meu Pai. Não posso mais sustentar o Seu braço.”

Neste momento, desceu, quase a procurar na terra o Eterno Pai. Jesus vinha curvado sob o peso da Sua mão. Quase o seu rosto pousado em terra. Jesus fitou-me e disse-me dolorosamente:

― “Ajuda-me, ajuda-me, minha esposa e vítima.”

Repeti por três vezes com todo o coração e a alma: ó Pai Eterno, perdão e misericórdia para a terra. Sou a Vossa vítima.

Principiou a levantar-se, a afastar-se, a subir, a subir, até que desapareceu. Fiquei sozinha; não tinha pernas, nem mãos, não tinha olhos nem ouvidos… não tinha nada, não tinha vida com que pudesse ser útil a Jesus e às almas. Fiquei como um cepo imóvel, sem nenhuma utilidade.

Apareceu Jesus. Tudo me deu e, estreitando-me ao Seu Divino Coração, fazendo do dele e do meu a mesma massa, disse:

― “Recebe a gota do meu Divino Sangue. Somos os dois a viver a mesma vida. A minha carne é a tua carne, o meu Sangue é o teu sangue. O teu coração possui as minhas riquezas infinitas, todo o meu amor divino, para distribuíres às almas. Fala-lhes, fala-lhes que o Divino Espírito Santo está contigo, fala em ti.

Pobre Portugal, pobre Portugal, se não te aproveitas das minhas graças e da minha Bendita Mãe. Pobre mundo, se não te deixas guiar e iluminar pelo farol que em ti coloquei.

Ó minha vítima querida, tu não terás na terra mais consolações. O que se passar em ti, que cause alegria, será para que os outros se alegrem e não tu. Tem coragem! A Mãe Bendita virá quando menos a esperares. Fica na tua cruz.”

― Perdão, Jesus. Perdoai às almas. Valei ao mundo. Não Vos esqueçais dos meus pedidos. Perdi tudo; nada em mim se passou. Creio, meu Deus, creio, creio!

21 de Maio de 1954 – Sexta-feira

As tristezas e amarguras da minha alma são cada vez maiores. A noite, mais tenebrosa e aterradora. A vida tornou-se pesada e difícil de viver, vida sem vida, vida morta, porque só vive a minha miséria. Sou um monstro mundial de podridão. Sinto como se nunca nascesse para Deus, nunca vivesse para coisa alguma de utilidade. Nada tenho a não ser miséria. Estou para a eternidade de mãos vazias. Horas tristes, horas difíceis de vencer. Parece-me que em vão invoco o nome do Senhor e que nada vale o meu brado por Jesus e pela querida Mãezinha.

Consolai-Vos, Jesus, nas minhas tristezas e amarguras. Não quero alegrar-me a mim, mas sim alegrar-Vos a Vós. Creio nas Vossas promessas. Creio, Jesus, creio! Que esta palavra se repita dia e noite sem cessar. É um crer sem um sentimento de fé. Creio. Creio. Sou a Vossa vítima.

E assim vou lutando e vivendo as minhas amarguras. Tenho sentido muito a ingratidão de alguém. Espinhos dolorosos! Se ao menos eu puder com eles tirar os de Jesus! Eles vão passando d’Ele para mim, assim como todos os punhais e lança com as setas da Mãezinha. Todo o meu ser desfeito pela dor é despedaçado a golpes. Que massa de sangue!

Eu gostava de viver no abismo profundo da minha cavação com os mundos e mundos que tenho sobre mim, mas sem ser vista nem falada. Que horror! Eu lá em tão profundo abismo, cavando com os suores da alma e cá fora a ser visitada, a ser falada.

Que tormento, que só Jesus sabe e compreende! No meio do meu sofrimento tenho tanto receio de ter ofendido o meu Jesus. Ao receber alguns golpes foi tal o meu desfalecimento que me chegou a passar rapidamente pela imaginação o desejo da morte. Não consenti, não queria tal. Ansiar o Céu, ir para Jesus, sim; agora querer a morte para não sofrer, nunca, Jesus, nunca.

Logo que dei conta do que pela cabeça me passava, disse: Jesus, quero amar-Vos e dar-Vos almas e ser sempre a Vossa vítima.

Passei pelo Horto e pelo Calvário, olhando para trás sem vida nenhuma para Deus. Numa revolta contra tudo e contra o Céu, só ansiava, mas numa ânsia infinita, quem me alegrasse, quem me consolasse. No maior abandono, sem nada encontrar, sem conforto da terra e do Céu, caí no mar da perdição. Fui ao fundo. Não tentei lutar contra as ondas, não tentei subir nem debater-me com elas. De bruços, no fundo do mar sem poder mover os lábios, nem ter uma ansiedade de coração para Jesus, desceu Ele. Depois de ter mergulhado em toda a profundidade da água, foi ao meu encontro. Eu estava cega, cega pelas trevas e no maior desfalecimento. Tomou-me pela mão, trouxe-me à superfície das águas, serenou tudo, deu-me luz e conforto à alma e disse-me:

― “Vem, minha filha, vem viver de Mim, fortalecer-te de Mim.

Este mar é o mar dos vícios, é o mar das paixões. Não te manchaste nelas. Fui buscar-te ao fundo para te dar conforto e levantar-te de tal desfalecimento. Tu vais a este mar de vícios sem conta e de toda a espécie buscar as almas e trazê-las ao meu Divino Coração.

Como é bela esta cena! Jesus vai ao fundo do mar buscar a vítima das almas. A vítima das almas penetra em todo este abismo para as conduzir e introduzir no Coração do seu Esposo, Jesus. Calvário ditoso, viveiro das almas!

Se tu visses como elas vêm a Mim, canseirosas como as formiguinhas para o celeiro! Coragem! Coragem! O teu Céu está perto. Venho buscar-te! Dá-me almas, dá-me almas, repara a justiça de meu Pai!”

― Ó Jesus, compadecei-Vos de mim! Tudo quero sofrer e não sei sofrer. Tudo Vos quero dar e nada tenho. Compadecei-Vos de mim, compadecei-Vos de mim! Quanto mais Vos busco, maior a perda que sinto de Vós e da Mãezinha. Valei-me, valei-me!

Quando dizia “valei-me”, já estava nas trevas sem a presença de Jesus e quase na certeza de nunca O ter encontrado. Repetindo o meu “creio” muitas vezes, ali fiquei sozinha. Pouco depois, veio de novo o meu Sumo bem, rasgou as nuvens que me encobriam a luz e permitiu que de novo O visse. Com o Seu peito aberto e o Seu Divino coração em chamas, encostou-o ao meu e disse-me:

― “Coragem, coragem; não me perdeste e mais possuis a tua querida Mãezinha. As tuas ânsias são minhas, são infinitas. Anseio ser consolado. Quero que me alegrem. Ando sequioso e faminto, à busca dessas almas que se imolem por Mim e não as encontro!

Acode ao mundo, acode ao mundo, aplaca a justiça do Senhor. É em ti que eu me alegro e delicio.

Recebe a gota do meu Divino Sangue, gota mais forte para maior vida. A dor consome-te, o amor e o meu sangue fortalecem-te. Vives a minha vida, só a minha vida. Comunica-a às almas e dá-lhes o meu amor. Coragem na tua cruz, na tua missão salvadora.”

Fiquei logo sem Jesus. Voltei logo aos meus sofrimentos, mas a fazer-Lhe os meus pedidos e o meu “creio.”

28 de Maio de 1954 – Sexta-feira

Não sei o caminho; sei que há Deus, creio que há Deus, mas parece-me, sinto por vezes como se não houvesse, não existisse. Não sei o caminho. Não tenho forças para caminhar. Como é tremendo e doloroso o estado da minha alma. Sem Jesus, sem a Mãezinha, na dor de Os ter perdido para sempre, a viver a vida como se não existisse a vida, a viver a eternidade como se ela não existisse.

A vida, a vida sem Deus. A eternidade, a eternidade sem Deus! Que pavor. Meu Deus, que pavor! Estou aqui como se nunca nascesse para Deus. Vivo, como se nunca nascesse.

O meu passado não conta para Deus; o meu presente nada tem para Lhe dar. Vivo a eternidade, mas esta é infeliz, de ódio e revolta contra o Céu.

Se o meu coração falasse, se ele se abrisse a mostrar o grande livro que dentro dele está. Estas páginas infindas mostravam tudo, tudo diriam, mas o coração não se abre, a ignorância não permite exprimir-me. Só à luz da eternidade ele pode ser lido e compreendido.

Viver sem a vida da graça, viver só a vida dos vícios e crimes. O que eu sou!... Que horror!... Anseio infinitamente as consolações e alegrias. Parece-me mirar e remirar toda a humanidade a ver donde elas me podem surgir. Mas ah! Nada encontro. Não tem fim esta ansiedade. Sempre a ver quem chega ao pé de mim a dar-me consolação e alegria. Ninguém vem. Tudo são tristezas, tudo é dor. Tudo são espinhos e punhais a ferirem-me e o meu corpo a ser despedaçado. É grande o tormento, as ânsias são infinitas. Eu parece-me e sinto que só as criaturas me podem dar esta consolação e alegria, me podem saciar estas ânsias.

Meu Deus, busco-Vos a Vós, ou busco-me a mim? Quero consolar-Vos e alegrar-Vos a Vós, ou quero a alegria e consolação para mim? Duro tormento! Pungentes espinhos!

Tive a Santa Missa no meu quartinho; na minha ignorância de sempre, não soube assistir a ela. Pedia à Mãezinha que se apiedasse de mim, que suprisse à minha miséria. Parece que assisti a ela fora do mundo e todo o seu valor e merecimento fora do mundo ficou.

No abismo da minha cavação tenho de repetir o meu “creio”. Não posso deixar de repeti-lo. A canseira, os suores da alma, a inutilidade levam-me ao desfalecimento e a descrer.

Creio, Senhor, que vivo em vós e para Vós. Creio que Vos amor, sem o mínimo sentimento de amor. Sou Vossa, sou Vossa! O meu túmulo, o meu túmulo, como ele fala no profundo silêncio da morte! Não é para mim que ele fala, mas sim para o mundo. Não é uma conversa de dias, mas de todo o tempo. Sinto que ele fala, que ele dá luz e vida, mas nada, nada é para mim, nada ouço e compreendo.

Como são belos os lírios e as açucenas que à volta dele se abriram! Como estão viçosos! Que cuidadoso é o seu jardineiro! Nada disse, nada sei dizer, e o meu livro infindo quer falar. Eu sou a estante. O meu horto e calvário são esquecidos, são de inutilidade. Não me aproveitei dos seus méritos. Forçada, passei por lá. Debaixo deste esforço, hoje subi a montanha.

Ó Jesus, como tive de repetir o meu “creio”! Como têm os meus actos de fé que serem frequentes! Um mar imenso estava na maior agitação. Não era só um mar de ondas, era um mar de montanhas. Tudo se misturou, tudo se envolveu e não sei quem dentro de mim dizia às montanhas para virem sobre mim e me esconderem. Elas caíram, enrolaram-se; as ondas levaram-me à profundidade dos seus abismos. Que pavor, meu Deus, que pavor! Invoquei o nome de Jesus e o da Mãezinha e sempre a repetir os meus actos de fé pedi-Lhes que viessem em meu auxílio.

A esta profundidade sem fim, vieram eles buscar-me. Veio Jesus e a Mãezinha, pegaram-me pela mão, a Mãezinha na esquerda e Jesus na direita. Puseram-me os meus braços sobre os Seus ombros, puseram-me ao colo. Em cima do mar, mas já serenado, a Mãezinha sentou-se. Colocou-me no seu regaço, cobriu-me com o seu manto azul. Enquanto ela me acariciava, Jesus disse-me:

― “Foram Jesus e a Mãezinha buscar-te ao abismo do mar tempestuoso sob as suas montanhas.

Minha filha, minha filha, sofre, sofre. Tu que és vítima repara. Sofre, para que as almas não tenham que dizer: montanhas, caí sobre mim e escondei-me dos olhares de Deus. Terríveis, pavorosos momentos são os da justiça de meu Pai.”

Depois falou a Mãezinha, sempre a acariciar-me, mostrou-me o Seu santíssimo Coração. Ela era o Coração Imaculado de Maria cercado de espinhos e com os olhos fitos no céu Ela disse-me:

― “Não perdeste o teu Jesus nem a tua Mãezinha celeste. Estamos sempre contigo. Amamos-te com o maior amor. Aqui estou, venho pedir-te: dá tudo a Jesus. Faz tudo o que Ele te pedir. Fala dos nossos amores. Acode ao mundo; ai, os filhos meus! Olha os espinhos que me cercam. Eu em vez de espinhos devia trazer rosas, porque são essas as que me tens dado. À luz da eternidade as verás. Mas o mundo, os pecadores só me dão espinhos para mim e para Jesus.”

Principiou a chorar, inclinando sobre mim a Sua santíssima cabeça. Quando Ela fitava o Céu, arrebatou-me o coração, mas, quando A vi chorar, fiquei na maior angústia. Com os meus lábios aparei algumas lágrimas e com o Seu manto enxuguei-Lhe o rosto.

― Não choreis, Mãezinha, que eu amo-Vos e amo a Jesus. Por Vós sofro e por Jesus.

Ela estendeu novamente sobre mim o manto e disse-me:

― “O manto da minha pureza para sempre seres pura, o manto da minha graça para sempre teres graça, o manto do meu amor para distribuíres graça, pureza e amor.”

Desapareceu e com Ela foi Jesus. Fiquei no mesmo mar de sofrimento, na incerteza de tudo, a repetir o meu “creio”.

― Valei-me, Jesus, deixastes-me, meu Amor.

E então aí veio Ele numa nuvem negra e com Ele o Eterno Pai. A nuvem pavorosa rasgou-se, e Eles apareceram. Só por milagre não morri de pavor.

― “Justiça, justiça para a terra! ― disse Jesus em tom irado.

Mas mais irado era o semblante do Eterno Pai.

― “Justiça, justiça sobre a terra culpada. O mundo não me atende, não escuta a voz do seu Deus e Senhor.”

Gritei:

― Valei-me, Jesus, se não quereis que eu morra! Sou a Vossa vítima. Perdão e misericórdia por mais um pouco. Senhor! Compadecei-Vos de nós. Afastai-Vos para o Céu.

O Eterno Pai desapareceu. Jesus abeirou-se de mim. Uniu o seu Coração ao meu. O meu ficou como a esponja mergulhado no amor de Jesus a receber o Seu sangue.

― “Recebe a gota do meu Divino Sangue: é a tua vida. Não tens outra. Vives de Mim. Faz que as almas vivam esta vida. Fica na cruz. Ficai na vossa cruz. O Senhor é contigo, o Senhor é convosco. Coragem. Atendei às almas.”

Desapareceu. Eu fiquei logo no meu martírio a fazer-Lhe os meus pedidos todos, todos, mesmo na Sua ausência.

   

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