Tive, nestes
dias, várias coisas que deviam ser para mim de grande consolação, mas não foram.
Tudo recebi indiferente, apenas senti um pouco de conforto na alma. Causa-me
horror a minha vida, esta vida que é só morte, escuridão e eternidade. Eu não
ando à busca de consolações. Para mim a minha única ansiedade é dá-la a Jesus, é
que Ele seja consolado e amado. Eu queria o mundo todo num incêndio de amor.
Queria todos os corações a arderem no mesmo amor. Parece que morro por não ver
Jesus amado com aquele amor de que Ele é digno.
No dia 27, data
do 12º aniversário em que deixei de me alimentar, nunca poderei dizer o que
senti em mim. A fome era tão grande, tão grande, era infinita, mas não fome para
comer. Estava como que tivesse o peito e o coração abertos, e vinha o mundo como
se fossem ondas do mar para junto de mim. Quanto mais tinha, quantas mais ondas
vinham, eu mais ia ao encontro delas e maior era a ansiedade de as possuir. A
humanidade era o mar e todo esse mar era meu e cabia dentro em meu peito e
coração. Sofri amargamente, infinitamente por todo esse mar não entrar em mim.
Sofri sozinha, em silêncio. Os meus desabafos foram para Jesus e para a
Mãezinha; apesar de sentir a Sua perda, fazia-os com actos de fé. Ao que eu
cheguei!... à inutilidade, à eternidade!... Na minha arte de cavadora, os suores
regam-me a alma. O corpo num tormento indizível fica banhado nos mesmos suores.
À volta do meu sepulcro nascem tantas açucenas, tantos lírios brancos; alguém os
rega e cuida deles com canseira e com amor. Não sou eu, não sei quem é. Eu vivo
uma vida separada, diferente e indiferente a tudo isto. Tive a Santa Missa no
dia 30 de Março. Que confusão e vergonha para mim! Sou acompanhá-la ao
Sanctus e elevação do cálix e da hóstia. Que se alegre Jesus na minha
tristeza. Não posso dizer mais nada. Vou ver se consigo dizer as palavras de
Jesus. Quando hoje se aproximavam as três horas, senti como se alguém me
lembrasse o horto e o calvário que em toda a minha vida tinha sido esquecido.
Parecia-me bater o pé no chão orgulhosa como se não quisesse um Deus, nem nada
superior a mim. Odienta, escarrava o horto e o calvário. Fazia actos de fé para
convencer-me que nada era assim. Veio Jesus e disse:
― “O meu Divino
Coração é asilo, é refúgio das almas vítimas que se deram inteiramente a mim.
Vem, minha filha, vem, esposa querida, toma conforto, recebe vida para tanta
vida que a dor consumiu.”
Fui impelida e
tão depressa fui ao regaço de Jesus como entrei no Seu Coração divino. Ali
repousei mergulhada no Seu amor. Sem saber como, Ele desapareceu-me e em vez do
Seu Coração tive por leito o chão duro e por luz as trevas mais densas. Era um
bosque, era uma montanha de espinhos, era uma montanha inigualável que me
separava de Jesus. Sem poder mover-me, sem poder levantar-me, com o rosto em
terra chorava as minhas lágrimas, chamava por Ele e repetia os meus actos de fé.
Depois de muito tempo, apareceu Ele junto de mim: tinha rompido a montanha. De
todas as Suas chagas, pés, mãos e coração saíam raios como sóis brilhantes.
Todos estes raios inclinavam-se para mim. Da superfície das chagas caía sangue
com tanta abundância como a água cai no chafariz e transborda. Mexida remexida
pelos raios, fiquei de olhos fitos em Jesus.
― Não posso nada,
Senhor! Não pude ir ao Vosso encontro!
― “Vim Eu ao teu,
minha filha. Estes raios são do meu amor. Este sangue é sangue de dor. Esta
montanha é a montanha do vício, montanha do crime. É o mundo, é o mundo que me
fere. Sofre, sofre. Se não fossem as tuas lágrimas, a tua dor, o teu amor, o
mundo, os pecadores não seriam salvos. Que grande é a tua reparação! Sofre,
porque Eu estou contigo. Quanto mais longe Me sentes, mais me possuis. Todo o
teu sofrimento são invenções minhas para acudir aos sacerdotes, para salvar os
pecadores. Repara-me por eles.
Recebe agora a
gota do meu Divino sangue. É a minha vida que te faz viver, é o meu amor, o teu
amor às almas, o teu amor à cruz. O que te fiz sofrer no aniversário do teu
jejum é nem mais nem menos o meu sofrimento, a minha fome, a minha ansiedade das
almas. Fica na tua cruz, fica na tua missão salvadora. Repete os teus actos de
fé; em tal sofrimento só com eles te agarras a Mim sem Me veres, sem Me
sentires. Coragem! Coragem!”
Fiquei logo nas
trevas sem saber de Jesus a fazer-Lhe os meus pedidos.
Tenho medo, tenho
pavor de que as pessoas, as visitas se aproximem de mim. Parece que morro e que
todas a terra me afronta com esta aproximação. Sinto uma necessidade tão grande,
parece que é infinita, de fugir, de me esconder de todos. Ó meu Deus, como é
dolorosa a minha vida!... A minha alma, o meu coração choram, choram; a minha
agonia por vezes é tão grande que só com a graça do Senhor não caio em
desespero. Na repetição do meu “creio”, mas um “crer” sem acreditar, chamo por
Jesus, chamo pela Mãezinha. Peço-Lhes o Seu amor e auxílio.
Mas como, meu
Deus!... Como poderei contar com a protecção do céu, se os meus sentimentos são
de que o perdi eternamente, perdi Jesus, perdi a Mãezinha!... Eu não posso
conformar-me com esta perda. Parece que tenho de blasfemar por toda a
eternidade! Sofro tanto, tanto na alma e no corpo!... São tão variados os
espinhos que me ferem, os punhais que atravessam o meu coração!... No meio deste
tormento só posso dizer: bendito seja Deus! Seja feita, Senhor, a Vossa vontade!
Sou a Vossa vítima. Se eu tivesse alguma coisa que oferecer a Jesus!... Se eu
pudesse consolá-Lo com a minha reparação! Se eu pudesse dar-Lhe almas, um mundo
de almas!... Parece-me que já não sofria! Mas a minha inutilidade na minha
eternidade e antes da eternidade roubam-me tudo; e agora vivo numa eternidade
sem nada, sem amor, sem consolação, sem vida de Deus, mas sempre numa ansiedade
infinda de viver mergulhada em Deus, de perder-me no Seu amor, de fazer que
nenhuma, nenhuma alma se perca. Que loucura pelas almas, que contraste tão
diferente. Quero esconder-me de todos e quero dar o meu sangue até à última gota
para a todos salvar. Há tanto tempo que baixei ao túmulo e não deixo de
trabalhar. Morta dentro dele, sem lá penetrar a luz, na escuridão mais tremenda
não deixo de estar nele e não deixo de continuar numa canseira incessante a
minha cavação nos abismos, cheia de suores na alma e no corpo. À volta do túmulo
regam as açucenas e os lírios com toda a alvura se conservam viçosos embora
cansados por fortes ventanias. O túmulo está caiado enquanto eu durmo lá dentro
o sono da morte. Vem para mim a outra morte. Aproxima-se apressada e traz com
ela todos os tormentos e instrumentos que fizeram sofrer e feriram a Jesus. Vou
dar a vida, vou dá-la pelo mundo.
No meu horto e no
meu calvário sempre desprezada, fui levada, arrastada. Uma força indizível, uma
atracção infinita me obrigou a chegar ao cima da montanha. Mesmo assim de rasto,
escarrava para o Céu uma revolta contínua. Não queria ser levada nem atraída por
aquela força. O coração de dor gotejava sangue, os olhos lágrimas de sangue
choravam e assim a terra era regada. Só no meu íntimo, por não poder com os
lábios, eu repeti, sei lá quantas vezes: creio, creio… meu Deus, creio!...
Neste meu
“creio”, nas trevas mais pavorosas, no meio dum bosque o mais espinhoso,
principiei a ouvir chorar grandes suspiros, suspiros que manifestavam dor
infinita; eu conheci que era Jesus. Foi neste estado que Ele chegou ao pé de
mim. Caiu sobre os meus braços. Principiei a enxugar-Lhe as lágrimas com os Seus
vestidos. Em mim não encontrei nada que pudesse fazê-lo. Queria arrancar o meu
coração e fazer dele um lencinho. Fiquei só com o desejo.
― Não choreis,
Jesus! Porque chorais?
― “Choro, minha
filha, porque os pecadores Me perseguem! O mundo fere-me, atraiçoa-me.
Consola-me, desagrava-me! Sofre pelos pecadores! Sofre pelos sacerdotes! Que dor
a minha! Que dor a minha! Se a pobre a humanidade me atendesse, ouvisse a minha
voz!... Eu quero dar-lhe todo o meu perdão, a minha misericórdia. Deixa que te
calquem, humilhem e arrastem. Quero-te assim à minha semelhança.”
― Aceito tudo,
Jesus, mas não choreis.
Fiquei sozinha.
Tinha que furar e destruir uma montanha mundial em rochedo. Não ia com a minha
força; força estranha me puxava. O peso era insuportável e o pavor indizível.
Foi-se desfazendo a montanha e eu sempre repetindo o meu “creio”. De novo me
encontrei com Jesus. Ele vinha fugitivo e apavorado também.
― “Venho
fugitivo, perseguido pelos pecadores. Deixa-me, minha filha, refugiar-me no teu
coração.”
Dizendo isto,
entrou, enquanto fui dizendo:
― Como entrar
nele a grandeza infinita, o Rei do céu e da terra? Entrai, entrai, Jesus.
Fizestes-Vos pequenino por meu amor. Pela Eucaristia tendes entrado nele tanta
vez!
― “Minha filha,
pus-te no mundo, faço que vivas só de Mim para mostrar ao mundo o valor da
Eucaristia e o que é a minha vida nas almas. És luz e salvação para a
humanidade. Ditosos os que se deixam iluminar. Venho fugido! Que montanha de
vícios!... Tem que vir sobre ela a justiça de meu Pai. Sofre pelas almas.
Acode-lhes.”
― Ó Jesus, tenho
tanto medo delas! Bem vedes o pavor que sinto quando se abeiram de mim! Oh, como
eu queria esconder-me.
― “Tudo isso é
meu. Eu devia esconder-me e deixá-las para sempre. Este pavor é o pavor do
pecado. És vítima, és vítima. Recebe aqui a gota do meu divino Sangue. Tem
coragem um pouco mais.”
Jesus uniu os
nossos corações, o d’Ele fervia e ardia em chamas de amor. Naquela fervura
saltou para o meu coração uma forte gota de sangue. Abrasada naquelas chamas,
fiquei mais forte, pois todo o colóquio tinha sido de profunda dor. Jesus
desapareceu, dizendo-me já ao longe:
― “Sofre por Mim
e minha Bendita Mãe! Infinita também é a Sua dor!”
Fiquei na minha
dor, tristeza e agonia, nas mais densas trevas, repetindo o meu “creio” e a
fazer os meus pedidos.
Sexta-feira
santa, foi bem sexta-feira santa! Ah! Se eu soubesse sofrer! Se eu soubesse
aproveitar-me de tudo para desagravar o meu Jesus! Pobre de mim! Sou pobre e a
todos dou pobreza! Sou miserável e toda a miséria da humanidade a mim pertence e
assim vou vivendo a minha eternidade e inutilidade! Eternidade, eternidade! Que
grande pavor! Viver-te sempre roubada pela inutilidade! Cresce-me a revolta e o
ódio contra Deus. Tenho de odiá-Lo para sempre. Nada quero ter para Lhe oferecer
por toda a eternidade. Oh! Que tormento perder a Deus! Perder a Mãezinha! Ai de
mim, nunca mais os verei! Tive uma semana de espinhos penetrantes. Tormento
indizível! Quanto mais agudos, quanto mais esses espinhos me ferem, mais eu os
oferecia ao Senhor, apesar de sentir que nada era meu, que sempre estava
roubada.
Passei o
aniversário de 29 anos de cama. Não sei dizer as tristes recordações que me
trouxe esta data, apesar de com os olhos no Céu tudo aceitar alegremente e só
querer a vontade de Jesus. De novo voltei a ter a Santa Missa no quarto. Recorri
à Mãezinha para Ela assistir por mim, já que cheguei a este ponto de nada saber.
Pedi-lhe os Seus sentimentos junto da cruz. Ela veio colocar Jesus morto no meu
coração e fez-me sentir a Sua agonia e chorar as Suas lágrimas. Pelo sacerdote
fui encorajada a levar com mais amor a minha cruz num completo abandono. Horas
depois, a notícia do sr. Bispo de Aveiro chegou até mim. Meu Deus, quanto
sofri!... Se o meu nome não fosse lembrado, nem para bem nem para mal! Se eu
ficasse esquecida para o mundo e dele pudesse desaparecer!... Jesus, sou a Vossa
vítima. Creio, creio em vós! Na minha velhice eterna e ofício de cavador, fui
vivendo os dias, as horas, abandonando-me louca para os braços de Jesus pela
Mãezinha, sem o mínimo sentimento de que por Eles era aceite. Esta noite
passeia-a mal, nos maiores sofrimentos do corpo. Não pude dormir. Pude
acompanhar Jesus da prisão aos tribunais. Como a minha alma agonizava!... Esta
manhã voltei a acompanhá-Lo, mas brava: pedia a Sua condenação. Fui eu que Lhe
dei a morte. Na mesma manhã, uma visita recomendada veio aumentar o meu
calvário, veio rasgar-me o coração, tocando-me num ponto que é o maior tormento
da minha vida. Chorei muitas lágrimas, mesmo muitas, mas todas tinham um fim: de
ir para Jesus.
Meu Deus, só vós
conheceis como foi grande a minha dor. No íntimo do meu coração bradava
constantemente: basta, basta, e com os lábios dizia: Jesus, não basta. Tudo o
que Vós quiserdes, ó Amor, ó Amor, ó Amor, tudo o que Vós quiserdes; sou a Vossa
vítima. Meu Deus, como pode ser, se o que vale é o que vem do íntimo, de dentro
do coração para fora e não aquilo que dizem os lábios que vai de fora para
dentro!? Eu não queria que o coração falasse assim, bradasse desta maneira. Eu
queria que ele dissesse o que diziam os lábios, porque era a minha ansiedade, é
só o que eu quero. Não tenho outro querer a não ser o de Jesus. Não era eu que
assim falava no coração. Não sei quem era que dizia “basta”. Ai, quanto me
custou esta luta! Nesta agonia mortal, veio Jesus ao meu encontro. Chamou-me. Só
O ouvi, não O vi, nem O senti.
― “Vem, minha
filha, de encontro ao teu Jesus. Tem coragem. Não duvides, olha que sou Eu. Fui
Eu que te escolhi, fui Eu que te preparei, fui Eu que assim te assemelhei a Mim.
Escolhi-te para a mais nobilíssima missão. Preparei-te para ela. Assemelhei-te a
Mim em toda a minha vida, na minha santa Paixão. Não te disse Eu: sofre, sofre,
deixa que te humilhem e caluniem?! Recorda o que de Mim disseram.”
― Ó Jesus, eu não
Vos vejo, eu não Vos sinto, mas quero confiar que sois Vós.
― “Colóquio de
fé, colóquio de dor e de amor, minha filha, foi o que te disse Jesus. Sim, sem o
amor, sem a tua loucura de amor não podias ser vítima de reparação, não podias
assim sofrer e viver da fé sem a sentires. Confia, confia.”
Jesus foi jogar o
seu “esconde-esconde”. Desapareceu. Fiquei caída como morta. Não dei um passo,
nem chamei por Ele. Pouco depois uma força invisível me levantou e ouvi de novo
a voz do meu Senhor:
― “Minha filha,
vou dar-te o grande privilégio, vou dar-te a prova da minha loucura de amor.
Amo-te tanto, tanto, amo-te com o maior amor com que Deus pode amar uma criatura
Sua. Vais receber-Me na Eucaristia. O teu anjo da guarda vai ser quem Me vai
depositar na tua língua para Eu baixar ao teu coração.”
Era uma sala de
que não lhe via o fim. Estava toda armada em roxo escuro. Só via bater as asas
brancas de alguns anjos que em ala, silenciosos, se curvavam reverentes. Veio o
meu anjo e deu-me Jesus. Era uma Hóstia grande. Pronunciou as palavras do
Viaticus corpus Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam.
Ámen. Em seguida, falou-me assim:
― “Vais agora,
esposa e vítima do Rei celeste, receber o Sangue do teu Esposo Jesus. Vai-te ser
dado pelo Anjo de Portugal.”
Aproximou-se esse
anjo de mim e do meu anjo da guarda, que foi quem me disse estas palavras. O
anjo vestia de branco e capa azul. Trazia nas mãos uma pequenina taça e disse:
― Recebe, que é o
Sangue de Jesus. Ele o deitou para aqui do Seu Coração. Vai fazer que ele passe
para o teu.
Bebi o bocadinho
do Sangue. Os anjos desapareceram. Ficou Jesus. Fez-me sentir o Seu amor e
disse-me:
― “Fortalece-te,
minha filha, fortalece-te para a dor. Não podes deixar de sofrer, porque o mundo
não deixa de pecar. Aceita, aceita. Não sentirás a ressurreição. A tua alma não
terá Páscoa, para que muitas almas ressuscitem e tenham a Páscoa da graça.
Aceita. Coragem.”
Fugiu-me para
sempre o meu Jesus. Fiquei no meu grande tormento a dizer-Lhe que aceitava, a
dizer-Lhe o meu “creio”, sem esquecer os meus pedidos.
― Sede comigo,
Jesus. Sede sempre a minha força.
Não chegou a
minha aleluia. Não houve para mim a ressurreição de Jesus. Estou em agonia.
Estou em grandes sofrimentos da alma. Todo o meu ser é um trapo que a dor
desfez, produzido pela lepra do pecado. Os espinhos não cessam de ferir-me. São
bem agudos e penetrantes.
Duas coisas tive
de motivo de alegria, se Jesus mas deixasse sentir. Aprouve ao Senhor que nada
me alegrasse; só com os olhos n’Ele me alegro no cumprimento da Sua divina
vontade. Custa-me tanto, tanto, dizerem-me à minha frente que lhes foi dito que
quem me visitasse ficaria excomungado.
― Jesus, Jesus,
ai quanto custa! Seja tudo por Vosso amor e pela salvação das almas.
Causam-me pavor
as visitas. Parece-me ter nojo delas. A todos ao mesmo tempo quero abraçar e
possuir no meu coração; mas, meu Deus, essa excomunhão de que me acusam
prejudicará essas almas?! Não estou aqui para ruína delas, mas sim por Vosso
amor e por elas me imolar. Não posso dizer mais nada. Vou dizer as palavras do
colóquio de Jesus. Mas, ah! Se eu pudesse ao menos colocar neste caderno o livro
infindo do meu coração para ele dizer tudo, para falar do amor de Jesus, para
dizer o que é dor e a minha loucura pelas almas! Se eu pudesse fazer desaparecer
o pecado, para o meu Amado não ser ofendido, para nenhuma alma se perder. Que
sabedoria tem este livro! Como ele conhece e compreende todas as coisas, e como
eu sou ignorante para as saber dizer. Não há ignorância igual à minha.
Depois de eu ter
desprezado e esquecido o horto, esqueci e desprezei o calvário. Caminhava na
maior angústia, caminhava de tal forma que o chão se abria para me engolir e em
corpo e alma ia precipitando-me no inferno.
Meu Deus, que
pavor! Já nas garras de Satanás, atormentada por ele, ouvi alguém que fez abrir
a terra que me tinha engolido, tirou-ma da garra do demónio e das chamas
infernais. A alma agonizava e o corpo estava cansado de tanto sofrer. Chamei por
Jesus e pela Mãezinha. Uma coisa me dizia: perdi tudo. Não existem para mim, não
tenho Jesus, não tenho a Mãezinha. Tive um desfalecimento mortal. No meio dele,
principiei a repetir o meu “creio” sem acredita. Ouvi a voz de Jesus que me
chamou:
― “Minha filha,
minha querida filha, levanta-te! Coragem! Vem a Mim! Tu tens de viver sem vida,
tens de viver sem luz, tens de acreditar sem sentimento de que acreditas.
Amas-Me sem saberes que Me amas, sem teres esse sentimento. Os pecadores, as
almas, o mundo, obrigam-Me a exigir de ti esta reparação. Coragem! Coragem! É
para que as almas não caiam no inferno.”
― O inferno, o
inferno, ó Jesus, que tremendo é o inferno! Não posso pensar que as almas se
perdem. Não posso consentir que as almas caiam no inferno, não posso saber que o
Vosso Divino Sangue foi derramado inútil. Onde estais, Jesus, onde estais? Que
escuridão, que montanha, que distância me separa! Eu amo-Vos, Jesus, eu amo-Vos
na minha cruz, na minha dor! Aceito, aceito. Tudo por Vós!
Desta escuridão
passei à luz; da agonia à suavidade. Jesus continuou, mas sem que eu O visse:
― “Esta distância
é a minha distância do pecador. A montanha são os crimes. A luz que vês é a
minha luz; a suavidade o meu conforto. Tu és a minha vítima. Coragem e
confiança! Tu fechaste com os teus sofrimentos as portas do inferno a milhares,
a milhões, a milhões de almas. Nunca mais se abrirão para elas. O inferno
abre-se para aquelas almas que desprezaram o meu Sangue, que calcaram o meu
Sangue divino e desprezam ainda os meios que lhes dei, os sofrimentos, a
imolação contínua da vítima deste calvário, da maior vítima que escolhi par a
humanidade.”
― Ó Jesus, que
tormento o meu, que humilhação. Eu desapareço ao ouvir-Vos falar assim.
Voltei ao meu
nada, ao nada de que me tirastes. Falo assim, digo a verdade.
― “Posso falar,
posso dizer tudo da minha esposa amada. Tem coragem!...”
Fui tão ao nada,
fiquei no silêncio da morte. Algum tempo depois, a voz de Jesus deu-me a vida,
mas então vi-O em tamanho natural com o Seu peito aberto e a pegar para as Suas
mãos o Seu Divino Coração. Juntou-O ao meu e disse:
― “Vem receber a
gota do meu Divino Sangue, a vida para viveres, a vida para dares. Tem coragem!
Um pouco mais! Um pouco mais, porque o teu Céu está perto. A tua missão lá vai
continuar. Por ti as almas são enriquecidas. Por ti o mundo será favorecido. Eu
não falto às minhas promessas. Eu queria que se compreendesse a minha vida
prodigiosa em ti. Eu quero que todos saibam a tua loucura de amor por Mim, por
Mim e pelas almas, pelas almas de quem sentes pejo e pavor. É para que o não
sinta Eu! Esse pejo e pavor causam-me elas a Mim. És vítima, és vítima! Coragem!
Coragem!”
Desapareceu
Jesus. Eu voltei à tristeza, à cegueira, à morte. Fiquei na cruz, angustiada,
mas não esqueci nem um só pedido. Lembrei tudo a Jesus, mesmo na Sua ausência a
repetir o meu “creio” muitas, muitas vezes, recordando que Ele prometeu sempre
estar comigo.
Espinhos, sempre
espinhos a penetrarem-me, a ferirem-me: é sempre a mesma vida. O meu calvário é
só dor, só dor.
― Meu Deus,
chegarei ao fim? Creio, creio e só em Vós confio.
Se esta minha
palavra de “creio” fosse sentida, se, quando digo a Jesus que confio, soubesse
que confiava, todo o meu calvário era suavizado.
― Oh! Não, meu
Deus, não! Nada sinto, e parece que nada acredito! Este tormento de mentir aos
outros e mentir a mim mesma e sobretudo a Vós, meu Sumo Bem, quanto me custa,
quanto me custa!... Só vós o sabeis! Bendito sejais!
Envergonho-me ao
máximo falar da minha cruz, sofrimento e calvário. É o meu pão. Outra massa não
tenho; a dor, a dor… A minha loucura por Jesus, de O amar e de O fazer amado, de
Lhe dar todas as almas, aumenta de dia para dia. Não tenho a mínima consolação
nesta loucura, mas consome-me e nela me perco. É tal o abismo que desapareço.
Mas a humilhação por as almas me rodearem envergonha-me de tal forma que também
me faz desaparecer. Fica só a existir a minha miséria.
O meu sepulcro cá
está na superfície da terra. Verdejam e vicejam flores à sua volta. Sinto e com
os olhos da alma vejo que há quem cuide delas, mas não sei quem é. Eu, no meu
ofício rude e penoso de cavador, continuo na mesma canseira, parecendo ter
mundos e mundos sobre mim, tal é a profundidade em que trabalho. Os suores regam
a alma e o corpo. A noite, as trevas aterradoras, a inutilidade e a morte caíram
sobre tudo isto. Não vi, não vejo, não sou nada e nada tenho que dar ao meu
Jesus. O meu brado não chega até Ele. As minhas lágrimas não O consolam. Ah! Se
Jesus saboreasse em mim alguma coisa, não me importava sofrer. Assim também não
me importo. Com o sentimento completo pelo abandono da terra a Ele me abandonei
pela Mãezinha.
― Sou Vossa, sou
Vossa, sempre a Vossa vítima. Ó Jesus, eu creio, eu creio!
Ontem, no meu
horto, não tive coragem de Lhe dizer o meu “creio”. Chorei, uni-me aos Seus
sofrimentos. Hoje, numa indizível amargura na viagem para o Calvário, amargura
tão triste e dolorosa que me obrigava as lágrimas a regarem-me a face. Pelo Céu
e terra abandonada não deixei de chamar por Jesus, mas com tal desfalecimento
que nunca Lhe repeti a palavra “creio”. Num momento inesperado, senti em mim um
amor tão forte, amor que não era meu, mas nele me mergulhei. Não por mim, mas
por força estranha que n’Ele me mergulhou. Após uns momentos de experimentar
este amor, ouvi Jesus a dizer-me assim:
― “Amor, amor,
amor, minha filha, sou Eu o amor que te atrai, sou Eu o amor por quem vives, a
quem só amas, por quem enlouqueceste. Tem coragem! A tua vida é a vida mais
imitadora de Jesus. Por ti Me enlouqueci. A Mim te assemelhei. Não duvides, nada
temas. Tu vives a minha vida, a minha vida comunicas. A tua morte ressuscita e
dá a vida às almas, depois de iluminadas com a tua cegueira. As tuas densas
trevas são a luz do mundo.”
Eu não tive a
visão de Jesus; nem os olhos da alma, nem os do corpo viram. Quando Ele assim
falava, fiquei sem o mínimo bocadinho do Seu amor, envolta no mar mais
tempestuoso; as ondas debatiam-se com a maior fúria, enrolando-me, levando-me à
profundeza do mar que não tinha fim. Os ventos sopravam, novas ondas debatidas
traziam-me à superfície da água. Sem ninguém por mim, julguei-me perdida. Veio
Jesus novamente.
― “Minha filha, ó
minha filha, vem cá. Dá-me as tuas mãos. Vem para a barquinha do Meu Coração
Divino. Por Mim és salva como foram os meus apóstolos. Este mar é o mar das
paixões, esta fúria tempestuosa é a fúria louca dos vícios. Acode ao mundo!
Sustenta o braço da justiça de meu Pai! Tenho tantos espinhos e punhais no meu
Coração!... Queres que eles passem para ti, como as setas do Coração Imaculado
de minha Mãe?”
Ainda não tinha
pronunciado a palavra “sim”, mas o meu coração estava ansioso por a pronunciar e
já os espinhos da cabeça sacrossanta de Jesus se deslocavam por si para a minha
cabeça e os punhais para o coração. Jesus deu-me as setas da querida Mãezinha
que tinha em suas mãos e com muito cuidado nas espetou no coração, enquanto eu
Lhe dizia:
― Tudo quanto
quiserdes. Sou a Vossa vítima!
Tudo isto se
passou dentro do Coração Divino de Jesus. A tempestade estava serena. Tudo isto
foi visto com os olhos da minha alma e mais ainda a forma como Jesus passou o
Sangue para o meu coração. Fez do Seu uma pequenina e bela infusinha que tombou
sobre o meu coração, e a gotinha do sangue caiu.
― “Recebe a gota
do meu Divino Sangue, a vida que vives, a vida que comunicas a milhares e
milhares de almas que se abeiram de ti. Tem coragem! Tem coragem! Tende coragem!
Nenhuma alma sai daqui (foi esta a minha promessa e Eu não falto) que vá como
veio. Quantas ressurreições, quantas ressurreições! Em algumas daquelas mais
renitentes, que parece nada aproveitarem, levam o remorso. Elas não querem
ceder. O seu orgulho não quer baixar, mas a graça lá fica para mais tarde. Eu
não te abandono. Minha Bendita Mãe não te abandona. Confia! Não Nos perdeste.
Quanto maior é o sentimento da perda, mais Nos possuis. Como abandonar-te a ti a
quem confiei que continues a minha obra de salvação! A tua vida vai ser sempre
assim até ao fim. Não quero dizer que ainda não te sejam dados momentos de
alegria, mas não para tu os sentires.
Recebe as
carícias da minha Bendita Mãe. O teu adeus não foi até ao Céu. Ela virá ainda
ver-te na terra. Recebe as carícias de Jesus com as da Mãezinha com os Seus
ósculos santíssimos que trazia em Suas santíssimas mãos.”
Disse-Lhe o meu
“obrigada” para Jesus e para a Mãezinha. Fiz-Lhes os meus pedidos, mas já no mar
tempestuoso com a mesma fúria e sem a presença de Jesus. Já lá vão muitas horas,
a tempestade continua; os seus espinhos e punhais e setas da Mãezinha continuam
a estar presentes no coração e a virem novos espinhos constantemente. O Senhor
seja bendito! |