Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

ABRIL 1954

2 de Abril de 1954 – Sexta-feira

Tive, nestes dias, várias coisas que deviam ser para mim de grande consolação, mas não foram. Tudo recebi indiferente, apenas senti um pouco de conforto na alma. Causa-me horror a minha vida, esta vida que é só morte, escuridão e eternidade. Eu não ando à busca de consolações. Para mim a minha única ansiedade é dá-la a Jesus, é que Ele seja consolado e amado. Eu queria o mundo todo num incêndio de amor. Queria todos os corações a arderem no mesmo amor. Parece que morro por não ver Jesus amado com aquele amor de que Ele é digno.

No dia 27, data do 12º aniversário em que deixei de me alimentar, nunca poderei dizer o que senti em mim. A fome era tão grande, tão grande, era infinita, mas não fome para comer. Estava como que tivesse o peito e o coração abertos, e vinha o mundo como se fossem ondas do mar para junto de mim. Quanto mais tinha, quantas mais ondas vinham, eu mais ia ao encontro delas e maior era a ansiedade de as possuir. A humanidade era o mar e todo esse mar era meu e cabia dentro em meu peito e coração. Sofri amargamente, infinitamente por todo esse mar não entrar em mim. Sofri sozinha, em silêncio. Os meus desabafos foram para Jesus e para a Mãezinha; apesar de sentir a Sua perda, fazia-os com actos de fé. Ao que eu cheguei!... à inutilidade, à eternidade!... Na minha arte de cavadora, os suores regam-me a alma. O corpo num tormento indizível fica banhado nos mesmos suores. À volta do meu sepulcro nascem tantas açucenas, tantos lírios brancos; alguém os rega e cuida deles com canseira e com amor. Não sou eu, não sei quem é. Eu vivo uma vida separada, diferente e indiferente a tudo isto. Tive a Santa Missa no dia 30 de Março. Que confusão e vergonha para mim! Sou acompanhá-la ao Sanctus e elevação do cálix e da hóstia. Que se alegre Jesus na minha tristeza. Não posso dizer mais nada. Vou ver se consigo dizer as palavras de Jesus. Quando hoje se aproximavam as três horas, senti como se alguém me lembrasse o horto e o calvário que em toda a minha vida tinha sido esquecido. Parecia-me bater o pé no chão orgulhosa como se não quisesse um Deus, nem nada superior a mim. Odienta, escarrava o horto e o calvário. Fazia actos de fé para convencer-me que nada era assim. Veio Jesus e disse:

― “O meu Divino Coração é asilo, é refúgio das almas vítimas que se deram inteiramente a mim. Vem, minha filha, vem, esposa querida, toma conforto, recebe vida para tanta vida que a dor consumiu.”

Fui impelida e tão depressa fui ao regaço de Jesus como entrei no Seu Coração divino. Ali repousei mergulhada no Seu amor. Sem saber como, Ele desapareceu-me e em vez do Seu Coração tive por leito o chão duro e por luz as trevas mais densas. Era um bosque, era uma montanha de espinhos, era uma montanha inigualável que me separava de Jesus. Sem poder mover-me, sem poder levantar-me, com o rosto em terra chorava as minhas lágrimas, chamava por Ele e repetia os meus actos de fé. Depois de muito tempo, apareceu Ele junto de mim: tinha rompido a montanha. De todas as Suas chagas, pés, mãos e coração saíam raios como sóis brilhantes. Todos estes raios inclinavam-se para mim. Da superfície das chagas caía sangue com tanta abundância como a água cai no chafariz e transborda. Mexida remexida pelos raios, fiquei de olhos fitos em Jesus.

― Não posso nada, Senhor! Não pude ir ao Vosso encontro!

― “Vim Eu ao teu, minha filha. Estes raios são do meu amor. Este sangue é sangue de dor. Esta montanha é a montanha do vício, montanha do crime. É o mundo, é o mundo que me fere. Sofre, sofre. Se não fossem as tuas lágrimas, a tua dor, o teu amor, o mundo, os pecadores não seriam salvos. Que grande é a tua reparação! Sofre, porque Eu estou contigo. Quanto mais longe Me sentes, mais me possuis. Todo o teu sofrimento são invenções minhas para acudir aos sacerdotes, para salvar os pecadores. Repara-me por eles.

Recebe agora a gota do meu Divino sangue. É a minha vida que te faz viver, é o meu amor, o teu amor às almas, o teu amor à cruz. O que te fiz sofrer no aniversário do teu jejum é nem mais nem menos o meu sofrimento, a minha fome, a minha ansiedade das almas. Fica na tua cruz, fica na tua missão salvadora. Repete os teus actos de fé; em tal sofrimento só com eles te agarras a Mim sem Me veres, sem Me sentires. Coragem! Coragem!”

Fiquei logo nas trevas sem saber de Jesus a fazer-Lhe os meus pedidos.

9 de Abril de 1954 – Sexta-feira

Tenho medo, tenho pavor de que as pessoas, as visitas se aproximem de mim. Parece que morro e que todas a terra me afronta com esta aproximação. Sinto uma necessidade tão grande, parece que é infinita, de fugir, de me esconder de todos. Ó meu Deus, como é dolorosa a minha vida!... A minha alma, o meu coração choram, choram; a minha agonia por vezes é tão grande que só com a graça do Senhor não caio em desespero. Na repetição do meu “creio”, mas um “crer” sem acreditar, chamo por Jesus, chamo pela Mãezinha. Peço-Lhes o Seu amor e auxílio.

Mas como, meu Deus!... Como poderei contar com a protecção do céu, se os meus sentimentos são de que o perdi eternamente, perdi Jesus, perdi a Mãezinha!... Eu não posso conformar-me com esta perda. Parece que tenho de blasfemar por toda a eternidade! Sofro tanto, tanto na alma e no corpo!... São tão variados os espinhos que me ferem, os punhais que atravessam o meu coração!... No meio deste tormento só posso dizer: bendito seja Deus! Seja feita, Senhor, a Vossa vontade! Sou a Vossa vítima. Se eu tivesse alguma coisa que oferecer a Jesus!... Se eu pudesse consolá-Lo com a minha reparação! Se eu pudesse dar-Lhe almas, um mundo de almas!... Parece-me que já não sofria! Mas a minha inutilidade na minha eternidade e antes da eternidade roubam-me tudo; e agora vivo numa eternidade sem nada, sem amor, sem consolação, sem vida de Deus, mas sempre numa ansiedade infinda de viver mergulhada em Deus, de perder-me no Seu amor, de fazer que nenhuma, nenhuma alma se perca. Que loucura pelas almas, que contraste tão diferente. Quero esconder-me de todos e quero dar o meu sangue até à última gota para a todos salvar. Há tanto tempo que baixei ao túmulo e não deixo de trabalhar. Morta dentro dele, sem lá penetrar a luz, na escuridão mais tremenda não deixo de estar nele e não deixo de continuar numa canseira incessante a minha cavação nos abismos, cheia de suores na alma e no corpo. À volta do túmulo regam as açucenas e os lírios com toda a alvura se conservam viçosos embora cansados por fortes ventanias. O túmulo está caiado enquanto eu durmo lá dentro o sono da morte. Vem para mim a outra morte. Aproxima-se apressada e traz com ela todos os tormentos e instrumentos que fizeram sofrer e feriram a Jesus. Vou dar a vida, vou dá-la pelo mundo.

No meu horto e no meu calvário sempre desprezada, fui levada, arrastada. Uma força indizível, uma atracção infinita me obrigou a chegar ao cima da montanha. Mesmo assim de rasto, escarrava para o Céu uma revolta contínua. Não queria ser levada nem atraída por aquela força. O coração de dor gotejava sangue, os olhos lágrimas de sangue choravam e assim a terra era regada. Só no meu íntimo, por não poder com os lábios, eu repeti, sei lá quantas vezes: creio, creio… meu Deus, creio!...

Neste meu “creio”, nas trevas mais pavorosas, no meio dum bosque o mais espinhoso, principiei a ouvir chorar grandes suspiros, suspiros que manifestavam dor infinita; eu conheci que era Jesus. Foi neste estado que Ele chegou ao pé de mim. Caiu sobre os meus braços. Principiei a enxugar-Lhe as lágrimas com os Seus vestidos. Em mim não encontrei nada que pudesse fazê-lo. Queria arrancar o meu coração e fazer dele um lencinho. Fiquei só com o desejo.

― Não choreis, Jesus! Porque chorais?

― “Choro, minha filha, porque os pecadores Me perseguem! O mundo fere-me, atraiçoa-me. Consola-me, desagrava-me! Sofre pelos pecadores! Sofre pelos sacerdotes! Que dor a minha! Que dor a minha! Se a pobre a humanidade me atendesse, ouvisse a minha voz!... Eu quero dar-lhe todo o meu perdão, a minha misericórdia. Deixa que te calquem, humilhem e arrastem. Quero-te assim à minha semelhança.”

― Aceito tudo, Jesus, mas não choreis.

Fiquei sozinha. Tinha que furar e destruir uma montanha mundial em rochedo. Não ia com a minha força; força estranha me puxava. O peso era insuportável e o pavor indizível. Foi-se desfazendo a montanha e eu sempre repetindo o meu “creio”. De novo me encontrei com Jesus. Ele vinha fugitivo e apavorado também.

― “Venho fugitivo, perseguido pelos pecadores. Deixa-me, minha filha, refugiar-me no teu coração.”

Dizendo isto, entrou, enquanto fui dizendo:

― Como entrar nele a grandeza infinita, o Rei do céu e da terra? Entrai, entrai, Jesus. Fizestes-Vos pequenino por meu amor. Pela Eucaristia tendes entrado nele tanta vez!

― “Minha filha, pus-te no mundo, faço que vivas só de Mim para mostrar ao mundo o valor da Eucaristia e o que é a minha vida nas almas. És luz e salvação para a humanidade. Ditosos os que se deixam iluminar. Venho fugido! Que montanha de vícios!... Tem que vir sobre ela a justiça de meu Pai. Sofre pelas almas. Acode-lhes.”

― Ó Jesus, tenho tanto medo delas! Bem vedes o pavor que sinto quando se abeiram de mim! Oh, como eu queria esconder-me.

― “Tudo isso é meu. Eu devia esconder-me e deixá-las para sempre. Este pavor é o pavor do pecado. És vítima, és vítima. Recebe aqui a gota do meu divino Sangue. Tem coragem um pouco mais.”

Jesus uniu os nossos corações, o d’Ele fervia e ardia em chamas de amor. Naquela fervura saltou para o meu coração uma forte gota de sangue. Abrasada naquelas chamas, fiquei mais forte, pois todo o colóquio tinha sido de profunda dor. Jesus desapareceu, dizendo-me já ao longe:

― “Sofre por Mim e minha Bendita Mãe! Infinita também é a Sua dor!”

Fiquei na minha dor, tristeza e agonia, nas mais densas trevas, repetindo o meu “creio” e a fazer os meus pedidos.

16 de Abril de 1954 – Sexta-feira

Sexta-feira santa, foi bem sexta-feira santa! Ah! Se eu soubesse sofrer! Se eu soubesse aproveitar-me de tudo para desagravar o meu Jesus! Pobre de mim! Sou pobre e a todos dou pobreza! Sou miserável e toda a miséria da humanidade a mim pertence e assim vou vivendo a minha eternidade e inutilidade! Eternidade, eternidade! Que grande pavor! Viver-te sempre roubada pela inutilidade! Cresce-me a revolta e o ódio contra Deus. Tenho de odiá-Lo para sempre. Nada quero ter para Lhe oferecer por toda a eternidade. Oh! Que tormento perder a Deus! Perder a Mãezinha! Ai de mim, nunca mais os verei! Tive uma semana de espinhos penetrantes. Tormento indizível! Quanto mais agudos, quanto mais esses espinhos me ferem, mais eu os oferecia ao Senhor, apesar de sentir que nada era meu, que sempre estava roubada.

Passei o aniversário de 29 anos de cama. Não sei dizer as tristes recordações que me trouxe esta data, apesar de com os olhos no Céu tudo aceitar alegremente e só querer a vontade de Jesus. De novo voltei a ter a Santa Missa no quarto. Recorri à Mãezinha para Ela assistir por mim, já que cheguei a este ponto de nada saber. Pedi-lhe os Seus sentimentos junto da cruz. Ela veio colocar Jesus morto no meu coração e fez-me sentir a Sua agonia e chorar as Suas lágrimas. Pelo sacerdote fui encorajada a levar com mais amor a minha cruz num completo abandono. Horas depois, a notícia do sr. Bispo de Aveiro chegou até mim. Meu Deus, quanto sofri!... Se o meu nome não fosse lembrado, nem para bem nem para mal! Se eu ficasse esquecida para o mundo e dele pudesse desaparecer!... Jesus, sou a Vossa vítima. Creio, creio em vós! Na minha velhice eterna e ofício de cavador, fui vivendo os dias, as horas, abandonando-me louca para os braços de Jesus pela Mãezinha, sem o mínimo sentimento de que por Eles era aceite. Esta noite passeia-a mal, nos maiores sofrimentos do corpo. Não pude dormir. Pude acompanhar Jesus da prisão aos tribunais. Como a minha alma agonizava!... Esta manhã voltei a acompanhá-Lo, mas brava: pedia a Sua condenação. Fui eu que Lhe dei a morte. Na mesma manhã, uma visita recomendada veio aumentar o meu calvário, veio rasgar-me o coração, tocando-me num ponto que é o maior tormento da minha vida. Chorei muitas lágrimas, mesmo muitas, mas todas tinham um fim: de ir para Jesus.

Meu Deus, só vós conheceis como foi grande a minha dor. No íntimo do meu coração bradava constantemente: basta, basta, e com os lábios dizia: Jesus, não basta. Tudo o que Vós quiserdes, ó Amor, ó Amor, ó Amor, tudo o que Vós quiserdes; sou a Vossa vítima. Meu Deus, como pode ser, se o que vale é o que vem do íntimo, de dentro do coração para fora e não aquilo que dizem os lábios que vai de fora para dentro!? Eu não queria que o coração falasse assim, bradasse desta maneira. Eu queria que ele dissesse o que diziam os lábios, porque era a minha ansiedade, é só o que eu quero. Não tenho outro querer a não ser o de Jesus. Não era eu que assim falava no coração. Não sei quem era que dizia “basta”. Ai, quanto me custou esta luta! Nesta agonia mortal, veio Jesus ao meu encontro. Chamou-me. Só O ouvi, não O vi, nem O senti.

― “Vem, minha filha, de encontro ao teu Jesus. Tem coragem. Não duvides, olha que sou Eu. Fui Eu que te escolhi, fui Eu que te preparei, fui Eu que assim te assemelhei a Mim. Escolhi-te para a mais nobilíssima missão. Preparei-te para ela. Assemelhei-te a Mim em toda a minha vida, na minha santa Paixão. Não te disse Eu: sofre, sofre, deixa que te humilhem e caluniem?! Recorda o que de Mim disseram.”

― Ó Jesus, eu não Vos vejo, eu não Vos sinto, mas quero confiar que sois Vós.

― “Colóquio de fé, colóquio de dor e de amor, minha filha, foi o que te disse Jesus. Sim, sem o amor, sem a tua loucura de amor não podias ser vítima de reparação, não podias assim sofrer e viver da fé sem a sentires. Confia, confia.”

Jesus foi jogar o seu “esconde-esconde”. Desapareceu. Fiquei caída como morta. Não dei um passo, nem chamei por Ele. Pouco depois uma força invisível me levantou e ouvi de novo a voz do meu Senhor:

― “Minha filha, vou dar-te o grande privilégio, vou dar-te a prova da minha loucura de amor. Amo-te tanto, tanto, amo-te com o maior amor com que Deus pode amar uma criatura Sua. Vais receber-Me na Eucaristia. O teu anjo da guarda vai ser quem Me vai depositar na tua língua para Eu baixar ao teu coração.”

Era uma sala de que não lhe via o fim. Estava toda armada em roxo escuro. Só via bater as asas brancas de alguns anjos que em ala, silenciosos, se curvavam reverentes. Veio o meu anjo e deu-me Jesus. Era uma Hóstia grande. Pronunciou as palavras do Viaticus corpus Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam. Ámen. Em seguida, falou-me assim:

― “Vais agora, esposa e vítima do Rei celeste, receber o Sangue do teu Esposo Jesus. Vai-te ser dado pelo Anjo de Portugal.”

Aproximou-se esse anjo de mim e do meu anjo da guarda, que foi quem me disse estas palavras. O anjo vestia de branco e capa azul. Trazia nas mãos uma pequenina taça e disse:

― Recebe, que é o Sangue de Jesus. Ele o deitou para aqui do Seu Coração. Vai fazer que ele passe para o teu.

Bebi o bocadinho do Sangue. Os anjos desapareceram. Ficou Jesus. Fez-me sentir o Seu amor e disse-me:

― “Fortalece-te, minha filha, fortalece-te para a dor. Não podes deixar de sofrer, porque o mundo não deixa de pecar. Aceita, aceita. Não sentirás a ressurreição. A tua alma não terá Páscoa, para que muitas almas ressuscitem e tenham a Páscoa da graça. Aceita. Coragem.”

Fugiu-me para sempre o meu Jesus. Fiquei no meu grande tormento a dizer-Lhe que aceitava, a dizer-Lhe o meu “creio”, sem esquecer os meus pedidos.

― Sede comigo, Jesus. Sede sempre a minha força.

23 de Abril de 1954 – Sexta-feira

Não chegou a minha aleluia. Não houve para mim a ressurreição de Jesus. Estou em agonia. Estou em grandes sofrimentos da alma. Todo o meu ser é um trapo que a dor desfez, produzido pela lepra do pecado. Os espinhos não cessam de ferir-me. São bem agudos e penetrantes.

Duas coisas tive de motivo de alegria, se Jesus mas deixasse sentir. Aprouve ao Senhor que nada me alegrasse; só com os olhos n’Ele me alegro no cumprimento da Sua divina vontade. Custa-me tanto, tanto, dizerem-me à minha frente que lhes foi dito que quem me visitasse ficaria excomungado.

― Jesus, Jesus, ai quanto custa! Seja tudo por Vosso amor e pela salvação das almas.

Causam-me pavor as visitas. Parece-me ter nojo delas. A todos ao mesmo tempo quero abraçar e possuir no meu coração; mas, meu Deus, essa excomunhão de que me acusam prejudicará essas almas?! Não estou aqui para ruína delas, mas sim por Vosso amor e por elas me imolar. Não posso dizer mais nada. Vou dizer as palavras do colóquio de Jesus. Mas, ah! Se eu pudesse ao menos colocar neste caderno o livro infindo do meu coração para ele dizer tudo, para falar do amor de Jesus, para dizer o que é dor e a minha loucura pelas almas! Se eu pudesse fazer desaparecer o pecado, para o meu Amado não ser ofendido, para nenhuma alma se perder. Que sabedoria tem este livro! Como ele conhece e compreende todas as coisas, e como eu sou ignorante para as saber dizer. Não há ignorância igual à minha.

Depois de eu ter desprezado e esquecido o horto, esqueci e desprezei o calvário. Caminhava na maior angústia, caminhava de tal forma que o chão se abria para me engolir e em corpo e alma ia precipitando-me no inferno.

Meu Deus, que pavor! Já nas garras de Satanás, atormentada por ele, ouvi alguém que fez abrir a terra que me tinha engolido, tirou-ma da garra do demónio e das chamas infernais. A alma agonizava e o corpo estava cansado de tanto sofrer. Chamei por Jesus e pela Mãezinha. Uma coisa me dizia: perdi tudo. Não existem para mim, não tenho Jesus, não tenho a Mãezinha. Tive um desfalecimento mortal. No meio dele, principiei a repetir o meu “creio” sem acredita. Ouvi a voz de Jesus que me chamou:

― “Minha filha, minha querida filha, levanta-te! Coragem! Vem a Mim! Tu tens de viver sem vida, tens de viver sem luz, tens de acreditar sem sentimento de que acreditas. Amas-Me sem saberes que Me amas, sem teres esse sentimento. Os pecadores, as almas, o mundo, obrigam-Me a exigir de ti esta reparação. Coragem! Coragem! É para que as almas não caiam no inferno.”

― O inferno, o inferno, ó Jesus, que tremendo é o inferno! Não posso pensar que as almas se perdem. Não posso consentir que as almas caiam no inferno, não posso saber que o Vosso Divino Sangue foi derramado inútil. Onde estais, Jesus, onde estais? Que escuridão, que montanha, que distância me separa! Eu amo-Vos, Jesus, eu amo-Vos na minha cruz, na minha dor! Aceito, aceito. Tudo por Vós!

Desta escuridão passei à luz; da agonia à suavidade. Jesus continuou, mas sem que eu O visse:

― “Esta distância é a minha distância do pecador. A montanha são os crimes. A luz que vês é a minha luz; a suavidade o meu conforto. Tu és a minha vítima. Coragem e confiança! Tu fechaste com os teus sofrimentos as portas do inferno a milhares, a milhões, a milhões de almas. Nunca mais se abrirão para elas. O inferno abre-se para aquelas almas que desprezaram o meu Sangue, que calcaram o meu Sangue divino e desprezam ainda os meios que lhes dei, os sofrimentos, a imolação contínua da vítima deste calvário, da maior vítima que escolhi par a humanidade.”

― Ó Jesus, que tormento o meu, que humilhação. Eu desapareço ao ouvir-Vos falar assim.

Voltei ao meu nada, ao nada de que me tirastes. Falo assim, digo a verdade.

― “Posso falar, posso dizer tudo da minha esposa amada. Tem coragem!...”

Fui tão ao nada, fiquei no silêncio da morte. Algum tempo depois, a voz de Jesus deu-me a vida, mas então vi-O em tamanho natural com o Seu peito aberto e a pegar para as Suas mãos o Seu Divino Coração. Juntou-O ao meu e disse:

― “Vem receber a gota do meu Divino Sangue, a vida para viveres, a vida para dares. Tem coragem! Um pouco mais! Um pouco mais, porque o teu Céu está perto. A tua missão lá vai continuar. Por ti as almas são enriquecidas. Por ti o mundo será favorecido. Eu não falto às minhas promessas. Eu queria que se compreendesse a minha vida prodigiosa em ti. Eu quero que todos saibam a tua loucura de amor por Mim, por Mim e pelas almas, pelas almas de quem sentes pejo e pavor. É para que o não sinta Eu! Esse pejo e pavor causam-me elas a Mim. És vítima, és vítima! Coragem! Coragem!”

Desapareceu Jesus. Eu voltei à tristeza, à cegueira, à morte. Fiquei na cruz, angustiada, mas não esqueci nem um só pedido. Lembrei tudo a Jesus, mesmo na Sua ausência a repetir o meu “creio” muitas, muitas vezes, recordando que Ele prometeu sempre estar comigo.

30 de Abril de 1954 – Sexta-feira

Espinhos, sempre espinhos a penetrarem-me, a ferirem-me: é sempre a mesma vida. O meu calvário é só dor, só dor.

― Meu Deus, chegarei ao fim? Creio, creio e só em Vós confio.

Se esta minha palavra de “creio” fosse sentida, se, quando digo a Jesus que confio, soubesse que confiava, todo o meu calvário era suavizado.

― Oh! Não, meu Deus, não! Nada sinto, e parece que nada acredito! Este tormento de mentir aos outros e mentir a mim mesma e sobretudo a Vós, meu Sumo Bem, quanto me custa, quanto me custa!... Só vós o sabeis! Bendito sejais!

Envergonho-me ao máximo falar da minha cruz, sofrimento e calvário. É o meu pão. Outra massa não tenho; a dor, a dor… A minha loucura por Jesus, de O amar e de O fazer amado, de Lhe dar todas as almas, aumenta de dia para dia. Não tenho a mínima consolação nesta loucura, mas consome-me e nela me perco. É tal o abismo que desapareço. Mas a humilhação por as almas me rodearem envergonha-me de tal forma que também me faz desaparecer. Fica só a existir a minha miséria.

O meu sepulcro cá está na superfície da terra. Verdejam e vicejam flores à sua volta. Sinto e com os olhos da alma vejo que há quem cuide delas, mas não sei quem é. Eu, no meu ofício rude e penoso de cavador, continuo na mesma canseira, parecendo ter mundos e mundos sobre mim, tal é a profundidade em que trabalho. Os suores regam a alma e o corpo. A noite, as trevas aterradoras, a inutilidade e a morte caíram sobre tudo isto. Não vi, não vejo, não sou nada e nada tenho que dar ao meu Jesus. O meu brado não chega até Ele. As minhas lágrimas não O consolam. Ah! Se Jesus saboreasse em mim alguma coisa, não me importava sofrer. Assim também não me importo. Com o sentimento completo pelo abandono da terra a Ele me abandonei pela Mãezinha.

― Sou Vossa, sou Vossa, sempre a Vossa vítima. Ó Jesus, eu creio, eu creio!

Ontem, no meu horto, não tive coragem de Lhe dizer o meu “creio”. Chorei, uni-me aos Seus sofrimentos. Hoje, numa indizível amargura na viagem para o Calvário, amargura tão triste e dolorosa que me obrigava as lágrimas a regarem-me a face. Pelo Céu e terra abandonada não deixei de chamar por Jesus, mas com tal desfalecimento que nunca Lhe repeti a palavra “creio”. Num momento inesperado, senti em mim um amor tão forte, amor que não era meu, mas nele me mergulhei. Não por mim, mas por força estranha que n’Ele me mergulhou. Após uns momentos de experimentar este amor, ouvi Jesus a dizer-me assim:

― “Amor, amor, amor, minha filha, sou Eu o amor que te atrai, sou Eu o amor por quem vives, a quem só amas, por quem enlouqueceste. Tem coragem! A tua vida é a vida mais imitadora de Jesus. Por ti Me enlouqueci. A Mim te assemelhei. Não duvides, nada temas. Tu vives a minha vida, a minha vida comunicas. A tua morte ressuscita e dá a vida às almas, depois de iluminadas com a tua cegueira. As tuas densas trevas são a luz do mundo.”

Eu não tive a visão de Jesus; nem os olhos da alma, nem os do corpo viram. Quando Ele assim falava, fiquei sem o mínimo bocadinho do Seu amor, envolta no mar mais tempestuoso; as ondas debatiam-se com a maior fúria, enrolando-me, levando-me à profundeza do mar que não tinha fim. Os ventos sopravam, novas ondas debatidas traziam-me à superfície da água. Sem ninguém por mim, julguei-me perdida. Veio Jesus novamente.

― “Minha filha, ó minha filha, vem cá. Dá-me as tuas mãos. Vem para a barquinha do Meu Coração Divino. Por Mim és salva como foram os meus apóstolos. Este mar é o mar das paixões, esta fúria tempestuosa é a fúria louca dos vícios. Acode ao mundo! Sustenta o braço da justiça de meu Pai! Tenho tantos espinhos e punhais no meu Coração!... Queres que eles passem para ti, como as setas do Coração Imaculado de minha Mãe?”

Ainda não tinha pronunciado a palavra “sim”, mas o meu coração estava ansioso por a pronunciar e já os espinhos da cabeça sacrossanta de Jesus se deslocavam por si para a minha cabeça e os punhais para o coração. Jesus deu-me as setas da querida Mãezinha que tinha em suas mãos e com muito cuidado nas espetou no coração, enquanto eu Lhe dizia:

― Tudo quanto quiserdes. Sou a Vossa vítima!

Tudo isto se passou dentro do Coração Divino de Jesus. A tempestade estava serena. Tudo isto foi visto com os olhos da minha alma e mais ainda a forma como Jesus passou o Sangue para o meu coração. Fez do Seu uma pequenina e bela infusinha que tombou sobre o meu coração, e a gotinha do sangue caiu.

― “Recebe a gota do meu Divino Sangue, a vida que vives, a vida que comunicas a milhares e milhares de almas que se abeiram de ti. Tem coragem! Tem coragem! Tende coragem! Nenhuma alma sai daqui (foi esta a minha promessa e Eu não falto) que vá como veio. Quantas ressurreições, quantas ressurreições! Em algumas daquelas mais renitentes, que parece nada aproveitarem, levam o remorso. Elas não querem ceder. O seu orgulho não quer baixar, mas a graça lá fica para mais tarde. Eu não te abandono. Minha Bendita Mãe não te abandona. Confia! Não Nos perdeste. Quanto maior é o sentimento da perda, mais Nos possuis. Como abandonar-te a ti a quem confiei que continues a minha obra de salvação! A tua vida vai ser sempre assim até ao fim. Não quero dizer que ainda não te sejam dados momentos de alegria, mas não para tu os sentires.

Recebe as carícias da minha Bendita Mãe. O teu adeus não foi até ao Céu. Ela virá ainda ver-te na terra. Recebe as carícias de Jesus com as da Mãezinha com os Seus ósculos santíssimos que trazia em Suas santíssimas mãos.”

Disse-Lhe o meu “obrigada” para Jesus e para a Mãezinha. Fiz-Lhes os meus pedidos, mas já no mar tempestuoso com a mesma fúria e sem a presença de Jesus. Já lá vão muitas horas, a tempestade continua; os seus espinhos e punhais e setas da Mãezinha continuam a estar presentes no coração e a virem novos espinhos constantemente. O Senhor seja bendito!

   

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