Se não recuperar
algumas melhoras, terei de deixar de ditar, não com o fim de desobediência, mas
sim por não poder. O sentimento, o pensamento, embora involuntário, de ter
perdido a Jesus e a Mãezinha, arrancam-me o coração e as veias que a ele
prendem, põem-me a alma em sangue.
Meu Deus, que
sofrimento! Sempre que se aproxima o santo tempo da Quaresma, eu fico tímida, à
espera da tempestade que surge. É a experiência já de há muitos anos. Nesta
recebi agudos espinhos, grande dor, ainda dias antes. Virá mais alguma coisa?
Abro os braços para tudo.
― Jesus, sou a
Vossa vítima.
Além da minha
inutilidade e da minha eternidade, o meu sepulcro e a vida de cavador com os
suores na profundeza dum abismo, eu sentia a tal velhice de que já falei, mas
esta velhice parecia-me vir do alto, que era do Céu. A alma e o corpo sofreram
horrivelmente. Parece que perdi a minha tão querida união com Deus. Parece que
nada ligo a Jesus e à Mãezinha, ás coisas do Céu.
― Ó meu Deus, ó
meu Deus, onde estais Vós? Parece que perdi tudo!
Repito actos de
fé muitas vezes, mas estes mesmos parece, sinto que são sem fé.
Ontem à tarde,
apoderou-se da minha alma um pavor tão grande com o pensamento do Horto e do
Calvário, com o sentimento de tudo ser inútil e estar perdido para mim, como
nunca tinha sentido. Era um pavor infernal. Hoje, perto das três horas,
renovou-se esse sofrimento. De nada valiam os actos de fé que eu fazia. Estava
no profundo abismo do inferno, a sofrer todos os tormentos. A alma fitava os
olhos para o alto, a ver se conseguia ver a Deus; não podia conformar-me em O
ter perdido! Que pavor, meu Deus, que inigualável pavor! Perdi a Deus, perdi a
Deus para sempre, bradava o meu coração. Jesus veio, pegou-me pela mão,
sentou-se, fez que a minha cabeça reclinasse sobre os Seus joelhos.
― “Não perdeste a
Deus, não perdeste a Deus, minha filha, nem jamais o perderás. Descansa, estou
aqui para tua paz, para teu conforto. Ó grande ciência e sabedoria de Deus! Aqui
está tudo. Tu reparas por toda a variedade de crimes. És vítima por mim
escolhida. Sofre a pena do dano, que as almas sofriam, se as não salvasses. A
velhice que sentiste era de meu Eterno Pai. Fiz assim para que o pudesse
compreender. Por isso não havia velhice na terra como a tua. Ele estava em ti.
Quis que compartilhasses d’Ele como de Mim e do Espírito Santo. Ele sobre ti
poisou com toda a Sua justiça, obrigando-te a unir a face à terra, a beijá-la
para reparares por toda a sua matéria. Ciência, grande ciência, só é assim a
sabedoria de Deus!”
Desapareceu-me.
Fiquei possuidora duns raiozinhos de luz; e fui seguindo aquela luz na ansiedade
e O voltar a encontrar. Queria o meu Jesus, por mais dolorosos e espinhosos que
fossem os meus caminhos. Eis-me de novo junto d’Ele a dizer-me:
― “Não te fujo,
esposa querida. Estou sempre junto de ti. Coragem, coragem, estás perto do Céu.
Salva o mundo, que é teu. Salva as almas. Dor, sangue e amor. O mundo é teu,
acode às almas com o teu martírio. Oh! Como se peca! Oh! Como Eu sou ofendido!
Recebe a gota do
meu Divino Sangue; a minha vida e a tua vida. Comunica-a às almas, enche-as de
Mim. Dá-me o teu amor e faz que Eu seja amado. Ama-Me, louquinha, ama-Me,
louquinha, incendeia no mundo o meu amor.”
Os nossos
corações estavam quase unidos; um pequenino tubo de ouro ligava-os um ao outro.
A minha cabeça estava inclinada à de Jesus. Ele com as mãos cheias de graças
encheu-me delas o coração, encheu-me as mãos também. Em seguida, acariciou-me e
disse-me:
― “São graças e
carícias minhas e de minha Bendita Mãe; é Ela que tas envia. Espalha-as na
terra, enche delas os que se abeiram de ti. Tem coragem, sofre, sofre, está
perto o Céu.”
Fiz-Lhe os meus
pedidos, dei-Lhe os meus agradecimentos e assim fiquei sem Jesus.
Que mar, que
mundo de sofrimentos! Não estará ainda preenchida a medida de tanta dor? Muitas
vezes me chego a apavorar do sofrimento, embota o meu coração e a minha alma
vivam em infinita ansiedade de sofrerem por Jesus, de dar almas a Jesus. O meu
corpo frito, por dentro e por fora, parece, por vezes, arder num verdadeiro
inferno. Peço alívio, peço a mudança de posição para poder resistir sem
desespero. Noutras partes do corpo o gelo gela-me, fogo e gelo ao mesmo tempo,
frio, gelo que dói, que atormenta como fogo. Quase continuamente banhado em suor
todo o corpo e, muitas vezes, a sentir também os suores da alma. É grande o
afastamento do meu Senhor, parece eterna a perda de Jesus e da Mãezinha, a perda
do Paraíso. Vivo horas também numa ansiedade pelo Céu, numa loucura de fazer
desaparecer o pecado do mundo, para Jesus não sofrer. Só no Céu será conhecido
tudo isto e a ansiedade infinita que tenho de O amar. Sem poder orar, vou
repetindo em espírito: tudo para Vos amar e fazer amar, salvar-Vos almas, almas,
muitas almas. Não posso mais. Vou ver se consigo dizer as palavrinhas do
colóquio com Jesus. Neste nunca exprimir de sofrimento, senti que o céu se
aproximou de mim, que o azul do firmamento me absorveu e transportou para o
além, ao encontro de Jesus. Mergulhada no Seu amor, presa pela Sua divina mão,
ouvi que Ele me dizia assim:
― “Vem, esposa
amada, esposa querida, repousa aqui no meu amor, recebe nova vida. Eu estou como
o esposo arrependido por martirizar, quase tirar a vida à sua esposa. Aqui não
sou Eu esse esposo que foi cruel. Aqui é o mundo a martirizar-te, a chupar-te o
sangue, a tirar-te a vida. O mundo, o mundo perdido!
Ó esposa minha, ó
vítima imolada, olha os filhos meus que não atendem, não escutam a minha voz.
Luta, luta, sofre, sofre!”
O Senhor
desapareceu. Uma montanha negra, pavorosa, que chegava ao céu, me separou d’Ele.
Apoiada na fé e nas ânsias de amor, fui subindo, fui subindo até que atingi o
seu fim, consegui calcá-la e de novo passar o além e de novo encontrar Jesus.
― “Minha filha,
vítima da humanidade, esta montanha é montanha de vícios, crimes hediondos.
Destrói-a, calca-a, esmaga-a com o teu martírio, à semelhança da minha Bendita
Mãe, a calcar, a esmagar a cabeça da serpente. Sofre, sofre, triunfa com Ela. Se
não fosse a Sua santíssima mão, neste ano, que Lhe é dado, a sustentar a mão
vingadora de meu Pai, já o Céu se tinha aberto em fogo a queimar o mundo, a
puni-lo. Faz, faz, minha filha, que Ela seja amada, que todo o culto e louvor
Lhe sejam dados. Os meus filhos, os meus filhos a perderem-se; o meu Sangue
divino a ser derramado inútil!”
Eu estava
inclinada sobre o lado de Jesus, Ele chorava, e eu chorava. Com o Seu manto
limpei-Lhe as lágrimas e Ele com o mesmo limpou-me as minhas.
― “Sofre tudo,
sofre tudo. O teu Céu está perto. A tua missão, a mais difícil, mais alta e
sublime, não é compreendida. Eu triunfo sobre tudo e depressa, muito depressa,
no Paraíso tu a vais continuar, dando ao mundo toda a luz e todo o brilho.”
― Sem o fim da
recompensa, tudo aceito, tudo sofro. Não choreis, Jesus, sede a minha força.
Jesus meteu-me
toda no Seu Divino Coração. Eu para dentro dele comecei a arrastar a humanidade.
No mesmo momento, Jesus injectou-me o Seu Sangue.
― “Recebe, minha
filha, a gota do meu Divino Sangue, a vida de que tu vives. Recebe amor para
dares amor, luz para as tuas trevas, conforto para a tua dor. Acode ao mundo,
salva os pecadores.”
Pus-me a fazer os
meus pedidos, mas já sem a Sua divina presença. Com actos de fé fui-Lhos fazendo
e voltei para a minha cruz.
É tão grande o
meu esforço e o meu sacrifício em ditar estas palavrinhas! É indizível o meu
sofrimento, se não é triste desgraça de eu não saber sofrer. E sem dúvida quem
não sabe sofrer parece-lhe que sofre muito, quando na realidade não sofre nada.
― Meu Jesus, meu
Jesus, ensinai-me a sofrer o mais possível em silêncio e a esconder o mais que
puder a minha dor. Ai de mim que não oro, ai de mim que não amo o Amor que não é
amado. Eu perdi tudo, perdi Jesus e a Mãezinha e parece até ter perdido a fé.
Não quero duvidar, a razão obriga-me a crer e a repetir: creio, creio que não
perdi uma coisa nem a outra. Estou nos braços de Jesus, dei-me a Ele pela
Mãezinha e creio, vivo nesta esperança sem crer, nem ter esperança. Eles hão-de
pôr o mérito na minha vida, já que por mim nada tenho, já que fui e sou roubada
pela inutilidade, já que passei a viver a minha eternidade sem nada, nada
possuir. O meu túmulo, a minha vida lá pelos abismos vai continuando com os
suores da alma e do corpo. A minha velhice também. Ai que horror! Sinto-me
arrastada por cordas, coroada de espinhos, cuspida, esbofeteada; todo o meu ser
é sangue. O coração apunhalado, alanceado, jorra sangue, sofre dor tão grande,
tão grande, é infinita. A morte vem para mim a passos gigantescos. Sofrimento
pavoroso. Apesar disto, todo o meu ser se consome. São infinitas, tão infinitas
as minhas ânsias de amar a Jesus, de dar almas a Jesus, de falar de Jesus e de
fazer que o Seu reinado chegue aos confins do mundo. Ai, se não fosse a minha
ignorância! Ah! Se eu pudesse falar e soubesse falar, nunca, nunca terminava de
dizer, porque tudo isto é infinito, grande como Deus!
Meu Deus, o
estado da minha alma modificou-se; eu perdi tudo e tudo quero encontrar. Eu
estou no mundo e não sou do mundo, não vivo a vida do mundo, enquanto vivo para
o mundo e para as coisas do mundo. Ó Céu, ó céu, vinde em meu auxílio, fazei luz
na minha cegueira, nas minhas trevas e compreensão nas minhas palavras, que nada
dizem por ignorância. Esqueci por completo o meu Horto e Calvário; parece que
não quero ter um pensamento para lá. A palavra do “eu creio” foi-se repetindo no
meu íntimo, no maior abandono e no maior sentimento de morte.
Jesus veio como
de costume comunicar-me a Sua vida. Vinha acompanhado de S. José. A Sua mão
esquerda pegava na mão direita dele. S. José na sua mão esquerda trazia uma
grande açucena branca. Ao chegar junto de mim, beijou-me dos dois lados do rosto
e disse-me:
― Aceita um
ósculo meu, outro da minha Esposa, da tua Mãezinha a quem tanto amas. Faz que
ela seja amada, propaga a minha devoção, com isso muito me consolas.
Meteu na minha
mão direita o pé da açucena, fez que ela tombasse sobre a mão e braço esquerdo e
disse-me:
― Aceita,
ofereço-ta, é tua.
Osculou-me
novamente, com toda a seriedade e respeito e desapareceu; ficou só Jesus e teve
então Ele a palavra e disse-me:
― “Essa oferta,
essa açucena, minha filha, é o símbolo da tua vida de pureza. Confia, não
duvides, é Jesus que to afirma. O que fizeres à minha Bendita Mãe e a meu Pai
adoptivo, a Mim o fazes. Todo o culto e amor a Eles dedicado, aceito-o como para
Mim.”
Fiquei sozinha;
Jesus também desapareceu. Não podia lutar; não tinha forças, não via, nem actos
de fé sabia fazer. Neste abandono demorei-me, mergulhada nas trevas por algum
tempo.
Apareceram os
dois companheiros novamente. S. José trazia nos braços o manto e a coroa da
Mãezinha. Foi ele a colocar-mo aos ombros e a coroa na cabeça.
― Aceita nova
oferta da minha Esposa: o Seu manto e coroa de Rainha. O teu reinado é o mundo,
são as almas, são os pecadores.
Sem mais nada,
escondeu-se. Jesus continuou:
― “O demónio tem
sobre ti toda a sua raiva infernal. É grande o estrago que lhe dás. Fazes mais
mal à sua obra satânica pelo teu sofrimento do que todo o bem que na humanidade
se faz. Está raivoso, raivoso, serve-se de tudo, serve-se dos homens para a
minha causa destruir. Nunca, nunca seus infernais intentos se satisfazem. Sofre
tudo, minha filha, sofre toda a tua indizível dor e tormento. Repara-Me,
repara-Me por todos os sacrilégios e confissões nulas.”
― Jesus, eu
amo-Vos, sou a Vossa vítima.
― “Recebe a gota
do meu Divino Sangue. Vive, vive a minha vida, acode ao mundo, acode aos
pecadores, loucos a correrem para o inferno.”
Sem mais uma
palavra, fugiu-me o meu Jesus. Deixou-me tão triste, tão triste, em tanta dor,
em tantas trevas que mal pude fazer os meus pedidos. Para fazer actos de fé
tinha de mentir-me a mim mesma. Que Ele seja bendito por tudo.
A minha
eternidade, a minha eternidade, uma eternidade sem Deus, uma eternidade sem a
Mãezinha. Que saudades, que pena desta perda.
― Jesus, não vos
perdi! Mãezinha, não Vos perdi! Creio, creio, creio sempre que hei-de ser Vossa
no tempo e na eternidade.
Tenho de repetir
isto muitas vezes, mas custa-me imenso a repetir. Eu que odeio tanto a mentira
parece-me mentir a mim mesma, mentir ao mundo, mentir a Deus constantemente.
Sinto que perdi a minha união com Deus. Gostava tanto de viver unida a Ele.
Cheguei a ter consolação na minha união constante. Cheguei a ter conforto e hoje
não tenho nada. Que Jesus se console e tire para Ele todo o conforto. Os meus
males tão agravados continuam a não me deixar ditar. Faltam-me as forças, apesar
das minhas trevas, ignorância, inutilidade, morte e eternidade, eu sinto uma
necessidade mais que imensa, infinita de abrir à humanidade o meu peito e o
coração para que ela leia o que está lá dentro, para que ela veja o amor com que
é amada. Não é minha esta leitura, não é meu este amor.
― Ai, meu Deus!
Ai, meu Jesus! Como eu queria falar disto, como eu queria falar de Vós!
Parece que estou
louca por Jesus e pelas almas. Que tormento para a minha alma não poder rezar
por falta de forças e sentir que não vivo unida ao meu Senhor, que tudo perdi
para sempre. O meu túmulo existe sempre, os suores do corpo e da alma e aquele
ofício que nunca mais poderei deixar, ofício de cavador, no abismo profundo,
indizível, vou continuando com a minha velhice, velhice eterna. A morte vai
indo, vai-se aproximando. Já sinto bem a lança que me há-de trespassar o
coração, e o sangue corre pela montanha do calvário, sem eu querer saber dele,
nem do Horto, sem me aproveitar dos seus frutos. Recebo sofrimentos, espinhos de
toda a espécie. Só Jesus pode levar a minha cruz. Eu não sou capaz. Chamei por
Ele no desprezo do meu calvário, fiz actos de fé, arrastei-me a todo o custo à
Sua procura. Ele apareceu-me, veio ao meu encontro. Pegou-me em ambas as mãos,
levantou-me do meu desfalecimento; de mãos dadas fiquei de joelhos junto d’Ele
ao ouvir a Sua voz divina que assim me falava:
― “Minha filha, e
esposa querida, sou teu Pai e Esposo da tua alma. Sou o teu conforto, o teu
amparo e a tua vida. Não me perdeste, nem jamais perderás. Repete-me com
frequência, mesmo em espírito, muitos actos de fé. Tu não perdeste a união
comigo. Tu viés só de mim, em mim, unida a mim. Confia! Confia! Vem descansar
nos meus braços.”
― É de joelhos,
Jesus, que eu quero estar unida a Vós e chorar as minhas lágrimas. Sou nada, sou
pobrezinha, só Vos tenho ofendido. Não sei viver para Vós.
De nada adiantou
eu querer ficar de joelhos. Jesus sentou-se. Eu não fui para os seus braços.
Fiquei sentada junto d’Ele; tive por travesseira os Seus joelhos, amparada pelas
Suas divinas mãos. De pois de um pouco de silêncio, Ele continuou:
― “A tua missão
sublime, a mais difícil, a mais árdua, mas a maior de todas as missões da terra.
Tem-la desempenhado bem conforme a minha divina vontade. Se Eu tivesse no mundo
mais duas vítimas como tu!... Mas não tenho, não tenho!... Sofre, sofre!...”
Falharam-me os
joelhos de Jesus, falhou-me a Sua presença. Fiquei caída nas trevas mais
pavorosas. Não fui capaz de me levantar mais. Fui-me arrastando, repetindo os
meus actos de fé. Depois de muito lutar e caminhar de rasto, encontrei-O
novamente:
― “Estou aqui,
minha filha. Dor e sangue, dor e sangue! Só assim as almas são salvas.
Enriqueci-te, dei-Me todo a ti com todas as minhas graças e tesouros, com toda a
minha vida para por ti Me dar a elas. Deixa-as aproveitar. Dá-lhes tudo quanto
elas quiserem receber. Pus-te no mundo para as almas. Tu és a sua luz e farol.
Todos os meus prodígios em ti são meios de salvação. Pobres daqueles que não
querem ver! O teu Céu está próximo! A minha causa há-de triunfar com todo o
brilho e pompa. Uno ao teu o meu coração. Vou dar-te a gota do meu Sangue. Vou
dar-te nova vida para tudo o que a dor consome. Confia em Mim! Acode ao mundo!
Canso-Me de sustentar a justiça do meu Pai.”
― Vós não Vos
cansais, Jesus. Perdoai a todos. Lembro-Vos as minhas intenções
Quando assim
falava, já Jesus tinha fugido.
― Creio, creio,
apesar de sentir que nada passou por mim. |