Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

MARÇO 1954

5 de Março de 1954 – Sexta-feira

Se não recuperar algumas melhoras, terei de deixar de ditar, não com o fim de desobediência, mas sim por não poder. O sentimento, o pensamento, embora involuntário, de ter perdido a Jesus e a Mãezinha, arrancam-me o coração e as veias que a ele prendem, põem-me a alma em sangue.

Meu Deus, que sofrimento! Sempre que se aproxima o santo tempo da Quaresma, eu fico tímida, à espera da tempestade que surge. É a experiência já de há muitos anos. Nesta recebi agudos espinhos, grande dor, ainda dias antes. Virá mais alguma coisa? Abro os braços para tudo.

― Jesus, sou a Vossa vítima.

Além da minha inutilidade e da minha eternidade, o meu sepulcro e a vida de cavador com os suores na profundeza dum abismo, eu sentia a tal velhice de que já falei, mas esta velhice parecia-me vir do alto, que era do Céu. A alma e o corpo sofreram horrivelmente. Parece que perdi a minha tão querida união com Deus. Parece que nada ligo a Jesus e à Mãezinha, ás coisas do Céu.

― Ó meu Deus, ó meu Deus, onde estais Vós? Parece que perdi tudo!

Repito actos de fé muitas vezes, mas estes mesmos parece, sinto que são sem fé.

Ontem à tarde, apoderou-se da minha alma um pavor tão grande com o pensamento do Horto e do Calvário, com o sentimento de tudo ser inútil e estar perdido para mim, como nunca tinha sentido. Era um pavor infernal. Hoje, perto das três horas, renovou-se esse sofrimento. De nada valiam os actos de fé que eu fazia. Estava no profundo abismo do inferno, a sofrer todos os tormentos. A alma fitava os olhos para o alto, a ver se conseguia ver a Deus; não podia conformar-me em O ter perdido! Que pavor, meu Deus, que inigualável pavor! Perdi a Deus, perdi a Deus para sempre, bradava o meu coração. Jesus veio, pegou-me pela mão, sentou-se, fez que a minha cabeça reclinasse sobre os Seus joelhos.

― “Não perdeste a Deus, não perdeste a Deus, minha filha, nem jamais o perderás. Descansa, estou aqui para tua paz, para teu conforto. Ó grande ciência e sabedoria de Deus! Aqui está tudo. Tu reparas por toda a variedade de crimes. És vítima por mim escolhida. Sofre a pena do dano, que as almas sofriam, se as não salvasses. A velhice que sentiste era de meu Eterno Pai. Fiz assim para que o pudesse compreender. Por isso não havia velhice na terra como a tua. Ele estava em ti. Quis que compartilhasses d’Ele como de Mim e do Espírito Santo. Ele sobre ti poisou com toda a Sua justiça, obrigando-te a unir a face à terra, a beijá-la para reparares por toda a sua matéria. Ciência, grande ciência, só é assim a sabedoria de Deus!”

Desapareceu-me. Fiquei possuidora duns raiozinhos de luz; e fui seguindo aquela luz na ansiedade e O voltar a encontrar. Queria o meu Jesus, por mais dolorosos e espinhosos que fossem os meus caminhos. Eis-me de novo junto d’Ele a dizer-me:

― “Não te fujo, esposa querida. Estou sempre junto de ti. Coragem, coragem, estás perto do Céu. Salva o mundo, que é teu. Salva as almas. Dor, sangue e amor. O mundo é teu, acode às almas com o teu martírio. Oh! Como se peca! Oh! Como Eu sou ofendido!

Recebe a gota do meu Divino Sangue; a minha vida e a tua vida. Comunica-a às almas, enche-as de Mim. Dá-me o teu amor e faz que Eu seja amado. Ama-Me, louquinha, ama-Me, louquinha, incendeia no mundo o meu amor.”

Os nossos corações estavam quase unidos; um pequenino tubo de ouro ligava-os um ao outro. A minha cabeça estava inclinada à de Jesus. Ele com as mãos cheias de graças encheu-me delas o coração, encheu-me as mãos também. Em seguida, acariciou-me e disse-me:

― “São graças e carícias minhas e de minha Bendita Mãe; é Ela que tas envia. Espalha-as na terra, enche delas os que se abeiram de ti. Tem coragem, sofre, sofre, está perto o Céu.”

Fiz-Lhe os meus pedidos, dei-Lhe os meus agradecimentos e assim fiquei sem Jesus.

12 de Março de 1954 – Sexta-feira

Que mar, que mundo de sofrimentos! Não estará ainda preenchida a medida de tanta dor? Muitas vezes me chego a apavorar do sofrimento, embota o meu coração e a minha alma vivam em infinita ansiedade de sofrerem por Jesus, de dar almas a Jesus. O meu corpo frito, por dentro e por fora, parece, por vezes, arder num verdadeiro inferno. Peço alívio, peço a mudança de posição para poder resistir sem desespero. Noutras partes do corpo o gelo gela-me, fogo e gelo ao mesmo tempo, frio, gelo que dói, que atormenta como fogo. Quase continuamente banhado em suor todo o corpo e, muitas vezes, a sentir também os suores da alma. É grande o afastamento do meu Senhor, parece eterna a perda de Jesus e da Mãezinha, a perda do Paraíso. Vivo horas também numa ansiedade pelo Céu, numa loucura de fazer desaparecer o pecado do mundo, para Jesus não sofrer. Só no Céu será conhecido tudo isto e a ansiedade infinita que tenho de O amar. Sem poder orar, vou repetindo em espírito: tudo para Vos amar e fazer amar, salvar-Vos almas, almas, muitas almas. Não posso mais. Vou ver se consigo dizer as palavrinhas do colóquio com Jesus. Neste nunca exprimir de sofrimento, senti que o céu se aproximou de mim, que o azul do firmamento me absorveu e transportou para o além, ao encontro de Jesus. Mergulhada no Seu amor, presa pela Sua divina mão, ouvi que Ele me dizia assim:

― “Vem, esposa amada, esposa querida, repousa aqui no meu amor, recebe nova vida. Eu estou como o esposo arrependido por martirizar, quase tirar a vida à sua esposa. Aqui não sou Eu esse esposo que foi cruel. Aqui é o mundo a martirizar-te, a chupar-te o sangue, a tirar-te a vida. O mundo, o mundo perdido!

Ó esposa minha, ó vítima imolada, olha os filhos meus que não atendem, não escutam a minha voz. Luta, luta, sofre, sofre!”

O Senhor desapareceu. Uma montanha negra, pavorosa, que chegava ao céu, me separou d’Ele. Apoiada na fé e nas ânsias de amor, fui subindo, fui subindo até que atingi o seu fim, consegui calcá-la e de novo passar o além e de novo encontrar Jesus.

― “Minha filha, vítima da humanidade, esta montanha é montanha de vícios, crimes hediondos. Destrói-a, calca-a, esmaga-a com o teu martírio, à semelhança da minha Bendita Mãe, a calcar, a esmagar a cabeça da serpente. Sofre, sofre, triunfa com Ela. Se não fosse a Sua santíssima mão, neste ano, que Lhe é dado, a sustentar a mão vingadora de meu Pai, já o Céu se tinha aberto em fogo a queimar o mundo, a puni-lo. Faz, faz, minha filha, que Ela seja amada, que todo o culto e louvor Lhe sejam dados. Os meus filhos, os meus filhos a perderem-se; o meu Sangue divino a ser derramado inútil!”

Eu estava inclinada sobre o lado de Jesus, Ele chorava, e eu chorava. Com o Seu manto limpei-Lhe as lágrimas e Ele com o mesmo limpou-me as minhas.

― “Sofre tudo, sofre tudo. O teu Céu está perto. A tua missão, a mais difícil, mais alta e sublime, não é compreendida. Eu triunfo sobre tudo e depressa, muito depressa, no Paraíso tu a vais continuar, dando ao mundo toda a luz e todo o brilho.”

― Sem o fim da recompensa, tudo aceito, tudo sofro. Não choreis, Jesus, sede a minha força.

Jesus meteu-me toda no Seu Divino Coração. Eu para dentro dele comecei a arrastar a humanidade. No mesmo momento, Jesus injectou-me o Seu Sangue.

― “Recebe, minha filha, a gota do meu Divino Sangue, a vida de que tu vives. Recebe amor para dares amor, luz para as tuas trevas, conforto para a tua dor. Acode ao mundo, salva os pecadores.”

Pus-me a fazer os meus pedidos, mas já sem a Sua divina presença. Com actos de fé fui-Lhos fazendo e voltei para a minha cruz.

19 de Março de 1954 – Sexta-feira

É tão grande o meu esforço e o meu sacrifício em ditar estas palavrinhas! É indizível o meu sofrimento, se não é triste desgraça de eu não saber sofrer. E sem dúvida quem não sabe sofrer parece-lhe que sofre muito, quando na realidade não sofre nada.

― Meu Jesus, meu Jesus, ensinai-me a sofrer o mais possível em silêncio e a esconder o mais que puder a minha dor. Ai de mim que não oro, ai de mim que não amo o Amor que não é amado. Eu perdi tudo, perdi Jesus e a Mãezinha e parece até ter perdido a fé. Não quero duvidar, a razão obriga-me a crer e a repetir: creio, creio que não perdi uma coisa nem a outra. Estou nos braços de Jesus, dei-me a Ele pela Mãezinha e creio, vivo nesta esperança sem crer, nem ter esperança. Eles hão-de pôr o mérito na minha vida, já que por mim nada tenho, já que fui e sou roubada pela inutilidade, já que passei a viver a minha eternidade sem nada, nada possuir. O meu túmulo, a minha vida lá pelos abismos vai continuando com os suores da alma e do corpo. A minha velhice também. Ai que horror! Sinto-me arrastada por cordas, coroada de espinhos, cuspida, esbofeteada; todo o meu ser é sangue. O coração apunhalado, alanceado, jorra sangue, sofre dor tão grande, tão grande, é infinita. A morte vem para mim a passos gigantescos. Sofrimento pavoroso. Apesar disto, todo o meu ser se consome. São infinitas, tão infinitas as minhas ânsias de amar a Jesus, de dar almas a Jesus, de falar de Jesus e de fazer que o Seu reinado chegue aos confins do mundo. Ai, se não fosse a minha ignorância! Ah! Se eu pudesse falar e soubesse falar, nunca, nunca terminava de dizer, porque tudo isto é infinito, grande como Deus!

Meu Deus, o estado da minha alma modificou-se; eu perdi tudo e tudo quero encontrar. Eu estou no mundo e não sou do mundo, não vivo a vida do mundo, enquanto vivo para o mundo e para as coisas do mundo. Ó Céu, ó céu, vinde em meu auxílio, fazei luz na minha cegueira, nas minhas trevas e compreensão nas minhas palavras, que nada dizem por ignorância. Esqueci por completo o meu Horto e Calvário; parece que não quero ter um pensamento para lá. A palavra do “eu creio” foi-se repetindo no meu íntimo, no maior abandono e no maior sentimento de morte.

Jesus veio como de costume comunicar-me a Sua vida. Vinha acompanhado de S. José. A Sua mão esquerda pegava na mão direita dele. S. José na sua mão esquerda trazia uma grande açucena branca. Ao chegar junto de mim, beijou-me dos dois lados do rosto e disse-me:

― Aceita um ósculo meu, outro da minha Esposa, da tua Mãezinha a quem tanto amas. Faz que ela seja amada, propaga a minha devoção, com isso muito me consolas.

Meteu na minha mão direita o pé da açucena, fez que ela tombasse sobre a mão e braço esquerdo e disse-me:

― Aceita, ofereço-ta, é tua.

Osculou-me novamente, com toda a seriedade e respeito e desapareceu; ficou só Jesus e teve então Ele a palavra e disse-me:

― “Essa oferta, essa açucena, minha filha, é o símbolo da tua vida de pureza. Confia, não duvides, é Jesus que to afirma. O que fizeres à minha Bendita Mãe e a meu Pai adoptivo, a Mim o fazes. Todo o culto e amor a Eles dedicado, aceito-o como para Mim.”

Fiquei sozinha; Jesus também desapareceu. Não podia lutar; não tinha forças, não via, nem actos de fé sabia fazer. Neste abandono demorei-me, mergulhada nas trevas por algum tempo.

Apareceram os dois companheiros novamente. S. José trazia nos braços o manto e a coroa da Mãezinha. Foi ele a colocar-mo aos ombros e a coroa na cabeça.

― Aceita nova oferta da minha Esposa: o Seu manto e coroa de Rainha. O teu reinado é o mundo, são as almas, são os pecadores.

Sem mais nada, escondeu-se. Jesus continuou:

― “O demónio tem sobre ti toda a sua raiva infernal. É grande o estrago que lhe dás. Fazes mais mal à sua obra satânica pelo teu sofrimento do que todo o bem que na humanidade se faz. Está raivoso, raivoso, serve-se de tudo, serve-se dos homens para a minha causa destruir. Nunca, nunca seus infernais intentos se satisfazem. Sofre tudo, minha filha, sofre toda a tua indizível dor e tormento. Repara-Me, repara-Me por todos os sacrilégios e confissões nulas.”

― Jesus, eu amo-Vos, sou a Vossa vítima.

― “Recebe a gota do meu Divino Sangue. Vive, vive a minha vida, acode ao mundo, acode aos pecadores, loucos a correrem para o inferno.”

Sem mais uma palavra, fugiu-me o meu Jesus. Deixou-me tão triste, tão triste, em tanta dor, em tantas trevas que mal pude fazer os meus pedidos. Para fazer actos de fé tinha de mentir-me a mim mesma. Que Ele seja bendito por tudo.

26 de Março de 1954 – Sexta-feira

A minha eternidade, a minha eternidade, uma eternidade sem Deus, uma eternidade sem a Mãezinha. Que saudades, que pena desta perda.

― Jesus, não vos perdi! Mãezinha, não Vos perdi! Creio, creio, creio sempre que hei-de ser Vossa no tempo e na eternidade.

Tenho de repetir isto muitas vezes, mas custa-me imenso a repetir. Eu que odeio tanto a mentira parece-me mentir a mim mesma, mentir ao mundo, mentir a Deus constantemente. Sinto que perdi a minha união com Deus. Gostava tanto de viver unida a Ele. Cheguei a ter consolação na minha união constante. Cheguei a ter conforto e hoje não tenho nada. Que Jesus se console e tire para Ele todo o conforto. Os meus males tão agravados continuam a não me deixar ditar. Faltam-me as forças, apesar das minhas trevas, ignorância, inutilidade, morte e eternidade, eu sinto uma necessidade mais que imensa, infinita de abrir à humanidade o meu peito e o coração para que ela leia o que está lá dentro, para que ela veja o amor com que é amada. Não é minha esta leitura, não é meu este amor.

― Ai, meu Deus! Ai, meu Jesus! Como eu queria falar disto, como eu queria falar de Vós!

Parece que estou louca por Jesus e pelas almas. Que tormento para a minha alma não poder rezar por falta de forças e sentir que não vivo unida ao meu Senhor, que tudo perdi para sempre. O meu túmulo existe sempre, os suores do corpo e da alma e aquele ofício que nunca mais poderei deixar, ofício de cavador, no abismo profundo, indizível, vou continuando com a minha velhice, velhice eterna. A morte vai indo, vai-se aproximando. Já sinto bem a lança que me há-de trespassar  o coração, e o sangue corre pela montanha do calvário, sem eu querer saber dele, nem do Horto, sem me aproveitar dos seus frutos. Recebo sofrimentos, espinhos de toda a espécie. Só Jesus pode levar a minha cruz. Eu não sou capaz. Chamei por Ele no desprezo do meu calvário, fiz actos de fé, arrastei-me a todo o custo à Sua procura. Ele apareceu-me, veio ao meu encontro. Pegou-me em ambas as mãos, levantou-me do meu desfalecimento; de mãos dadas fiquei de joelhos junto d’Ele ao ouvir a Sua voz divina que assim me falava:

― “Minha filha, e esposa querida, sou teu Pai e Esposo da tua alma. Sou o teu conforto, o teu amparo e a tua vida. Não me perdeste, nem jamais perderás. Repete-me com frequência, mesmo em espírito, muitos actos de fé. Tu não perdeste a união comigo. Tu viés só de mim, em mim, unida a mim. Confia! Confia! Vem descansar nos meus braços.”

― É de joelhos, Jesus, que eu quero estar unida a Vós e chorar as minhas lágrimas. Sou nada, sou pobrezinha, só Vos tenho ofendido. Não sei viver para Vós.

De nada adiantou eu querer ficar de joelhos. Jesus sentou-se. Eu não fui para os seus braços. Fiquei sentada junto d’Ele; tive por travesseira os Seus joelhos, amparada pelas Suas divinas mãos. De pois de um pouco de silêncio, Ele continuou:

― “A tua missão sublime, a mais difícil, a mais árdua, mas a maior de todas as missões da terra. Tem-la desempenhado bem conforme a minha divina vontade. Se Eu tivesse no mundo mais duas vítimas como tu!... Mas não tenho, não tenho!... Sofre, sofre!...”

Falharam-me os joelhos de Jesus, falhou-me a Sua presença. Fiquei caída nas trevas mais pavorosas. Não fui capaz de me levantar mais. Fui-me arrastando, repetindo os meus actos de fé. Depois de muito lutar e caminhar de rasto, encontrei-O novamente:

― “Estou aqui, minha filha. Dor e sangue, dor e sangue! Só assim as almas são salvas. Enriqueci-te, dei-Me todo a ti com todas as minhas graças e tesouros, com toda a minha vida para por ti Me dar a elas. Deixa-as aproveitar. Dá-lhes tudo quanto elas quiserem receber. Pus-te no mundo para as almas. Tu és a sua luz e farol. Todos os meus prodígios em ti são meios de salvação. Pobres daqueles que não querem ver! O teu Céu está próximo! A minha causa há-de triunfar com todo o brilho e pompa. Uno ao teu o meu coração. Vou dar-te a gota do meu Sangue. Vou dar-te nova vida para tudo o que a dor consome. Confia em Mim! Acode ao mundo! Canso-Me de sustentar a justiça do meu Pai.”

― Vós não Vos cansais, Jesus. Perdoai a todos. Lembro-Vos as minhas intenções

Quando assim falava, já Jesus tinha fugido.

― Creio, creio, apesar de sentir que nada passou por mim.

   

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