Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

JULHO 1954

2 de Julho de 1954 – Sexta-feira

Perder a Deus como se nunca O possuísse, perder a vida como se nunca vivesse, deixar de amar a Jesus e à Mãezinha como se nunca os tivesse amado, é o meu viver doloroso, é o tormento da minha alma, é uma agonia mortal.

― Meu Deus, sempre, sempre a viver sem vida, sempre, sempre a viver sem Vós, sem Vos amar e sem o Vosso amor. É uma luta, é um combate tremendo.

Por vezes reconheço que Jesus faz o milagre de amparar-me, de outra forma desesperava.

― Ó Jesus, querer o Céu e não o possuir, querer-Vos a Vós e sentir a Vossa perda! Viver uma vida de doloroso martírio de alma e corpo, e tudo inútil, tudo inútil! Vejo-Vos, meu Deus, em todas as coisas. Nada há em mim que não tenha o fim de Vos dar glória, amor e reparação. E a minha vida morta e inútil é como se nada Vos desse, nunca Vos conhecesse, nunca Vos amasse, nada Vos reparasse e nunca Vos possuísse.

O coração fala sempre. Ele quer chupar, chupar na humanidade, em toda a humanidade como a abelhinha a sugar o néctar das flores.

Ele fala, mas esta voz, este eco não é para mim. Parece que este eco vai entoar e destruir montanhas; e eu quero almas, muitas almas, todas as almas, corações, todos os corações para entregar a Jesus. Que eles estejam todos numa só chama de amor divino é a minha ânsia, a minha loucura, noite e dia.

― O que poderei eu dar ao meu Senhor? O que poderei eu fazer por Ele e pelas almas? Não sei. Tudo fiz e nada sei. Vivi por Ele sem ter vivido! Valei-me, meu Deus, valei-me!

As minhas forças não me permitem falar mais dos sentimentos da minha alma e a minha ignorância priva-me de tudo, mas fico num sofrimento inaudito por não poder descrever neste caderno o que está gravado neste livro sem fim que tenho no coração. Segui hoje para o Calvário, como sempre, escarnecendo, calcando, rasgando os meus vestidos em sinal de desespero. Todos os sofrimentos que já descrevi me atormentavam. Dúvidas contra Deus, contra a fé, mas sobre elas sempre o meu “creio”, o meu “creio”, o meu “confio”, o meu “espero em Vós, meu Deus”.

Ao terminar da montanha, senti como se abrisse os braços e abraçasse toda num abraço íntimo e a osculasse com um beijo mais doce. Abraçar aquilo que me causava tédio e nojo e beijá-lo com tanto amor e na maior dor, meu Deus, eu creio, eu creio!

Assim, mudei de região, não sei, para outra pátria. A escuridão era tremenda. Oh! Que medo! Eu sozinha! Jesus não vinha, não me falava. Caminhar não podia. Desfaleci. Veio Jesus. Rompeu toda a treva e bradou alto:

― “Minha filha, coragem! Minha filha, confia em Mim! Sofre, sofre!... As almas necessitam da tua dor. O mundo é a causa do teu martírio. Busca-Me, procura-Me por aqueles que Me perderam. Encontra-me por aqueles que não querem a Mim voltar. Os pecadores não me escutam, os sacerdotes, os sacerdotes trocam-Me por Satanás. Preferem a carne, o prazer, à oração, à mortificação. Trocam o Céu pelo inferno. Coragem, minha filha.”

― Ó Jesus, ai de mim, ai de mim: trabalhai Vós. Suportai Vós a minha cruz. Eu não posso, nada valho, mas em Vós espero e confio.

― “Coragem, esposa minha, quantas mais maravilhas e prodígios opero nas almas, mais guerra, menos compreensão, menos luz. Os homens cegam-se com tanta abundância de luz. Dá-me tudo pelas almas. Faz que Eu seja amado e minha Bendita Mãe.”

Escondeu-se por uns momentos, deixou-me sozinha o meu Jesus. Repetia o meu “creio” e a minha oferta de vítima. Ele veio todo banhado em sangue. Os Seus cabelos estendidos estavam ensopados em sangue comos Seus vestidos. Oh! Como eu me condoí de Jesus! Inclinei-O sobre o meu braço esquerdo, com a direita peguei no meu coração, fiz dele lenço para O limpar. Em seguida, pedi licença para beijar-Lhe as Suas santas chagas dos pés e mãos e feridas da cabeça. Obtida a licença, o sinal foi Ele próprio me as dar a beijar. Fui para a chaga do Seu Divino coração e ali me demorei a beber naquela fonte divina. Jesus deu-me a gota do seu Sangue para as veias e disse-me:

― “Bebe, bebe, minha filha, enche-te de mim para te dares por mim. És vítima. O teu abraço no Calvário foi o meu abraço para a humanidade. O teu ósculo de amor foi o meu ósculo de amor e de paz. O mundo não quer o meu amor, não quer o meu perdão, não aceita a minha paz. Ai, os sacerdotes que Me fogem! Oh! Como eles me ofendem! Sofre, sofre! Sustenta o braço da justiça de meu Pai. Fica na cruz e tende coragem na vossa cruz. Nada me negueis pelas almas. Coragem! É bem pouco tempo, confia, confia! Está perto, bem perto o Céu!”

Fiquei sozinha mesmo na cruz, a fazer os meus pedidos.

9 de Julho de 1954 – Sexta-feira

O martírio mais doloroso desta semana para a minha alma foi a visão do mundo. Nela tinha os olhos que viam toda a miséria e maldade do homem. Não posso recordar tal. Como está o mundo!... Como o homem pode conceber em si tanta maldade! Causa tédio, causa pavor! E depois, e depois, ó meu Deus! Este rancor e crueldade da humanidade contra Vós! Não sei como não morri de dor e como não morri com a visão de tanta imundície.

― Tudo isto contra Vós e debaixo dos Vossos olhares! Ai de mim, Jesus! Apiedai-Vos, fortalecei-me na minha fraqueza. Se quereis que eu viva, tendes de conservar-me a vida. Oh! Que visão tão tremenda e dolorosa!

Ai, ai, como o mundo está!... Quase tudo peca com toda a maldade, e quase ninguém ama a Jesus com puro e verdadeiro amor. Oh! Se houvesse alguém, se surgisse de alguma parte quem viesse consolar ou para melhor consolar estes olhos que têm a visão do mundo, esta vida que tudo vê, que tudo sente, sem a mim pertencer! Que ansiedade, mas ansiedade infinita! Como vou louca, louca à busca dessas consolações e alegrias que possam satisfazer estas ânsias infinitas! O meu coração continua a ser canal ou, mais que isso, não sei o quê. Ele ecoa, ele desfaz montanhas, ele como esponja absorve em si o mundo inteiro.

― Fala-lhe de coisas altas, ensopa-o em seu sangue. Ó meu Deus, se eu tivesse sabedoria, se a minha ignorância me deixasse falar das Vossas coisas!

Eu abro à humanidade este livro de páginas sem fim, que tenho no coração, mas ele não quer ler, não sabe ler. Eu, na minha ignorância e trevas sem igual, não me sei exprimir e não vejo o que ela diz.

― Creio, meu Deus, eu creio!

Que este meu “creio” sem o sentimento e sem a certeza de crer se repita incessantemente no tempo para depois se repetir: eu amo-Vos por toda a eternidade. Tenho de crer, mentindo-me a mim mesma sem o sentimento. Confio sem confiar, amo sem amar, espero sem esperar.

― Ó calvário da minha vida!... Jesus, sou a Vossa vítima!... A minha eternidade, a minha inutilidade, a minha cavação profunda cá vão seguindo, tudo sem Jesus e sem a Mãezinha, tudo no sentimento desta perda divina e santíssima. Ó meu Deus, nunca mais Vos ver, nunca mais Vos amar! Perder-Vos para sempre!

O meu corpo desfeito pela dor num martírio inexplicável quer dar-se a Jesus pelas almas, ora em espírito, ora com os lábios. Faço esta oferta, muitas e muitas vezes, mas a inutilidade é tão cruel, nada me deixa com que eu possa alegrar o Senhor.

Hoje, a minha vida foi tão fora, tão fora do mundo e tão esquecida do calvário que nunca recordei quanto Jesus sofreu e quanto Lhe devia a minha alma. Só perto das três horas é que caí do mundo superior a este e então recordei na maior amargura o calvário e o meu esquecimento dele. Na ausência de Jesus, na Sua demora, porque Ele não se apressa, repetia-Lhe: creio, creio sempre, amo-Vos e sempre serei Vossa. Dizia-Lhe isto cega, mas cega pela dor. Ele veio e já de longe me bradava:

― “Minha filha, minha filha, abraça-te à cruz, abraça-te à cruz, firma-te na cruz. Coragem, coragem! Eu estou contigo. Amparo-te, sustento-te! Nada temas. A tua cruz vem do Céu exigida pela terra. Envio-te, assim dolorosa, porque os pecadores com os seus crimes a exigem. As praias, as praias, os casinos, os cinemas, ai! Tanta imoralidade! Tanta desonestidade e impureza! A carne, a maldita carne! Este calvário ditoso, este calvário por Mim escolhido tem a generosidade, a maior generosidade, tem amor, o maior amor, toda a aceitação da minha divina vontade. Tudo faço pelas almas para as salvar, e elas fazem tudo para se condenarem. Coragem! Firma-te. Abraça-te à cruz. A tua visão do mundo é a minha visão, a dor que sentes é a minha dor. Se assim não sofresses, já a justiça de meu Pai tinha caído sobre a terra. Ai dela se não Me escuta, se não se converte em breve, muito em breve!”

Jesus, ao abeirar-se de mim, cobriu-me com a ponta do Seu manto. Fez-me compreender que à Sua sombra tudo vencia. Só Lhe soube dizer que era a Sua vítima e que se compadecesse de mim. Ele desapareceu. Eu tão desfalecida não fui capaz de dar um passo, mas bradava-Lhe:

― Sou Vossa, sou Vossa! Creio, creio, só a Vós amo e em Vós confio. Não posso ir ao Vosso encontro. Onde estais, meu amor, onde estais?

Principiei a ouvir os Seus suspiros e logo O vi a chorar amargamente. Inclinou-se sobre o meu ombro esquerdo. Foi ele a travesseira da Sua sacrossanta cabeça. Uniu o Seu Divino coração ao meu e disse:

― “Venho Eu ao teu encontro, minha filha, enquanto repouso contra o teu peito. Recebe a gota do meu divino Sangue, porque é ela que te dá a vida. Tu não vives a vida da terra. Vives a minha vida, a vida do Céu. Foi por isso que não viveste no mundo e no calvário; desceste ao mundo para, à minha semelhança, no calvário dares a vida. Tu vives de Mim e para Mim. Tu vives de Mim e para as almas. Ah! Se os homens compreendessem o que é a vida de Jesus nas almas!... Dá-te, dá-te por elas! Tende coragem, tem coragem! Continua a tua missão. Ela é grandiosa, é sublime! Só no Céu verás o bem que espalhaste. Coragem! Está bem próxima a tua pátria, e de lá quantas graças, quantas bênçãos, quantos milagres o mundo receberá de ti! Sofre, sofre! Compadece-te do mundo. As minhas lágrimas são pela visão dos seus crimes. Pobre mundo, pobre mundo! Pobre Portugal, ai de Portugal! Pobre mundo, o que te espera! Ó Portugal, que tão ingrato és para com Jesus e Maria!”

Enxuguei as lágrimas de Jesus, e Ele assim desapareceu. Fiz-Lhe os meus pedidos e pedi-Lhe misericórdia para a humanidade, mas Ele já não estava comigo.

16 de Julho de 1954 – Sexta-feira

É tão grande, tão grande a minha dor! Não sei como exprimi-la. Grandes coisas se passam dentro de mim. Grande revolta, grande guerra, grande ódio. Trevas assustadoras e dor tão profunda, tão profunda que me parece não ser minha e não pode ser, porque eu não resistiria a ela. Eu sou portadora de tudo isto e sofro com tudo isto sem por isso deixar de sentir todos os meus sofrimentos de cada dia de tantos anos. É de morrer de dor e apavorada. Não tenho vida e estou na terra. Sofro sem nada ter. A minha inutilidade tão traiçoeira tudo me rouba. Para a eternidade as mãos estão vazias. o coração consome-se como cera que se derrete, mas sem nunca deixar de ser consumido. O nojo às almas, a repugnância por elas e a ânsia que me dá por elas de as introduzir todas no meu coração!

― Meu Deus, que loucura, que loucura de amor! Sempre a ser consumida, sempre a tentar abraçá-las e sempre o tédio a ter de repeli-las, mas o coração ama-as tanto, fala-lhes, abre-se e faz-se ecoar em toda a terra, até rochedos destruir. Não sei… o meu túmulo continua na superfície da terra mimoso e florido, mas ai, não sei… grandes muralhas o cercam.

Subiram da terra ao céu, vedaram tudo. Nem por isso eu deixo de trabalhar pela maior profundidade, cavando, suando, consumindo-me. Tenho necessidade, sinto necessidade de me fazer compreender e ser compreendida.

― Oh! Se me fosse dado o meu Pai espiritual!... Meu Deus, meu Deus, que agonia! Ó dor que não és compreendida! Não tenho saudades dele. Ai de mim, se não tinha fé e esperança. É esta que me encoraja e me leva à confiança. Tenho uma eternidade para o ver: talvez a razão por que não sinto saudades; mas a alma, a minha pobre alma não descansa, não sossega dia e noite. É ela que o quer, é ela que com ele se quer abrir, porque tem a certeza que por ele é compreendida. Esta os homens não a podem separar. Quanto mais o tempo passa lá vai ela à sua busca, ao seu encontro numa ânsia de morrer.

Na minha vida de abandono, na minha vida sem luz e sem vida, inútil em tudo e para tudo, ofereço-me ao Senhor, digo-Lhe que O amo e sou a Sua vítima, embora com o grande martírio de me mentir a mim mesma.

― Valei-me, Jesus, valei-me, Mãezinha! Eu creio, eu creio, eu creio!... Que a Vossa perda não foi eterna! Deixai que os olhos do corpo chorem com os da alma. Tudo é por Vosso amor.

Oh! Como eu preciso de consolação, como eu a espero de toda a parte em indizíveis e infinitas ânsias, sem nunca a receber. Ai, se houvesse quem me consolasse. Meu Deus, mas eu não me busco a mim, nem a mim me quero consolar.

Foi nesta agonia o meu horto de ontem e foi hoje o meu calvário. Sentia que o meu rosto se voltava, não o queria ver nem dele se utilizar, ao mesmo tempo que as lágrimas, que me rolavam pelas faces, nelas faziam profundos sulcos, e o coração era com bomba que se explodia, mas isto em vez de fogo era dor. Assim foi toda a viagem para a montanha, repetindo sempre, sempre o meu “creio”, mas isto com grande luta.

Chegaram as três horas. Entrei num outro mundo. Oh, que mundo, oh, que mundo! O pavor aumentou ainda, tais as trevas e abandono. Creio na dor, ou na alegria, no abandono ou no conforto, creio na vida e na morte.

― Sou Vossa, Jesus, sou a Vossa vítima.

Jesus não me apareceu, mas foi ele a conservar-me a vida. Sem ele teria morrido. A humanidade era eu. Meu Deus, que moinha de almas, que formigueiro, como estavam amontoadas! Por entre elas principiaram a sair negras chamas que a todas incendiou; que pavor, meu Deus, que pavor! Como elas queriam salvar-se! Na minha mão direita não sei quem me colocava uma e outra bola as quais uma a uma eu atirava para a terra para maior martírio, espalhando dum pólo ao outro até que tudo ficou carbonizado. E eu ainda a morrer de pavor, sozinha, sem ouvir nem ver Jesus.

Ele chegou, fez desaparecer tudo e o sol brilhou. A primeira coisa foi injectar-me do Seu divino coração para o meu a Sua vida. Depois, docemente e fortemente me disse:

― “Coragem, coragem, minha filha, recebe a minha vida, fortalece-te. Tu contemplaste esta cena com dor e pavor. Eu contemplei-a com dor e justiça. As bolas que lançavas ao mundo eram as da justiça dos homens. Estes são instrumentos nas mãos de Deus. As chamas de fogo eram da justiça de meu Pai, que terminavam com a justiça dos homens, até que tudo deixou carbonizado. É isto que espera o mundo, ó minha filha, ó minha filha. Ele, cego e louco pelas paixões, não me atende, não me escuta a minha voz. Como a humanidade peca!... Como pecam as almas consagradas a Mim! Aqueles de quem esperava amor e tinha exigências e direito de todo o amor. Diz depressa aos teus amados superiores que façam chegar depressa, depressa, com urgência à Casa-mãe da humanidade, ao meu querido bem amado, para que se faça penitência, penitência sentida, penitência mundial. Depressa, depressa, são exigências do céu. É Jesus, louco, a querer salvar os filhos Seus. Penitência, penitência, sentida oração, oração com amor, com amor!

Recebe a gota do meu divino Sangue. Fica na tua dor, na tua dor, na tua cruz. Acode ao mundo! Ai do mundo! Depressa, depressa, este mandato de Jesus à Casa-mãe, à Casa-mãe, ao meu bem amado, ao meu bem amado. Faça-se penitência por toda a parte: nos claustros, onde tanto se peca! Toda a humanidade, em penitência e oração, voltada deveras para Deus. Acode ao mundo. Sofre, minha filha! Acode ao mundo!”

O Coração divino de Jesus estalava e rasgava-se de dor. Eu sentia-o e amava-o.

― Não sofrais assim, meu doce amor. Deixai tudo para mim que sou a Vossa vítima e convosco a tudo resisto.

Já eu estava nos mesmos pavores da alma e sem a vista de Jesus. Mesmo assim, mais uma vez lhe fiz os meus pedidos e implorei perdão para toda a humanidade.

23 de Julho de 1954 – Sexta-feira

Dor, dor, dor! Não tenho outra coisa na terra. Não sinto em mim outra coisa que não seja dor na alma e no corpo, mas tão dolorosa e profunda que só o Senhor, só o meu Jesus pode em mim vencer. Tudo quanto dito é nada. O meu coração está cheio, está cheio de tédio e horrores. Está cheio de ansiedades, amor e misericórdia e chama o mundo, em chamas de fogo. Que amor louco e infinito! Que dor indizível e infinita! Foge-me tudo aquilo que o coração anseia, por quem vive, por quem se dá. Que abraços tão íntimos e tão ternos eu sinto em mim, mas são só de desejos e infinitas ânsias. Não há quem se meta a estreitar-se em tais abraços.

― Fala, fala, coração meu, mostra, mostra todo esse livro que dentro em ti possuis. Só à luz da eternidade pode ser lido e concluídas suas páginas.

Ó meu Deus, ó meu Deus, faço isto por obediência, cega obediência. Nada disto me alivia, antes pelo contrário aumenta o meu tormento. Não digo nada e deste nada só posso acusar a minha ignorância. É ela que não me deixa, e assim aumenta o meu martírio.

― Ó vida, que para mim não és vida, ó luz, ó sol que não entras em minha alma, não me iluminas nem aqueces com teus raios. Onde está Jesus? Onde está a Mãezinha? Creio, creio, forçada, que não Os perdi, mas sim que mais a Eles me uni.

A minha alma agoniza. A dor, a morte ceifam-me a cada momento. A inutilidade possuidora de tudo o que me pertence triunfa, triunfa sempre. Tantas muralhas, tantos castelos, tudo abafa o meu brado. Não tenho socorro do Céu nem da terra.

― Meu Deus. Meu Deus, tudo perdido, mas é por Vosso amor e pelas almas. Espero nunca deixar de Vos amar e de ser a Vossa vítima. Que suores tão íntimos, que vida de cavador tão profunda! São mundos, mundos já sobre mim.

Tive a Santa Missa. Pedi à Mãezinha para colocar na patena a humanidade inteira. Não posso consentir na perda das almas. Faço tudo por amor de Jesus para as salvar. Sinto que não posso sofrer mais e sinto que não posso deixar de me oferecer ao Senhor para mais e mais sofrer. O meu horto e o meu calvário foram muito dolorosos, muito tristes, de muitas lágrimas.

Ao passar o aniversário da minha vinda da Foz, chorei, chorei. Tive a visão de todo o meu sofrimento. Para que fui para lá? Onze anos se passaram e eu sempre nas mesmas humilhações escárneas, mas logo me levantei deste desânimo. Jesus, as almas são dignos de tudo! O mundo não me compreende, mas compreende-me Jesus. Todas estas agonias me acompanharam no horto e no calvário. Mais, muito mais ainda, novos sofrimentos me surgiram. As lágrimas foram com abundância, mas não deixei de as oferecer como actos de amor. Pedi muitas e muitas vezes a morte a Jesus e à Mãezinha. Não pequei, sei que não pequei. Estava calma e resignada. A minha oferta de tudo era contínua ao Céu.

― Jesus, Mãezinha, peço-Vos isto. Não é para fugir ao sofrimento, bem sabeis que não, mas sim para não ser por mais tempo a cruz de toda a gente. Meu Deus, meu Deus, compadecei-Vos de mim. Creio, creio! Que este meu “creio” seja eterno.

Aproximaram-se as três horas. De repente, uniu-se de tal forma o Céu com a terra que me fez sentir e lembrar o que em pequenina tinha visto: a massa do padeiro no cilindro; aquela roda que misturava tudo, que movimento! A mesma massa, o Céu e a terra. Assim, passei a outra região estranha. Tudo eram trevas pavorosas: a mistura desta massa sempre no mesmo movimento.

Jesus não vinha, não vinha. Sofri sozinha. Não tive apoio. Creio, creio! – dizia sempre. Sempre O ouvi:

― “Minha filha, minha filha, pede-me tudo o que quiseres, como quiseres. Leio no teu coração. Sei que tudo é por amor. Não pecaste, não me entristeceste. Esta mistura é simbólica. Foi a mistura que houve no calvário, o Céu com a terra, fui Eu a dar a vida à mesma terra, dando por ela a minha vida. Agora outro símbolo tem. Vem, desce o Céu à terra a punir a terra, a castigar-lhe todos os seus crimes. Depressa, depressa, minha filha, não demores, não demores a comunicar à casa-mãe da humanidade, ao Papa, ao Papa, ao meu Bem-amado, ao meu Bem-amado. São desejos meus, são ânsias minhas, exigências do mundo culpado. Depres, depressa! Ah! Se a justiça do Senhor cai, o mundo há-de estarrecer de pavor. Até as almas justas o hão-de sentir, mas estas será para Eu colher delas reparação, para que muitas outras almas possam ainda salvar-se.”

― Perdão, perdão, Jesus, misericórdia! Valei-me! Creio em Vós. Creio, creio! Valei-me! Morro de susto!

― “Coragem, minha amada, coragem! Levanta o teu desfalecimento. Recebe a gota do meu Divino Sangue. Vive, faz viver as almas. Vive, dá-te por elas. Criei-te para tão grandes coisas, para a mais alta e sublime missão. Criei-te para coisas tão grandes e tão sérias. És o porta-voz de Jesus. É por ti que Eu falo ao mundo e o convido a vir a Mim. É por ti que me comunico ao Papa a pedir-lhe, a pedir-lhe como um mendigo. Faz, meu Bem-amado, o que te peço. Depressa, depressa!”

Só ouvi falar a Jesus, não O vi. Não me deu um raiozinho de luz, mas a minha alma sentia., viveu tudo isto, e acredito, creio que era Ele.

― Creio, creio sempre em Vós. Lembro-Vos os meus pedidos. Jesus, sou a Vossa vítima!

30 de Julho de 1954 – Sexta-feira

A dor, a dor, quanto custa a dor, e como eu a amo!... Custa infinitamente, e infinitamente a amo. Eu não saberia viver sem ela. Parece-me, sinto que, se por um só momento a dor me deixasse, eu morria imediatamente, como o peixe fora de água. Amo-a tanto, tanto que me absorvi nela como no mar de delícias, amo-a por Jesus e pelas almas. Amo-a com o amor de Jesus. É tão grande este amor que se estende em toda a terra e o Céu, ligando as duas coisas como se fosse uma só. Mas custa tanto, tanto… Parece que morro a cada passo sob o seu peso… Com o amor de Jesus amo-a e com a minha pobre natureza desfaleço, sucumbo e parece até odiá-la. Como se sofre!... Quanto custa a dor!... E tão mal compreendida é a dor!...

― Perdoai-me, Jesus, não quero queixar-me, basta a Vossa compreensão, basta-me o Vosso conforto. Só conVosco vencerei tanto, tanto sofrer. Sou um trapo, sob a humilhação dos homens, mas elas fazem tão bem à alma! É o meio de mais e mais atracção para Vós. Tudo são espinhos, tudo é crueldade e ingratidão. A cruz pesa, pesa de tal forma que grito por Vós e pela Mãezinha. Repito o meu creio, mas oh, a perda, a perda que parece eterna!... Nunca mais, nunca mais Vos verei. Confio, espero, creio que este meu sentimento é só para tormento. Hei-de ver-Vos, hei-de possuir-Vos para sempre. Não me importa parecer mentir-Vos a Vós e a mim mesma. Creio, creio, creio! Onde está o socorro do Céu? Onde o posso encontrar na terra? Meu Deus, meu Deus, tudo perdido! Não tenho ninguém; mas esta perda não é a realidade. O mundo ainda terá luz? Porventura os raios do sol ainda terão luz que brilhe e aqueça a humanidade?! Meu Deus, meu Deus, a minha alma está morta e cega?! Mas a dor vive nela, assim como neste corpo, trapo imundo e desfeito pela mesma dor. Vive a dor, vive a miséria do mundo, todo o meu ser é maldade. A visão de toda a miséria humana está em mim. Que olhares tão penetrantes e perscrutadores! Parece que recuo, tenho medo, tenho ódio.

Esta visão não pode ver tantos crimes, mas ai, se houvesse alguém, se surgisse de qualquer parte quem pudesse consolar e reparar esta visão… Ó ânsias, ó tormento infinito! Não disse nada, nadado que vai cá dentro. O tormento aumenta. A ignorância não me deixa e a inutilidade trabalha sempre, rouba tudo. Pobrezinha! Nada tenho para Jesus, nada tenho para mim e nada tenho para as almas! A minha cavação cega o seu caminho. Não se i como possa ser. Cavo e leva um século ou mais cada cavação sem sair das minhas mãos o instrumento do trabalho. Como são dolorosos os suores do corpo e da alma! Os castelos, as muralhas estão levantadas. Eu entre eles com o meu sepulcro, mas dali não sai um suspiro, um brado que possa chegar ao Céu.

― Ó Jesus, ó Mãezinha, em vós me abandono, em Vós creio. Creio, creio, eternamente.

O meu horto, o meu calvário foram vividos, foram sofridos no primeiro andar da casa. Era um vermezinho que caminhava, que caminhava sob o peso de toda a terra. No andar de cima era andar de gozo, de prazeres, de loucuras vergonhosas. Janelas por toda a parte. Por todas elas saía o maior veneno, nem ao menos um pensamento da vida do primeiro andar. Do Céu vinha toda a justiça de Deus. Passava, penetrava em todo o lugar no primeiro andar, mas vinha esmagar o verme que a todo o custo se arrastava. Repetia o meu “creio”, mas a dor e a agonia eram de tal ordem que me parecia repetir sempre: creio e não creio ao mesmo tempo.

― Jesus, a Vós me entrego. Sou a Vossa vítima.

Veio Jesus. Levantou da terra este pobre verme. Fez luz, luz muito clara e brilhante. Colocou-me no seu regaço, inclinou-me sobre o Seu Coração e disse-me:

― “Vem, minha filha, levanta-te. Sai da morte, sai das trevas. Contempla a luz. Necessitas dela. Tu não és verme, és vítima da justiça do meu Pai. Descansa aqui, minha esposa bem amada. Escuta as palpitações do meu Divino Coração. Como ele bate, como palpita de amor por ti! Coragem, coragem! És vítima do mundo em vícios do mundo, em guerra mortal! Como é misteriosa a tua vida! À vista de tais prodígios os homens param, cegam, e poucos são os que se deixam vencer e iluminar pela luz. Como são ditosos aqueles, que grande glória espera os grandes místicos que amparam e levam para Mim as almas! Coragem, coragem!”

Depois de ouvir as palpitações do Coração de Jesus, iluminada pela luz, fiquei mais forte, fiquei de pé, de cabeça inclinada sobre o seu corpo. Desapareceu-me de repente. Fiquei sem luz e sem amparo.

― Jesus, onde estais? Meu Amor, para onde fugistes? Valei-me, que estou sozinha.

Aí vem o meu Amado, muito triste, ajoujado, feito mendigo.

― “Estou aqui, minha filha. Vê como Eu venho. Falo por ti, peço por ti. Sou o mendigo divino a pedir oração e penitência, a pedir amor. Acode ao mundo. Tende coragem. Fala às almas. No Céu verás, no céu será compreendida com visão divina a tua missão nobre, a maior missão, a maior vítima que na terra escolhi. Que bem, que bem para as almas! Coragem! O Céu está perto, está pertinho de ti. Recebe a gota do meu Divino Sangue. Vive a minha vida. Faz viver a minha vida. És a escora, és o farol do mundo.

Ó mundo converte-te! O que te espera, se não me escutas pelos lábios da minha vítima e não te levantas para Mim!”

― Jesus, passai para mim o Vosso peso, as Vossas lágrimas. Quero mendigar por Vós. Lembrai-Vos dos meus pedidos. Sou a Vossa vítima.

   

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