Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

ABRIL 1953

3 de Abril de 1953 – Sexta-feira

Meu Deus, como poderei eu dizer alguma coisa, como poderei mover os meus lábios se não me ajudais e assistis com a Vossa força e graça? Quanto eu sofro! O martírio do meu corpo só por Vós pode ser compreendido. Sinto-me feliz na dor e sem ela, meu Jesus, não posso viver, o dia seria noite, o sol não teria o seu brilho. Sem a dor não posso nem sei viver. Mas custa tanto, tanto, meu Jesus! Mas é no sacrifício e na imolação, na incompreensão da minha vida, num abandono completo, que eu quero repetir noite e dia: amo-Vos, meu Jesus, ai, eu Vos amor, sou a Vossa vítima; abraço a minha cruz, abraço-a por Vós, abraço-a pelas almas. Todo o meu ser rasteja na lama e no lodo imundo, todo o meu ser se mergulha na podridão mundial; mas, mesmo assim desfeita pelos vícios e paixões, roída pela lepra das maldades, lanço-me em Vosso braços envergonhada e confusa, mas sempre confiada. Ainda que eu ouvisse dos Vossos lábios a sentença de condenação eterna, não os largaria jamais. Quanto eu amo a dor, Jesus, quanto eu amo as almas, quanto Vos amor a Vós! Não me importo que a inutilidade me roube tudo, mesmo tudo, como tem roubado, não me importa o pavor da minha vida, nem o sentimento de Vos amar, sofrer por Vós, viver para Vós. O que importa é querer o que Vós quereis, abraçar tudo quanto me dais. Tenho tido sempre presente no meu coração a Mãezinha dolorosa, atravessada pelas setas, ora de pé junto da cruz, ora sentada a recebê-Lo morto em Seus braços, a cobri-Lo de carícias, a cuidar das Suas feridas. Que agonia a minha! Quantos suspiros, quantas lágrimas interiores! Num excesso de loucura fui por vezes também uma Madalena chorosa, abraçada ao pé da cruz. Meu Deus, que cena dolorosa se passou dentro em mim! Foi assim o meu horto de ontem. Eu não sei, não sei exprimi-lo. Eu esqueci-o e fugi-lhe tanto e fui não sei como ao seu encontro. Eu esqueci-o e até o odiava e levava-o com todas as suas cenas dentro em meu peito. Já de noite, Jesus chagado, ferido, coroado de espinhos, sangrava dentro do meu coração. Fui presa e espancada com Ele e com Ele num sofrimento atroz passei a noite na prisão.

De manhã, com todos os sofrimentos que atrás ficam ditos, segui para o calvário a correr para a morte e ela para mim. O cimo da montanha ia no meu coração. A cruz ia n’Ele como um vaso ali plantado. Jesus regava-me com o Seu Sangue, nele mergulhava e lavava o mundo das minhas iniquidades. Nas três horas de agonia as chagas do meu Jesus sangravam tanto como nunca ou quase nunca as vi sangrar. O Seu Coração Divino batia dentro do meu, fortemente. A cada brado que dava, parecia parar e perder a vida. Ó mundo, ó almas! Como Jesus nos amou! Amemo-Lo também. Não chega a ser nada a nossa dor em comparação da Sua. Foi dor infinita, foi dor de um Deus feito homem. Amemo-Lo, amemo-Lo sem cessar, amemo-Lo noite e dia. O meu coração anda como a avezinha perdida a mendigar amor, sempre amor para Jesus. Ele expirou na mais tremenda agonia. O meu espírito foi entregue ao Pai com o d’Ele. Houve o silêncio da morte, mas bem depressa Jesus veio cheio de vida e amor e falou-me assim:

— “Jesus vive e não morrerá jamais. Jesus vive e dá a Sua vida. Jesus quer que as almas vivam com Ele eternamente. Jesus está aqui. Neste coração tem as suas delícias. Estou aqui, sim, minha filha. Estou aqui por amor. Estou aqui para chamar, para salvar. Este calvário é calvário das misericórdias do Senhor. Fiz deste calvário um calvário de salvação como outrora foi o meu. É deste calvário que eu brado pelos lábios da minha vítima: vinde a Mim, vinde a Mim, filhos meus! Vinde a Mim que só por amor vos criei, só por amor vos dei o Céu. Eu sou o Jesus da Galileia. Eu sou o Filho da Virgem Maria. Eu sou o Jesus que foi imolado. Eu sou o Jesus que por vós dei todo o Sangue. Criei este calvário, coloquei nele a minha vítima para a continuação da mesma obra redentora, da mesma obra de salvação. Os pecadores, os pecadores, minha filha! Ó como me ferem os pecadores!...”

— Caí sobre os meus braços, Jesus, e não sobre a terra nua. Eu Vos estreito ao meu coração. Quem Vos feriu assim?...

— “Os homens, os homens, os pecadores com os seus crimes!”

— Ó Jesus, ó Jesus, eu queria mundos e mundos, Céus e Céus de amor para Vos oferecer neste momento. Quero consolar-Vos, quero sofrer tudo por Vós. Quero dizer-Vos duma vez para sempre como se a cada momento repetisse: amo-Vos! Sou a Vossa vítima! Amo-Vos e quero com esses mundos e Céus de amor sarar as Vossa chagas, ser bálsamo para toda a Vossa dor. O que daria eu, Jesus, para evitar o pecado? Renunciaria ao Céu, se o pudesse conseguir. Eu queria ver todas, todas as almas irem para o Céu sem Vos ofenderem. Claro, meu Jesus, sempre por Vosso amor! Eu ficava sozinha neste vale de lágrimas, como um insectozinho perdido, mas a dar-Vos honra, glória, louvor e amor, se com todas essas almas eu subisse ao Paraíso.

— “Louca, louca de Jesus, louca da Eucaristia! Olha como já estou belo, sem nenhum ferimento! Consolaste-me, saraste-me as feridas. Se o mundo soubesse! Se as almas te conhecessem e se aproveitassem das riquezas que por ti lhe são dadas! Coragem, coragem, minha filha! O que dizem de ti, de Mim o disseram, e tantos ainda hoje de Mim o dizem. Coragem, coragem, florinha eucarística, louquinha do amor divino. Prepara-te, recolhe-te um momento, vais receber o teu Jesus, o Jesus da Eucaristia. O anjo da tua guarda supre a voz do sacerdote. “Viaticus Corpus Nostrum Jesum Christum”. (Viu-se que pôs a língua de fora da boca). Já estou sacramentado em teu coração. Recebe agora a gota do meu Sangue. Passou a gotinha do Sangue divino, enquanto os anjos, formando alas, inclinados, me adoram e bendizem. Passou a vida que te faz viver, passou o maná celeste que por ti é espalhado e infundido nos corações e nas almas.”

— Ó Jesus, que perfume angelical!... Que vida, que vida tão celeste! Parece que nem tenho corpo! Todo o meu ser é um sopro mergulhado na vida divina. Bendito sejais, meu Jesus. O meu eterno obrigada, sempre, sempre, noite e dia. Obrigada, obrigada, Jesus, na consolação e na dor, na vida e na morte. Não Vos esqueçais, Jesus. Eu Vo-lo peço pela Vossa sagrada Paixão. Atendei às minhas grandes intenções, a todas as minhas intenções. Enchei de Vós todos os que me são queridos. Enchei de Vós e perdoai à humanidade inteira.

— “Vai em paz, minha filha, fica na cruz. Permite que para ti não acabe a Quaresma. Sofre, sofre por meu amor, sofre, sofre pelo mundo inteiro. Chama-o ao bom caminho. Transmite-lhe as ameaças de Jesus. Diz-lhe que é o Pai que o chama e o quer salvar.”

— Obrigada, meu Jesus. Chamai sempre e sempre perdoai, meu Amor.

4 de Abril de 1953 – Primeiro Sábado (de Aleluia)

Este dia foi um verdadeiro calvário. Senti uma tristeza mortal, uma indizível agonia. A Mãezinha fez-me compreender bem o quanto Ela sofreu junto da cruz. Eu ansiava a vinda de Jesus e temia que Ele viesse. Ansiava que Ele ressuscitasse e me fizesse ressuscitar com Ele, e parecia-me que a minha morte jamais me deixaria ressuscitar. Veio o meu Amado, era já quase noite. Deu entrada no meu coração. Fez-me logo sentir a Sua paz. Pouco depois encheu-me de amor e muito docemente principiou a falar-me assim:

— “Minha filha, minha filha, derramo no teu coração todas as riquezas do meu. Quero renovar muitas e muitas vezes este acto, esta prova do meu infinito amor. Minha filha, minha querida filha, dou-te tudo, mesmo tudo. Enriqueço-te com todas as minhas riquezas. Faço isto, porque te amo. Enriqueço-te para que tu enriqueças as almas. Como são belos os desígnios do Senhor sobre ti! Que encantos, que encantos! Minha filha, abraso-te no meu amor. Enriqueço-te para enriqueceres. Fortaleço-te para mais e mais dolorosa e pesada cruz. Sofre para salvares o mundo. Sofre para reparares o meu Divino Coração. Dá ao teu Paizinho todas as riquezas que hoje mesmo no teu coração depositei. Dá-lhe todo o meu amor. Diz-lhe que o mestre e guia das almas eleitas tem que estar cheio, sempre cheio de tudo o que é meu. Diz-lhe que o amo com a maior loucura de amor, que confie e espere em Mim. Eu não falho às minhas divinas promessas. Dá ao teu médico esta infusão de amor com que enchi e abrasei o teu coração. Diz-lhe que lhe dou a minha paz, que lhe dou as minhas riquezas, que lhe dou como sempre a minha chuva de graças. Diz-lhe que o seu jardim florido está guardado no meu Divino Coração. Diz-lhe que é prémio da minha parte pelo seu heroísmo, pela sua fidelidade em amparar e defender a minha divina causa. Dá-lhe amor, amor, amor. Vem, minha bendita Mãe. Estreita ao teu Coração a Nossa filhinha. Cobre-a das tuas carícias.”

— “Minha filhinha, minha filhinha, tens de novo junto de ti a Mãe Celeste, a Mar das Dores. Venho renovar o pedido de Jesus. Venho como Mãe das Dores para que sofras as minhas dores. São as dores de Jesus. Deixa, deixa que a tua Quaresma continue. o mundo, o mundo necessita de tudo. É urgente, é urgente reparar, aplacar a justiça do Senhor.”

— Ó Jesus, ó Mãezinha, tudo aceito, tudo aceito. Sede a minha força.

— “Recebe, filha querida, as carícias e o amor de Jesus, as carícias e o amor de Maria. Dá tudo em Nosso nome aos que amas, aos que te rodeiam, aos que se aproximam de ti. Faz como que um sopro se espalhe no mundo inteiro. Fica em paz. Fica na tua cruz. Coragem! Coragem!”

— Obrigada, Jesus! Obrigada, Mãezinha. Não esqueçais as minhas intenções todas, todas. Amo-Vos! Sou a Vossa vítima.

10 de Abril de 1953  Sexta-feira

A minha Páscoa dolorosa continua ainda. Jesus não ressuscitou para mim. Aquelas ânsias da Ressurreição, de O ver triunfante, acabaram-se sem que a alma gozasse das alegrias da Aleluia. Continua a minha dor, o meu calvário. Mas é tão triste e tão doloroso que não sou capaz de descrever a minha dor, nem as densas trevas em que estou submergida. Parece que as nuvens se desfazem todas em mil farrapos; e são de tal forma negras que parecem encobrir o sol e a luz do dia. Toda a humanidade perdeu o seu brilho, luz e encantos da natureza. Toda a terra está pobre e nojenta. Eu sou o mundo desta podridão, eu sou a revolta do Céu, desafio a justiça do Senhor. Não sei como remediar tanto mal. O meu corpo, trapo imundo e desfeito, não sente outra coisa senão dor, vícios e crimes. Tudo faço subir ao Céu. Atiro-me para os braços de Jesus, mesmo assim miserável, para que Ele com o Seu amor e fogo ardente consuma todos os meus  crimes e os faça desaparecer. Parece que nada é aceite e que eles ficam sempre, sempre a aumentarem cada vez mais, hora a hora, momento a momento. As dores do meu corpo são tantas, tantas, as agonias da alma, que são indizíveis, faço-as subir ao Céu como incenso. Mas a inutilidade rouba tudo, não as deixa lá chegar. Meu Deus, meu Deus, o que hei-de fazer, meu Senhor? Abrir os meus braços e deixar-me crucificar na cruz por Vosso amor. Compadecei-Vos de mim; o meu coração brada sempre, mas o meu brado não chega até Vós.

Foi celebrada mais uma vez no meu quarto a Santa Missa. Devia ser para mim uma hora de alegria; estava rodeada de pessoas tão queridas! Mas nem ao menos isso Jesus me deixou saborear. Que Ele me alegre e console na minha tristeza e dor. Tive também um miminho de Jesus com notícias do meu santo P. novos espinhos vieram logo ferirem-me, novo tormento para o meu grande tormento. Sofro tanto por não saber nem poder dizer o que ma vai na alma! Que necessidade imensa de desabafar! Mas não sou capaz de saber exprimir-me! Estou tão longe de Deus! Parece que nunca mais posso chegar ao Seu reino. Ó Jesus, ó Mãezinha, só Vós podeis valer-me e vir em meu auxílio. Depois de sentir que passei uma vida inteira sem querer saber e até escarnecer do Calvário, fiquei ontem sobre o solo do Horto. Num furor desabrido, num rancor desumano e infernal, calquei aos pés o Sangue do inocentíssimo Jesus ali derramado. Que horror, que desespero de perdição. Digo desespero, mas este não era meu, porque tudo isto era na superfície; no íntimo a alma mantinha-se em paz.

Hoje segui para o Calvário. Confesso, não caminhei por mim, fiz tudo para lhe fugir o mais que pude. Alguém me esforçou a ir ao encontro de Jesus e só no cimo da montanha eu me uni a Ele. Na cruz crucificada, todo o Seu divino Corpo era o meu. O meu pobre coração era uma frágil casquinha na qual o d’Ele se introduziu. A mesma dor, a mesma vida, o mesmo amor pertencia ao meu. Não eram dois corações, era um só. Os mesmos espinhos o cercavam, a mesma lança o atravessou. As palpitações dolorosas eram as mesmas e o brado de agonia nos mesmos sentimentos ao Pai eram como se saíssem dum só lábio. Que ânsias de me dar, de morrer para fazer viver! O Sangue corria por todo o Calvário e o brado fazia-o estremecer e abrir-me em fendas. O sol escondeu-se como que envergonhado. Jesus expirou. A morte reinou. Senti como se ela reinasse em toda a humanidade, mas bem depressa Jesus ressuscitado ressuscitou tudo, deu-me a Sua vida com toda a Sua luz e falou-me assim:

— “Desceu o Céu, desceu o Senhor sobre este calvário de salvação. A morte, a podridão do mundo são a causa do teu sofrer. Os pecadores, mortos pelo pecado e os pecadores apodrecidos na lepra dos seus vícios, levam-te, minha filha, à maior imolação, ao maior martírio. Escutai, escutai; reparai bem! É o Senhor que chama. Escutai, escutai, reparai bem! É Jesus que avisa. Ai do mundo, ai dos pecadores. Ai das almas que não atendem ao seu Deus. Eu falo, sim, minha filha, eu falo no teu coração. Eu chamo, eu chamo. É por ti que Eu aviso. És a missionária do Rei divino. És o porta-voz de Jesus. A tua vida é uma pregação contínua. A tua vida é um farol luminoso para a humanidade. É por ti que Eu previno, é por ti que Eu chamo os filhos meus. Atendei, atendei ao Coração terníssimo de Jesus. É o Pai que chama e quer avisar todos os seus filhos. É o Pai que chama e quer estreitá-los ao Seu Coração. Filhos meus, filhos meus, se conhecêsseis o meu amor!... Mostro-vos o meu divino Coração chagado, ferido, todo em sangue!... Fostes vós, fostes vós, filhos amados, que me feristes assim!...”

— Ó Jesus, ó Jesus, que abismo tão profundo, que abismo sem fim é a chaga do Vosso divino Coração. Eu vejo, compreendo bem que toda a humanidade pode entrar nele. Vós quereis, meu Amor, mais uma vez lavar-nos com o Vosso Sangue divino. Eu não quero mais, meu Jesus. Eu não posso ver-Vos sangrar mais, mas não sei o que me obriga. Sinto-me forçada a abraçar o mundo e a entrar com ele dentro desse abismo de amor. É o Céu, é o Céu do Vosso divino Coração. Eu não quero ver-Vos sofrer, mas peço-Vos, meu doce Amor, mais uma vez Vo-lo peço: lavai de novo a pobre humanidade. Lavai todas as feridas nojentas. Curai, curai todos os corações apodrecidos de vícios. Mudai-os, Jesus! Fazei que nasçam todos para a Vossa graça, para o Vosso amor.

— “Coragem, coragem, filhinha! Sentes-te atraída com a minha atracção. A tua missão é esta: abraçar o mundo, abraçar os pecadores, conduzires a Mim o rebanho, as ovelhas tresmalhadas. Coragem, coragem! Deixa sangrar misticamente os teus pés, as tuas mãos, o teu coração, a tua cabeça, todo o teu ser. Crucifiquei-te, porque me consentiste. Preparei-te para este acto heróico, para esta aceitação. Correspondeste, foste e serás sempre fiel ao teu Senhor. Filhinha, filhinha, ó esposa minha, fala, fala com clareza. Diz, diz que Jesus está triste com as ameaças de seu Pai. Não quero que os meus filhos sejam punidos. Mas eles, pobrezinhos, não atendem a tantos, tantos repetidos pedidos. Vem, minha filha, vem, minha filha, receber a gota do meu divino Sangue. Os anjos uniram os nossos corações e, enquanto a gotinha do Sangue passou, eles em torno entoaram seus hinos. Maravilha, maravilha que encanta o Céu. Passou a gotinha do Sangue, passou a tua vida. Passou a gotinha de Sangue, passou a paz, o conforto, toda a graça do teu Jesus. Vejo o tabernáculo da minha habitação. É deste tabernáculo permanente que Eu por ti me dou às almas. Elas são enriquecidas por ti, quantas de ti se aproximarem. Coloquei-te neste calvário para luz, farol e para salvação. Recebe a efusão do meu amor. Fica mais forte para a tua cruz. Fica mais forte e com este amor desempenha docemente a tua missão. Coragem, coragem! Vai em paz!”

— Obrigada, Jesus, pelo Vosso amor. Obrigada por tudo o que me dais. Lembrai-Vos de todas as minhas intenções. Lembrai-Vos do mundo inteiro. É Vosso, é Vosso. Vede nele o Vosso Sangue.

— “Pede, pede sempre, louquinha, louquinha da Eucaristia. Pede, pede sempre e vai em paz.”

— Obrigada, Jesus, obrigada, Jesus!

17 de Abril de 1953 – Sexta-feira

Do profundo do abismo clamei a Vós, Senhor! Quantas vezes a mina alma brada ao Céu num abismo infindo sem conseguir que o meu clamor, o meu brado chegue até Deus. Distância entre mim e o infinito! Que Céu de grandeza, pureza e amor! Que abismo de podridão, de crimes e de nojo. O mundo pesa sobre mim com toda a grandiosidade dos seus vícios. O Céu, a justiça do Senhor pesa sobre ele. E eu tenho de ser esmagada pelo Céu e pela terra e é isto que me leva ao pavoroso abismo donde eu brado sem conforto, sem auxílio:

Senhor, Senhor, ouvi a minha voz; não olheis às minhas iniquidades, nem ao mundo de pecado e de podridão que tenho em mim; olhai para Vós, para a Vossa grandeza, perdão e misericórdia. Pobre coração, pobre alma, não têm luz, não têm guia, não têm amor para Jesus.

Ai de mim, Senhor, ai de mim, Senhor, se me fazeis comparecer na Vossa divina presença. Eu sou nada e estou sem nada de bom. Eu quero ir para Vós e temo esse momento. Eu quero voar e quero não ter voos. A inutilidade roubou-me tudo. Como posso comparecer na presença do Senhor?

Anseio amá-Lo, consumir-me a ponto de desaparecer, mas nada faço. Quero dar-Lhe almas mesmo que aqui ficasse até ao fim do mundo, por uma só que fosse, mas parece que não tenho um movimento, uma acção, uma caridade para a salvação dessas mesmas almas. Quero dá-las todas, todas ao meu Senhor.

Fico sempre nisto: tudo anseio, tudo me roubam; tudo quero e nada faço. Não quero dizer nada da minha vida e sinto a necessidade de desabafar.

O meu coração está como um foco, quer ir reflectir-se em todos os corações, em todo o mundo, ao mesmo tempo que quer esconder-se. Não sei dizer, não sei fazer compreender a minha dor, esta minha ansiedade.

Por tudo seja bendito o meu Senhor! Que Ele seja louvado e exaltado nesta minha humilhação de me ver tão visitada. Só Jesus sabe e compreende quanto eu sofro. Seja tudo por Seu amor.

O meu horto é muito diferente do que era. Lembro-me dele e fujo dele. Vivo no mundo e estou fora do mundo. Sofro e não é a minha dor. Conheço, ouço falar do Horto e fujo, vivo como se nada soubesse, nada conhecesse. Era de noite, e eu fiquei naquele solo duro. Vi Jesus pregado na cruz no alto do Calvário. Ele estava pregado em mim e o Calvário era eu. Da chaga do Seu divino Coração saiu um fontanário de sangue. De seguida, uma chuva de água. O sangue corria por mim e a chuva sobre mim caiu ao mesmo tempo que os olhos da alma tudo viam à sua frente. No meio do meu sofrimento bem doloroso, passei a noite, o mais que pude bem unida a Jesus. Estive com Ele na paixão. De manhã, segui para o Calvário. Não sei exprimir o que foi esta viagem. Segui, mas não foi com Jesus; segui por outro mundo que não era este. Era um mundo perdição, só perdição. Enquanto eu assim caminhava, subia Jesus a encosta do Calvário. Eu, sem seguir com Ele, sentia a Sua dor, sofria indizivelmente. Enquanto Ele sofria na cruz e nela derramava o Seu Sangue divino, eu andei sempre perdida nesse mundo de perdição. Só momentos antes de Ele expirar, quando Ele pronunciou as palavras Consummatum est, é que eu vim ao Seu encontro a viver a Sua vida, a expirar com Ele. Depois de uns momentos mortais, voltei de novo à vida. Foi Jesus que ma deu e falou-me assim no meu coração:

— “Como é belo, como é belo o coração que me ama! Como são belas e encantadoras as almas puras! Venho do Céu, sou do Céu! Sou Jesus, sou amor e venho pedir amor. Quero ser amado com o amor mais puro e ardente. Quero ser reparado com a maior reparação. Venho dar amor e pedir amor. Venho pedir dor, muita dor à vítima querida deste calvário. O Senhor está triste! Jesus é ofendido! O Senhor está triste! O mundo peca; a justiça divina cai sobre a terra. Escutai, escutai; quem fala é Jesus pelos lábios da Sua esposa, da Sua vítima querida. Quero amor, quero amor. Mendigai amor para Jesus. Minha filha, minha querida filha, missionária do Rei divino, o teu leito é um campo mundial. É aqui, sim, aqui que a tua sublime missão é desempenhada. Daqui és a escora, daqui és o farol, daqui és tudo para Jesus e para as almas. Coragem, coragem! Coragem, minha filha, florinha eucarística. Coragem! Avante sempre! Este calvário é o calvário de grande salvação. Este calvário é o maior calvário depois do meu Calvário. Este calvário é a continuação da minha obra redentora. Tu és, minha filha, sim, confia em Jesus, és a missionária dos missionários. Fazes mais no teu leito de dor do que todos os missionários na humanidade.”

— Ó Jesus, não sou eu, sois Vós, sois Vós, meu Amor, sempre Vós que completais a Vossa obra. Sois Vós, Jesus, a vítima de sempre. Sois Vós quem fala, sois Vós quem sofre. Sois Vós, sempre Vós quem leva a minha cruz. Sois Vós, Jesus, ainda Vós a amá-la e a abraçá-la. Quero e não posso, meu Amor, mas confio sempre, sempre, na Vossa graça, no Vosso poder.

— “Minha filha, minha querida filha, tesouro, cofre das minhas riquezas! És tesouro, és cofre de tudo o que é meu. Distribui o meu amor, distribui as minhas graças. Faz, faz que elas se espalhem na humanidade inteira. Deixa, deixa que as almas se abeirem de ti para as receber. Faz, faz que elas voem por todo o mundo. Não te preocupes com o silêncio. Fala, fala às almas. Se soubesses o bem que por ti lhes é dado!... Criei-te, criei-te para isto, só para isto. A tua ansiedade do silêncio é silêncio. Confia, confia. Eu não permito que percas a união comigo. Falando, falando a minha divina vontade, vives mais unida a Mim do que se estivesses sozinha, no mais profundo recolhimento. Operei e opero na tua alma as maiores maravilhas.”

— Seja, Jesus, como Vós quereis. Faça-se, meu Amor, como dizeis. Sou a Vossa vítima. Se sempre estivesse mergulhada neste abismo de amor!... Não temia a dor, não temia a cruz! Que abismo diferente daquele em que vivo!

— “Coragem, coragem, minha pomba bela. É a recompensa do teu sofrimento, é força para sofreres mais, mais, muito mais. Vem receber a gota do meu divino Sangue. Uniram-se por si os nossos corações. Assim o ordenei. Estão os dois num só. A gotinha do Sangue divino comunicou-se a todo o teu coração. Fez nova vida para viveres, para com nova vida sofreres. Vive, vive e faz viver. Ama, ama e faz amar. Viver a minha vida, amar o meu divino Coração.”

— Ó Jesus, estreito-Vos ao meu pobre coração. Assim, neste abraço, nesta união divina, quero dizer-Vos vezes sem cessar: aceitai, Senhor, aceitai, Jesus, como se a cada momento milhões e milhões de vezes Vos pudesse repetir: amo-Vos, Jesus, amo-Vos, Jesus, amo-Vos por mim, amo-Vos por todos os que me são queridos. Amo-Vos pelos que Vos não amam. Sou a Vossa vítima. Mergulho neste amor as minha intenções, as minhas primeiras intenções, todas as intenções, a humanidade inteira.

— “Fica na cruz, minha filha, fica na cruz. Vai continuar nela a tua missão, missão dolorosa, a mais dolorosa, mas sublime, a mais sublime. Dá-me dor, dá-me dor e diz ao mundo: Jesus chama-te, Jesus quer abraçar-te. Vai para Ele, se não queres sofrer o peso, todo o peso da justiça do eterno Pai. – Coragem! Coragem! Vai em paz!”

— Obrigada, obrigada, Jesus. Perdoai, perdoai e esperai, meu Amor.

24 de Abril de 1953 – Sexta-feira

Sinto-me ora de joelhos implorando, ora correndo, louca pela humanidade, de mãos postas, no mesmo brado a implorar sempre, a querer não sei quê, mas sinto que quem implora não sou eu, e este querer meu não é também; parece-me que é o querer de Jesus, que é Ele que me leva, que me dá impulsos fortíssimos, até impulsos infinitos de pedir a todas as almas para virem ao Seu divino Coração. Jesus quer, e a Sua ansiedade divina não me deixa sossegar. Ai de mim! Jesus quer, e eu também quero dar-Lhe as almas, dar-Lhe o mundo inteiro. Mas não passo além dos desejos, além desta ansiedade. Que tormento, que angústia para a minha alma. Não sou nada e nada dou. Sofro tanto, tanto, e a inutilidade tudo me rouba. Jesus e as almas nada recebem de mim. Sinto a fadiga, o cansaço, como se pudesse correr o mundo inteiro a cada momento. Tudo isto à conquista das almas. Parece que nada adianta este meu tormento. É tal a minha pobreza, que empobreço a todos, rouba-me a mim mesma. Não digo o que se passa em mim, porque não sei. É indizível tal ignorância, são indizíveis tais sofrimentos. Queria abraçar o mundo, trazer num molho todas as almas para Jesus e ao mesmo tempo quero fugir delas; queria esconder-me num ermo, num lugar solitário onde não pudesse ser vista nem falar a ninguém. Ai o meu calvário, ai o meu calvário! Que pavor ver-me assim visitada! Jesus me perdoe o grande número das minhas faltas. Nem sempre tenho paciência nem caridade. A vontade está pronta para abraçar a cruz do Senhor, mas a natureza é tão fraca! Eu sem a dor não saberia viver, sou louca por ela. Ou sofrer, ou morrer, meu Jesus! Bem sabeis que não sei sofrer, mas que anseio toda a perfeição para Vos consolar. Não sei que sinto que não me deixa sossegar. Parece que tudo vem contra mim. Que revolta, meu Deus, que revolta, que humilhações que me esmagam. Será algum sofrimento de novo que vai surgir, ou é mais uma parcela da Vossa cruz? Seja feita a Vossa divina vontade. Jesus, sou a Vossa vítima.

Ontem a visão do Calvário levou-me ao Horto. Eu era uma bola a ser esmagada por um e outro. Ali agonizava e dava a vida. Ali tinha a vida da terra, de todo o pecado, de toda a podridão. E, como por um canal, estava ligada ao Céu e tinha a mesma vida do Pai. Passei a noite unida a Jesus nos sacrários, unida a Jesus na prisão. Sofri em silêncio com Ele. Segui hoje para o Calvário, triste, mais triste que a noite e a morte. Eu caminhei porque alguém caminhava em mim. Fui arrastada e barbaramente chicoteada, porque Jesus todos estes sofrimentos sofria. Ele, em tamanho natural, com a cruz aos ombros, cabia e caminhava dentro do meu peito. Como sangrava a Sua sacrossanta cabeça! Meu Deus, como caíam a meus pés as Suas carnes santíssimas retalhadas! E eu, em impulsos raivosos, cega e louca, esmagava-as aos pés sem dó nem piedade. Jesus ia expirando alagado em suores frios, ao terminar da montanha. Ai quanto sofreu Jesus com os meus pecados! Quanto Ele sofreu por nosso amor. Se eu pudesse e soubesse fazer compreender isto! No alto do Calvário continuo o meu sofrimento, a minha agonia indizível, acompanhada duma esmagadora humilhação. Acompanhavam-me numerosas pessoas que sem querer aumentavam o martírio do meu calvário. Se não fosse Jesus, se não fossem as almas, recusava-me a tudo. Sentia como se o meu coração estivesse preso por fortes argolas e cadeias a um mundo de rochedo. Estas argolas e cadeias não eram de ferro, mas sim de amor. Vinham do Coração divino de Jesus. Ele não podia desligar-se de nós. Que amor, que loucura de amor, que amor infinito! Ele expirou e eu com Ele. Prolongou-se por bastante tempo este silêncio mortal. Jesus demorou-se a dar-me novamente a vida. Quando me fez ressuscitar, falou-me assim:

— “Ouvi a voz de Jesus sumida e quebrantada com o peso dos crimes da pobre humanidade! Jesus sofre através das suas vítimas. Jesus imola, noite e dia, a vítima deste calvário. É o amor, só o amor que leva Jesus a esta imolação. Quero salvar o mundo, quero salvar os filhos meus. Vê, minha filha, repara bem: um mar imenso de sangue que sai do meu divino Coração!...”

— Ó Jesus, ó Jesus, parece que me afogo. Queria aparar o Vosso Sangue divino. Eu não queria que ele caísse e não o posso nem sei aparar. Que fazer, meu Jesus? Eu nada posso! Aceitai o meu pobre coração, pobrezinho como é. Vós tudo podeis. Nada Vos é impossível. Fazei que este mar de sangue possa ser encerrado todo dentro do meu. Se assim for, Jesus, e eu for calcada por toda a humanidade, é o meu coração que sofre e não é pisado o Vosso Sangue divino. Sofrer, Jesus, eu sempre, eu, mas que o Vosso Sangue divino esteja resguardado, Jesus, para não ser calcado por pés imundos, por pés criminosos, meu Amor.

— “Desapareceu o Sangue, minha filha; foram os teus desejos, foram as tuas ânsias. Não é calcado o Sangue que o meu divino Coração derramou. Tudo em ti me consola. Toda a tua vida me desagrava. Sabes bem, minha filha, já te tenho dito, mostro-me sofredor para ser por ti consolado. Mostro-me sofredor para ser por ti reparado. Mostro-me sofredor para te levar mais e mais à compaixão por Mim. Sofre, sofre! Dá-me a tua dor. É Jesus, é o Mendigo do amor e da dor a pedir-te, a pedir-te sempre. Sofre, sofre, para aplacar a justiça do meu Pai. Ama-me, ama-me e faz que eu seja amado. Não duvides, minha filha, não duvides. A tua vida, toda a tua vida é a cópia mais fiel, mais exacta de Jesus crucificado. A tua missão é árdua, a mais árdua, mas a mais sublime. As almas, as almas custaram e custam dor e sangue. Os pecadores não querem converter-se. O mundo corre para um abismo de perdição. Eu, que tudo vi e vejo, lancei e lanço mãos à obra. Coragem, coragem! Continua a mesma obra de salvação. Que mar de crimes, que mar de crimes!... As ondas dos vícios tocam no Céu a desafiar a justiça do meu Pai. Coragem, escora firme, coragem, farol de luz luminosa. Coragem, florinha eucarística, coragem na tua missão. Fala de Mim às almas. Diz-lhes as minhas queixas. Fala de Mim ao mundo, diz-lhe que o quero salvar.”

— Ó Jesus, Jesus, eu não sei dizer nada e nada sei sofrer. Queria ir para o Céu. Jesus, parece-me que não posso mais. Só a vontade está louca por mais e mais sofrer, mas a minha pobre natureza sente-se sucumbida. As humilhações esmagam-me. Só vejo em mim miséria e sou a causa de tantas misérias. Se Vós ao menos, meu Jesus, me repreendêsseis na Vossa sabedoria, esclarecêsseis as minhas faltas, não sentia tanto a humilhação.

— “Confia, minha filha, tudo é por Mim, é para Mim. Jesus não mente, Jesus não mente. Não posso dizer aquilo que tu não fazes. As tuas faltas são próprias dos justos, dos meus eleitos. O teu céu está perto. Conservo-te neste calvário só por amor à humanidade. Anseias por Mim: Eu anseio por ti. O Céu está perto. Vem receber a gota do meu divino Sangue. Uniram-se os nossos corações e a gotinha do Sangue passou. Levou a vida necessária ao teu corpo e à tua alma. Nova vida para mais e mais sofreres, para mais e mais amares. Vai em paz! Fica na cruz! Dá a minha paz! Distribui o meu amor, distribui as minhas graças. Felizes, ditosos os que as recebem!”

— Jesus, agora não queria deixar-Vos. Tenho mais força e tenho mais luz. Obedeço, mas antes disso lembro-Vos como sempre todos os que me são queridos, com as minhas primeiras intenções, todas as minhas intenções, com a humanidade inteira. Salvai a todos, meu Jesus! Perdoai a todos!

— “Vai em paz! Vai em paz! Vai em paz e confia!”

— Obrigada, Jesus, obrigada, Jesus. O meu eterno obrigada!