Passei a noite em grande
sofrimento e em grandes ânsias. O meu corpo era um montão de cinzas,
desfeito pela dor, e o coração sentia horrivelmente o cortar fino e
contínuo de fios de espadas. Ao mesmo tempo queria desprender-se e
voar para o alto, para Jesus, mas não podia; estava encarcerado em
negra prisão. Sentia-o cansado e desfalecido com tanto sofrer.
Abraçada ao meu crucifixo e à Mãezinha querida, não cessava de
pedir-lhes amor. As dores eram quase insuportáveis, mas as ânsias de
amor iam mais longe, muito mais longe ainda. E nesta angústia não
perdia a minha união com Deus; ia murmurando sempre: meu Jesus,
lanço-me nos Vossos divinos braços, prendo-Vos para não mais Vos
deixar nem desistir de Vos pedir amor; ainda que, por cada vez que
vo-lo pedisse, me repelísseis e me batêsseis, não Vos deixaria, nem
me calaria, mas sim com mais coragem ainda dobraria o meu brado:
Jesus, sou a vossa vítima. Foram estes os meus entretimentos com
Jesus, mas sempre mergulhada em trevas, angústias e sofrimentos.
Veio a hora de O receber e eu de mãos vazias, despida de todo o bem,
sem ter uma morada digna para O hospedar. Ele não recusou entrar. E
logo os punhais deixaram de ferir o meu coração, e todos os
sofrimentos desapareceram, mas em todo o tempo que estive com Jesus;
depressa voltaram. Ele disse-me:
― Minha filha, onde está a
cruz, a verdadeira cruz, a cruz real, está o amor; e onde está o
amor está Cristo. Tu sofres, possuis-me, amas-Me, tens todo o amor
de Jesus. Sofres e amas sem igual dor sem igual amor. Farei que a
tua dor seja de salvação para o mundo e que esse amor com que Me
amas se espalhe, se comunique às almas.
A tua dor, o teu amor, são as
escadas de pecadores e justos subirem ao Céu. Há-de o teu amor
abrasar as almas, há-de a tua dor ser tão poderosa que, já tu no
Céu, e ela continuará na terra, até ao fim do mundo, a ser poderosa
e de salvação para os ingratos pecadores. Coragem, Minha filha! O
que te espera no Céu!
― Ó meu Jesus, como estou
humilhada, como me sinto pequenina! Faça-se tudo, segundo a Vossa
vontade divina. Só Vós sabeis quanto me custa que faleis assim.
― Sossega, sossega esposa
querida; o que Eu digo não é para te elogiar; não falo para ti, falo
para o mundo. É a ele que eu quero mostrar o que é a minha vida
divina nas almas e o que é uma vítima generosa fidelíssima. É ao
mundo que quero mostrar os elogios de um Deus, dados a uma esposa, a
uma alma louca por Si. Diz-Me o que quiseres, pede-Me o que
quiseres, Minha filha querida.
― Meu Jesus, dais então ao meu
Paizinho a luz que ele pede, a luz que ele necessita?
― Dou-lhe tudo, sempre lhe
tenho dado. É o amante da minha cruz, é o possuidor de todo o Meu
amor; dá-lho por Mim; repete-lhe, diz-lhe que Eu o amo, diz-lhe que
é o mestre das almas e que eu farei que elas em grande multidão o
sigam, à semelhança de Mim. Diz-lhe que Eu o assemelho à minha vida
na terra. Diz ao teu médico que o amo loucamente e que amo aos que
lhe são caros. Diz-lhe que lhe repito: conto com ele, como vara
forte e firme a amparar-te e à minha causa divina, que, depois de
humilhada, será o triunfo de todos os tempos. Diz-lhe que recomendo
a vigilância; o mal corre, o veneno penetra. É necessário um milagre
até ao fim. Vem Mãe Bendita; não deixes sem conforto a nossa filha.
― Estou aqui, Meu filho,
ansiosa por confortá-la.
Veio a Mãezinha, inclinou-me
para Ela; acariciou-me e abraçou-me.
― Coragem, Minha filha! Em nome
do meu bendito Filho, venho afirmar-te: estás na verdade, és-Lhe
fiel, Ele está contentíssimo contigo. Deste-Lhe tudo, ama-lo com
todo o amor com que O podias amar. Em troca, filha querida, da tua
vida de dor e de amor leva os Nossos amores àqueles que te amam e
com tanto empenho te rodeiam; é o prémio do Céu, por ampararem uma
esposa tão querida de Jesus, e acrescentou: Diz-lhes em meu nome que
lhes prometo o Céu e mais ainda àqueles que do fundo da alma e do
coração com eles falarem no meu nome e nas minhas coisas. Farei que
os que te rodeiam e te são queridos comuniquem aos outros o que de
ti receberam; que é a comunicação dos tesouros do Céu. Vai, Minha
filha querida; tem coragem; não deixes de correr, mas também não
deixarás de amar. Vai em paz, vai com O teu Jesus, leva o teu Jesus.
Para que as minhas palavras se cumpram, tenho que abreviar os meus
colóquios, mesmo eles têm de ser para ti dolorosos. Coragem,
coragem, nova redentora, salvadora do mundo!
― Obrigada, meu Jesus;
obrigada, Mãezinha acompanhai-me, não me deixeis por um só momento.
Já me parece mentira estar Convosco, e Convosco falar. O que eu vejo
à minha frente! Valei-me, valei-me; sou a Vossa vítima.
Faltam-me as forças; o
sofrimento impede-me de poder falar. Será o sofrimento, meu Jesus,
ou serei eu que não sei sofrer e o pouco parece-me muito? Que luta
renhida no meu espírito! Que mar de dúvidas! Que vida a minha tão
cheia de incertezas! O demónio tem tentado assaltar-me, mas,
acorrentado, não o tem conseguido; não veio com os seus tremendos
combates. Quando o vejo a formar salto, para se atirar a mim, fico
assustada e com receio que alguma vez sempre vença e me leve ao
pecado. Ele tem tantas formas de nos atormentar a alma! Eu já a
tenho tão dorida, sem ser por ele; parece que a tenho em sangue: ó
meu Deus, ó meu Jesus, tudo o que sofro é por Vós, é pelas almas.
Tenho olhos, mas não para ver nas negras trevas que vou passando.
Cada passo que dou é em falso, é um abismo negro, onde caio, e o meu
desfalecimento auxilia-me de boa vontade a deixar-me mergulhar
neles. Morro de dor, morro sem remédio nestes abismos pavorosos de
cegueira. Sinto os punhais, sinto as lanças a cortarem-me o coração
tão lentamente, tão finamente. Quantas vezes tenho a impressão de
ouvir nos meus ouvidos o cortar das carnes; é arrepiante, a dor
sufoca-me, tira-me a respiração. E logo em espírito elevo ao Céu a
minha oferta de vítima. Aborreço o mundo com tudo o que nele
encerra; não porque tudo deva aborrecer, mas sim porque de tudo
quero e devo desprender-me: sinto como se alguém dentro de mim, ande
a espanar, a polir, a assear a habitação do meu coração, da minha
alma; tudo é deitado fora, sinto-me vazia, é uma casa sem mobília.
Este vazio é para se encher e quando sinto que se enche de uma vida
de que não é falar, uma vida superior a esta vida, a alma vê o
coração cheio, transbordar e pelo centro saírem grandes labaredas
que sobem ao ar. Nestes momentos fico como que a dormir nesta vida e
como que se do mundo desaparecesse. Volto a sentir o vazio e as
ânsias devoradoras do amor de Jesus. E de verdade queria mesmo
devorá-Lo, possuí-Lo só a Ele e nada mais. Vós, meu Jesus, Vós e só
Vós e nada mais. Sinto logo o abandono de todas as criaturas mesmo
das mais queridas. Mas sou eu mesma a querer-Lhes ser grata,
agradecida; mas não querer viver delas, para só de Jesus viver. São
cortes dolorosos, são indizíveis sofrimentos. Mas se eu assim amasse
a Jesus, se eu soubesse que O amava quase deixaria de sofrer. Ontem,
ao cair da noite, de surpresa, senti-me atada e arrastada por
grossas cordas que me cingiam o pescoço; obrigavam-me a ir com o
rosto a terra até o ferir. Logo me introduzi por um túnel de todos
os sofrimentos formado; ali não entrava luz nem conforto.
Caminhei, fui parar ao Horto;
pouco depois recebi em meu rosto o beijo de Judas. Que beijo cruel,
mas que ainda mereceu dos lábios bondosíssimos de Jesus a palavra
terna de amigo. Que doçura a do seu coração divino: se todos a
compreendessem! Os modos, os olhares de traidor eram desconcertantes
e desesperados. Quando Jesus chegou ao fim do Horto, mesmo na saída,
debaixo daquela chuva de maus-tratos e de crueldades eu senti,
dentro do meu peito, a Seu divino coração palpitar tão aflito pela
dor e pelo cansaço que já parecia dar ali a vida. Vi, pouco depois,
a lareira onde se aqueciam os inimigos de Jesus e uma falsa e
provocadora mulher que fazia o lugar de correio, onde S. Pedro se
aquecia também; era por eles interrogado e trocavam uns para os
outros seus olhares maliciosos. O galo cantou; na alma senti o seu
canto e tive visão do abrir e fechar do seu bico.
Hoje já no Calvário ecoou
dentro em meu peito o som descontrolado do bater dos cravos; fiquei
com os meus pulsos e pés abertos como se fosse por eles
trespassados. Não senti ali só os maus-tratos de Calvário, mas sim
os de todo o mundo. Tinha uns olhos que tudo contemplavam; tinha uns
ouvidos que não só ouviam os insultos do calvário, mas sim os de
toda Humanidade. Os gemidos e o brado de Jesus com o Seu coração
cheio de amor e doçura não eram um convite, um chamamento só ao
calvário, mas sim ao mundo, a todo o mundo. Jesus com a sua agonia e
morte queria salvar a todos. Os lábios de Jesus estavam cerrados,
mas oh! Como falava e amava o Seu coração divino. Eu pecava com o
mundo e sofria e agonizava com Jesus; e ao mesmo tempo ansiava
possuir para mim o mesmo mundo. Veio Jesus e falou-me.
― Estende, minha filha, por
todo o mundo a tua dor, assim como Eu por ele estendo o Meu divino
amor. É pela tua dor e com a tua dor que este amor lhe é dado. Tem
coragem, minha filha! O teu corpo, o coração e a alma é um jardim
celeste onde Eu plantei e semeei toda a variedade de flores. Uns
anjos cuidam de outros anjos. E porque assim é Jesus to afirma. São
os anjos que com todo o cuidado cultivam e tratam destas flores. A
tua alma está pura. Eu nunca consenti, esposa querida, que ela fosse
manchada pelo pecado; se alguma coisa permiti, foi para que tivesses
o conhecimento das graves ofensas que Me são feitas, para melhor Me
poderes reparar e desagravar. Quanto mais sofreres, mais reparos;
quanto mais reparares, mais pecadores salvas e mais amor por ti as
almas recebem de Mim. Estende, estende a tua dor ao mundo. Como ele
Me ofende! Quando sentires mais, minha filha, o ferimento dessas
espadas e punhais, tem a certeza de que nessas horas é que Eu estou
a ser mais ofendido. Renova-Me muitas vezes a tua oferta de vítima,
e redobra de amor, multiplica os teus actos de amor. Vou pedir-te
nestes dias, alguns combates do demónio; preciso dessa reparação.
Aceitas? Bem sabeis que sim, meu Jesus, mas com que medo eu aceito;
que receio de Vos ofender! Tomai conta da Vossa filhinha, da Vossa
mais indigna vítima. Eu quero reparar mas temo, eu quero amar-Vos e
não sei como. Que pobreza, que pobreza, que miséria, meu Jesus!
Coragem, nada temas do que o demónio te lançar em rosto; bem quisera
ele que fosses o que te diz.
Anima-te. O teu amor a Jesus
atingiu a maior altura. Sabes quem é aquele que sentes trabalhar em
tua alma? Sou Eu, O teu Jesus, O teu esposo, O teu Rei; sou Eu que
tudo esvazio, sou Eu que tudo encho. Todo te possuo e tu toda a Mim
possuis. Eu deito, fora de ti, os que te são queridos, mas sem
prejuízo, sem ingratidão da tua parte, sem por isso os deixares de
amar. Eu podia lá consentir que fosse ingrata uma esposa Minha, Eu
que sei quanto custa a ingratidão e que sinto tanto; quando são
ingratos para ti! Não, não, não és ingrata. O que faço é para tirar
de ti tudo o que é humano, para só possuíres o que é divino, para só
o divino te encher. E assim é filha querida. Em ti existe só o amor
todo o amor de Jesus. Vou dar-te agora a vida de que vives; uma gota
do Meu divino sangue com a Minha eucaristia, é o teu alimento; é o
conforto que te dá Jesus, é a vida para ti e para dares às almas.
Jesus abriu o Seu peito, fez do
Seu divino coração uma pequenina infusinha pela qual deixou cair no
meu coração uma gotinha de sangue. Esta gota de sangue abrasou-me
tanto! Foi um fogo que me incendiou. Colocou novamente dentro de Si
o Seu divino coração cerrou o peito e disse-me:
― Vai, esposa Minha, vai ao
mundo dar este amor, vai dar-lhe esta vida, vai salvá-lo que é teu.
Custa-Me tanto ver-te sofrer, mas é para que seja salva a
humanidade. Continua sempre a obra de resgate, a obra de redenção;
és a nova redentora. Tu serás para o mundo, filha querida, estrela
brilhante, estrela de ouro que o guies para Mim. Vou despedir-Me,
vou deixar-te para abreviar o colóquio, vou deixar-te para ficar
sempre contigo. São colóquios dolorosos, é para Mim só o sabor, é
para mais receber de ti. Vai depressa, vai espalhar pelo mundo a tua
dor com o Meu amor. Vai com paz e alegria; Jesus to pede.
― Obrigada, meu Jesus, sede
comigo. Ai, tanta dor não sei repará-la; a Vós me entrego;
destruí-a, meu Jesus. Tende sempre diante de Vós os meus pedidos,
bom Jesus!
Aumentou o peso da minha cruz, e aumenta também, dia a dia, a minha
sede de sofrimento, a sede de me dar a Jesus e às almas, a sede de
consumir-me, enlouquecer-me e perder-me no amor de Jesus. E é
verdade que me sinto queimada; parece que um fogo invadiu tudo. Ah!
Se fosse o fogo do amor de Jesus! Se na realidade eu O amasse! Ai
pobre de mim! Tive no dia 11, uma grande tribulação, das maiores da
minha vida. Não sei se foi permitido por Nosso Senhor se pelo
demónio. Não sei, mas sofri muito. Não sou capaz de mostrar quanto
sofri. Sofri resignada. Não fui capaz de fazer várias das minhas
orações diárias, cansada de tanto sofrer. Mas o que não perdi foi a
minha união a Deus. Abraçada ao meu crucifixo, dizia de alma e
coração: eu te abraço minha cruz, com o meu Jesus; eu quero-te, eu
amo-te. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Apertava contra o peito a
imagem da querida Mãezinha e dizia-lhe: fostes Vós, Mãezinha,
fostes, Vós, que no Vosso dia me trouxeste este miminho. Valei-me,
valei-me, dai-me um conforto. Pareceu-me ouvir o coração estalar de
dor, e depois, sentia como que o sangue me corresse no peito. Vi, à
minha frente, tudo o que há de pior, tudo o que há de mais
desastroso. Quanto mais oprimida pela dor, mais fortemente o meu
brado subia ao Céu. Meu Jesus, aceitai-me parte destes sofrimentos
por tais intenções e nomeei-as; e o restante aceitai-o Vós e
espalhai-o pelo mundo, meu Jesus, a minha dor. Passou de 24 horas
que eu assim sofri, a sós com Jesus sem com mais ninguém desabafar
as minhas mágoas. Por mais que me interrogassem, procurei disfarçar,
nada disse; calei, calei até não poder mais. Queria chorar, e não
fui capaz; assim mais me custava sofrer.
No dia
12, levantei uma porta do véu que tanta dor encobria. Fui confortada
e quiseram desiludir-me que tal sofrimento não tinha o fim que eu
lhe dava. Fiquei um pouco mais libertada, mas sempre com o coração a
sangrar. Tinha a alma e o corpo sem vida. Passaram-se umas horas
mais suaves. Depois então recebi o golpe que foi realidade; não foi
nada da minha imaginação. Longe de me revoltar, recebi-o, abracei-o:
oro e sofro por quem me fere. Perdoo como quero que Jesus me perdoe
as minhas culpas. O que eu não quero é ofendê-Lo nem deixar um
momento de O amar. Se me dessem, de preferência o amor de todas as
criaturas, honras, louvores e senhora do mundo inteiro e nunca mais
ser escarnecida desesperada e humilhada contanto que por um só
momento eu deixasse de amar Jesus, eu dizia: não, não, sempre não.
Quero amar a Jesus sempre oprimida pela dor e humilhada, sempre
humilhada. Não posso dizer que o sofrimento não custa; mas é verdade
que esta vida passa e o amor de Jesus dura eternamente. Quero
amá-Lo, quero amá-Lo. Tenho sido rodeada por feras e bichos tão
feios, tão desconhecidos! Não me tocaram, mas temia tanto o seu
veneno! E os demónios com rostos humanos, feiíssimos, por entre
elas; os olhos e os dentes causavam terror. Tive quatro combates
seguidos; parecia-me ver todo o inferno em mim e à minha frente;
ouvia-lhe os seus ruídos e estalos como de lenha verde. Parecia
passar por mim todo o fogo infernal. Não me foi possível, de um
ataque ao outro, desprender-me daquele inferno. Que cadeia com tão
seguras prisões. Nos momentos mais assustadores, quando mais eu
temia ofender a Jesus, eu dizia: Jesus, Mãezinha, é de alma e
coração que Vos digo: dai-me o inferno se hei-de ofender-Vos; sou a
Vossa vítima. Pensava em fugir daquelas cadeias, mas não tinha
força. Não queria escutar as feias palavras do demónio, mas tinha
que ouvi-las. O coração batia fortemente e eu repetia: não quero
pecar. Quando fui libertada, estava num banho de suor. Acrescentei:
meu Jesus, que este banho do meu suor seja para as almas com banho
de dor e fortaleza que as levem a arrepender-se e a quebrarem as
cadeias do pecado. E seja também um banho do Vosso perdão e amor.
Sem eu querer, senti em mim, por algum tempo, vontade de voltar a
unir-me ao demónio. Só Jesus sabe quanto isto para mim é doloroso.
Tudo o que fica dito e não sei dizer tem sido para esta pobre alma e
corpo um contínuo Horto e Calvário. Durante esta noite senti-me no
Horto; lá sofri como se fosse despido e açoitado. Lá vi, lá sofri
como se fosse coroada de espinhos e com o corpo despedaçado pelos
açoites, levada à varanda de Pilatos. Vi a multidão do povo ouvi
suas gritarias: tinha que ser condenada à morte. A noite estava
escura e serena, que não deixava mover uma só folha das oliveiras, a
não ser quando a dor tudo obrigava a tremer, à solidão e a vir todo
o abandono, mesmo até do Eterno Pai. E àquela hora onde estava a
Mãezinha? Quanto sofria Ela com a reparação e a despedida de Jesus!
Ele, dentro de mim, via e sofria a Sua dor, via onde Ela estava, via
a distância que Os separava. Que dor sem igual! E, hoje, sinto em
meu coração a dureza dos corações, que acompanhavam Jesus, pelas
tristes ruas do calvário; nada os comovia, nem o sangue de Jesus,
nem o Seu santíssimo corpo ferido, nem ver o amor com que Ele
aceitou e levou a cruz, já quase moribundo. Ao terminar do calvário,
Jesus deu-me um profundo suspiro; e o Seu olhar moribundo, mas
divino levou a todos um olhar de convite, amor e perdão. Que olhar
de tantos segredos misteriosos! Quisesse ou não eu tinha que sentir
e ver as graças abundantes que davam aqueles olhares de Jesus;
quisesse ou não quisesse, tive que sentir e ver o calvário e todo o
mundo a desprezá-las a deitá-las fora. É indizível a dor de Jesus e
a minha com a d’Ele; ver tantos sofrimentos inúteis, ver para tantos
nada valer a Sua paixão e morte. Senti dentro em meu peito o último
suspiro de Jesus: agonizei com Ele. Momentos depois, senti
abrasar-se-me o coração; parecia-me estar a nadar num mar de fogo. E
logo me falou Jesus assim:
― Venho
a ti, minha filha, cheio de amor e compaixão; amor para te encher e
compaixão pela tua dor, por tanto te ver sofrer. Sofreste tu, Minha
filha, mas não Eu. Repara; vês como venho sem nenhum ferimento? Foi
atingido o teu coração e não o Meu. Tem coragem, Minha filha! Eu
pedi-te dor, sempre dor, para espalhar pelo mundo, e foi ao mundo
que a estendi com a mistura do Meu divino amor. Pedi-te dor, sempre
dor, porque de muita dor necessito, para bem das almas, e muita dor
via para te darem. Coragem! Eu poderei dizer de ti o que disse: as
portas do inferno não prevalecerão contra mim, isto é, contra a
Minha Igreja. E agora digo: a raiva humana, que mais parece
infernal, nada poderá contra a Minha divina causa. Anima-te, esposa
querida. Consentes em te pedir dor, sempre mais dor? Consentes em
seres imolada, a mais não poder ser? Peço-te consentimento, porque
nada vale a dor sem a generosidade, sem o teu querer, sem o teu
amor. O mundo necessita de tudo. Não deixeis, filha amada, morrerem
as almas de fome. Aceitas?
― Já
sabeis que sim, meu Jesus; escusado é dizer-Vos que tudo aceito e
sofro, por Vosso amor e pelas almas. Sou a Vossa vítima. Mas
pedis-me assim tanta dor; o que virá mais? Eu já queria dizer-Vos,
na última vez que falei convosco, o que me esperava, pois achava que
acentuáveis tanto a palavra dor, que tanto fazíeis penetrar em mim,
e que tudo isso queria dizer mais alguma coisa; mas não me atrevo a
perguntar-Vos nada.
― Compreendi tudo, todos os teus desejos, mas nada te disse, para
não te atemorizar.
― Dizei-me, meu Jesus. E não serei eu uma iludida das Vossas coisas
e nossa ilusão a iludir tantos e mais ainda aos que me são tão
queridos?
― Sossega, sossega, Minha filha, confia no teu Jesus. Não é uma
ilusão; é a realidade. Tu foste cheia das maiores graças das maiores
maravilhas do Senhor. Sossega, de ti quero o sofrimento com o
silêncio. E darei a minha luz, a luz do Espírito Santo àqueles que
precisam dela. Confia em Mim; todo o Céu se alegrou com a consolação
que Me deste, com a coragem do teu sofrer. A tua dor foi para as
almas uma primavera de flores. O teu heroísmo, o teu amor à cruz,
pôs o Céu, a tua pátria em festa. Entoaram, em Meu louvor, hinos
jubilosos. Vou dar-te agora uma gota do Meu sangue divino, para
reparares as forças perdidas. Consumiste mais forças nestes dias de
sofrimento do que num ano dos trabalhos mais austeros de jejum, a
pão e água. Vem a mim; é fácil a operação.
Jesus
abriu o Seu divino lado e abriu também o meu; uniu os Nossos
corações e logo deixou cair do d’Ele no meu uma gotinha do Seu
divino sangue. Senti logo o coração mais forte, a dilatar-se. Jesus
colocou um e outro no seu lugar; cerrou o Seu santíssimo peito,
cerrou também o meu, bafejou com o Seu bafo divino, deixou-o sem
cicatriz.
― Vai
agora, filhinha amada; vai sofrer, vai cheia do Meu divino amor; vai
espalhá-lo pelo mundo; leva a Minha graça, leva a Minha força. Tem
coragem; nada temas. Jesus é contigo; sempre contigo.
― Obrigada, meu Jesus; só em Vós é que eu confio. Como gosto de
dizer: Bendito seja Deus, bendita seja a minha cruz. Voltei para os
meus sofrimentos, a tudo ver desenrolar à minha frente; tudo me
causa pavor, nada queria escrever. Se não fosse a minha oferta da
noite de Natal ao Menino Jesus, mais nada escrevia; ficava como se
tudo morresse. Assim quero só, quero sempre a vontade do meu Senhor.
Se
tenho Jesus e a Mãezinha, não estou só. Que posso temer? Abraçada às
Suas imagens, nas horas mais dolorosas e mais aflitivas, é este o
murmúrio do meu coração. Quanto mais sofro e me sinto de todos
abandonada; mais aperto contra o meu peito o crucifixo e a querida
Mãezinha, e vou-lhes segredando: tenho que confiar, não posso ser
abandonada por aqueles em quem só tenho confiado, a quem me
entreguei totalmente, alma e corpo e todo o ser. Jesus, Mãezinha,
sou Vossa e Vós meus. Morri para não mais viver; o mundo para mim
não tem luz, não tem flores, não tem encantos. Tudo dá louvor ao
Senhor, todo o ser criado bendiz o seu Criador, só eu não.
Mergulhada nas trevas, nesta cegueira que me mergulhou e vejo o
mundo mergulhado, nada vejo que possa dar glória ao Senhor e louvor
como criatura Sua. Tudo é miséria e um mundo de podridão e
desventuras. Quantas vezes sinto a tentação de maldizer a minha
sorte; não o tenho feito. Nos momentos de desânimo, uma força
inesperada me levanta e me obriga a confiar no Senhor. Espero um
dia, espero outro dia, sempre a ver quando chega um sacerdote, em
quem eu possa confiar e abrir a minha alma, para assim me poder
guiar para Jesus e amparar, nestes caminhos tão dolorosos e
espinhosos. E não aparece ninguém; estou sozinha nesta luta
constante. Quero amar a Jesus e não O amo, nem sei como, não tenho
quem me ensine. Volto-me para S. José, peço-lhe do fundo da alma que
seja ele o meu mestre, o meu director e que por mim ame a Jesus e à
Mãezinha e toda a Santíssima Trindade. Estou esmagadíssima. Com
tantas humilhações; nem posso respirar. À volta de mim, tudo são
montanhas com seus feios bosques, por entre os quais tudo são feras
aterradoras a correrem, a descerem para mim; querem devorar-me; não
há quem me defenda e possa salvar-me. Nada mais sei dizer; a não
ser: meu Jesus sou a Vossa vítima. E a mesma repetição faço todas as
vezes que sinto estes dolorosos punhais, as espadas afiadas
lentamente a cortarem-me o coração. Este corte tão fino e profundo
faz-me, por vezes, arrepiar e desfalecer. Amo o meu calvário com
todos os sofrimentos que ele a mim conduz. E parece que se deixasse
de sofrer deixaria de amar. Quanto mais espremida, mais me
enlouqueço por Jesus, mais ânsias tenho de O amar. Mas, ó meu Deus,
quanto custa a dor!
Passou,
ontem, o primeiro aniversário da partida do meu Pai espiritual para
a Baía. Recordei todas as coisas e sofri mais, muito mais ainda, por
ver que nem o seu desterro acabou com as humilhações e injúrias para
ele e para mim. E se eu não visse alguém a sofrer por minha causa,
se fosse só para mim a dor! Mas não; quantos se imolam consigo, ao
mesmo tempo! Ó Jesus, ó cruz, ó dor, como eu Vos quero amar. Que
esta visão de tantos sofrimentos e o peso tão esmagador seja para as
almas que vivem na treva do pecado, visão de luz, conforto e amor.
Que este peso mortal que eu sinto seja para elas o peso que lhes
quebre as cadeias que as prendem a Satanás.
O que
foi o meu Horto de ontem, no meio de tantos sofrimentos. Mas não
bastavam; tive que sentir os de Jesus. Ele veio sentar-se em meu
coração e nele foi coroado de espinhos. Apesar de O ter em mim,
também eu tive a coragem de O ferir. Com uma vara nas minhas
próprias mãos, batia-Lhe e na Sua Sacrossanta cabeça mais se
enterravam os espinhos. Havia tanto quem Lhe fizesse o mesmo, mas
toda a maldade se reflectia em mim. O sangue que rebentava de todos
os espinhos corria em meu peito. Depois ficou Jesus, de mãos atadas,
a receber açoites. Eu continuei com a mesma maldade. Sem dó nem
piedade despedaçava o Seu corpo divino. Aquelas cenas não eram
daquela hora; via-as um pouco afastadas, mas feriam como se fossem
de momento. Desfaleci, fiquei por terra, a derramar sangue com os
lábios pousados no solo duro.
Hoje,
levada; arrastada pela dor, tristeza e noite mais escura, cheguei ao
cimo do calvário, sem outra coisa ver e sentir, e logo fiquei na
cruz cravada, de pés e mãos. Principiei a sentir uns olhos, dentro
em minha alma, olhos que não me pertenciam, que penetravam no mais
íntimo de todos os assistentes do Calvário. Aqueles olhares tão
altos viam naquele número toda a humanidade representada, como
aquela visão de maldade e crueldade. Jesus inclinou sobre o meu
peito, que era a cruz a Sua Sacrossanta cabeça. Palpitou o Seu
divino coração aflitíssimo, um profundo suspiro e estendeu ao longe;
cerraram-se os Seus lábios, só os Seus gemidos abafados eu sentia e
acompanhava-O na Sua dolorosa agonia. De longe a longe, quando a dor
era mais aguda e os suspiros mais profundos, vinham aos Seus lábios
divinos escassas gotas de sangue. Nesta agonia sem igual que lição
me deu Jesus, para a minha dor e agonia de alma com o Seu silêncio.
Se cá aprendesse à Sua semelhança, a sofrer caladinha! Com o aumento
da Sua agonia, mais cresceu em mim o ódio; queria fazê-lo
desaparecer de todos de todos os olhares humanos. Odiava-O, e, ao
mesmo tempo, na mesma dor, na mesma união, com Ele agonizava. Pouco
depois, um fogo ardente abrasou-me o coração e estendeu-se a todo o
peito. Logo depois falou-me Jesus:
― Sobe,
Minha filha, podes subir, elevada pelo amor até ao Meu trono divino.
Sobe, Minha filha e podes fazer subir muitas almas para a Pátria
celeste com a tua dor, com o teu amor. Tens duas escadas que chegam
da terra ao Céu pelas quais constantemente, noite e dia, sobem as
almas; é a escada da dor e a do amor. Pela do amor, sobem aquelas
que, embora frias e tíbias, não viviam em estado grave e se deixaram
encher da abundância do amor, que de Mim recebeste. Pela da dor,
sobem os pecadores que a tua dor arrancou às garras do demónio e
lhes obtive o perdão e a graça. Como é belo vê-las subirem. Se
pudesses vê-las! Cada alma é acompanhada por um Anjo que sobe com
ela à Pátria celeste. Eu quero-te, filha querida, constantemente
esmagada pelo sofrimento, não por te querer ver sofrer, mas porque
quero a tua alma pura, cândida, para voares da terra ao Céu, sem
passares no purgatório e dares-Me toda a glória e, pela alta missão
que te dei, altíssima, poderes salvar-Me as almas. Coragem, Minha
filha. A dor é a arma mais poderosa. Espalha-se a dor, espalha-se o
amor pela humanidade, e, sem que tu saibas nem sintas, vai penetrar
e esconder-se nas almas, como fumo ou nuvem que se espalha, como
perfume que irradia e penetra.
― Meu
Jesus, ó meu Jesus; eu não quero a minha alma pura com o fim de não
ir ao purgatório sofrer; eu quero-a pura para Vos consolar, eu
quero-a pura, porque não quero ferir-Vos, eu quero-a pura para com a
mesma pureza vos salvar as almas. É por isso que eu sofro, é por
isso que tudo aceito, meu Jesus. Mas custa-me tanto, tanto, meu
Jesus; vejo tudo perdido, vejo-me tão sozinha.
― Não
estás só, não, esposa querida: confia que estou contigo. O fim do
teu sofrer, o fim da pureza da tua alma maior glória Me dá, e maior
número de almas atrais ao Meu divino coração. Eu quero, eu anseio
que, à tua escola, venham aprender os grandes e sábios do mundo.
É nesta
escola que se aprendem as artes e ciências divinas. Diz, Minha
filha, e confia que é Jesus que to afirma: é a primeira escola e a
última escola de tão grandes maravilhas.
― Ó meu
Jesus, sinto-me desfalecida, vejo tudo perdido. Acerca-me tão forte
tempestade! Não cessam os relâmpagos, não cessa o estrondo
destruidor do trovão. Valei-me, valei-me, Jesus.
― Sossega, sossega, Minha filha. Os relâmpagos, são relâmpagos de
amor; o eco estrondoso é voz de convite para que venham a Mim todos.
É sempre a tua dor, é sempre o teu amor. Anima-te. A tempestade não
destrói a Minha causa divina. Olha, são os braços do teu Jesus que a
sustentam. Eu guio a barquinha, em mar tão tempestuosos, e ela
chegará ao fim, ao porto de salvação. Tem coragem! Eu velo por ti.
Eu sou o Pai terníssimo, Esposo fiel, que não abandona a Sua esposa
na mais dolorosa dor. E, como prova do Meu cuidado por ti, vai mais
uma vez correr em tuas veias uma gota do Meu divino sangue. É a vida
de que tu vives. Vou com ela substituir o que a violência da dor,
nestes dias te roubou.
No
mesmo momento em que Jesus dizia isto, uniu os nossos corações. O de
Jesus cercavam-no raios luminosos e parecia um centro de lindíssimas
flores, com o mesmo brilho dourado. Deixou cair o Seu sangue divino,
e logo os separou. O meu dilatava-se e não aguentava tanto amor.
― Vai,
Minha filha, mais forte, com a fortaleza divina; vai; leva contigo a
força do Céu, o amor do teu Jesus. Vai para a tua cruz, abraça-a. Eu
te prometo: sempre que ao teu peito, com tanto amor, abraçares o
crucifixo, Eu chamarei e estreitarei ao Meu coração um pecador.
Coragem! O Céu está para breve, já te sorri.
― Queria ter Convosco um desafio, Jesus, já que me falas do Céu, mas
não tenho coragem, meu Amor.
Jesus
sorriu e disse-me:
― Sei o
que tu queres, conheço tudo, podes desabafar e dizeres o que
quiseres, mas não hoje; fica para breves dias. Não posso demorar-Me;
vai para a tua cruz, leva amor; vai para a tua cruz, leva paz, leva
alegria; vai para a tua missão, para a missão das almas.
― Obrigada, meu Jesus. Ficai comigo mesmo escondido; não me deixais
sozinha.
O meu
espírito tem sido, nestes dias, um verdadeiro teatro representado
por Satanás; tem trabalhado bem. Tem-me atormentado tanto! Tem-me
mostrado todas as falsidades, todos os caminhos errados, tudo
perdido. Pobre de mim, se Jesus, e a querida Mãezinha não me
amparam!
De
manhãzinha, a alegria, o trinado das avezinhas, a darem glória ao
Senhor, é para mim motivo de maior dor. Os seus gorjeios são golpes,
que mais vem avivar as feridas da minha alma. Oh! Como eu sinto todo
o meu ser dilacerado! O aproximar-se da primavera não é para mim de
alegria, como para as avezinhas. Para mim, apresenta-se negra, cada
vez mais negra. As árvores a cobrirem-se de flores que nos fazem
admirar o poder de Deus e nos obrigam a prestar-Lhe o nosso culto de
louvor por tantas maravilhas, para mim são finos espinhos que me
ferem, são flores murchas e negras, são flores da morte. O que é que
me alegra a alma? A vontade do Senhor. Essa, sim, a vontade do meu
Deus, dá-me alegria, por mais doloroso que seja o meu martírio.
Tantas quantas vezes sinto em meu coração, os punhais, as espadas a
cortarem-me finamente, eu abraço o meu crucifixo. E ao dizer-Lhe
amo-Vos, Jesus, repito-Lhe sempre: sou a Vossa vítima. Sim, e eu
queria amar até à loucura, quero amar o meu Jesus, sem o fim da
recompensa do Céu. Não me interessa o prémio que me dá Jesus; quero
amá-Lo a Ele; só a Ele sobre tudo, porque Ele é digno de amor. É o
fim do meu viver, é o fim da minha dor Jesus e as almas; mas é
sempre Jesus, porque as almas a Ele pertencem.
A minha
razão não está conforme ao sentir da alma; a alma sente-se
humilhada, sozinha, sem ninguém, sem uma luz, sem um apoio, sem um
conforto da terra e do Céu. Para a alma não há amigos na terra; tudo
morreu, e até o Céu deixou de existir. A razão, sem se sentir
alegre, mostra-lhe, quer provar-lhe que tudo isso tem; que o Céu
existe, que Jesus e a Mãezinha não lhes faltam na terra, que ainda
tem amigos firmes ao seu lado. Que luta renhida que só causa a
morte; a alma em desarmonia com a razão! Meu Jesus! Sou a Vossa
vítima; continuai a esvaziar-me, Vós, só Vós a encher-me, isso me
basta. Nas horas tristes deste viver, perdida no meio do mar,
arrastada pela violência das ondas sinto como se viesse alguém que
tem todo o poder sobre elas, a deitar-me as mãos; levanta-me e
fica-se a fitar-me com compaixão. Parece-me ser Jesus; poisado sobre
as ondas, não se mergulha nelas, não se molha, e não me deixa a mim
ir ao fundo. A minha alma fita os seus olhos naquele olhar terno,
pede-lhe compaixão, é presa em Seus braços, não quer desprender-se.
Isto conforta-me por um pouco mas fica-me sempre a dor vinda do
temor. Ai de mim, se Jesus me deixa! Quando a tempestade é mais
desastrosa e as nuvens negras mais me escarnecem, para darem lugar a
maiores dúvidas, invoco o Divino Espírito Santo, peço luz ao Céu,
principio por examinar a minha consciência, e logo principia a minha
alma como que a nadar num mar de paz, uma paz sem consolação, mas
paz que dá a vida e obriga a caminhar. E vou seguindo por entre as
trevas, na confiança de encontrar Jesus.
Na
tardinha de ontem, senti Jesus, sentado dentro em mim, cabeça
inclinada, olhos baixos, quase cerrados, a chorar amargamente. Este
fitava, via coisas de grande destruição, que Lhe causava grande
amargura. Levantou-se em meu coração uma montanha mundial; estava
cheia de feras que se atiravam para ferir Jesus. Por entre aquela
montanha, nasceram grandes varas de espinhos que serviam de suplício
para o corpo Sacrossanto de Jesus. Pelos Seus divinos olhos e
ouvidos principiaram a sair gotas de sangue. Foi tal a dor do meu
coração, que me parecia abrir-me o peito, e ele, louco pela dor,
sair para fora. Tinha momentos que não podia respirar; quase perdia
a vida. Repetiu-se depois a cena do lava pés. Digo repetir, porque
já não foi a primeira vez. Vi Jesus com a toalha sobre os ombros,
bacia na mão, a lavá-los a Seus discípulos, incluindo aquele, que ia
entregá-Lo. Quero assemelhar-me a Jesus; quero, ainda que com muito
custo pedir sempre, sempre por aqueles que me ferem. Quem é Jesus, e
quem sou eu? Como sofreu Jesus, e como sofro eu? Pobre de mim, que
miséria a minha; não sei sofrer, não sei imitá-Lo!
Passei
daqui, no mesmo momento, ao Horto; lá fui sentir a cruz antecipada,
o coração aberto; veio para o Horto o Calvário. Vi uma massa de
almas a desperdiçarem o Sangue de Jesus, com os Seus sofrimentos,
com a Sua morte. Vi algumas a aproveitarem de tudo o que era de
Jesus, de tudo o que era dor. Vi um que subiu acima de todos e foi
mesmo beber no sagrado lado, à chaga do Seu Divino Coração. O meu
corpo foi o palco, foi o Horto, a cruz; Jesus, à massa das almas que
O desprezavam e as que d’Ele se aproximavam. Hoje, quanto me custou
a seguir o Calvário! Que desfalecimento tão grande! Parecia-me
caminhar mais de rasto do que de pé. De passos a passos, caía. O meu
corpo era um esqueleto descarnado, coberto de sangue. Queria
respirar e não podia, sentia como se me arrancassem o coração e as
entranhas. Cheguei ao cimo, vi sobre a terra a cruz, onde ia ser
cravada, ao lado o martelo e os cravos. Fui crucificada, erguida ao
alto na cruz e fiquei num negro cárcere sem saída; esse cárcere era
um mar imenso de dor sem fim. Eu só sentia a vida que vivia aquele
sofrimento, aquela noite escura que me mostrava tudo o que era dor,
tudo o que era maldade. Ali sofri com Jesus, ali senti os Seus
suspiros, ali recebi em meus lábios a esponja. A minha sede era
outra, Não foi com a esponja saciada, a minha sede era do coração,
era uma sede indizível. Cresciam as muralhas daquele mar imenso,
daquele mundo de dor, e, ali presa, tive que agonizar. Ao voar de
mim aquela vida que era a verdadeira vida fiquei em completa
liberdade, romperam-se aquelas negras muralhas e fiquei outra.
Principiou-me o coração a arder em vivas chamas e falou-me o meu
Jesus.
― Minha
filha, em trono de Rei estou Eu em teu coração, e sou, na verdade,
Rei e Senhor de todo o teu ser. Sou teu esposo fiel, mas não estou
só, está comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Dizer-te a Nossa
consolação, como estamos aqui deliciados com os encantos, com as
belezas de tão variadas flores, de perfumes atraentes é escusado; só
à vista clara da luz divina, da luz eterna, numa visão beatífica, o
poderás compreender. Fui Eu que rasguei, que rompi as muralhas, onde
estavas encerrada. O seu significado é aquele: quando pela Minha
morte resgatei as almas; resgatei-as do pecado, e deixei-as em plena
liberdade de entrarem no Céu. Há nos teus sentimentos de alma tantos
significados, tantas lições que Eu queria que aprendessem! São
provas tão claras de em tudo te assemelhar a Mim. Tu na continuação
da Minha obra resgatadora com a tua dor rompes os cárceres, as
muralhas em que as almas estão presas pelo pecado. Como é poderoso o
teu sofrer! Como é bela a tua missão!
— Meu
Jesus, dizeis muito bem, se eu soubesse sofrer, com o Vosso poder,
com a Vossa graça rompia tudo, tudo vencia. Mas, ai de mim, estou
sempre caída; não sofro com perfeição! Esmagada com o peso de tantas
humilhações e tanta dor, parece-me que quase ninguém me acredita.
Mais uma vez me entrego a Vós, para ser vítima em Vossas divinas
mãos.
— E não
querias tu, Minha filha, sofrer tudo isto só para salvares uma só
alma! E são tantas, tantas; são milhares e milhões que salvas. Se
soubesses como Me amas e como Me fazes amado! Confia, acredita no
Teu Jesus; e tens tanto quem te acredite! Eu farei que vejam em ti
as Minhas riquezas e maravilhas. Eu farei que aqueles, que te
atormentam, venham a sentir em si horríveis remorsos.
― Meu
Jesus, perdoai a todos. Eu não Vos digo que eles Vos amem como eu
Vos amo, mas sim como desejo amar-Vos. Que todos se enlouqueçam por
Vós, como eu queria enlouquecer-me. Jesus, meu Amor, quanto mais Vos
digo mais queria dizer-Vos, mais ânsias tenho e amor, mais vazia me
sinto, mais queria possuir-Vos. E não vos amo, não Vos amo, meu
Jesus.
― Amas,
amas, Minha louquinha. Não viste, quando, ontem, te conduzi ao
Horto, aquela alma que subiu acima de todas as almas, entrou em Meu
lado e foi beber ao Meu Divino Coração? Fui Eu que te quis mostrar;
eras tu mesma. Não és igualada nem na dor, nem no amor. Salvas com a
dor, salvas com o amor. Tens em ti o poder de Jesus.
― Quanto me custa isso, que me dizeis, só Vós o sabeis, Senhor. Eu
não sou digna de tão grande prova de amor; eu não sou digna que
tanto baixásseis até mim... Eu bem senti, meu Jesus, como se fosse
eu mesma que subi e entrei, à frente de todas as almas, mas não o
disse quando há pouco ditei os sentimentos d’alma. Que vergonha, que
confusão; não pude dizê-lo! Como eu me sentia miserável!
― É
assim mesmo, esposa querida, pequenina, escondida, como a violeta
entre a sua folhagem. Quero-te pequenina, para mais brilhares entre
a folhagem das minhas maravilhas. Quanto mais pequenina, mais
poderosa. Minha filha, tenho tantas almas em perigo. O peso dos seus
crimes levou ao fundo o prato da balança; se lhes não acodes, caem
no inferno. Queres salvá-las com a tua dor?
Vi
Jesus com a balança em Suas mãos divinas, um prato em baixo outro em
cima, um com tudo outro com nada. Bradei logo:
― Jesus, temo os sofrimentos, mas quero-os. E o que virá ainda!
Antecipai-me o valor do sofrimento, como por vezes me antecipais a
dor; colocai-o já sobre a balança; sou a Vossa vítima, quero salvar
as almas.
O
prato, que estava em cima, baixou logo abaixo.
― Pronto, pronto; heróica, heróica! Estão salvas, estão salvas. Que
alegria para o Meu Coração de Pai! Como Médico Divino da tua alma,
vou dar-te uma gota do Meu sangue divino para viveres, para dares
vida, para resistires à dor. É rápida a operação.
Jesus
abriu-me o peito, e, já com o d’Ele aberto, tomou o Seu Coração
divino sem tocar no meu, deixou cair a gota do Seu sangue. O fogo do
meu coração aumentou; ele crescia, dilatava-se por todo o peito.
― Vai,
esposa querida, vai para a tua cruz; leva este amor, leva este
Sangue divino; é de resgate, é de salvação. Tu, a nova redentora das
almas, possuis em tuas veias o Sangue do teu Redentor. Coragem! Leva
a força, leva o amor do teu Senhor.
― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sinto-me queimada por Vós. Sede a
minha força |