Onde
estais, meu Jesus? Para onde fugistes de mim? Eu não posso passar
sem Vós, meu Jesus. Vede que estou sozinha; vede quanto sofre a
minha alma. Ela está cega e muda, não vê nem sabe dizer o que tem.
Tremo de pavor e temo vacilar. Não posso dar um passo que não caia
num poço sem fundo; este poço dá-me a morte. Mais um ano é passado,
meu Jesus, e eu não posso olhar para trás, não vejo outra coisa
senão treva atrás e à frente de mim. Como passei o meu tempo? Como o
empreguei ao vosso serviço? Que mal, que mal, meu Jesus! Ó vida, ó
vida que eu não soube nem sei viver! Que pobre, que miserável, e
nada sou! Ah, se eu visse, mesmo muito ao longe, uma luz que me
guiasse para vós! Se eu tivesse no meu pobre coração um pouquinho do
vosso amor! Nada, nada, meu querido Jesus. São as trevas a luz que
eu tenho; é o gelo o meu amor; é a morte que fala, é o silêncio da
morte a voz, o brado da minha alma. E o Céu, o Céu, morro de
saudades, morro, morro, Jesus. Nada faço para o merecer, nada sofro
por vosso amor. A minha oferta, Jesus, a minha entrega a Jesus na
noite de Natal foi para mim mais um fogo de vistas e não um amor
sincero a Jesus, nem o fim de O consolar. Não sei o que me levou a
fazer tal entrega; nem compreendo o que Jesus quer com estes
sentimentos da minha alma. Seja o que for, lancei-me nos seus braços
divinos como a criancinha sem olhos, sem pernas, sem vontade, sem
entendimento. É em espírito, nos seus santíssimos braços que me
conservo, com o coração, a cabeça e todo o corpo em sangue,
dilacerado pelos espinhos. É nele e com Ele que a alma, momento a
momento, vai agonizando. Que me importa não ter luz se a razão e a
fé me afirmam que ela existe? Por vosso amor, meu Jesus, deixo
passar sobre mim toda a tempestade. Ao terminar os últimos momentos
do ano com as luzes acesas rezei o “Te Deum”. Foi o meu acto de
acção de graças a Jesus por tudo o que Se dignou enviar-me que me
causasse dor ou alegria; por tudo O bendisse pela grande prova do
seu amor. Que ignorância a minha! Não soube dizer-Lhe mais nada.
Principiei o novo ano tirando à sorte os meus protectores. Calhou-me
S. José e Santa Teresinha. Fiquei contente pela sorte que me caiu.
Que eles sejam os meus guias por entre as trevas que tanto pavor
causam à minha alma. Convidei todo o Céu a interceder por mim e a
ensinar-me a amar a Jesus e à Mãezinha. Queria só viver a vida do
amor.
Passou
no dia 2 o quinto aniversário em que Jesus me disse: «Prepara-te
para a luta, que tens que combater aparentemente sozinha». E que
luta foi esta, meu Deus! Oh, como esta data me mostrou, por entre as
trevas, os caminhos espinhosos que pisei! Ao principiar o ano,
principiei a sentir cair sobre mim uma chuva torrencial; esta chuva
para desfazer e queimar o meu corpo, sinto-o mesmo como se ele
ardesse em chamas, parece que me deixa toda em cinzas de fogo. Estou
cansada de tanto sofrer. Mas a alma está como de braços abertos para
receber tudo o que Jesus quiser dar-lhe.
Tive um
combate tão grande, tão grande com o demónio! O coração, de aflito,
bateu tanto e tão fortemente que por último acabou por não viver;
fiquei quase morta no pecado. E na morte que me senti não tinha
força para sair do pecado nem tinha coração que me levasse ao
arrependimento. Mergulhei-me no lodo e nele tinha que morrer. O
demónio continuava com as suas feias palavras e indecentes lições.
Senti dentro de mim alguém que com todo o rigor lhe fez sinal para
se retirar. Retirou-se, ou retiraram-se, porque eram mais que um;
fugiram espavoridos. Eu fiquei abismada na minha dor. Não há
sofrimento que me lembre tanto de dizer a Jesus que não como os
combates do demónio, quando sinto ele a aproximar-se.
Ontem
já de noite, quanto mais me esforçava por desviar do Horto o meu
pensamento, mais o coração dele se aproximava. O solo do Horto e a
justiça de Deus eram para mim as pedras dum moinho. O meu corpo era
o grãozinho de trigo que entre elas era esmagado e moído. O coração,
à semelhança duma nuvem que se abre para descarregar a água,
abriu-se para descarregar amor e receber toda a dor. Aquela dor
fez-me sentir como se o meu corpo suasse água, suasse sangue.
Prostrada por terra numa gruta retirada, senti e a minha alma viu um
anjo levantar-se. Fiquei mais forte para o que me esperava. Hoje,
logo de manhã, estava Jesus no meu coração com a sua santa cabeça
cercada de tão agudos espinhos que me feriam também a mim toda
quando Jesus Se inclinava sobre mim. E as carnes divinas de Jesus
caíam dentro do meu corpo aos pedaços. Ele era açoitado dentro em
mim; eu era a coluna, eu fui a cruz. E assim passei o Calvário e
cravada nele senti bater brandamente, mesmo a agonizar, o Coração
divino de Jesus. E senti que Ele no alto da cruz, no meio da mais
dolorosa agonia, nos últimos momentos da sua vida espalhava amor, só
amor. O amor estendia-se a todo o mundo como o perfume se espalha. E
eu com Ele, por seu amor e pelas almas, agonizava. Fiquei como morta
um bom pedaço. Sentia uma vida vinda muito do alto como que a
contemplar a morte do meu corpo, mas não era a vida que a ele
pertencia. Veio o meu Jesus.
― Minha
filha, aos corações que se amam com o amor puro e santo nada há que
os separe. Os nossos corações estão unidos: o meu e o teu, no maior
amor, no amor divino, no amor de Deus. Não há nada, querida filha,
não há nada que nos separe. Mas Eu quero, ao principiar do ano, na
primeira sexta-feira, dedicada ao meu divino Coração, uni-los e
enleá-los novamente. Quem vem deitar-lhes esses novos enleios é a
tua e minha bendita Mãe.
Jesus
tomou em suas mãos divinas o seu divino Coração e o meu; uniu-os
tanto, tanto! Veio a Mãezinha, enfaixou-os, enleou-os bem com fios
finíssimos doirados e conservou-se ao nosso lado. Jesus continuou:
― É um
só coração, é um só amor nos nossos corações. É como uma sala com
dois compartimentos com a entrada livre. Ambos têm o mesmo poder, o
mesmo encanto, o mesmo Céu. Passei para o teu toda a riqueza que o
meu contém. Queres saber, filha querida, o significado disto?
Entreguei-te o mundo e hoje mesmo renovo a entrega. É por ti, pelo
poder e missão que te confiei que este mundo vem a Mim. Passa livre
do teu coração para o meu. Tu não podes ver, minha filha, nem sentir
com consolação as graças e maravilhas com que te enriqueci; não
convém à tua alma e é mais proveitoso para as almas dos pecadores.
Enriqueci-te, elevei-te tanto as alturas como é alta a missão que te
dei. Enchi-te do meu divino amor e da minha vida divina, para
venceres e suportares todos os espinhos que ainda hão-de ferir-te.
Não esperes consolações e alegrias: és a minha vítima. Não esperes
luz, mas sim conforto e toda a abundância de amor, com a certeza de
Eu sempre estar contigo e sempre em ti vencer. Sou o teu Jesus,
confia em Mim. Tem coragem, que depressa vai acabar na terra a tua
missão. Estou contentíssimo, minha filha, afirmo-te: foi grande a
consolação que Me deste, foi grande o número de almas que salvaste
com o amor com que suportaste todo o sofrimento que te dei no ano
que terminou. Aqui não podes sabê-lo, no Céu o verás.
― Meu
Jesus, tudo isso me humilha, mas ainda quero ser por Vós mais
humilhada; falai-me dos meus pecados, porque até aqui só falastes do
que é vosso. O que tenho eu de bom que não fosse vindo de Vós?
― Eu
não quero falar dos teus pecados, porque nas tuas faltas escondo a
grandeza e a riqueza que só no Céu será conhecida e verdadeiramente
compreendida. E não falta na terra quem te humilhe. Mas coragem,
essa humilhação exalta-te e também Eu fui humilhado. Não quero,
minha filha, terminar este colóquio sem te prevenir, sem dar ao
mundo este aviso: a chuva de fogo que sentes sair sobre ti é por
seres a minha vítima; é a chuva que depressa cairá sobre o mundo, se
ele não se converter; é o castigo que apenas deixará um pequeno
número dos seus habitantes.
― Ó meu
Jesus, e não haverá remédio? Que posso eu fazer por ele, para o
salvar?
― Sofre, sofre, não é as almas que queres salvar? Os corpos nada
valem. Eu te prometo: com os teus sofrimentos e o poder da minha
bendita Mãe, as almas serão salvas; os corpos, a sua emenda de vida
o fará. Se a vida for pura, se fizerem penitência, são poupados ao
castigo. Diz, diz, minha filha, que é Jesus que chama, que é Jesus
que pede, que é Jesus que convida: é o Pai que quer salvar os seus
filhos. Vem, minha bendita Mãe, cingir os espinhos e a cabeça da
vossa vítima.
Vi a
Mãezinha com uma coroa de espinhos em suas santíssimas mãos; não sei
de onde pegou nela. Em todo o tempo que esteve com Jesus não A vi
com ela. Colocou sobre a minha cabeça, senti-me quase morrer.
― Coragem, minha filha, sou Mãe de Jesus, sou tua Mãe também. É com
estes espinhos que ainda falta ferir-te que vais acudir às almas. Eu
quero estar unida ao Coração do meu Jesus e ao teu, quero
comunicar-te o meu amor, a minha ternura e doçura, para melhor
poderes atrair as almas a Jesus.
― Vai
em paz, disse Jesus. Leva contigo toda a confiança: nada temas: Eu
não te falto. Leva a minha riqueza, leva o meu amor, leva as
riquezas da tua Mãezinha querida e vai salvar o mundo. Coragem!
Avizinha-se o Céu.
― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Vinde comigo, sede a
força da minha alma.
Durante
a noite senti-me atormentada pelo medo pavoroso com o receio dos
sofrimentos que virão de encontro aos meus caminhos. 5, o meu corpo
rolava neles doidamente, quase desesperadamente estava louca pela
dor. Aqueles espinhos punham-me o corpo e a alma numa só chaga e em
sangue. De hora para hora ia desfalecendo e morrendo como uma
lâmpada a apagar-se. Veio o momento da Sagrada Comunhão. Tinha sido
grande o meu esforço para preparar-me bem, para bem receber o meu
Jesus. Não me foi possível afervorar-me, nem abrasar-me de amor.
Recebi-O friamente. Passaram-se uns minutos e eu no mesmo
abatimento, na mesma cegueira e dor. Falou-me Jesus:
― Coragem, minha filha! Pouco depois de raiar o dia, vem o sol com
os seus raios a espalharem-se pela humanidade, para aquecerem a
terra. O dia já raiou: os raios do sol, sol doirado, vão aparecer,
não para aquecerem a terra, mas sim as almas; não para te consolar e
alegrar, mas para honra e glória minha e grande triunfo da minha
divina causa. Tem coragem, não te atemorizes! A vida da vítima tem
sempre espinhos. Os teus espinhos, as tuas trevas são a salvação do
mundo, são a luz das almas. A nova redentora assemelha-se ao seu
Redentor. Os espinhos, as chagas, o sangue e a dor acompanharam-Me
até ao último momento. Assim serás tu também. Eu estarei sempre
contigo; a tua morte será de amor.
Coragem! O teu temor, o temor de ti mesma não Me desgosta. Pelo
contrário, consola-Me, contanto que ao temor juntes sempre a
confiança em meu divino Coração, que é louco de amor por ti.
Confia,
confia. Vem comigo, minha bendita Mãe, levantar do seu
desfalecimento a nossa filhinha. Vem com as tuas ternuras, vem com o
teu amor. Neste desfalecimento o seu coração não pode bater asas,
não pode levantar para Nós o seu voo de amor. Vem já, vem já, Mãe
bendita, dar-lhe comigo a nossa vida divina.
Veio a
Mãezinha, tomou-me em seus braços; oh, como Ela me acariciou e me
apertou ao seu peito.
― Tem
coragem, minha filha! Eu serei contigo na hora da tua dor até ao
último alento; expirarás em meus braços. Qual é a mãe que não cuida
da sua filha, quando a vê com o seu corpinho em sangue, numa só
chaga? Eu cuido de ti, para que possas salvar os filhos meus.
Com as
carícias da Mãezinha eu fiquei quase a dormir. Jesus, à volta de
mim, como quem queria acariciaram-me, caminhava, pé ante pé, como se
não quisesse acordar-me. Passou-se assim algum tempo; a minha alma
enfortaleceu com este descanso suave e doce. Jesus continuou:
― Diz,
minha filha, ao teu Paizinho, diz-lhe, quero que lho digas: que a
alvura da sua alma não se mancha; o que é branco, branco fica por
mais que teimem deitar-lhe nódoas, manchá-lo. É com essa alvura e
com a abundância do amor do meu divino oração que Eu derramo sobre
ele que ele há-de atrair para Mim as almas e levar ao mais alto grau
de perfeição algumas das que lhe confiei. Criei-o para as almas;
pelas almas tem de sofrer. Ele bem depressa retomará o seu posto. A
sua inocência e a brancura da sua alma mais se justificarão com os
acontecimentos dos factos. Eu não queria que os homens assim, mas
permiti-o para maior glória minha, grande brilho e triunfo da minha
divina causa e bem das almas.
Dá ao
teu médico os agradecimentos de Jesus pela defesa que tomou pela
causa divina. Diz-lhe que quando ele escrever alguma coisa em defesa
dela, tomará a sua mão e a guiarão a mão de Jesus. O divino Espírito
Santo iluminará a sua inteligência com a sua luz divina. Eu o
encherei de Mim, do meu divino amor e farei que ele o comunique aos
seus como doença que a todos contagie, como veneno que tudo
envenena. Farei que ardam de amor por Mim.
Dá o
mesmo agradecimento a todos os que te rodeiam e amparam e grande
lugar ocupam em teu coração. Todos os que estão elevados em teu
coração também o estão no meu. Elevo-os às alturas no amor, assim
como os elevas tu. Dá-lhes, dá-lhes por Mim os meus agradecimentos.
Disse a
Mãezinha:
― Une,
minha filha, aos de Jesus os meus também e leva-lhes, junto ao de
Jesus, o meu amor com a minha ternura e protecção.
― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Parece-me tão humilhante
Jesus e Maria agradecerem a umas criaturas suas! Mas faça-se como
quereis e, custe o que custar, eu obedeço, meu Jesus; sou a vossa
vítima.
― Se
soubesses, minha filha, se pudesses compreender aqui na terra o que
é defender a minha divina causa e o que é amparar a maior vítima que
tenho na terra, vias que eram justos e louváveis os meus
agradecimentos. Bem depressa tudo verás no Céu, tudo compreenderás,
e então sem prejuízo da tua alma. Se soubesses as riquezas que te
dei no ano que terminou, para por ti serem dadas às almas, que
alegria e consolação sentirias! Não te preveni Eu, no princípio
dele, da mistura de dor e alegria, mas essa alegria não seria para
ti? O mesmo te digo hoje. As tuas alegrias ficam para o Céu, que
está próximo. Foram e serão alegrias para aqueles que estudam a
minha divina causa e a compreendem ao saberem como te enriqueci.
Foram e são alegrias para as almas que vieram e hão-de vir por ti ao
meu divino Coração. Coragem! Os Anjos levam aos braçados as flores
das tuas virtudes, formam com elas a mais rica, a mais formosa
coroa. Que bela que está e adornada por todos os pecadores que por
ti são salvos! Vai para a tua missão, para a nobilíssima missão que
te confiei. Vai dar às almas, vai semear pelo mundo a pureza e o
amor. Coragem! A minha paz, a minha força é contigo.
― Obrigada, meu Jesus.
Perguntam-me se amo a Jesus. Não sei se O amo, mas sei que O quero
amar; não sei falar-Lhe nem sei como Lhe falo; sei que tudo se
mergulha nas trevas e aí desaparece e morre. São tantos os meus
sofrimentos! É tanta a minha amargura! Todos os meus caminhos
parecem ser de sangue, mas as minhas trevas engolem tudo mais rápido
que furiosas feras. O meu corpo é como o grãozinho que nunca acaba
de ser moído; não cessa de moer, não falha a levada que o moinho
toca. Vivo assim abandonada, sem na terra encontrar conforto. Nem
nas minhas confissões que procuro serem frequentes, para mais
enfortecer a minha alma com a graça do sacramento, nem nesse
encontro alívio e conforto. Seja o pároco, seja o que está a fazer o
lugar de meu director espiritual, estou sempre tímida,
assustadíssima e a sentir sempre que não sou compreendida. Será
minha a culpa, meu Jesus? Ou sois Vós que assim o permitis? Bendito
sejais! Ai de mim, de quantos desabafos precisava e minha pobre
alma! Quando me sinto quase perdida, a cair no abatimento e
desespero, rompo por entre as trevas em espírito e lanço-me nos
braços de Jesus. É dele e da querida Mazinha que eu espero auxílio,
conforto e paz. Nesta angústia, sem Os ver, sem sentir que estou em
seus braços, sinto-me acariciada e estreitada a um peito todo
bondade. E, neste momento, sinto-me respirar, libertada de todo o
peso que me esmaga; com a alma tranquila, volto bem depressa para as
mesmas amarguras.
Foi no
dia 7 o quinto aniversário da proibição do meu Pai espiritual vir
junto de mim. Tudo recordei, cena por cena, passo por passo. A Santa
Missa que no meu quarto celebrou, ó meu Deus, que saudades! As
lágrimas que chorei por saber que alguém tinha publicado o que tinha
observado da paixão, e eu, que tanto ansiava viver escondida, ver-me
assim com as minhas coisas íntimas espalhadas. Mal eu sabia que não
voltaria, em tantos anos, a ter o meu Pai espiritual, que tão bem
compreendia a minha alma e em tanta pureza a queria, a dar-me os
seus santos conselhos e a luz que tanto precisava! Meu Jesus, sou a
vossa vítima: faça-se em tudo a vossa divina vontade.
Continuo a sentir o meu corpo a desfazer-se em cinzas de fogo com a
chuva queimadora que sobre ele cai. Cansa-me ao máximo, deixa-me sem
vida. Combati com o demónio; aproximou-se de mim furioso. Veio como
quem vem vestido e logo ao pé de mim se despiu. Principiou com as
suas feias cenas e tremendos conselhos. Invoquei os nomes de Jesus e
da querida Mazinha, muitas vezes. Terminou este combate e eu fiquei
como se estivesse morta. Não sei dizer a perda de vida que senti em
meu coração. Não combatia, mas sabia que estava debaixo do seu
poder. E ele, desviado um pouco, ria-se e lambia-se de contente.
Travou-se logo a seguir outro combate. Meu Jesus, sou a vossa
vítima; aceitai-me todo este sofrimento para o que Vos aprouver,
para os vossos fins divinos. Ai, quanto me custa! E se eu soubesse,
Jesus, se eu soubesse, Mãezinha, que não Vos ofendia! No meio do
grande perigo, gritei bem alto, de alma e coração: antes o inferno
que pecar. Senti-me libertada sem ver fugir o maldito; fiquei na
minha posição, com a alma em grande tranquilidade e paz. Este
conforto foi a vida para novos sofrimentos. Vieram as dúvidas, veio
o Horto.
Era de
tarde, o sol luminoso entrou no meu quarto. Este sol era a luz para
todos, era a luz para o mundo, menos para mim que só via trevas.
Senti o coração, não o corpo prostrado no Horto duro. Eram tais os
arrancos que ele dava que parecia obrigar o corpo a rolar pelo chão
e a suar sangue.
Veio a
noite e então senti-me em corpo e em espírito lá. Era moída,
esmagada. Era tão grande o peso da justiça divina que me pareceu que
se virou o solo do Horto com o de cima para baixo, e eu, nele
infundida, fui mais aniquilada. Vi depois a prisão de Jesus, o
trocar de espadas, as armas dos soldados. Que grande combate, se
Jesus com os seus olhares divinos e o levantar da sua mão não
acalmava e fazia tudo serenar.
Hoje,
no caminho do Calvário, senti Jesus curvado dentro de mim, com a sua
grande e pesada cruz. As bagadas de suor que corriam do seu
santíssimo rosto caíam dentro em meu peito. E eu sentia o seu divino
Coração ofegante pelo cansaço. Os seus lábios iam serrados, o amor O
arrastava. No alto da cruz sentia todas as chagas, mas mais
vivamente a do ombro e a cinta ainda parecia ser cortada pelas
cordas. A pouco e pouco todo o Calvário ficou em silêncio: só os
suspiros de Jesus se ouviam, só a dor reinava aumentada com o rancor
de muitos corações que, abafados não sei pelo quê, já não falavam.
Eu no meu coração sentia como se todo o mundo maltratasse e
apedrejasse Jesus mesmo ao vê-Lo assim a agonizar. Uni-me tanto às
dores da Mãezinha; ansiava com Ela tê-lo em meus braços para curar o
seu divino corpo tão chagado. Que dó, que compaixão por Jesus! Que
mútua união de amor e agonia! Veio o meu Jesus e logo transformou a
minha alma.
― Minha
filha, a cruz é vida, é amor, sinal de redenção. Eu serei contigo,
sofro, venço em ti. Os teus caminhos de sangue, os teus espinhos,
orvalho doloroso que cai sobre ti, são o bálsamo, a consolação e
reparação do meu divino Coração. A tua vida é amor. Assim como não
cessam um só momento os crimes do mundo, não cessam também de cair
sobre ti, que és a minha vítima, a chuva da imolação, do sacrifício,
do martírio. Tem coragem, é contigo, em ti está o teu Esposo Jesus.
O Céu espera-te, aproxima-se; bem depressa receberás a glória, o
prémio do teu martírio. Vês, minha filha, como os pecadores tratam o
meu divino Coração? Repara na minha sacrossanta cabeça, tão cheia de
espinhos! O que seria do teu Jesus sem a reparação que Lhe dás? Vês
esta chaga? Trespassa dum lado ao outro o meu Coração: foi um
sacerdote. Com que maldade ela foi feita! Repara por ele. Sabes quem
foi?
― Meu
Jesus, se é do vosso divino agrado, se não Vos entristeço com o que
vou dizer-Vos, deixai-me falar.
― Fala,
minha filha, diz-me tudo.
― Pedi-me a reparação que quiserdes, aceitai por ele todos os
sofrimentos que Vos aprouver, mas sem que eu saiba quem ele é, sem
me dizerdes o seu nome. Não posso eu reparar-Vos desta forma?
Jesus
alegrou-Se tanto e transformou logo o seu divino Coração em amor, em
fortes labaredas. Aquela ferida que o vazava dum lado ao outro
desapareceu: tudo era luz. A sua santíssima cabeça ficou sem
espinhos e sem sinais de ferida. E aquele amor de Jesus abrasou-me a
mim também.
― Que
transformação tão grande, meu Amor? Para onde foi aquela chaga tão
profunda e todo o ferimento, todo o sangue que o Coração continha e
a vossa santa cabeça?
― Foi o
teu amor, foi a tua generosidade no sofrimento: deixares-te imolar
sem saber por quem. Dá-Me então a reparação que te pedir, dá alguns
combates do demónio. Não tos pedirei muito tempo. Quando estiver
próximo a deixar de te falar, quando a cegueira não te deixar
exprimires a tua dor serás libertada dele: não permitirei que ele
volta a atormentar-te de tal forma. Tu ficarás como se não tivesses
inteligência para não compreenderes a tua dor, mas não deixarás por
isso de sofrer menos: sofrerás amargamente. Hás-de sentir como se
nunca ou quase nunca Me possuísses, e não deixarás por isso de Me
possuir inteiramente, o mais que é possível possuir-Me uma criatura
humana. Eu farei a graça de muitas almas verem em ti inteiramente a
Mim com toda a minha riqueza, com os tesouros inesgotáveis do meu
divino Coração. Tu és, minha filha, e serás depois da tua morte,
para cada alma em pecado, um pára-raios a atrair a si o peso da
justiça divina. E serás para cada alma em graça um íman atraente a
traí-las a ti, a buscarem o amor que em ti depositei. Prometo-te
isto, minha filha: seres toda vida, toda amor, toda graça para as
almas. Promete seres luz para toda a humanidade. A chuva de fogo que
sentes cair sobre ti era para já ter caído sobre ela: és vítima,
sofre alegre, o teu peito é um jardim divino, porque nele habita, no
trono do teu coração, o Jardineiro celeste. És o cofre, és a
depositária das riquezas e toda a graça e poder do Senhor. Vai,
pomba querida, vai para a tua cruz, cruz de amor, cruz de salvação.
Vai dar ao mundo, vai dar às almas o que te dá Jesus. Vai, corajosa,
vai mãe das almas! Vai, leva contigo a minha força divina, a luz do
Espírito Santo. Vai depressa, para não demorarmos este colóquio.
― Obrigada, meu Jesus; obrigada, meu Amor. Dai-me o que quiserdes e
como quiserdes. Eu não busco a minha honra e glória, mas sim a
Vossa; eu não sofro com os olhos no prémio para mim, mas sim com o
fim de Vos salvar as almas.
Quando
Jesus disse que o meu peito era um jardim, eu possuí tanta luz que
me mostrou que todo o meu peito era um vasto jardim de encantadoras
flores. Mas já tudo desapareceu. Perto de terminar de ditar tudo
isto, o meu espírito ficou como que encerrado numa negra prisão de
ferro ou bronze onde não podia entrar luz, entendimento nem vida. Em
que trevas estou já mergulhada!
— Meu
Jesus, sou a vossa vítima. O vosso amor, o vosso amor, só Vós,
Jesus: outra coisa não quero, só o vosso amor em basta.
A dor
desfaz o meu corpo e tão desfeito que me parece que não existe, que
só ela vive. Eu já nem sou um trapo podre; não sou nada. Oh, como eu
sofro! E tão oculta; só Jesus conhece. E por amor d’Ele e por amor
às almas, eu escondo o mais possível. Sofro com Ele; basta que Ele o
saiba. Queixo-me, gemo, quando sinto que mais não posso. Mas a alma,
a pobre alma, alastra-se, estende-se mais ainda o seu sofrimento. A
dor faz a alma desaparecer tanto que já nem é um pouco de fumo que
no ar desaparece.
— Ó meu
Jesus, não tenho a vida da alma nem do corpo, sustenho só a dor; e é
ela e com ela que estou a viver dentro de mim. É a dor a companheira
inseparável da vida interior, da vida íntima com Deus.
Digo a
Jesus: Quero viver dentro deste corpo que não existe, quero viver lá
tão dentro a vida interior, a vida íntima com Deus Pai, Filho,
Espírito Santo que não quero sair cá fora cuidar do exterior sem
deixar de viver sempre no interior.
Ó meu
Jesus, meu Jesus, não deixeis que o mundo me separe de Vós!
Mas eu
não sei viver e sinto que nunca aprenderei a viver aquela vida
perfeita, aquela vida do alto que tanto anseio viver. Perco-me à
procura desta vida que não sou capaz de possuir; mas são tais as
ânsias que tenho de a viver que por vezes parece cair no abismo
dessa vida e, na realidade, deixar de aqui viver. Não é a vida:
parece uma nuvem vaga que me absorve e leva não sei para onde. Nada
disto é visto aos olhos do corpo, nada disto é palpável; são coisas
da alma, e nada mais sei dizer, pobre de mim; sinto que não amo,
sinto que não sou perfeita.
Quantas
mais e maiores ânsias de perfeição, mais podridão, mais horror, mais
miséria! É o que me mostra e faz ver a minha cegueira, por vezes tão
aterradora.
Tive
com o demónio dois ataques violentíssimos; foi mais tempo, mas não
sei quanto. Creio que chamei uma vez alta por Jesus e pela querida
Mãezinha que viessem acudir-me em tão grande perigo. Não fui ouvida,
a não ser por estes amores queridos. Durante a luta queria sair dela
só para não pecar. Via-o satisfeitíssimo por me obrigar a pecar.
Fiquei por um espaço de tempo a dizer: não quero o gozo, não quero
pecar, não quero ofender-Vos, Jesus; não, não, não quero.
Quando
isto repetia muitas vezes, ouvi uma voz doce que me disse:
― Não
queres não, Minha filha; sei que não queres e não pecas; sossega,
vem descansar.
Tomei a
minha posição e o demónio fugiu. A minha cabeça, o meu corpo, a
minha roupa estavam ensopadas em suor. E o meu coração sem vida e
sem poder resistir à dor do pecado disse a Jesus:
Aceitai
todas as gotas deste suor como actos de amor para os vossos
sacrários e cada uma delas sejam prisões que prendem as almas ao
Vosso divino Coração e as arrastam das garras de Satanás.
Sentia
a paz da alma, mas sentia a dor e temia com aquela dor receber
Jesus, que não demorava muito a vir. Quando Ele veio e deu entrada
em mim esqueci-me por completo da luta enquanto Lhe dei graças.
Depois
voltei à dor, à pena, ao receio de ter pecado.
Na
tarde de ontem, de um momento para o outro, senti cair sobre os meus
ombros um peso esmagador. A alma viu que era o Céu que descia, era a
justiça de Deus. Pouco depois, e sem pensar nisso, senti-me quase
nua, presa à coluna e em público, em lugar onde todos podiam ver-me.
Já à
noite, dentro dumas muralhas, à saída do portão que dava saída para
o Horto, senti que Jesus chorava dentro de mim, chorava escondido,
chorava de dor; essa dor abriu-Lhe o coração e fez como se Ele no
mesmo momento desse ali todo o sangue. Com a Coração aberto vi dali
toda a viagem do Horto. Para lá puxava-O o amor e para cá
empurravam-no os maus-tratos de toda a humanidade atrás de Jesus
representada. Que grande dor, que doloroso martírio sentir e ver
tanta ingratidão!
Fui
levada logo por umas grandes escadarias à presença dos Juízes. Como
eu sofri, ao sentir Jesus, grandeza sem igual diante deles, ser tão
pequenino, ser mesmo um nada! E eles, os verdadeiros nadas, cheios
de orgulho e vaidade, cheios de grandeza sem nenhum poder. Abateu-se
o Poderoso, e elevaram-se no seu orgulho, aqueles que nada tinham.
Como Jesus sofria caladinho!
Hoje,
com o coração retalhado, segui com a cruz, em marcha apressada, os
caminhos do calvário. Uniam-me os pedaços do coração, ligavam-nos
uns aos outros fios finíssimos de amor. Só o amor era a vida. Quanto
mais caminhava e subia, mais alto se me atravessava a montanha. As
golfadas de sangue eram quase contínuas e o desfalecimento levava-me
à terra.
Que
segredos indizíveis a alma via em tão grandes sofrimentos, em tão
dolorosa viagem e por último no Calvário. As trevas negras da noite
não impediram que a alma pudesse pressentir todos aqueles segredos,
segredos que só a sabedoria dum Deus pode e sabe revelar. Foi unida
a essa sabedoria, de quem eu nada sei dizer, que eu me senti
obrigada a sofrer e a agonizar. Quantas lágrimas de Jesus, e eu não
uni as minhas às d’Ele; não uni as dos olhos, mas sim as do coração,
e tanto mais chorava, quanto mais ouvia e sentia o Seu brado
agonizante.
— Meu
Jesus, disse-Lhe eu, como é doloroso, quanto me custa este calvário;
mas amo-o!
E assim
fiquei, até que Ele veio; e toda a noite desapareceu.
― Minha
filha, a dor é para a tua alma o que o cadinho é para o ouro; é ela
que a purifica e faz grande aos meus divinos olhos. Tem coragem! A
tua alma é pura, é grande, grande para Mim. À medida que ela se tem
feito pura e grande, Eu te tenho acumulado das Minhas graças. És
grande para Mim, és grande para as almas. Os Anjos escrevem o teu
sofrimento, todo o teu martírio, e Eu vou-te enriquecendo com Meus
tesouros, as Minhas maravilhas.
— Meu
Jesus, quero ser pequenina, para só ser grande com as Vossas coisas,
com aquilo que é Vosso. Quero ficar vazia, de todo vazia, para só
Vós me encherdes. Quero em mim Jesus, Jesus, só Jesus.
Quero
ser grande, por Vosso amor e para Vos consolar; quero ser grande
para salvar-Vos as almas; e para mim pequenina, sempre pequenina.
Não é para glória minha que busco a grandeza do céu, mas sim para
Vós, só por Vós. Tende dó de mim, sinto-me tão fraca, incapaz de
nada, sem saber sofrer e sem saber amar-Vos.
— Coragem filha querida; tudo em ti é amor, mesmo assim entremeado
com as imperfeições, imperfeições que Eu permito. Quanto mais Me
ansiares, mais Me possuis; quanto mais sofreres, mais Me amas e mais
almas Me salvas; quanto mais te sentires desaparecer e morrer, mais
em ti aparecem as Minhas obras e mais vida dás às almas. Coragem!
Vem a Mim levantar o teu desfalecimento.
Neste
momento, Jesus ficou na cruz todo chagado, coroado de espinhos e do
Seu divino Coração nascia constantemente uma fonte de sangue. Eu não
chegava a Jesus, mas senti como se uma força me elevasse e
sustentasse junto a Ele.
— Minha
filha vem à chaga do Meu divino Coração, não beber, porque não podes
aguentar tanto sangue, mas sim refrigerar nele os teus lábios,
saciar a tua sede e amor.
Uni à
chaga de Jesus os meus lábios e sem beber o sangue senti o meu
coração abrasar-se em fogo. Passado algum tempo, Jesus fez com que
eu retirasse dele os lábios e, elevando-me acima um pouquinho, uniu
os Nossos dois corações, deixando cair no meu uma gota do Seu sangue
divino, continuou:
― É o
Meu sangue que é a tua vida; é esta vida que dás às almas; é vida de
salvação.
— Ó meu
Jesus, sofro tanto e de nada valem os meus sofrimentos. Onde está a
representação que Vos dei? Em que estado estais Vós? Eu não posso
ver-Vos assim sofrer: exigi tudo o que quiserdes de mim; fazei que
eu sofra o que Vos aprouver, mas saí dessa cruz e não Vos deixeis
chagar assim.
― Minha
filha, este sofrimento ainda não tem reparação; se queres
reparar-Me, dá-Me mais sofrimentos; se não queres que as almas caiam
no inferno. Que loucura e maldade é a do mundo! Como Eu sou
ofendido!
Já
sabeis, meu Jesus, que sou sempre Vossa vítima; quero a vossa
consolação, quero almas.
― Basta, basta, nada mais é preciso; vem tu tirar-Me da cruz e
curar-Me as Minhas chagas.
Pude
tirar os cravos das mãos e dos pés sacrossantos de Jesus; cada cravo
que eu Lhe tirava, logo a chaga cicatrizava. Tirei-Lhe, com toda a
cautela, a coroa de espinhos e, com os meus lábios, ou não sei com
quê, cicatrizei a chaga do Seu divino coração; deixou de escorrer
sangue; a cruz desapareceu. Jesus ficou Formosíssimo, sentado no
trono, coroado de Rei e cheio de glória. Tudo n’Ele e à volta d’Ele
era amor; por toda a parte se irradiava.
― Olha
a tua generosidade, a tua reparação, a tua aceitação do martírio.
Não sofro senão em ti, revestido em ti, sozinha não sofro. Vai,
pérola de Jesus, jóia preciosa; vai confiada em Mim, vai dar ao
mundo a Minha vida, vai convidá-lo à penitência, vai pedir-lhe
pureza, graça e amor; vai sofrer por ele. Leva a minha paz. Tem
coragem, confia sempre que Eu sempre em ti vencerei.
― Obrigada, meu Jesus. Guardai-me só para Vós. Sede a minha força;
não me deixeis ofender-Vos. Não morre a minha vontade, não
desaparece o meu eu. De vez em quando vou a querer dizer: não quero
escrever mais, não quero aparecer diante dos meus nem dos meus
grandes amigos; de todos tenho medo. Em tudo aparece o meu querer. Ó
minha cruz, eu quero-te, eu quero-te.
Não
posso falar e tenho que falar. Sofro horrivelmente e não compreendo
a minha dor. Caí num tal abismo de cegueira que nada vejo nem sei
compreender. Apesar do meu viver ser dor, sempre dor, mergulhei-me
nela e nem um só momento posso libertar-me. Perdi toda a vida; só a
vida do sofrimento ficou, e, sem fim de toda a espécie de sofrimento
contínuo, estou louca a querer viver, a vida para onde o meu coração
e a minha alma batem as asas, levantam voo, lá vão voando noite e
dia à procura daquela vida que não conseguem viver. Tão sequiosa e
faminta, por vezes me parece cair das alturas à terra; é o
desfalecimento de não encontrar aquilo por que tanto suspiro. Quando
estou caída e triturada de toda a dor, a sentir ir quase a
naufragar, a desesperar-me por completo eu chamo pelo meu Jesus,
pela querida Mãezinha: vinde em meu auxílio, vinde acudir-me, eu sou
Vossa inteiramente Vossa, eternamente Vossa, sou a Vossa vítima, não
me deixeis ofender-Vos. Neste duro martírio logo o meu coração e a
alma são transportados para um enlevo, para uma vida que os absorve
e parece tirar da terra. E logo posso levantar-me e caminhar
abraçada à minha cruz, louca, de amor por ela. Estes momentos de
enlevo são raros, mas alimentam a alma; fico mais forte, por algum
tempo; posso melhor resistir à dor. Tenho passado noites de
tormentosos sofrimentos. E a Mãezinha, a querida Mãezinha do Céu tem
vindo junto de mim, mostrando-me o Seu coração como Mãe do Perpétuo
Socorro, e, ainda outras vezes, trazendo consigo um Menino Jesus
muito pequenino. Estas visões são rápidas, mas confortam-me;
sinto-me outra, por algum tempo. Ora confortada, ora desfalecida,
vou passando as horas e os dias, vivendo dentro em mim a adorar a
Trindade divina, a quem tanto amo. Unida a Jesus, unida à Mãezinha,
balbuciando os Seus Santíssimos Nomes, vou sentido sempre contra mim
a grande tempestade, a grande derrota, mas com o coração fito no
Todo Poderoso e os olhos fitos no Céu, saudosa Pátria por que tanto
suspiro, espero levar ao cimo da montanha a minha cruz. Foram dois
os ataques do demónio na noite que passou. Antes da luta andou horas
a sondar à minha volta. Parecia que eu mesma era o inferno e que
pedaços do inferno caíam sobre mim. Que bichos tão feios, que
medonhas serpentes me rodeavam! É o sofrimento mais amargo, por ser
num ponto tão delicado. Que medo, que medo de pecar! Ouvi as suas
feias lições e maldosos ensinamentos; forçava-me por os não atender;
só por Jesus e pela Mãezinha chamava. Vieram muitos demónios e
alguns em forma de animais. Terminou a luta para, pouco depois,
principiar outra. Não sabia quando terminaria, mas sentia-me não
poder mais. Depois de um brado contínuo pelo nome de Jesus não O vi,
mas senti na alma como se Ele levantasse a mão e ouvi uma voz que
dizia: aparta-te, retira-te para o teu lugar.
― Descansa, Minha filha; és Minha, sossega, não pecaste.
Retirou-se o maldito desesperado, mas ainda por algum tempo passavam
à minha frente vultos pretos; pareciam pedaços de negras nuvens. Com
a alma em paz, passei por um ligeiro sono. Ao acordar, logo fiquei a
sofrer por nem uma só vez receber o meu Jesus sem um ataque do
demónio, depois de me ter confessado para ter a minha alma muito
pura para O hospedar.
Bendita
seja a vontade do Senhor! Ao terminar o dia de ontem, ao chegar à
noite, senti-me tremer e comigo tremer toda a terra. Senti os
sofrimentos causados por todo o mundo, e do mesmo mundo senti todo o
medo. Apavorei-me. Afastou-se tanto, tanto de mim o Céu que fiquei
como se da terra não pudesse fitar o firmamento. Tudo tinha
desaparecido, só o Horto ficou. Principiei a sentir da cabeça aos
pés o corpo cheio de gotas de sangue. De novo voltou o mundo inteiro
a aproveitar-se dos meus sofrimentos, a servir-se do meu sangue. Oh!
Que diferença! A maior parte lançava-se a mim como feras,
despedaçavam-me as carnes, causavam-me ainda mais dor. O número mais
pequeno servia-se do meu sangue, ou, para melhor dizer, do sangue de
Jesus, mas com mais paz, com mais doçura, com mais amor. Refugiada,
escondida de todos os olhares pude chorar. E, logo depois, subi a
encosta debaixo de uma chuva de pontapés e varadas. As lágrimas de
Jesus continuam, dentro em meu coração. De manhã, continuou o
coração a receber os maus-tratos em toda a tragédia do Calvário; foi
ele que foi calcado e arrastado. No Calvário para serem revirados os
cravos não foi virada a Cruz rente com a terra, mas sim levantada a
alguma altura para o rosto de Jesus e todo o Seu Santíssimo corpo
ser ferido novamente com toda a crueldade. E quando foi para ficar
ao alto que grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixá-la
cair na cova com tanta força; pareceu cair num poço E, ali com
Jesus, sofri imensas trevas. Ele, moribundo, observava tudo. Perto
de dar o Seu último suspiro, a um impulso do coração, vieram-Lhe
ainda aos lábios algumas golfadas de sangue e correram no Seu
Santíssimo rosto as últimas lágrimas e agonizou; agonizou e viveu;
agonizou e falou-me.
― Minha
filha, branco lírio, pomba querida, consolação e amor do Meu Divino
Coração, guia e conselheira das almas, cópia mais real e fiel de
Cristo crucificado. Eu uno, minha filha, à tua missão à mais alta e
nobilíssima missão todas as minhas graças, todos os meus tesouros e
méritos da Minha Santa Paixão, para teres todo o poder para melhor
desempenhares a missão de nova redentora. É Cristo que sofre em ti,
é Cristo que fala, vê e move em ti. Ó bela, ó encantadora, ó
altíssima missão, a missão das almas. Mas nada podia fazer, filha
querida, sem o teu consentimento, sem a tua generosidade, sem o teu
amor. Quanto te deve o mundo, quanto te devem as almas! Faço-te
poderosa, e faço que maior número de almas se encontrem e atraem
para ti e vejam em ti o que é Meu. Eu dou luz; eu faço luz; mas ai
pobres daqueles que mais se deviam deixar iluminar dessa luz e não
deixaram; por Mim Lhe pedidas rigorosas contas. O brilho é da Minha
divina causa, a dor é tua. Ela não podia passar sem prejuízo, senão
à custa dos teus sofrimentos. Tem coragem! É Minha a vitória. A
causa divina está na sua primavera de flores, flores que em toda a
parte do mundo depressa vão desabrochar. São flores saídas dos teus
espinhos. A tua vida é a vida de luz, vida de salvação. Quantas
almas por ti se irão converter! Quantas levadas pelo teu exemplo,
imitar-te-ão seguindo os teus caminhos atraídas por ti. Que milagres
prodigiosos! Para tudo isto, minha filha, é sempre preciso a tua
dor. Eu estou pronta, ó Jesus, para tudo sofrer e amar; pronta para
Vos deixar trabalhar em mim à vontade. Manejai o meu corpo como Vos
aprouver contanto que sempre em mim estejais Vós para com a Vossa
força sofrer para com o Vosso amor eu amar. Vem então, Minha esposa
querida, tirar do Meu Divino Coração estes punhais, estas espadas,
que tão cruelmente o ferem. Tira-mas tu, uma a uma, e depois com o
teu amor, com a tua reparação cura-lhe todas as feridas, para
ficarem de todo cicatrizadas; para dares-Me a maior prova do teu
amor, tira-as e crava-as em teu coração, para ficarem continuamente
a ferirem-te.
Voltei-me para Jesus, vi-Lhe o Seu lado aberto e por aquela abertura
saíam os cabos das lanças e punhais que tão vivamente Lhe
atravessavam o Coração. Eram tantas! Muito devagarinho, a tremer de
dor e de compaixão por Jesus, principiei a tirar-lhas e com toda a
força a cravá-las em mim Longe de terminar, caí desfalecida. Senti
mais a dor a tirá-las de Jesus, porque me parecia feri-Lo ainda
mais, do que ao espetá-las em mim. Parecia-me que o sono da morte me
ia levar. Jesus levantou-me, acariciou-me e incendiou d’Ele para mim
labaredas de fogo e disse-me:
― Coragem! Coragem!
Pude
continuar a tirar-Lhas todas. E depois Jesus uniu o Seu peito
Santíssimo ao meu e disse-me:
― Cura-Me todas as feridas. O teu carinho, o teu amor, a tua
reparação é o bálsamo. Meu Jesus, sou a Vossa vítima, amo-Vos. Como
pode haver coragem para Vos ferir assim meu Jesus! E de que servem
os meus sofrimentos se não evitam os Vossos? Sossega, sossega; a tua
reparação, o teu sofrimento curam-Me as feridas para poder de novo
receber outras. E evitas de tantas e tantas almas caídas no inferno!
Ele lá vai continuando fechado. Os pecadores salvam-se, aos
milhares, aos milhões. Olha para Mim; já não tenho em Meu coração
nem uma só ferida.
Vi o
coração Divino todo em fogo e vi cerrar-se o lado de Jesus que
estava aberto. Ele ficou todo resplandecente de luz. Vai em paz
Minha filha amada; vai corajosa, vê o valor da tua dor. Vai semear;
É florescente a tua sementeira.
― Coragem! Tua dor, o teu amor é a salvação do mundo. Pede: não te
canses. Quero oração quero penitência, quero emenda de vida, a
principiar pelos sacerdotes. Foram deles os primeiros punhais que me
tiraste; são eles que mais Me ferem por serem discípulos Meus. Haja
reparação. Ai, tanta inocência perdida, tanta vida roubada ao Céu
antes da sua existência na terra. Ai que maldade humana! Até por um
grande número de velhos anciãos sou ferida. Que horror, que horror;
tudo é lodo. Sofre com alegria Minha filha, dá-Me o teu amor. Tem
coragem, não te enganas, vai em paz.
― Obrigada, Meu Jesus. Sede a vida da minha dor, sede a força do meu
Calvário. Fiquei a sentir no meu coração os punhais que lhe cravei,
e sinto o peito aberto como estava o de Jesus. Quero sofrer; é por
Ele e pelas almas.
Nem um
guia, nem um raiozinho de luz! Tenho um medo de morte da minha
escuridão. Não sei dizer, não posso explicar, parece-me que os meus
dias findaram na terra, que perdi toda a vida humana.
Foi no
dia vinte e quatro que principiei a sentir-me assim. É esta
reparação, este estado de alma com as minhas trevas, com esta negra
cegueira que me faz sentir que todas as almas e todo o mundo vivem
nas mesmas trevas e na mesma cegueira de espírito. Não sei o que é,
desapareci e fiquei. Esta vida, que perdi, foi ressuscitar não sei
onde e lá continua numa sede ardente de salvar o mundo. Sinto que
desse lugar, onde foi a ressuscitar, vem uma ligação para a terra,
uma ligação para a dor, que dá força à mesma dor, faz companhia na
terra. Não compreendo. Foi e ficou, findaram os dias e continuam os
dias.
Noite
de Natal! Ao nascer Jesus, disse-Lhe muitas coisas, sem saber
dizer-Lhe nada. Pedi-Lhe muitas graças, muita luz, sem nada sentir,
receber nem ver. Acompanhei-O no presépio sem ter vida, sem ter nada
para poder fazer-Lhe companhia. Entreguei-me assim ceguinha ao Seu
Coraçãozinho e bracinhos pequeninos. De manhã, ao recebê-Lo, tive
com Ele os meus desabafos. Fiz-Lhe a entrega do meu Pai espiritual,
mas queria as Suas promessas realizadas e que toda a minha
preocupação era por ele, pelas almas e pelos que me eram queridos.
Se fosse só eu a ser humilhada, nada me afligia. Nesta oferta o
coração retalhava-se de mais viva dor. Disse-me Jesus:
— Sossega, tranquiliza-te, minha filha. Eu aceitei a tua oferta e
com ela consolaste e alegraste o meu Divino Coração. Aceitei, mas
não quero ter sacrifício. Cumprem-se as minhas divinas promessas.
Confia, manda agora Jesus, governa agora Jesus. Que fazem os homens
sem mim? Confia, tesoureira de Jesus, cofre dos meus tesouros
divinos. Confia neste coração que te ama. Recebe o fogo deste
coração, louco de amor por ti. Recebe-o a transbordar e dá-o aos que
tu amas, dá-lho, são mimos do céu, são mimos que lhes dou por ti.
Enche-os do amor e dá-o ao mundo, que é teu.
O
demónio rodeia-me, põe-se à minha frente como cão raivoso que quer
morder-me. Lutei, combati com ele por duas vezes. Era para morrer,
se Jesus não desse a vida ao meu pobre coração, que à força de tanto
bater ficava de todo desfalecido. Ao último combate, veio Jesus,
deitou-me os Seus divinos braços como para levantar-me.
— Sossega, minha filha, tu não pecaste. Confia que é reparação que
te peço e em ponto tão delicado que são raras as almas a quem lha
posso pedir.
Veio a
Mãezinha, fiquei entre os Seus braços e os de Jesus e por Um e Outra
bafejada e docemente acalentada.
— Coragem, ó esposa de Jesus. Desagrava os nossos Corações e confia
que por ti velamos e por ti somos consolados.
Logo
que me vi sem Jesus e sem a Mãezinha, a minha dor, amargura da minha
alma eram insuportáveis. Que quadro tristíssimo da minha vida se
representa à minha frente! A bradar repetidas vezes, a pedir o
auxílio do céu, passei pelo horto e lá, com Jesus a agonizar, vi os
apóstolos reunidos, a dormirem despreocupados. Jesus, cheio de
doçura e mansidão, a chamá-los para o grande acontecimento, para a
prisão. Se o mundo pudesse ver tudo isto! Passei depois ao calvário,
depois de ter estado à coluna e o meu corpo com o de Jesus
cruelmente açoitado. Subi a montanha. Maior, muito maior que a fúria
dos algozes. Era a força do amor que me arrastava. Não olhando à
carne, que, desfeita, ficava por entre as pedras em todo o percurso
da jornada. No alto da cruz, entre dor e trevas, sentia a tal
ligação, de que acima falei. Vinha não sei de onde aquela vida
compartilhar a dor, vencer a dor. Era só isso, pois meu já não era o
corpo, minha já não era a vida. Depois de muito sofrer, atemorizada
com tanta escuridão, veio Jesus. Veio, e tudo serenou.
— Minha
filha, escolhi-te para a dor, escolhi-te para o amor. A dor é o selo
real, a dor é a chave de oiro que abre os corações dos pecadores
mais empedernidos. A dor vence e condu-los ao meu coração. A dor é o
bálsamo que cura as suas feridas. Quem sofre bem ama-me com o maior
amor. É por isso que te escolhi para a dor e para o amor. Sofres com
a maior perfeição, amas-me com o amor mais puro e elevado. És a
mestra e rainha da dor e do amor. O mundo em ti aprenderá. E que
belas lições, que lições de maravilhas e prodígios, que lições
divinas por recebem, logo que a tua vida seja conhecida!
— Meu
Jesus, que confusão a minha! Eu não sei sofrer, eu não sei amar-Vos.
Vede como estou envergonhada. O meu maior anseio é consolar-Vos e
dar-Vos almas. Mas ai, pobre de mim! Mergulhada em trevas, sou só
miséria e nada mais. Oh! como eu temo a minha fraqueza!
— Minha
filha, esposa amada, canteiro mimoso, donde brotam as mais belas
flores. Sossega, ainda não ouviste dos meus divinos lábios dizer-te
que não sofrias bem. O teu temor consola-me, encanta o céu. Vejo os
teus desejos, as tuas ânsias e com isso me alegro. Venço contigo,
sou a tua força, confia nas minhas divinas palavras: são infalíveis.
Sofro com a maldade dos homens, sofro com a prudência exagerada de
outros. Mas a causa é minha, tu és minha, és das almas. Irradia-as
do meu amor, perfuma-as com o aroma das tuas virtudes. Vou dar-te o
meu sangue divino, o sangue da tua vida maravilhosa, da vida que
vives, da vida que dás às almas.
Uniu
Jesus os nossos corações um ao outro. Mal percebidas, sim, mas
deixou-me cair três pequeninas gotas do Seu divino sangue. E logo
principiou a bafejar-me com o Seu bafo divino.
— Não
se dilata o teu coração, não podes sentir a força do meu amor. Não
deixas por isso de me amares com o maior ardor. Vai em paz, coração
de fogo, língua de louvor. Vai espalhar ao mundo, distribuir às
almas, de quem és mãe. Prometo-te, minha filha, depois da tua morte,
a conversão de muitos pecadores junto do teu túmulo. Virão
visitar-te e sairão outros de junto de ti. Lá do céu, da tua Pátria,
velarás por elas, cobrirás de bênçãos as suas almas. És rainha e mãe
do mundo, és rainha e mãe de todos os pecadores.
— Obrigada, meu Jesus.
Sinto
que todos me abandonaram, todos, mesmo todos; que não há quem cuide
do meu corpo nem da minha alma. Sou cegueira, só cegueira. Parece-me
que mesmo o meu Pai espiritual nada se interessa pela minha alma.
perdi tudo, nada tenho.
— Que
será de mim, ó meu Deus? Que eu não perca a minha confiança em Vós.
Sou a Vossa vítima. Bendita seja a cruz que me dais. Não sei e não
posso dizer mais nada.
31 de
Janeiro de 1947 - Sexta-feira
Faltará
muito para chegar ao cimo do meu Calvário? Não sei, o que sei, o que
sinto é que cheguei ao auge da minha dor, dor que, sem um grande
auxílio do Céu, já teria chegado ao desespero. Que dias tristes! Que
dolorosa amargura! Que horas trágicas e de tanto desfalecimento! O
meu olhar fixo em Jesus e na Mãezinha falavam mais do que os meus
lábios; era a pedir-Lhes socorro; e juntamente ia o murmúrio do
coração com um estreito abraço a tudo o que era dor.
Por
Vosso amor, Jesus, por Vosso amor, Mãezinha, e pela salvação das
almas. Mas com o aumento da dor e tentar esconder as minhas lágrimas
pensava: se não fosse a graça do Sacramento, não queria junto de mim
um sacerdote; queria-me abandonada, como de verdade eu me sinto.
Queria dizer aos meus amigos que fizessem de conta que não existi no
mundo; queria esconder-me de todos os olhares. Jesus basta ao meu
coração, mesmo a sentir que nada O possuo. Uma tempestade fortíssima
me absorvia; tempestade desastrosa, tempestade sem remédio. Fui
lutando, fui chorando e dando a Jesus as minhas lágrimas; Ele foi
vencendo em mim; Ele sem que eu o sentisse, levantou-me, e
encaminhou-me a romper por entre as trevas: Bendito seja Deus!
Valha-me o grande poder de Deus, valha-me a grande caridade de Deus,
valha-me o amor imenso, o amor infinito de Deus. Assim costumo
dizer, assim vou vencendo. Sinto em meu coração as grandes espadas,
os grandes punhais que há oito dias me ficaram cravados; quanto mais
me trespassam, quanto mais mo cortam maiores se fazem; parecem
crescerem, momento a momento. Estes punhais vêm do meio do mundo; é
dele que me atingem o coração; é o mundo que os move; são mãos
cruéis que os obrigam a cortarem com seus fios afiadíssimos. Quando
eu sofro assim, o quanto não sofrerá Jesus! Ah! Se eu pudesse atrair
para mim todos os sofrimentos e não deixar que nem um só fosse ferir
o Coração Divino de Jesus! Ele deu-me há dois dias um grande mimo,
um mimo do Seu Divino amor. Ao recebê-lo parece que todas as
amarguras me atingiram mortalmente o que fez tirar-me toda a alegria
e consolação que desse mimo podia receber. Se Vós quereis assim, Meu
Jesus, porque o não hei-de querer eu também! Para Vós tudo, toda a
consolação e amor. Faça-se em mim a Vossa vontade divina. Este mimo
passou em mim despercebido, mas deixou-me o coração forte; foi como
que uma injecção que o ajudou a suportar novos golpes que o vieram
ferir. Louvado seja o meu Senhor que tanto tem para me dar e tão
cuidadosamente vela por mim. Se eu soubesse corresponder às graças
do meu Jesus! Foi dolorosíssimo, foi amargosíssimo o meu Horto de
ontem, foi um Horto de todo o dia e da maior parte da noite. Fazia
por retirar dele o meu espírito, mas não sei o quê, uma força
invisível me unia, prendia o coração àquele solo duro e triste; era
um Horto mundial ladrilhado de pedra dura, rochedo inquebrável.
Lançou-se sobre mim o peso brutal da humanidade; o seu peso
esmagou-me, abriu-me o peito, tirou-me a vida superior, sublime,
muito sublime, deu-lhe entrada no coração e abrasou toda a
humanidade em amor; triunfou da morte e abraçou toda a ingratidão
humana. Vi à minha frente uma floresta de espinhos que atingiam
grande altura. Desses espinhos foi formada a minha coroa; tive que
atravessá-los e neles da cabeça aos pés foi todo o meu corpo ferido;
espetados neles ficaram muitos pedaços das minhas carnes. Logo a
seguir, pela noite fora, andava o demónio, à volta de mim, a
querer-me assaltar. Várias vezes me convidou ao mal e me ensinou as
suas feiíssimas palavras. Veio a madrugada, travou-se então o
combate. Em forma de animal, assaltou-me; tive que combater. Não
deixei de bradar ao Céu em tão tremenda luta; porém este parecia-me
fechado e surdo.
Satisfeitos os gostos do maldito, deixou-me; mas, ó meu Deus, como
me deixou ele! Deixou-me despercebida, não o vi fugir; levou consigo
a inocência, deixou comigo a maldade. A culpa era só minha. Fiquei
como caída na valeta da estrada, não podia levantar-me nem tão pouco
levantar os olhos ao Céu para os fitar em Jesus. Que indizível
vergonha! Não sei por quem fui levantada, mas sentia a minha alma
chorar com profunda dor. Tem ferido o meu Jesus? Com a vinda d’Ele
ao meu coração esqueci mais as maldades do demónio; pude unir-me
mais a Jesus e desabafar com Ele. Os meus espinhos do Horto deram
princípio às ruas estreitas e tristes do Calvário. Segui por entre
eles abismada na noite mais negra; neles perdi a carne e o sangue.
Subi ao cimo da montanha e a mesma noite se espalhou nela. No alto
da cruz que era eu e nela estava pregada. Sentia o levantar do peito
de Jesus, o seu ofegar, palpitar do coração. Sentia o brado triste,
o eco agonizante dos Seus gemidos; sentia o Seu sangue divino que
caía ao pé da cruz. Sentia uma dor de alma que a obrigava a chorar e
a dar a vida despedaçada de dor. Eu não podia aguentar aquela dor
que era de Jesus. O que Ele sofreu! Ai a dor do Calvário, a dor, a
visão da maldade humana. Eu não resisti; por alguns momentos
pareceu-me mesmo a minha morte ser real. Não quero pensar, porque
não posso recordar o sofrimento do meu Jesus. Ele veio; fez-me
viver.
― Minha
filha, levanta-te, tem coragem, vem seguir os caminhos dolorosos do
Teu Esposo Jesus. Repara, olha a montanha, estás quase no fim, pouco
tens que subir, pouco tens que caminhar. Olha a cruz, olha o seu
brilho, vê tantos raios luminosos; são raios saídos de todas as suas
chagas; são raios saídos de todos os espinhos que a tua cabeça
cinge. Saem de ti, saem de mim que em ti estou, de ti Me revesti:
são raios poderosos, raios atraentes, raios de salvação. Olha como
correm aos bandos para eles as ovelhinhas; são as almas, vêm de ti
para mim. Coragem! Olha o valor da tua dor, do teu calvário.
Vi a
montanha, vi a cruz; parecia estar de sol iluminada. Eu já tinha
quase subido tudo, estava perto dela; mas era aquela a minha cruz e
via-me como se nela estivesse cravada. Dos pés, das mãos, do
coração, da cabeça saíam fortes raios de luz; vinham penetrar na
terra. Fez-me lembrar o arco-íris que vai absorver a água ao rio ou
ao mar. Para todos aqueles raios que rodeavam a cruz, vinham de
todos os lados, grandes rebanhos de ovelhinhas; não lhes via o fim.
Oh! Como era belo vê-las atraídas para aqueles raios sem que ninguém
as guiasse, sem levarem pastor. Meu Jesus, oh! Como é belo e
atraente o amor do Vosso divino coração.
― Oh!
Como são poderosas as Vossas chagas, todos os Vossos sofrimentos.
Quero sofrer convosco, convosco quero estar sempre na cruz para nem
um só momento cessem as almas de virem a Vós; de virem ao sol
resplendoroso do Vosso divino amor. Sede a minha força, vede como
sou fraca, meu Jesus. Minha filha, Minha amada, quem com Jesus está
com Jesus vence. Tem coragem! Da cruz passas ao Céu, ao Céu que te
espera: E pela cruz fazes subir as almas aos milhões, aos milhões
para a sua pátria. Sofre sempre, por meu divino amor, e nada temas;
sofre alegre, se não Me queres ver ferido. Enquanto que viveres na
terra, não mais deixarás de sentir em teu coração essas espadas,
esses punhais. És a minha vítima, é ferido o teu coração para não
ser ferido o Meu.
Sabes,
filha querida, porque é que quanto mais eles te ferem e te cortam
estas espadas e atravessam o coração, mais as sentes e vês crescer?
É o aumento, é a repetição dos novos crimes. Reparas uns, mas a
maldade desses infelizes inventa outros; vem logo com novos golpes.
Se soubesses quem Me fere e como Me ferem! Quero explicar-te, quero
desabafar as minhas mágoas.
― Meu
Jesus tirai de mim, se é possível, a reparação precisa; eu aceito,
eu quero sofrer por quem quer que seja, amigos ou inimigos meus não
me importa; são filhos do Vosso sangue divino, eu a todos quero
salvar. Sou a Vossa vítima, vítima a sério, só para não Vos ver
ferido. Eu sei que sofreis, Jesus, e eu quero reparar sem saber por
quem.
― Ó
Minha louquinha, Minha louquinha de amor, que grande e encantadora
lição tu dás ao mundo; que grande prova de heroísmo, que apreciável
valor dás às almas! Vai, vai contente. Para conseguires a realização
dos teus desejos, não mais terás alegrias sensíveis na terra; apenas
o necessário conforto para venceres e resistires à dor… Vai, alma
pura, não te deixes abater demasiado com os teus defeitos; Eu os
permito para mais em ti brilhar aquilo que é Meu. Vai espalhar o
amor, vai acudir às almas, vai dar a luz ao mundo. Eu farei que nele
brilhes com o Meu brilho que a ele encantes com os Meus encantos.
Coragem, coragem! Eu vou e estou sempre contigo.
― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Ajudai-me a vencer este medo
pavoroso, que já vejo à minha frente. Quero a cruz, quero as almas,
mas temo as minhas fragilidades. Não me abandoneis meu Jesus. |