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Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

MARÇO 1947

1 de Março de 1947 - Primeiro sábado

Hoje, a minha preparação para receber a Jesus foi feita, na mais profunda dor, dor em que fiquei mergulhada, ontem, pouco depois de ter com Ele o meu colóquio. Depressa me apareceu a cruz com todos os seus espinhos e sofrimentos. Preparei-me na ânsia de bem O receber, para melhor O conhecer, para mais O amar.

Todos os meus esforços eu sentia serem baldados. Tudo o que nasce em mim morre, sem que eu chegue a gozar deles a ver os seus encantos. A morte está sempre em mim, a ceifar o que há de bom; só a minha miséria me deixa, e, momento a momento, cada vez maior aparece. Triste cegueira que só me mostra maldades! Veio o meu Jesus; logo que entrou em mim, dissipou as trevas; todo o meu interior ficou iluminado com o Seu amor, com a Sua paz. Fiquei outra, agora bem podia dizer não sou que vivo, mas sim Jesus. Falou-me:

― Minha filha, aqui estou, aqui Me tens no teu coração, para te confortar, e dar vida. Escuta-Me, quero dizer-te, quero afirmar-te que te amo e que Me amas; que estás na verdade e que tudo fazes e sofres como Eu quero. Esta afirmação não é dos homens, é do teu Esposo, do teu Jesus. Onde está a cruz, a cruz resignada, a cruz abraçada, a cruz amada, está a verdade, está a vitória. Onde está a dor, está o amor. Eu amo-te, tu amas-Me, confia em Mim. Tens a vida que te deu Jesus, tens a missão que te deu Jesus; tens os teus lábios, em teus olhares, em todo o teu viver a verdade. Coragem! Se tens a Jesus, o que te falta, que mais precisas? Diz-Me agora, Minha filha, o que querias dizer-Me; desabafa comigo com toda a simplicidade, como Eu contigo.

― Meu Jesus, bem sabeis que me arrependi por dizer-Vos que queria desabafar Convosco; eu não tenho querer nem vontade, mas já que me mandais, eu obedeço, meu Jesus. Tão bem me falais do Céu e que ele está perto, e nunca cá chega? Nunca mais saio deste desterro? Que vem a ser isto?

Jesus fitava-me e sorria-se para mim, cheio de bondade.

― Julgas, Minha filha, que és por Mim enganada? Bem sabes que te não engano. O que são as trevas deste mundo em comparação da eternidade? Digo-te que o Céu se aproxima, digo-te para te animar e dar conforto e digo-te, porque é verdade. Não se compara o tempo que viveste, os sofrimentos que sofreste com o que te resta para viveres e para sofreres. O Céu espera-te, sorri-te, está para breve. Conforta-te com as palavras do teu Esposo Jesus. O mesmo conforto quero dar ao teu Paizinho para que ele resista às suas agonias, às suas angústias e dores. Quero confortá-lo, para que não dê lugar ao demónio tentador. Diz-lhe que a sua vida fui Eu que lha escolhi; diz-lhe que o criei para as almas e que ele as encaminha e conduz como o Meu Divino Coração deseja. Diz-lhe que lhe quero e amo como as pupilas dos Meus olhos. Diz-lhe que fiz da vida, a vida de um outro Cristo. Diz-lhe que Me vejo a Mim nele e que é por isso que em tudo o assemelhei a Mim. Eu amo-o, Eu amo-o. Diz ao teu médico que lhe abro o Meu Divino Coração e o faço depositário de todo o Meu amor, de todas as Minhas graças para ele cooperar com elas e como bom agricultor semeie para Eu colher. A glória é Minha: Dou-lhe a luz do Espírito Santo para ele e para todos os que como ele cuidadosa e sinceramente trabalham naquilo que Me pertence e é Meu. Vem, Minha bendita Mãe, toma-a em teus braços, aceita-a, é nossa filhinha, conforta-a.

Jesus colocou-me nos braços da Mãezinha, que estava à minha direita. Ela abraçou-me e com o Seu Santíssimo rosto, unido ao meu, cobriu-me de carícias.

― Coragem, Minha filha, esposa querida do Meu Jesus. A tua vida é de imolação, mas também é de salvação. As almas salvam-se com o teu martírio; anima-te. Tu vences porque tens contigo a graça e a força do Senhor. Eu não te falto com o Meu auxílio e a Minha protecção. Leva as minhas graças, leva o Meu amor e carinho a todos os que te são queridos que também o são Meus e do Meu Jesus; estão presos os nossos Corações com os laços do mesmo amor.

Acrescentou Jesus:

― Vai, Minha filha, vai para a tua cruz; toda a tua vida é cruz, toda a Minha vida na terra o foi também. A nova redentora em tudo se assemelha ao Seu Redentor. Vai, leva paz e leva amor; vai, leva alegria para abraçares todos os sofrimentos. O Céu está alegre, rejubiloso. Coragem! Quanto mais Me possuíres, menos Me sentirás. Quanto mais Me amares, mais em ti desaparecerão os efeitos do Meu divino amor. Quanta mais luz de Mim receberes, mais escuridão, mais trevas te vão mergulhar. Quanto mais quiseres esclarecer, menos saberás exprimir-te. Quanto mais rica e unida a Mim estiveres, mais pobre e longe de Mim te encontrarás; tudo será noite, tudo será noite. Coragem, coragem!

― Ó Jesus, ó Mãezinha, muito obrigada pelo Vosso conforto, pelo Vosso carinho, pelo Vosso amor. Quero ir para a cruz e tenho medo; ela só tem espinhos. Ai que medo, ai que medo! Sede a minha força. Fazei que eu tudo aceite e tudo sofra, só por amor.

7 de Março de 1947 - Sexta-feira

As agonias, tonturas e dores não cessam de consumir a minha alma e o meu corpo. O meu crucifixo, Jesus, Jesus, a Mãezinha, são a minha força. Não me conheço; não sei porque vivo nem para quem vivo. O meu fim, o meu único fim é Jesus, só Jesus. Será assim? Será para Ele que eu vivo? Que vida amarga, tão cheia de incertezas! O meu coração arde, e quantas vezes parece ser nas brasas mais vivas. O meu coração anseia por amar, por se dar, por se esconder em Jesus, desaparecer por completo ao mundo, para só Jesus viver; para só Jesus aparecer. Não vejo estas ânsias realizarem-se, não sinto viver esta vida; só a miséria em mim aparece, causa-me horror. Continuo a ver os sofrimentos que me causam a morte; é mesmo a morte que eu vejo em todos os seus tormentos e dores. Tanta crueldade! Tantos assassinos, cada qual com os seus horríveis sofrimentos para mim! E eu vou, ou melhor, sinto que Alguém, dentro de mim, vai ao encontro de todos esses assassinos, que povoam o mundo inteiro; com que ternura, com que amor lhes pede para não ser ferido; com que bondade lhes estende os braços para a todos abraçar, para a todos colocar em seu regaço como mansos cordeiros; com que bondade lhes abre o Coração e os convida a entrarem n’Ele para ali viverem, para ali morrerem. Finge não saber que eles O querem matar. Ah! Se eu possuísse esta bondade, este amor! Ah! Se eu usasse assim para com os que me ferem! Ó meu Deus, Ó meu Deus, se eu soubesse exprimir esta bondade: Bendito sejais; digo o que Vós quereis; eu nada sei dizer; falai Vós, meu Jesus. Por vezes, parece que vejo em mim, acima e em baixo de mim, o inferno aberto; quer-me engolir. As serpentes, feras e negro fogo tentam engolir-me, tentam devorar-me. É um pavor, parece que todo o mundo é inferno. Eu não fujo dele, e, se não me acodem, tenho de cair nele. E, por vezes, com a visão deste martírio, vêm-me cheiros horrorosos; cheiros que eu desconheço, podridões insuportáveis. Meu Jesus, sou a vossa vítima; abraçada ao meu crucifixo, repito-Lhe a oferta; sou a vossa vítima, quero salvar as almas. Não Vos largo mais, meu Jesus; abraçada a Vós, não corro o perigo de cair no inferno. Fazei que comigo a Vós se abracem todas as almas. Mãezinha, querida Mãezinha, não sou digna, sei que o não sou, de Vos chamar pelo dulcíssimo nome de Mãe; valei-me, acudi-me, acudi ao mundo, acudi a todos os filhos Vossos e fazei com que eu prove, com a minha vida perfeita e o meu amor a Jesus, ser Vossa filha. Escondei-me, ajudai-me a desaparecer, a perder-me em Jesus, a ser louca por Jesus. Temos as trevas, tremo com a cegueira, tudo me escurece o meu espírito, toda me mergulho nelas. Estou vazia, vazia de tudo, sem ter que me encha e sem ter ninguém por mim. As humilhações parecem ferir-me o corpo e desfazer-me a alma. Tudo quero, tudo aceito, todos os sofrimentos me lembram Jesus, todos os sofrimentos me provam neles a existência de Jesus. O amor de Jesus, o amor de Jesus. Quem não há-de sofrer, quem não há-de amá-Lo! Ó minha cruz, ó minha cruz, eu não te troco nem pela terra nem pelo Céu; em ti vejo Jesus a quem só quero, a quem só amo. Não posso abafar, por mais tempo, os sofrimentos, as ânsias que há semanas me atormentam novamente. Eu não sei o que quero do Santo Padre. Temo-o como temo toda a gente, mas quero lançar-me a seus pés, quero ouvir-lhe um som, quero receber dele alguma coisa. Sofro, oro, amo-o como Pai extremoso, e como filha quero ser por ele aceite e dele alguma coisa receber.

Ontem, pouco depois do meio-dia, vi um mundo de sofrimentos, senti um mundo de pavor, um mundo que me dava a morte. E uma voz dentro em mim, murmurava: vou morrer. Horas depois, senti e vi como se o sol se metesse por debaixo de uma grande montanha, montanha que era um rochedo fechado. Esse sol movia-a e removia-a e fez com que ela se destruísse ficando em cinzas, em nada. Os habitantes, que a rodeavam, desapareceram já de noite, caí no Horto, naquele solo duro; ali sofri as maiores dores e amarguras naquela noite escura. Num rápido momento, dentro em meu peito de dor, abria-se um coração que não era o meu; abriu-se e deu todo o sangue no qual ficou o meu corpo mergulhado, nadava nele e nele se purificava. Hoje, logo de manhã, coroada de espinhos, com a cruz aos ombros, sem forças e com todo o corpo chagado, arrastado, obrigada a caminhar apressada, seguia o caminho do Calvário. O Céu não me poupou com o peso da sua justiça. Senti como se a abóbada do firmamento, coberto de nuvens, caísse sobre mim a esmagar-me contra o chão duro. Jesus dentro em mim, tudo suportava e recebia com doçura e amor. O peso esmagador, os Seus Divinos olhos para o mundo cerrados, ou quase cerrados iam abertos para Seu Eterno Pai. Eu sentia que Ele não deixava de os fitar Nele e Dele se separava. A chuva de chicotadas e pontapés, murmurava sempre o Seu Divino Coração: Eu amo-Vos, eu amo-Vos e vou morrer por Vós. Ao terminar a montanha, sentia-me desfalecer e morrer, ao mesmo tempo que sentia a tranquilidade, a paz e amor de Jesus que era a tranquilidade e paz ainda só de um Deus.

No alto da cruz fiquei a sentir a Sua Sacrossanta Cabeça em meu peito inclinada. Estava tão ferida, e os seus espinhos feriram-me também o coração e a alma! A dor de tais feridas tirava-me a vida a todo o corpo. E assim agonizava, unida a Jesus. Nesta união entreguei com Ele o espírito ao Eterno Pai. Momentos antes de Jesus expirar, eu sentia como se dos Seus lábios divinos voassem para o Eterno Pai ósculos do mais puro amor. Como Jesus amou as nossas almas no meio de tão grande sofrimento, de tão pesada cruz. Só eu não sei imitá-Lo. Momentos depois de sentir ter expirado, Ele chamou-me:

― Minha filha, Minha filha, escuta o teu Jesus. Vem, esposa amada, vem, esposa querida; convido-te a entrares em Meu Divino Coração; vem abrasar-te, vem alimentar-te, vem consumir-te neste fogo divino. Entra, demora aqui, quero-te mergulhada em amor. Serás a louca das loucas do amor divino. Demora-te aqui, toma este alimento divino que dá vida à tua alma. Viverás na dor e no amor, e na dor e no amor morrerás. Terás o amor na proporção da dor. Assim como não és igualada na dor, também o não serás no amor. Subirás, subirás, elevar-te-ás às alturas. Serás queimada, serás consumida nas chamas do Meu amor divino, serás à semelhança da borboleta queimada nestas chamas; nelas darás a vida. Eu farei que o Meu amor transpareça em ti; ele será conhecido e visto em todo o teu ser como num espelho cristalino. O Meu divino amor em ti será atraente; farei que atraiam as tuas palavras; os teus olhares, os teus sorrisos, todo o teu ser. És de dor, és de amor, és de salvação para as almas. Dou-te amor, peço-te dor, sei que não ma negas; sofre com alegria. Coragem sempre; as almas necessitam do teu sofrer.

Ao convite de Jesus para o Seu Divino Coração, eu entrei, e, dentro dele fechada, fiquei como que a nadar num mar de fogo. Jesus continuou a dizer-me:

― Sacia, sacia, Minha filha, a tua fome; é o Meu amor que dá a vida, alimenta a tua alma e suaviza também a dor do teu corpo.

Os Anjos desceram do Céu, e, em turnos, assistem a verem dar-te este alimento divino. Escuta-os. Calou-se Jesus, e principiei a ouvir uns toques harmoniosos e arrebatadores, com misturas de vozes tão doces, que na terra não conheço. Cantavam:

Vida divina, vida de amor,
Manjar celeste do Rei de amor.

Fogo divino, vinde do Céu,
Manjar celeste do bom Jesus;
Fogo divino, vida das almas,
Força invencível da sua cruz.

Glória, glória! Glória ao Senhor
que é nosso Rei e Criador!

Cessou a música, cessou o canto, e eu ainda dentro do Coração divino de Jesus. Vi os Anjos, aos bandos como de andorinhas, a subirem, a baterem as suas asinhas brancas. Jesus abriu o Seu divino Coração, fez que eu saísse Dele e, sem se separar de mim, disse-me:

― Vou dar-te uma gota do Meu divino Sangue para alimento do teu corpo; não deixarei de to dar, enquanto que não deixar de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir, enquanto viveres na terra.

Jesus abriu num rápido momento, o meu peito; dentro do coração, deitou uma só gota do Seu Sangue divino. O coração principiou a dilatar-se, e Jesus, muito apressado, cerrou a abertura, passou por cima as Suas divinas mãos e bafejou-o com os Seus lábios.

― Vai, Minha filha, leva a minha vida, leva o Meu amor. Confia, confia que Me amas; estás cheia de Mim. A tua morte ‘e vida, a tua cegueira é luz, o teu vazio é o sinal, é a prova mais clara de que de Mim estás cheia, toda cheia, que só de Mim vives, que só a Mim pertences, que só a Mim amas. Vai, Minha filha; vai dizer que Jesus é muito ofendido, que a malícia humana não pode aumentar mais. Vai dizer que Jesus, pelos lábios da Sua vítima mais amada, pede a oração, pede reparação, pede penitência; e sobretudo pede pureza, pede amor. Vai, filha querida, para a tua amargura, para a tua cruz; vai com alegria, vai confiada, que contigo está sempre o teu Jesus. Coragem, coragem!

Já lá vão umas horas; o coração queima-me, estende os seus ardores a todo o peito, mas já o sinto cercado de espinhos e todo meu espírito mergulhado em cegueira. Bendita seja para sempre a minha cruz.

14 de Março de 1947 - Sexta-feira

Não me tenho conhecido, e, de dia para dia mais se apaga a luz do meu espírito e menos me conheço. Não me compreendo, ó meu Jesus; o que será de mim! Eu já morri; tudo em mim desapareceu com a morte, só a minha miséria ficou, só as maldades que me causam vergonha e nojo aparecem. Não sei porquê e não sei quem fez que outra morte corra para mim; sinto-a e vejo-a vir para mim, depois de ter morrido e desaparecido. Sinto como se o meu pobre corpo todo se desfizesse pela dor; parece que a lepra do pecado a mói; todo ele é pó e sangue. O meu crucifixo, o meu crucifixo é o companheiro dos meus braços, não posso separar-me dele. É Jesus, é a Mãezinha a força do meu sofrer. Eu não me contento em frequentes vezes renovar-lhes a oferta de vítima, dizer-lhes que Os amo; que lhes pertenço, que sou Deles. Quero mais, muito mais, sempre mais e é esse mais que eu não tenho. Como hei-de pertencer-Lhes, se não existo; como hei-de amá-Los se não tenho amor; como hei-de dar-Lhes mais se não tenho esse mais! Caio no desalento, morro de fome e sede. Quero Jesus e não O encontro, quero ter que Lhe dar e nada posso. Meu Deus, meus Deus, que dor de morte! O meu coração está sempre aberto; sinto-o, dia e noite, sangrar; sinto os punhais e espadas que me cortam; que cortar finíssimo, que dor tão aguda! Quanto mais me ofereço a Jesus mais vezes Lhe digo: Meu Amor, sou a Vossa vítima.

Pobre de mim, mergulhei ao fundo do mar; toda a água desse mar imenso é dor; estou perdida; estou no fundo; mas oiço a tempestade furiosa, destruidora, que passa pelas ondas na superfície das águas. Quem poderá valer-me? Quem poderá salvar-me? Quem poderá salvar-me? Só o Céu, só o Céu. Sinto todo o mundo em desordem, a perde-se. Sinto a grande necessidade de me purificar, de ser pura, pura, santificar-me, para poder acudir ao mundo, para o salvar. E não aumento na graça, nem na virtude; não dou um passo para a minha santificação; não sei viver a vida do Céu, não sei seguir o meu Jesus, não vejo para caminhar pelos Seus caminhos. Mesmo assim, a minha alma tem paz; e digo a Jesus: ou amar ou sofrer, ou então morrer. Eu gozo na dor, mas é gozo sem conforto; mas quero sofrer para consolar Jesus, quero sofrer para Lhe dar almas, quero sofrer abraçada à cruz, à cruz das humilhações, das calúnias, à cruz de toda a dor e martírio. Sinto-me esmagadíssima, mas é por Jesus, só por Jesus que me deixo esmagar. Não sou compreendida? Deixá-lo. Ele compreende e vê o meu coração. Sinto-me apavorada com o aproximar-se da Primavera, de flores de martírio, de flores de espinhos para a minha alma; mas quero abraçá-las; em tudo o que é dor eu vejo Jesus.

O demónio, o maldito demónio não perde ocasião nem tempo; quer levar-me ao desespero e a ansiar pelas consolações, gozos e alegrias. Tenta pôr-me ódio ao sofrimento, encher-me de dúvidas, e mostra-me a minha vida perdida. O que seria de mim, se, por um só momento, Jesus me abandonasse, e perdesse a confiança Nele. Que luta sem fim; que luta tão só; que luta tão cheia de medos de tudo e de todos. Ó Jesus, avós me entrego, para ser sempre Vossa vítima. Quando me vêm novas contrariedades, novos espinhos, mais dou a Jesus os meus abraços, beijos e carícias. É um dar sem dar, é um viver sem viver. Seja pelo Seu amor.

Na tarde de ontem, o meu coração sentiu, a minha alma viu uma lança que o feria, que o trespassava, e todas as mãos humanas opunham violência a essa lança para ela mais violentamente o ferir e o coração mais sangrar. Assim segui o caminho do Horto, ainda mais com a dor da separação de Jesus e da Mãezinha. Se soubesse dizer o que sofreram aqueles dois Corações com aquela separação, ao saberem, um e outro o que iam sofrer! Eles separam-se, mas a dor e o amor ficaram em união um com o outro. Naquele Horto triste, foi o meu corpo que serviu de cálice cheio de amargura para apresentar a Jesus, e foi ele ainda que lhe serviu de cruz para o Seu corpo divino, e, dentro em mim, Ele encheu o cálice do Seu preciosíssimo Sangue, sangue que corria do Seu coração aberto. Depois disto, senti no meu rosto o rosto de Jesus, a suar sangue, e sentia-O inclinar-se sobre mim, desfalecido na Sua tormentosa agonia.

Hoje subi o Calvário, desfalecida, abrasada em sede. O meu corpo maltratado morria, mas a sede do coração, a sede de morrer, a sede de abrir o Céu, para fazer aparecer e brilhar o sol nas almas, sabia, aumentava, vivia mais, quanto mais se aproximava o Calvário e o momento de dar a vida; sede insuportável, sede indizível, sede que não era minha. E foi no Calvário esta sede até ao último momento a vida de todo o meu sofrer. Com o rasgar das chagas sentia os nervos encolherem-se, o corpo gelar, os olhos cerrarem-se e a cabeça inclinar-se; estava moribunda, ou para dizer melhor, estava moribundo Jesus. E foi ainda a mesma sede que revestiu de vida o Seu brado e o fez subir ao Pai. Nos últimos momentos de vida, dos olhos moribundos de Jesus brotaram ainda algumas lágrimas, por sentir e ver os últimos impulsos e crueldades feitas pelos homens, pela maldade humana, ao Seu Santíssimo Corpo agonizante. A sede do Seu divino Coração avivou mais, voou ao alto, ia a entrar no Céu ao encontro do Pai, enquanto o corpo morria. Que sede ardente, mas tão doce era a de Jesus!...Eu com Ele tive sede, com Ele subi, com Ele expirei. Ele expirou, para pouco depois viver e fazer-me viver a mim e falar-me:

― Minha filha, vem, vem, entra; está aberto, de par em par, o Meu Divino Coração; entra, não temas o fogo que o cerca; é amor que vivifica, é amor no qual eu quero purificar o teu, é amor que te dá a vida. Entra; vem alimentar a tua alma, enfraquecida pelo sofrimento; vem, descansa em Mim, suaviza a dor do teu corpo.

Jesus estava com o Seu divino Coração aberto, à volta Dele tudo eram chamas, parecia um jardim de doiradas flores. Entrei, Jesus inclinou-me a Ele e disse:

― Descansa, descansa, alimenta-te deste amor divino, é o Meu amor, a vida de que vives, a vida que quero que dês às almas. O médico divino vela sempre pela Sua vítima. Quantas vezes vires descerem pata ti os raios que têm descido, confia, é o amor, são raios de amor que saem da chaga do Meu divino Coração e vêm penetrar no teu. É o alimento que te dou, quando te vejo no desfalecimento, mergulhada no mar da tua dor. Confia, confia, não é ilusão tua, não te enganas. Eu virei a ti com esta medicina, com este fogo divino, frequentes vezes. Assim como o teu martírio tem toda a variedade de dores, também Eu procuro, na Minha Ciência divina, toda a variedade de conforto para te aliviar. Ó meu Jesus, eu não falei nos raios que a mim vi descer com receio de me enganar, de ser uma ilusão minha. Que medo eu tenho! Prometi, esposa querida não te deixar enganar; não falto à minha promessa divina, confia. Ó meu Jesus, é tal o medo que tenho de me enganar, que mal posso resistir ao aproximar-se a sexta-feira e a hora a que me falais; e a dor, que nasce daqui, continua mesmo quando estou convosco; porque é meu Jesus? Não te disse Eu, esposa querida, que seriam dolorosos os teus colóquios? Assim ferida, nadando no Meu divino amor, não sentes consolação; fica essa para Mim, toda para Mim. E não queres tu consolar-Me? Não queres tu reparar o Meu oração ultrajado? Vê em que estado me põem os pecadores.

Saí fora do Coração de Jesus, e vi-o despido da sua beleza, todo ferido, todo em sangue, a tremer e chorar. Que ternura senti por Jesus; disse-Lhe logo:

― Aceitai o meu pobre coração, para nele descansardes; aceitai todos os meus sofrimentos, nenhum valor têm, mas revesti-os de Vós, quero com o que é Vosso revestir-Vos da Vossa beleza, enxugar-Vos as lágrimas, sarar-Vos as Vossas feridas. Sou sempre a Vossa Vítima Jesus.

Enquanto que dizia isto, sentia como se abraçasse, beijasse, acariciasse Jesus e Lhe enxugasse as lágrimas.

― Não choreis, Jesus; eu amo-Vos; eu quero sofrer e quero reparar.

No mesmo momento, vi-O revestido da Sua beleza; já era o mesmo Jesus.

― Dás-me então, Minha filha, o que tanto te custa dar-Me e a Mim custa pedir-te? Dás-Me nos dias que vão seguir-se alguns ataques violentíssimos do demónio? Os pecadores vão às minhas prisões de amor receberem-Me, e dentro deles sou apunhalado, assassinado. Passo pelas suas línguas de fogo infernal, e, dentro das suas imundas prisões, sou morto. Dá-Me reparação, dá-Me dor, toda a dor, se não Me queres ver sofrer e se não queres que as almas caiam no inferno. Dou-Vos tudo, tudo, meu Jesus. E Vós prometeis-me toda a Vossa graça e força? Eu não te falto. Vai então; fala do Meu divino amor, da minha misericórdia e perdão. Mas antes de Me esconder, quero dar-te uma gota do Meu Sangue divino; sem ele não poderás viver, nem resistir a tão doloroso martírio.

Tomou Jesus o Seu divino coração; pelo centro saía tão grande labareda, que toda me rodeava, me embebia nela. Por entre o fogo caiu no meu coração a gotinha do sangue do de Jesus. Com o sangue e o fogo o coração crescia, crescia, parecia rebentar-me. Jesus veio logo, pôs termo a tudo, com o Seu cuidado, com as Suas santíssimas mãos. O fogo continuou a abrasar-me; mas o coração deixou de dilatar-se.

― Sem um milagre divino não aguentavas com tal força de amor, nem com o sangue que te corre pelas veias que é o Sangue de Cristo. Vai agora falar das Minhas maravilhas, dos tesouros que em ti estão enterrados; vai dar às almas este amor, a vida que recebes de Mim; vai dar tudo com as tuas muitas virtudes, com as mais altas virtudes. Eu sou Rei, e no trono da Minha rainha deposito tudo o que é Meu. Vai, lírio casto, pomba branca, espalhar pelo mundo o teu perfume, a tua alvura. Vai pedir-lhe, vai lembrar-lhe que Jesus pede oração e penitência, o amor, a pureza da vida. Vai, Minha filha, tem coragem, nada temas, confia em Mim. Vai confiada que é Minha a vitória, é Meu o triunfo. Coragem, coragem!

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

21 de Março de 1947 - Sexta-feira

Temo-me, temo-me; tenho medo de mim mesma; tenho medo de viver no mundo. Eu vejo-o tão cruel para mim. Todos me ferem, todos tentam tirar-me a vida, é uma revolta universal; todos contra um, isto é, todos contra mim, é o que sinto. Os seus maus-tratos, a sua crueldade ferem-me tanto; reduzem o meu corpo a uma massa de sangue. Sinto em mim; não sei dizer, não sei se me exprimo bem, duas naturezas uma viva outra morta. A morta é esta massa de sangue, e foi a crueldade do mundo que a causou. A que vive é imortal, resiste a tudo, é uma vida superior; por mais que o mundo empregue as suas crueldades e maldades, nunca lhe tirará a vida, nunca a fará desaparecer. Mas, ó meu Deus, que luta dentro de mim. Esta vida opõe-se contra tantas maldades, que não aceita esta morte tão cruel do corpo, e prepara-se para a chamar e pedir rigorosas contas. Eu olho para esta morte, para este corpo desfeito em lepra, para esta massa em sangue e revolto-me contra mim mesma, não posso ver-me. Fui eu e só eu a causadora de tanto mal. Jesus, Jesus; sou a Vossa vítima; seja por Vosso amor toda a variedade destes sofrimentos. Vede tudo que em mim se passa, e dai-me a Vossa força.

Vi por duas vezes passar Jesus, à minha frente, como se fosse por um caminho com um grande madeiro aos ombros; ia curvado com o seu peso e tão desfigurado, que mal parecia Jesus. Ele inclinou para mim o Seu Santíssimo rosto mas nada me disse, e eu nada soube dizer-Lhe; não soube provar-Lhe o meu amor nem consolá-Lo. Disse-Lhe: sou a Vossa vítima, mas foi bem pouco para quem tanto sofria. No sentir da minha alma, nada Lhe disse, nada fiz por Ele; sofri e sofro por nada consolar Jesus, a quem só quero amor. Quando sinto os punhais e espadas cortarem-me o coração, queria saber falar a Jesus, dizer-Lhe muitas coisas lindas e não sei; abraço o crucifixo contra o meu peito, renovo a oferta de vítima, digo-Lhe que O amo, que quero sofrer eu, para não sofrer Ele, e fico na dor de não O saber consolar, quando Ele tanto está a sofrer. Poucas vezes, vi descerem sobre mim os raios de amor do Seu divino Coração; quando eles desceram e penetraram em mim, fiquei mais forte e com mais coragem, por algum tempo.

Tive três combates com o demónio, todos a seguir, na mesma noite. Talvez uma hora antes de se travar o primeiro combate, a minha alma viu todo o inferno contra ela, estava aberto para lá receber o meu corpo; eu estava à boca dele, e a cada momento parecia lá cair. Senti grande revolta, juntamente com grande pavor. Apesar disse, não evitei o pecado; queria satisfazer as minhas paixões. Travou-se a luta, três vezes seguidas, quase sem parar. Eu não me esforcei por defender-me, ou sentir não me esforçar. O demónio falava pouco, toda a maldade era minha. Poucas vezes invoquei os nomes de Jesus e da Mãezinha e lhes disse que era a Sua vítima; não me lembrava; o pecado era a minha loucura. Ao terminar fiquei novamente nas garras do demónio, na boca do inferno; não tinha arrependimento, sentia grande revolta, queria matar-me a mim mesma, e não saia da boca infernal, nem do perigo de lá cair. Sentia e ouvia estalos, como lenha verde, e por mim pareciam passarem as labaredas e o fumo negro. Depois disto, queria beijar Jesus crucificado e essa querida Mãezinha e não tinha coragem; a vergonha não me permitia beijá-Los nem abraçá-Los; só com grande esforço o pude conseguir. Depois, fiquei com a alma e o corpo num doloroso martírio.

O dia de S. José passei-o mais aliviada dos sofrimentos da alma; não senti gozo nem alegria, mas sim suavidade. Ao cair da tarde veio de novo a noite escura, as amarguras e agonias da alma. Sofri por não ter sofrido e abraçado Jesus dizia-Lhe: não soube amar-Vos nem ter para Vós carinhos; parece que hoje não vivi; meu Jesus, sinto-me como se hoje não estivesse no mundo; não posso viver sem a dor da alma e do corpo; se ma tirais, não sei viver, não posso estar aqui. Ó Jesus, ó Jesus, junto a Vós abraço a minha cruz com todo o meu sofrer, não me tireis a dor, dai-me conforto; só a dor é a vida e a alegria dos meus dias. Sou Vossa, ó Jesus, sou a Vossa vítima.

Na tarde de ontem, sentia torcer-se e espremer-se a minha alma. Num rápido momento, senti que o meu coração se sentia em dois pedaços; um ficou a ser o Coração de Jesus e outro o da Mãezinha. O de Jesus seguiu para o Horto dentro de mim; o da Mãezinha ficou desfeito em dor e em lágrimas, só o amor foi a acompanhar Jesus. Como eu sofri, ao ver na dor que ficou o da Mãezinha! Caminhando sempre, sempre fiquei unida àquela dor, e, na mesma união de dor, ficou Jesus. No Horto, senti ao meu pescoço grossas cordas que mo apertaram e cortaram; até quase nele ficarem escondidas; por elas foi o meu rosto levado ao chão e nele ferida e pisado. De lá vi, ao longe, uma árvore, na qual estava dependurado Judas; dela o vi cair ao solo, rebentar, e, no mesmo solo, se espalhar o que o corpo dele continha. Foi a venda, a entrada de Jesus, o beijo traiçoeiro que o levou àquele acto, àquele desespero. Tudo senti na minha alma, como senti o amor de Jesus, a enfrentar toda aquela maldade. Que indizível ternura, amor e compaixão! Com tal visão foi tão espremido o Coração divino Jesus, foi tal a Sua amargura, que encheu o cálice; transbordava fora; o Seu sangue divino corria pelo Horto.

Hoje passei todo o caminho do Calvário, sem nele aparecer um raiozinho de luz. Caminhei revestida de toda a maldade humana. De um e outro lado, surgiam rancores, almas sem dó nem piedade de mim; fitavam com ódio e desespero. Era tal a sede de amor por todo o sofrimento, que de amor se formava como que um canal que toda a dor recebia e toda a maldade fazia desaparecer. No alto da cruz, este canal de amor continuou e tudo absorveu para si; parecia ter braços que abraçavam.

As chagas rasgavam-se, os nervos encolhiam-se, e eu morria de cansaço e de dor. O meu brado de agonia mal se ouvia no Calvário; a fortes impulsos do coração eu subia ao Céu. No calvário tudo passava despercebido; o brado moribundo já não passava pelos ouvidos nem penetrava nos corações. Com a violência da dor e o impulso do coração, ele foi subindo, mas o Céu tão fechado e com nuvens tão negras pareceu não o receber, rejeitá-lo também. Eu agonizei e de mim voou a vida que o foi abrir. Pouco tempo depois, caiu sobre mim uma chuva d fogo, a qual me abrasou tanto que não podia resistir. Mas logo acudiu Jesus, deu-me a Sua força divina e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a ti veio o Meu amor, a ti desci com todo o Meu fogo divino, em ti vivo com todo o amor, porque com todo o amor por ti sou amado. Amas-Me, quando choras, quando sorris; amas-Me na dor e na alegria, amas-Me no silêncio ou falando, amas-Me em tudo; dia e noite, sobem ao Céu, em cada momento, os teus sofrimentos, o teu amor. Estou no teu coração como num braseiro do maior fogo, das mais vivas chamas. Amas-Me; amas-Me; confia em Mim. Dou-te as ânsias de amor, faço-te sentir que não Me amas, para que por ti as almas anseiem amar-Me e conheçam que não Me amam. Diz, Minha filha, diz que é um queixume de Jesus, que é muito pequenino o número das almas que Me amam com verdadeiro amor, com amor puro. E tantas que não é por Me ofenderem gravemente, mas estão como insectos sem pernas e sem asas, que, só rolando, mal saem do seu lugar; e assim vivem e assim morrem.

― Ó meu Jesus, a esse número pertenço eu também; tende dó de mim, vede a sede que tenho de Vos amar, vede que quero voar para Vós e só para Vós quero viver. Mas sei Jesus que estas ânsias, estes desejos não me pertenciam, nascem de Vós, em mim só miséria aparece.

― Assim é, Minha filha; mas tu cooperaste com a Minha graça, deixaste-Me trabalhar; acendi em ti o fogo, e foi como por rastilho rapidamente, e aqui estás neste Calvário, como bomba sempre a explodir. Aqui te coloquei para a dor e para o amor. Espalha, espalha, infunde nas almas o Meu amor e dá-Me com alegria a tua dor que é dor de salvação. Estiveste Minha filha, sobre o inferno; foi para te mostrar no perigo que estão os pecadores, o maior número das almas que existem na humanidade; não se arrependem, não deixam o pecado. Eu continuarei a pedir sempre o teu sofrimento; serei como um mendigo, que não cessa de pedir. Quero que digas, Minha filha, que Meu Eterno Pai espera bem pouco tempo pela reconciliação do mundo, pela vida pura de oração e penitência dos homens. Ai dele, pobre mundo, se depressa não vem a Mim e deixa seus crimes. Em breve, muito em breve será castigado. Acode-lhe, acode-lhe, esposa querida; vê que são Meus filhos.

Jesus dizia isto e chorava.

― Meu Jesus, são Vossos filhos e filhos do Vosso sangue divino, mas se o meu sofrimento os pode salvar, aqui me tendes, Jesus; dai-me o que quiserdes e não quero que me peçais. Sou a Vossa vítima, quero a Vossa força e graça. E não choreis.

Jesus deixou de chorar e disse-me:

― Quero que sofras, vítima inocente, mas quero pedir-te o sofrimento; com isso dou lição ao mundo; um Deus pedir a uma criatura Sua para lhe salvar os Seus filhos.

― Meu Jesus; e os meus sofrimentos nada valem, se o mundo for castigado?

― Valem, valem, filha amada; as almas são salvas mas salvas pela tua dor e não pelos seus merecimentos; são salvas à força, não Me dão a glória que deviam dar; mas são salvas, vão amar-Me eternamente, embora em lugar mais baixo, pela falta dos seus merecimentos. Dá-Me dor, dá-Me dor, Minha filha. Para ma dares com mais força e coragem dou-te Eu a ti a vida de que tu vives, a vida da tua dor, uma gota do Meu Sangue divino.

Dito isto, logo em Suas divinas mãos vi o Seu Coração abrasado em labaredas de fogo; por entre elas caiu no meu a gotinha do Seu preciosíssimo Sangue. O meu coração logo se dilatou e ficou ofegante. A força, com que palpitava, fez correr em todas as minhas veias aquele Sangue. Foi o que eu senti, e Jesus o confirmou.

― Minha filha o teu coração está aberto pelos punhais, como o meu foi pela lança sangra sempre e foi por esta chaga que o meu Sangue divino entrou. Ó maravilha no mundo nunca vista; só em ti foi operado tal prodígio! Todo o Céu com os seus Anjos se regozija, se alegra ao ver tal maravilha. São os impulsos de amor que levam a correr por todas as tuas veias o Meu Sangue divino. Vai, esposa querida, vai, e dá esta vida às almas; que é a vida do Céu. Vai para a tua dor, vai para a tua cruz, é este Sangue a tua força, o teu amor no teu martírio. Coragem, coragem! Confia e vai em paz.

― Obrigada, meu Jesus. Não quero que um só momento cesse o meu agradecimento.

28 de Março de 1947 - Sexta-feira

A morte vem, aproxima-se para breve, mas é uma morte que, me deixa viva, só o corpo morre; são os pecados, é o mundo inteiro a matar-me, mas não pode matar tudo. A vida que sinto não morrer é a vida superior, é a vida de triunfo, é a vida que faz viver e governa todas as vidas. Sinto que ela está em todo o mundo como sopro de ar espalhado. Sinto que a esta vida pertence todo o Céu e toda a terra. Sinto imensa necessidade de falar desta vida, de a fazer conhecida e não sei; limito-me apenas a dizer; é a vida de graça, é a vida de amor. Mas oh! Que amor louco, que amor sem igual! Eu queria amar esta loucura de amor, com amor e loucura semelhante. Mas, ó meu Deus, como estou longe! Sinto que se trabalha dentro em mim; toda a mobília da minha casa, isto é, do meu corpo saiu fora. Toda a imundice, todo o pó é limpo, mas não por uma só vez; tem sempre de se voltar atrás e limpar novamente. O meu vazio é tão grande; só o Céu o pode encher, só Jesus com todo o Seu amor o poderá satisfazer. O mundo não me enche, nem milhões deles, se os houvesse. Sinto-me como a querer fugir da terra, a aborrecê-la, a odiá-la; não me pertence, quero desaparecer dela. Ando como se fosse um sopro a vaguear nos ares. Quero ir para Jesus, encher este vazio. Mas Ele está tão longe. Ai, a minha Pátria! Quanto mais a anseio, mais a vejo fugir. Daqui nascem os meus desânimos e desalentos; mas estreitando contra o meu peito o Crucifixo, logo me levanto. Hei-de vencer com Jesus. A cegueira é tanta, não me deixa ver, fico como desatremada nos seus caminhos. Mas a minha confiança, tantas vezes contra toda a esperança obriga-me a crer: sou de Jesus e da Mãezinha. Depois de tanta luta, tanto sofrer, virá o Céu. Sei que o não mereço, mas espero não ser por Jesus, nem pela Mãezinha abandonada.

Haverá alguém que só Neles confie e fique Deles ao abandono? Oh! não! Oh! não; pensar assim, seria ferir Jesus. Quero ter o meu espírito sempre preso, açaimado para não perder a minha união com Deus. Se assim não for serei como animal mais feroz e sem freios; e no meio do mar doloroso martírio de alma e corpo não perder por um só momento que seja a união com o meu Deus. Quero separar-me tanto tempo Dele, como Ele se separa de nós com os Seus olhares divinos, e como a dor se separa do corpo. Não posso viver sem Deus; não posso viver sem a dor. Queria ver toda a humanidade a viver a vida íntima com Nosso Senhor; estou certa que o pecado desapareceria da terra.

O demónio não cessa a sua guerra contra mim; o meu espírito é com dúvidas consumido. Quando assim é, Jesus vem por uns momentos suavizar a minha alma com o Seu amor e a Sua paz; fico mais forte para a luta. Passou o quinto aniversário que Jesus deixou de manifestar em mim a Sua Santa Paixão e deixei de me alimentar. Só quero o que Jesus quer. Mas ó que pena e que saudades. Senti durante três dias como se todo o meu ser tivesse bocas para comer; tudo ansiava. O alimento que eu desejava, que era tudo, sentia que todo o mundo o comia; para mim só me bastava a dor e a saudade. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Os olhos do corpo não choravam, mas os da alma suspiram o lugar; foram lágrimas dolorosas, mas sempre conformes com a vontade do Senhor.

Passei deste martírio ao Horto, para ali me unir a mais padecimentos. Foi o meu rosto escarrado, os olhos vendados, mas tinha outros olhos que viam passarem pela minha frente por escárnio, ajoelhando, fazendo grandes continências. Sobre os meus ombros, tinha uma velha capa, sobre a cabeça uma velha coroa, e eu, no maior abatimento, no meio de tantos algozes. Eu digo eu, mas não era eu, era Jesus revestido em mim. Se fosse eu não sofria, porque tudo mereço. Sou muito humilhada, sinto-me desesperada, e reconheço que sou digna de tudo. Mas ver e sentir Jesus sofrer assim, não tenho coração para aguentar! Tenho por vezes que esforçar meus olhos e os meus sentimentos a retirarem-se de tão grande suplício. Quanto sofreu Jesus, que dor sem igual; e tudo por nosso amor. No solo do Horto levantaram-se como que quatro negras paredes de tal altura, que não lhes via o fim; fiquei entre elas, apertada como numa prensa com a visão de todos os sofrimentos. E então de todo o meu corpo saía suor de sangue; fiquei banhada e como nunca só ferida.

Hoje, logo de manhã tive o sentimento de todo o caminho do Calvário. Continuei a sentir todo o corpo despedaçado e em sangue. As minhas lágrimas eram de sangue e pelos lábios e ouvidos saía sangue também. Já perto do Calvário, a um grande desfalecimento de Jesus vi cair sobre Ele uma grande chuva de açoites e forte rancor, parecia infernal. Esta descarga tormentosa deu-se dentro de mim. Senti bem este rancor, mas senti muito mais ainda a doçura e amor com que Jesus tudo recebia. No alto da cruz, continuava o ódio e o rancor dos mesmos. Jesus pode ver com os Seus Santíssimos olhos quase moribundo a lança que bem depressa viria abrir-Lhe o peito e ferir Seu divino coração; à sua frente estava o que ia cravar e do Seu Coração divino saíam para Ele como que ósculos de amor. Esgotavam-se as forças, fugia-Lhe a vida, mas não se esgotava nem Dele fugiu o Seu divino amor.

Nem com o expirar de Jesus se esgotou; estendeu-se pelo Calvário, e do Calvário, e do Calvário, e do Calvário ao mundo como sopro de ar, como perfume delicioso. Eu expirei com Ele e a Ele ficou preso, por algum tempo, o meu coração. Não foi pronto a falar-me, demorou-se. Quando veio disse-me:

― Minha filha, Minha filha, jóia preciosíssima, jóia do mais alto valor para o Meu divino Coração. O ouro de que é feita esta jóia são todas as tuas virtudes; a pureza, a graça, a obediência, a humildade, a caridade e todas as outras mais. As pedras preciosas que a guarnecem, é o amor e a dor. Como estas pedras brilham no meio de ouro fino de tantas virtudes! Que riqueza, que tesouros encerram esta jóia; tem encantos atraentes, tem luz que guia, tem, laços que prendem! Tem amor que Me ama, tem amor que ama as almas; é o preço delas, é delas a salvação, é delas a salvação. Eis a razão, Minha filha, Minha pomba querida, eia a razão por que este tesouro é perseguido., é assaltado; é durante a vida, e sê-lo-á depois da tua morte. Nas perseguições dos cristãos, são mais perseguidos aqueles, que são cristãos a valer, notados de maior virtude e maior graça. Quando há grandes assaltos de ladrões, não vão eles assaltar as pobres choupanas, onde nada podem encontrar; vão aos palácios ricos e poderosos. As riquezas, que em ti depositei, são inigualáveis. O palácio do teu coração possui toda a riqueza, que o Meu encerra. A missão, que te confiei, é a mais alta e sublime. A guerra a ela será pior que do inferno. Tem coragem! É Minha a causa, é Minha a glória, é Meu o triunfo. Quanta mais perseguição, mais luz. A tua vida será para o mundo um raiar de sol puro, de sol brilhante. A tua vida será, através do tempo, para as almas uma estrela, que as guia e conduz a Mim. Dá-Me a tua dor, dá-Me o teu amor; que é o resgate das almas.

― Meu Jesus, sim eu quero o Vosso amor para com ele Vos amar e fazer com que as almas Vos amem. Dou-Vos a minha dor, sim, de boa vontade; comprai com ela os pecadores, prendei-os para sempre a Vós. As Vossas palavras, meu dulcíssimo Jesus, humilham-me; eu sem ter querer, queria desaparecer, queria desaparecer. O que dizeis de grande é bem, isso me conforta. O que eu quero, Jesus, é estar na verdade, em nada me enganar. Aceitai, aceitai também, Jesus, a dor da minha humilhação.

― Confia, Minha filha, não permito, não consinto que te enganes; é a verdade pura, mais pura que a neve, mais clara que o sol. Eu aceito a dor da tua humilhação, e sabes para quê? Para acudires a certas almas, prestes a caírem no inferno. Vais sofrer muito, vais ter dias de grande penúria.

Vi que Jesus ia a dizer-me quem eram essas almas; acudi logo:

― Jesus, Jesus, não digais quem são, basta sabê-lo Vós. Dou-Vos os meus sofrimentos, para por eles os aplicardes como Vos aprouver. É mais sossego para a minha alma; posso-lhes acudir da mesma forma, não é verdade, Jesus?

― Sim, sim, Minha grande heroína; maior é a prova do teu amor e mais valiosa a tua dor; dares sem desejares saberá a quem. Olha, vem a Minha Mãe Bendita, a Minha Mãe das Dores, mostrar-te quanto Comigo sofre e pedir-te para lhe salvares essas almas, suas filhas também.

Logo ficou a meu lado a Mãezinha das Dores, lacrimosa, com um manto azul e branco e cheio de setas o Seu Santíssimo Coração.

― Minha filha, Minha filha ―  me disse Ela: ― vê quanto eu sofro também; dá a tua dor a Jesus, para Lhe salvares as almas, filhas Dele e filhas minhas.

― Ó Mãezinha, ó Mãezinha, eu não posso consentir que Jesus me peça e Vós me peçais a dor; basta dardes-me os sofrimentos e com eles a Vossa força e amor. Sei que o sofrimento é um grande bem para mim e para as almas; quero sofrer, pois, com toda a generosidade e amor, mas não quero ver ferido o Coração divino do meu Jesus nem ver no Vosso essas setas; passai-as para mim Mãezinha.

Ficaram no mesmo momento no meu coração as setas e a Mãezinha delas libertada: secaram-Lhe as lágrimas, e ficou o Seu Santíssimo rosto, cheio de alegria. Aproximou-se Jesus mais de nós, e disse:

― Vai assistir à Minha Bendita Mãe à passagem do sangue do Meu divino coração para o teu.

Tomou em Suas divinas mãos o Coração todo em chamas, colocou-o sobre o meu; a gotinha de sangue caiu, e logo fiquei com o coração e todo o peito a arder em fogo vivo.

― Jesus, Jesus, morro queimada.

Acudiu a Mãezinha e passou-me sobre o peito as Suas Santíssimas mãos, bafejou-me por algum tempo com os Seus lábios, e disse-me:

― Coragem, filhinha; é o Sangue de Jesus, é o Sangue que correu em Minhas veias, que foi para o teu coração; é a tua vida, é de que tu vives.

Jesus acrescentou:

― Agora és consumida pelo fogo do amor e depois dele apagado ficas a ser consumida pela dor. Foi para isso que te fez ver as setas que feriam a Minha Bendita Mãe. Acode aos pecadores. Ó maravilha, ó maravilha! Leva esta vida que de MIM recebeste, leva o Meu divino Sangue; provo bem claramente que é a tua vida; vai dá-la às almas. Ó prodígio, grande prodígio! Vai corajosa, vai confiada, cheia de amor. Vai dizer ao mundo que, se não foram os teus sofrimentos, já a justiça do Meu Pai o tinha submergido em vulcões de fogo. Que castigos estão sobre ele! Que ameaças o esperam! Ai dele, se não se converte! Vai para a tua cruz, vai com alegria, acode às almas.

― Obrigada, Meu Jesus, obrigada, Mãezinha. Uni o Vosso coração ao de Jesus e ao meu; nesta união vou contente para a minha dor. Sou vítima, sempre vítima, sou a escrava do Senhor. Jesus, Mãezinha, quero força, quero força, seja comigo o Céu.

   

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