SITE DOS AMIGOS DA BEATA ALEXANDRINA

     

Capítulo 12°

Na cruz

Até esta data, a vida de Alexandrina conservou-se perfeitamente oculta; apenas sua irmã Deolinda (que é a sua enfermeira e secretária, como ela lhe chamava) e sua grande amiga D. Maria da Conceição Proença sabiam alguma coisa, por terem que lhe escrever as cartas que ela ditava para o Director Espiritual. A própria mãe da doente não estava nos segredos; só tinha presenciado os ataques do demónio, porque eram visíveis, e alguns dos seus ímpetos de amor a Nosso Senhor em que ela se erguia com a rapidez de que acima falámos.

Mas do dia de Santa Teresinha do Menino Jesus em diante, 3 de Outubro de 1938, a vida de Alexandrina mudou, ou melhor, permitiu Deus que se tornasse cada vez mais conhecida,

Do que sucedeu nesse dia e em todas as sextas-feiras daí por diante até 27 de Março de 1942, há testemunhas variadíssimas e o falecido Padre José Alves Terças, na sua obra "Vida de Cristo - A Paixão Dolorosa", fasc. X, escreveu alguma coisa que impressionou variamente o público. A nosso juízo, era cedo demais para se dar a lume qualquer relato sobre o assunto.

Resumamos parte do que então foi mandado para SS. Pio XI, pois havia razões, como diremos depois, pelas quais o Papa devia ser informado.

Já desde Março de 1938 em diante que a Alexandrina começou a viver num estado quase habitual de terrores, abandonos, esmagamentos e agonias a que podemos chamar um prolongado Horto. Às vezes eram horas seguidas e até noites inteiras de indescritíveis angústias. Mostrava-lhe Nosso Senhor, ao mesmo tempo, grandes castigos que estavam para cair sobre a Terra.

Nunca, porém, foram tão longe esses horrores de espírito como de 2 para 3 de Outubro desse ano. Via-se como que esmagada com o peso de todo o mundo, a Terra a abrir-se como que para devorar os homens e, por cima, o céu em furiosíssima tempestade, ouvindo-se constante­mente uma voz terrível que a trespassava e esmagava toda:

“Vingança! Vingança!... Maldita! Vou esmagar-te!"

E ela exclamava: "Ai, a ira de Deus a esmagar-me! ai! ai! ai!"

Então convida-a Nosso Senhor para um calvário mais doloroso:

– Aceitas, minha filha, um calvário que Eu só dou às minhas filhas mais predilectas?

– Aceito, meu Jesus! - foi a resposta pronta e generosa.

Era na véspera do dia de Santa Teresinha, à noite, quando este convite lhe foi feito. Jesus anuncia-lhe então que, no dia seguinte, depois das 12 horas, começará a sua paixão do Horto ao Gólgota e terminará às 3 horas da tarde e então ficará Ele com ela a desabafar às suas mágoas, até às 6 da tarde.

Na verdade, tudo se realizou assim e os presentes vimos desenrolar-se o drama da paixão o mais ao vivo que era possível, ficando sempre ocultos os estigmas, pois ela tinha pedido a Nosso Senhor que nada se percebesse. A Paixão foi violentíssima: os presentes desfaziam-se em lágrimas ante aquele espectáculo bem visivelmente de dor.

Ela ficou esmagada de todo. No colóquio que se prolongou das 3 às 6 da tarde, ouviram-se, entre outras muitas, estas palavras:

Como Vos amo? (era o que Nosso Senhor lhe dizia, por isso vai em interrogação); no meio de tanta dor? Ó Jesus, não foi no meio da dor que nos amastes também?.. Pois foi! Agora, não Vos havia de amar? Oh, como era injusta, meu Jesus!... Tendes muita pena de me fazer sofrer? Mas eu ofereci-me, com toda a generosidade? Mas Jesus, eu queria amor! Não me dais, Jesus? Dai-me! Não podeis dar-me mais?... Eu queria morrer de amor! Já mo prometestes? Ao que prometeis, não faltais? Eu bem sei... Jesus, eu sou vos­sa? Sempre o fui? Então quereis-me assim, tanto, tanto? Sou a vossa heroína? Sou toda para Vós, não é, Jesus? Sou uma louquinho consumida, perdida no amor de Jesus?...

Depois desse primeiro êxtase da Paixão tão prolongado e tão doloroso, ficou vários dias sem poder comer nem beber. Experimentava tortura em todos os sentidos do corpo, até no olfacto, pois tinha o sentimento de que tudo lhe cheirava a cães mortos. É daí por diante sobretudo que ninguém podia pronunciar na sua presença a palavra pecador: sentia-se logo novamente esmagada e contorcia-se toda dolorosamente. Cessou de ditar cartas; só passado mais de um mês é que torna a ditar e então começam as suas mais belas cartas.

O êxtase da Paixão realizou-se invariavelmente, todas as sextas-feiras, até sexta-feira das Dores inclusive, a 27 de Março de 1942. O que nesses êxtases se lhe ouvia dizer está escrito em doze cadernos que conservo. Mas o melhor ainda são as cartas em que ela explica o que lhe passava na alma durante os êxtases da Paixão. O que Nosso Senhor lhe dizia nesses momentos eram palavras de conforto, e é doutrina preciosa sobre o valor da vítima da expiação, sobre a gravidade do pecado; o amor misericordioso de Jesus para com os pecadores. Ressalta aí, ao mesmo tempo, a profunda e delicada piedade desta alma de eleição, a sua humildade a toda a prova, a sua generosidade, zelo das almas e amor apaixonado e sem condições a Jesus.

É nesta época, mais que em nenhuma das precedentes, que mais a vemos tratada com todo o rigor pela Justiça divina, como vítima de expiação. Algumas passagens dar-nos-ão bem a entender o que afirmamos. Nosso Senhor mostra-se-lhe terrível e - pois ela Lhe representa os pecadores - chama-a de maldita! Mas o mesmo Senhor a elucidou algumas vezes, por exemplo, a 23/IV /39:

– Quando te falo com rancor, com ódio, com vingança, não é contigo, meu encanto: não é com a minha crucificada e uma crucificada destas que tanto me ama e consola. Mas és fiadora, és a minha vítima, já se entende tudo!

Oiçamo-la em carta de 22/IV/39:

A minha alma sente a morte do mundo inteiro. É a morte, é a noite escura que reina por toda a parte e quando recebo a Jesus e o que Ele mais me faz sentir: a morte total. Não sou só eu, é Jesus também que se finge morto. Faz-me sofrer tanto! Mas é por Ele, benditos sofrimentos. Hoje passei um pouco assim, neste estado, e por fim ouvi que o bom Jesus me dizia:

 – Maldita! Maldita! Ou maldição ou reconciliação! Que mal correspondes ao teu Senhor!

Custa ao coração de um Pai chamar maldita! E um Pai como Eu, bondoso, terno, amável! Que dor, que angústia, que martírio para o meu divino Coração!

Quando ouvia estes ralhos de Nosso Senhor, contorcia-se toda ou, como ela explica, rolava pela cama:

Hoje (25/IV /39), no fim da Sagrada Comunhão, rolei pela cama: que aflição! O peso esmagador caiu sobre mim. Jesus dizia-me:

– Maldita! Maldita! Hei-de esmagar-te! Paga-me a dívida perdida: vai procurá-la aos abismos, ao lodo, às imundícies! Paga-me! Se não me pagas, virá Deus com toda a vingança, com toda a justiça, com toda a cólera a castigar-te!

O meu corpo parecia-me que era levantado e estatelado em pedra ou chão duro. Parecia que me arrancavam o coração e à espécie de uma bola em cima dele o esmigalhavam, até que desaparecia. Eu dizia a Nosso Senhor:

– Ó meu Jesus, quem deu tudo nada tem; tomai as minhas misérias e o meu nada, que isto Vos sirva para eu Vos pagar e desagravar; mas dai-me amor: não posso viver sem amor!

E termina imediatamente esta carta assim: "Adeus P., não posso falar".

Já explicamos porquê: é que pronunciou a palavra amor e fica em tais ímpetos que tem que se distrair. Isto agora é frequente em suas cartas.

Ainda mais duas passagens, a 27/IV /39:

Hoje, no fim da Sagrada Comunhão, estava morta, coalhada de gelo. Estive assim um grande pedaço. Depois Nosso Senhor dizia-me:

– Maldita! Não te posso ver: retira-te de Mim! - e com o braço parecia que me repelia d’Ele.

– Estás tão suja e esfarrapada, não te aproximes de Mim, porque é para mais e melhor poderes ferir o meu Coração!

Mas, depois, já com mais bondade, dizia-me:

– Mas olha: a Chaga do meu Coração está aberta, é uma fonte pura: queres lavar-te nela? Ficas limpinha, asseada! Ficas rica, brilhante, mais bela que a rainha coroada pelo rei.

 O meu coração era duro como um rochedo e eu não queria (isto é - como ela me explicou muitas vezes e entende-se pelo contexto - sentia-se como se não quisesse) ouvir as palavras de Nosso Senhor. Mas disse-lhe Jesus:

– Vê como estou!

E Ele então inclinava-se sobre o meu pobre coração (lindo quadro vivo do que faz Jesus com o pecador que O não quer ouvir), apertava-me e dizia-me chorando:

– Se irritado te repreendo, não me temes; se te chamo com doçura, não Me atendes!

E continuava a chorar. Fez cair o peso sobre mim e dizia-me:

– Vingança! Hei-de esmagar-te!

– Ó meu Jesus, eu não temo a vossa vingança, porque confio em Vós cegamente. Onde encontrarei eu Pai tão bom, tão terno, tão amante como Vós? Ai, não encontro Pai que se possa assemelhar ao meu Jesus! Sabeis porque Vos não temo? Porque sei que, quando Vos irritais, é para chamardes a Vós as almas, para lhes perdoardes. E a vossa vingança é de amor: vingais-Vos, para dardes amor. Cativou-Vos o amor, meu Jesus.

Esta página o menos que ela tem é ser sumamente bela.

A segunda passagem é de 30/V/39:

Não sei outra coisa senão queixar-me. Mas eu sofro tanto! Bendito seja o meu Jesus que tanto me quer assemelhar a Ele. Eu parece-me que Lhe sou tão infiel!

Hoje, depois que recebi o meu Jesus, Ele dizia-me:

- A tua cruz é a minha cruz; o teu calvário é o meu calvário; a tua missão é a minha missão, é a missão de redentora[1]. Já antes de existires no mundo, na mente do Altíssimo eras crucificada. É por isso que sofres medos, tristezas, abandonos. É por isso que és esmagada com o peso da humanidade. É por isso que sofres, como Eu sofri a ira e a justiça de Deus.

Vingança! Vingança! Paga-Me, paga-Me tudo!

A estas últimas palavras de Nosso Senhor, a aflição foi tanta que rolei, mas rolei fortemente. O peso esmagava-me; o coração oprimido e sentia aflição interior e ex­terior. Era a ira de Nosso Senhor sobre esta arestinha (compara-se à pragana). Por algum tempo conservei-me calada; não sabia falar ao meu Jesus. Depois disse-lhe:

 – Não sei que Vos hei-de dizer, meu Jesus, a essas palavras que acabais de pronunciar. Digo-Vos que sou a vossa vítima e que Vos amo. A mim não me parece; parece que sou um abismo de misérias, um nada, um puro nada. Mas confio em Vós que me dissestes que Vos amava. Fazei, Jesus, que eu sofra sejam quais forem os sofrimentos, mas que eu Vos salve almas, todas as almas.

E fiquei em contínuo martírio. Dúvidas, tristezas, abandono, uma noite escuríssima. As lágrimas seriam o meu alívio, mas não chorei.

Com estas, há inúmeras passagens, cada qual a mais expressiva, cada qual a mais bela até literariamente considerada. Por brevidade não citamos mais.


[1] É o “Completo o que falta à Paixão de Cristo” (Adimpleo quae desunt passioni Christi), de S. Paulo.

   

PARA QUALQUER SUGESTÃO OU INFORMAÇÃO