CAPÍTULO 14

Começa a declarar o segundo grau de oração que é o Senhor já fazer sentir à alma gostos mais particulares. Declara-o para fazer ver como já são sobrenaturais. É muito para se ter em conta.

1.  Já fica dito com que trabalhos se rega este vergel e quão à força de braços, tirando a água do poço. Digamos agora o segundo modo de a tirar que o Senhor do horto ordenou para que, por meio de um torno e alcatruzes, o hortelão tirasse mais água e com menos trabalho e pudesse descansar sem estar continuamente trabalhando.

Este modo, aplicado à oração que chamam de quietude, é o que eu agora quero tratar.

2.  Aqui começa a recolher-se a alma e toca já em coisa sobrenatural, porque de nenhuma maneira ela o pode conseguir, por mais diligências que faça. Verdade é que parece ter-se cansado, algum tempo em andar ao torno a trabalhar com o entendimento, enchendo os alcatruzes; aqui, porém, a água subiu mais alto e assim trabalha-se muito menos para a tirar do poço? Digo que a água está mais perto, porque a graça dá-se mais claramente a conhecer à alma.

Isto é um recolherem-se as potências dentro de si para gozar daquele contento com mais gosto; mas não se perdem, nem ficam adormecidas Só a vontade se ocupa de maneira que, sem saber como, se torna cativa, dando somente consentimento para que a prenda Deus, como quem bem sabe ser presa de Quem ama. Oh! Jesus e Senhor meu, como nos vale aqui o Vosso amor! porque este tem o nosso tão atado que lhe não deixa liberdade para, naquele ponto, amar coisa alguma senão a Vós.

3.  As outras duas potências ajudam a vontade para que se vá tornando capaz de gozar de tanto bem, ainda que algumas vezes, mesmo estando unida a vontade, aconteça desajudarem muito. Mas então, não faça caso delas, mas fique-se em seu gozo e quietude; porque se as quer recolher, ela e elas perderão. São, então, como pombas que não se contentam com a comida que lhes dá o dono do pombal sem trabalho algum e vão buscar de comer a outras partes; mas acham-no tão mau, que voltam, e assim vão e vêm a ver se a vontade lhes dá aquilo de que goza. Se o Senhor lhes quer deitar comida, detêm-se; se não, tornam a ir buscá-la. Devem pensar que dão proveito à vontade e, às vezes, em querer a memória ou imaginação representar-lhe o que goza, a prejudicará. Tenha, pois, cuidado de se haver com elas como direi.

4.  Tudo isto que aqui se passa é com grande consolo e com tão pouco trabalho que não cansa a oração, embora dure muito tempo; porque o entendimento obra aqui muito passo a passo e tira muito mais água do que tirava do poço. As lágrimas que Deus aqui dá, já são com gozo; ainda que se sintam, não se procuram.

5.  Esta água, de grandes bens e mercês que o Senhor dá aqui, faz crescer as virtudes muito mais sem comparação do que na oração anterior. É que a alma já se vai elevando acima da sua miséria e já se lhe dá alguma noticia dos gostos da glória. Isto, creio, a faz crescer mais e também chegar mais perto da verdadeira virtude donde todas as virtudes procedem, que é Deus; porque começa Sua Majestade a comunicar-se a esta alma e quer que ela sinta como se lhe comunica.

Em chegando aqui, começa logo a perder a cobiça das coisas de cá de baixo, deixando ao mesmo tempo perder poucas graças, porque vê claramente que um momento daquele gosto não se pode aqui conseguir, nem há riquezas, nem senhorios, nem honras, nem deleites que bastem para dar, num abrir e fechar de olhos, este contentamento porque é verdadeiro, e contento que se vê que nos contenta. Porque os de cá de baixo, só por maravilha ― julgo eu ― entenderemos onde está esse contentamento; nunca lhes falta um «senão». Nestes é tudo «sim» enquanto dura; o «não» vem depois, por se ver que acabou e que não o pode voltar a recuperar, nem sabe como; pois, mesmo que se faça em pedaços com penitências e orações e todas as demais coisas, se o Senhor não lho quiser dar, de pouco lhe aproveita. Quer Deus, por Sua grandeza, que esta alma entenda que Sua Majestade está tão perto dela, que já não tem necessidade de enviar mensageiros, mas tão somente falar ela mesma com Ele e não em alta voz: já está tão perto que num mexer os lábios a entende.

6.  Parece impertinência dizer isto, pois sabemos que Deus sempre nos entende e está connosco. Nisto não há que duvidar que é assim. Mas quer este Imperador e Senhor nosso que compreendamos aqui que nos entende e o que faz em nós a Sua presença. E faz também entender que quer particularmente começar a operar na alma pela grande satisfação interior e exterior que lhe dá e pela diferença que há, como já tenho dito, entre este deleite e contentamento e os de cá da terra. Parece encher o vazio que, pelos nossos pecados, tínhamos feito na alma. É no mui íntimo da alma esta satisfação, sem ela saber por onde nem como lhe veio, nem sabe muitas vezes o que há-de fazer, nem querer, nem pedir. Tudo lhe parece encontra junto e não sabe o que encontra, nem mesmo eu sei como dá-lo a entender; é que, para muitas coisas, ser-me-ia preciso ter letras. Aqui ficaria bem dar a entender o que é auxílio geral e particular, que muitos o ignoram e, como o Senhor quer que a alma aqui veja este auxílio particular quase à vista de olhos, como dizem. Ser-me-iam também precisas letras para muitas coisas que irão erradas; mas, como será visto por pessoas que entendem se há erro, vou descuidada: porque, tanto a respeito de letras como de espírito, sei que o posso estar, indo para as mãos de quem vai, pois saberão entender e tirar o que estiver mal.

7.  Quereria, pois, dar isto a entender, porque são princípios fundamentais e, quando o Senhor começa a fazer estas mercês, a própria alma não as entende nem sabe o que há-de fazer de si. Porque, se Deus a leva por caminho de temor, como me fez a mim, é grande trabalho se não há quem a entenda, e grande o gosto ao ver-se como que pintada, pois vê então claramente que é por ali que vai. E é grande bem saber e o que há a fazer para se ir aproveitando em qualquer destes estados. Como tenho sofrido muito e perdido largo tempo por não saber que fazer, sinto grande lástima das almas que se vêem sós quando chegam aqui. Tenho lido muitos livros espirituais, e embora toquem no que faz ao caso, explicam muito pouco e, se não for alma muito exercitada, mesmo explicando bem, ela terá ainda bastante que fazer para se entender.

8.  E quereria muito que o Senhor me favorecesse para aqui dizer os efeitos que operam na alma estas coisas que começam a ser sobrenaturais, para que se entenda, pelos efeitos, quando é espírito de Deus. Digo “se entenda" conforme ao que aqui se pode entender. Será sempre bom, no entanto, andarmos com temor e recato; porque, embora seja de Deus, alguma vez poderá o demónio transfigurar-se em anjo de luz. E, se não for alma muito exercitada, não o entenderá; e tão exercitada que, para o entender, é preciso chegar muito ao cume da oração.

Ajuda-me pouco o pouco tempo de que disponho e assim será mister Sua Majestade fazê-lo por mim, porque tenho de andar com a Comunidade e com outras muitas ocupações, pois estou em casa que agora se começa, como depois se verá; e assim é muito sem ter assento o que escrevo, e a pouco e pouco. Isto não quisera eu, porque, quando o Senhor dá espírito, escreve-se com mais facilidade e melhor; parece então que é como quem tem um modelo na frente, por onde vai copiando aquele labor; mas, se o espírito falta, não mais se concerta esta linguagem: parece uma algaravia ― é maneira de dizer ― ainda que se tenham tido muitos anos de oração. E assim me parece de grandíssima vantagem, quando escrevo, estar concentrada, porque vejo então claramente que não sou eu quem o diz, nem o ordeno com o entendimento, nem sei depois como acertei a dizê-lo. Isto acontece-me muita vez.

9.  Agora, voltemos à nossa horta ou vergel, e vejamos como começam estas árvores a impregnar-se para florescer e dar depois fruto, e as flores e os cravos na mesma, para dar perfume. Regala-me esta comparação. Muitas vezes, em meus princípios (e praza ao Senhor haja eu agora começado a servir Sua Majestade! digo, nos primeiros tempos do que direi de aqui por diante da minha vida), era para mim grande deleite considerar a minha alma como um jardim e que o Senhor se passeava nele. Suplicava-Lhe aumentasse o odor das florzitas de virtudes que começavam ― segundo me parecia ― a querer sair à luz e fosse para Sua glória e, pois eu nada queria para mim, que as sustentasse e cortasse as que quisesse, porquanto bem sabia eu haviam de sair melhores. Disse "cortar", porque vem tempo em que na alma não há memória deste horto; tudo parece estar seco e não haverá água para o sustentar, nem mesmo parece ter havido jamais na alma coisa de virtude! Passa-se muito trabalho, porque o Senhor quer que lhe pareça ao pobre do hortelão que tudo quanto tem feito para o cultivar e regar, vai perdido. Então é o verdadeiro escardear e arrancar de raiz as ervazitas más ― embora pequenas ― que tenham ficado, reconhecendo que não há diligência que baste se Deus nos tira a água da graça, e termos em pouco o nosso nada e até menos que nada. Ganha-se aqui muita humildade; tornam de novo a crescer as flores.

10. Oh! Senhor meu e Bem meu! Não posso dizer isto sem lágrimas e grande regalo da minha alma, pois Vós, Senhor, quereis estar assim connosco e estais no Sacramento, porque com toda a verdade assim se pode crer, pois que é de fé. E com grande verdade podemos fazer esta comparação. E, a não ser por nossa culpa, poderemos gozar convosco e Vós folgareis connosco, pois dizeis ter Vossas delícias em estar com os filhos dos homens. Oh! Senhor meu! Que é isto? Sempre que oiço esta palavra dá-me grande consolo e isto mesmo quando andava muito perdida. Será possível, Senhor, que haja uma alma que chegue a ponto de Vós lhe fazerdes mercês e regalos semelhantes, e entender que Vós folgais com ela, e Vos torne a ofender depois de tantos favores e de tão grandes mostras do amor que lhe tendes, do qual se não pode duvidar, pois se vê claramente a obra?

Sim, há, por certo, e não uma vez mas muitas, que sou eu. E praza à Vossa bondade, Senhor, que seja só eu a ingrata e a que tenha feito tão grande maldade e tido tão excessiva ingratidão. Porque, ao menos dela, a Vossa infinita bondade tem tirado algum bem; e quanto maior foi o mal, mais resplandece o grande bem de Vossas misericórdias. E com quanta razão as posso eu para sempre cantar!

11. Suplico-Vos, Deus meu, que assim seja e eu as cante sem fim, já que tivestes por bem de as usar tão excessivas para comigo, que pasmam os que as vêem. A mim, fazem-me sair muitas vezes de mim mesma, para melhor Vos poder louvar; porque, estando em mim sem Vós, nada poderei, Senhor meu, senão tornar a ver cortadas as flores deste horto, de sorte que esta miserável terra voltaria a servir de muladar como antes. Não o permitais, Senhor, nem queirais que se perca uma alma que com tantos trabalhos comprastes e tantas vezes de novo a tornastes a resgatar e a tirar dos dentes do terrível dragão.

12. Perdoe-me V Mercê sair do assunto; e, como falo a meu propósito, não se espante, pois é como se apodera da alma aquilo que escreve. Às vezes, muito faz em não se deixar ir por diante em louvores a Deus, pois se lhe representa, enquanto vai escrevendo, o muito que Lhe deve. E creio não causará desgosto a V. Mercê, porque ambos, me parece, podemos cantar uma e a mesma coisa, ainda que de maneira diferente; pois é muito mais o que eu devo a Deus, por Ele mais me ter perdoado, como V. Mercê sabe.