Capítulo 3

ORAÇÃO E TRABALHO

1912-1918

Passados dezoito meses — narra ela — como minha irmã fizesse exame, viemos embora. Minha mãe queria que eu con­tinuasse a estudar, mas sozinha não quis ficar. Fiquei a saber pouco. Voltámos para o lugar onde nascemos (Gresufes) e aí estivemos quatro meses; depois fomos para perto da Igreja, numa casa de minha mãe.

A vida da Alexandrina agora vai passar-se em trabalhos domésticos e do campo, mas sua piedade não afrouxa nunca, pelo contrário.

Gostava muito de ir à Igreja e chegava-me para junto da minha catequista e rezava tudo quanto ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a estação ao Santíssimo, meditada, quer fosse na Igreja, quer em casa, ou até pelos caminhos, fazendo sempre a comunhão espiritual assim:

— Ó meu Jesus, vinde ao meu pobre coração. Ah, eu desejo-vos, não tardeis. Vinde enriquecer-me das vossas graças; aumentai-me o vosso santo e divino amor. Uni-me a Vós, escondei-me no vosso sagrado Lado. Não quero outro bem senão a Vós. Só a Vós amo, só a Vós quero, só por Vós suspiro. Dou-Vos graças, Eterno Pai, por me haverdes deixado a Jesus no Santíssimo Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e por último peço­Vos a vossa santa bênção.

Seja louvado a cada momento o Santíssimo e Diviníssimo Sacramento!

Desde os tenros anos, portanto, vemos bem vincada nesta alma a sua feição espiritual: a devoção à Eucaristia.

Foi aos nove anos que fiz a primeira vez a minha con­fissão geral e foi com o Sr. Frei Manuel das Chagas. Fomos eu, a Deolinda e a minha prima Olívia a Gondifelos onde Sua Rev.cia se encontrava (em pregação) e lá nos confessámos todas três.

Deve ter dito as suas travessuras e traquinices de menina, as pequeninas partidas pregadas à irmã, de como zangada chamou “poveira” à patroa e até de quando ainda na Póvoa, tendo o capelão de Nossa Senhora das Dores organizado vá­rias comissões de meninas, afim de recolherem esmolas para o culto da mesma capela, foi com algumas à Aguçadoura e — escreve ela — “aceitávamos tudo o que nos dessem, como batatas, cebolas, etc. Por mais que pedíssemos, pouco arranjámos e tivemos a má ideia de saltar a um campo e tirámos batatas, cerca de dois quilogramas. Fui uma das que fiz tal acção, enquanto as outras vigiavam. Entregámos as ofertas, não con­tando nada do que se tinha passado”.

Também se confessaria da vaidade que sentiu, quando lhe deram uns soquinhos novos. Mas nem por sombras encon­trou nada de matéria grave, graças a Deus.

Não gostava de ouvir conversas maliciosas e, embora não compreendesse o sentido delas, chegava a dizer que me retirava, se não falassem noutra forma. Também me indignava toda, quando presen­ciava cenas indecentes, entre pessoas adultas. Tinha medo de perder a minha inocência e receio de que Nosso Senhor desse algum castigo.

A sua consciência delicada e timorata preservá-la-á até à morte de mancha grave.

Quando da confissão geral, ouviram um sermão de Fr. Manuel das Chagas:

A pregação dessa tarde foi sobre o in­ferno. Escutei com toda a atenção todas as palavras de Sua Rev.cia Mas a certa altura convidou-nos a ir ao inferno em espírito. Como não compreendesse o sentido das suas palavras e ouvia dizer que o Sr. Fr. Manuel era santo, julgava que íamos todos ao inferno ver o que por lá ia. Para mim mesmo disse: — ao inferno é que eu não vou! Quando todos se dirigirem para lá, eu vou-me embora. E tratei de pegar nos soquinhos. Como não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os so­quinhos.

À oração juntava desde tenra idade o trabalho:

A mãe — escreve a Deolinda — ocupava-se em tecer, a irmã aprendia costura e ela, com os seus nove anos já trabalhava muito. Cozinhava, lavava e gostava de apanhar lenha. Assim continuou até aos doze anos.

Mas começa o que a Alexandrina chama nas notas bio­gráficas “o período mais doloroso da minha vida de trabalho”:

Dos doze aos catorze anos vivi com regular saúde. Minha mãe pôs-me a servir em casa de um vizinho, mas ao ajustar-me, pôs certas condições, como confessar-me todos os meses, passar as tardes dos domingos em casa para ir à Igreja e estar sob o domínio dela, não andar de noite, etc. A combinação foi de cinco meses, mas não estive até ao fim. O patrão era um perfeito carrasco. Chamava-me nomes, obrigava-me a traba­lhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau génio e pouca paciência; até os animais o conheciam, porque batia-lhes e assustava-os, sendo quase impossível chamar o gado, quando ia junto... Envergonhava-me sem causa, fosse diante de quem fosse e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste viver.

Um dia fui à azenha levar a fornada, mas era já noiti­nha, quando lá cheguei e portanto, muito tarde quando re­gressei a casa, pois gastava no caminho uma hora. Depois que cheguei a casa, ralhou-me muito. Insultou-me e até me cha­mou ladra. O pai dele, homem velhinho, revoltou-se contra ele, defendeu-me dizendo que eu não tinha tido tempo para mais.

Todos os dias vinha ficar a casa e naquele dia, como estava melindrada, porque a minha consciência não me acusa­va a mais pequenina falta, queixei-me à minha mãe, que depois de se informar do caso, não me deixou voltar, apesar de pedir muito para que continuasse a trabalhar lá. Minha mãe vendo que ele não cumpria o contrato, tirou-me de servir.

Uma vez estive das dez da noite às quatro da manhã, na Póvoa de Varzim, a tomar conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu amigo ausentaram-se de mim e eu, cheia de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite. Enquanto vigiava o gado ia contemplando as estrelas que bri­lhavam muito e serviam de minhas companheiras.

Conta-nos ainda a irmã que “pelos doze anos pouco mais ou menos ia passar temporadas a casa de uma tia que morava perto de Barcelos. Aí trabalhava no arranjo da casas quase como uma mulher... Com treze anos trabalhava nos cam­pos, ganhando tanto como sua mãe ou qualquer jornaleira. Os patrões não a distinguiam das outras no ordenado que lhe davam”. Também pela mesma idade lhe “deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava com muito gosto, tanto num cargo como noutro, mas pelo canto posso dizer que tinha uma paixão louca”.