O martírio de um conterrâneo
lhe causa uma santa inveja
João
Teófano nasceu em 21 de Novembro de 1829 em Saint-Loup-sur-Thouet,
na diocese de Poitiers, na França. Era o segundo entre quatro irmãos
(Melânia, Teófano, Henrique e Eusébio). Contava ele nove anos quando
lhe chegou às mãos um livreto no qual era relatada a vida e morte de
São João Carlos Cornay, missionário
martirizado
pouco antes em Tonkin (região na qual se localiza a cidade de Hanói,
e que se estendia por áreas geográficas que na actualidade pertencem
à China, ao Laos, e ao Vietnam). O mártir, nascido também na França
em uma localidade situada a trinta quilómetros de Saint-Loup (também
diocese de Poitiers), tivera seu corpo cortado em pedaços, e sua
história fez o pequeno Teófano entusiasmar-se com a leitura: “também
quero ir para Tonkin; também quero ser mártir”, almejava.
Decide-se pela vida
sacerdotal
Abrindo
a alma ao seu pai, cristão exemplar, Teófano manifestou seu desejo
de tornar-se padre, e iniciou seus estudos em Doué, cinquenta
quilómetros ao norte de onde sua família residia. Durante os estudos
perdeu sua mãe, cuja morte deu-se em 1843. Sua irmã mais velha,
Melânia, ocuparia o lugar da falecida mãe para receber os afectos de
Teófano, inexistindo segredos entre ambos, porém a influência mais
profunda no grupo familiar era exercida pelo pai, o que emana do
eloquente epistolário que sobreviveu ao martírio do santo sacerdote.
Entra nas Missões
Estrangeiras
Já
próximo ao fim dos estudos necessários à ordenação presbiteral
Teófano migrou para as Missões Estrangeiras de Paris, de onde
partiam missionários para a Índia e para o Extremo Oriente. Corria o
ano de 1851 quando o jovem clérigo pediu ao pai permissão para se
tornar missionário: apesar da dor, o temperamento cristão do Sr.
Vénard o fez conformar-se com a vontade de Deus. Teófano partiu,
juntamente com outros missionários, tendo ao fim da Missa de
despedida os pés beijados pelo superior e pelas demais pessoas
presentes, ocasião solene em que os futuros mártires eram venerados
por antecipação (já que o esperado para todos era o martírio, sendo
excepcional a morte por causas orgânicas/naturais nas terras de
missão).
Alegria do sacerdócio
“Deus
estava no meio de nós, e com cada um de nós”, dizia o
recém-ordenado Pe. Teófano em carta que enviou a seu pai e aos
irmãos Melânia e Henrique após celebrar sua primeira Missa na festa
da Santíssima Trindade, em 6 de Junho de 1852. “Amanhã pela manhã
irei, com meus colegas, os novos padres, consagrar o sacerdócio a
Nossa Senhora das Vitórias e a Ela agradecer por ter-me levado à
ordenação”, acrescentou. Mesmo fazendo parte de uma família
muito unida, nenhum parente de Teófano pôde comparecer à sua
ordenação presbiteral, o que prefigurava, de certa forma, a
separação que faz parte da vida de todo missionário. “Pensei em
vocês, o que farei sempre que oferecer o Santo Sacrifício”,
escreveu alegre ao mesmo tempo em que lhes enviava a bênção.
Actua clandestinamente como
sacerdote missionário em Tonkin
Destinado inicialmente à China, Teófano foi depois direccionado ao
desejado Tonkin, exercendo por alguns anos o seu ministério
clandestinamente sob as ordens de Mons. Retord, vigário apostólico.
Porém a perseguição religiosa se intensificava, e os seminaristas
locais tiveram de se dispersar, mas apesar das dificuldades Teófano
dava apoio ao ensino religioso, ministrava os sacramentos do
Baptismo, Eucaristia, Reconciliação, Matrimónio e Unção dos
Enfermos, além da Confirmação para o que recebera delegação do
vigário apostólico, o qual não tinha condições de atender
pessoalmente a todo o rebanho que lhe fora confiado. Diversas vezes
Teófano teve de se ocultar, chegando a ficar escondido em um
minúsculo compartimento sob uma casa, evitando qualquer mínimo ruído
para não ser encontrado. Mas uma traição fez findar sua “liberdade”,
palavra inapropriada para se referir às condições em que perigosa
mas voluntariamente exercia sua ação missionária.
Informa sua prisão à família
Em
dezembro de 1860 comunicou sua prisão à família: “O bom Deus, em sua
misericórdia, permitiu que eu caísse nas mãos dos maus. Foi no dia
de Santo André [30 de novembro] que fui posto em uma jaula [gaiola
feita de bambu] que foi levada à sub-prefeitura, onde traço essas
linhas com muita dificuldade, pois tenho apenas um pincel para
escrever. Amanhã, 4 de dezembro, serei levado à prefeitura; ignoro o
que me está reservado. Mas nada temo: a graça do Altíssimo está
comigo. Maria Imaculada não deixará de proteger seu mísero
servidor”.
Em 2 de
janeiro seguinte escrevia Teófano, também aos familiares:
“Escrevo-lhes no início deste ano que será, sem dúvida, o último de
minha peregrinação pela Terra. Já lhes escrevi um bilhetinho pelo
qual lhes fiz saber de minha prisão em 30 de novembro, dia de Santo
André, em uma aldeia cristã. O bom Deus permitiu que eu fosse traído
por um mau cristão”. Sobre a cadeia que lhe atou o pescoço e as
pernas, disse Teófano que “eu a beijei, bela cadeia de ferro,
verdadeira corrente de escravidão a Jesus e Maria, que eu não
trocaria por seu peso em ouro”.
Interrogado por um juiz
Na mesa
carta o futuro mártir descreve seu interrogatório no tribunal de
justiça criminal, para o qual invocou o Espírito Santo a fim
de fortificá-lo e para falar por sua boca conforme prometera Jesus.
Após servir uma taça de chá, o juiz perguntou de onde ele era, tendo
por resposta “do grande Ocidente, do reino chamado França”.
–
Que vieste fazer aqui em Anam [nome da região, actual Vietnam]?
–
Vim unicamente para pregar a verdadeira religião àqueles que não a
conhecem.
–
Que idade tens?
–
Trinta e um anos.
O juiz
comentou, com um toque de pena: ‘é ainda bem jovem’, e em
seguida indagou:
–
Quem te enviou
–
Nem o rei nem os mandarins da França me enviaram. Foi meu chefe que
me disse para pregar aos pagãos, e meus superiores na religião que
me destinaram o reino anamita como distrito.
Com inspiradas palavras
despede-se dos familiares
Nessa
carta de 2 de Janeiro Teófano despede-se dos familiares, mas o faz
novamente em nova correspondência datada de 20 de Janeiro endereçada
ao pai: “Caríssimo, honradíssimo e bem amado pai; como minha
sentença ainda está em espera, quero lhe enviar um novo adeus, que
será provavelmente o último”. E acrescenta que “desde o grande
mandarim até o último soldado, todos lamentam que a lei do reino me
condene à morte”. Informa que “não pude sofrer torturas, como
muitos de meus irmãos. Um rápido golpe de sabre separará minha
cabeça, como uma flor primaveril que o dono do jardim recolhe para
seu prazer. Somos todos flores plantadas nesta terra que Deus colhe
no tempo apropriado, por vezes mais cedo, outras vezes mais tarde.
Uma é a rosa avermelhada, outra o lírio virginal e outra é a humilde
violeta. Tratemos de agradar, conforme o perfume ou o aspecto que
nos foram dados, ao soberano Senhor e Mestre”.
Na
mesma data escreve ele à sua irmã Melânia: “Já é quase meia
noite. Perto de minha jaula há lanças e longos sabres, e em um canto
da sala alguns soldados jogam dados. De tempo em tempo sentinelas
batem um tambor. A dois metros de mim, uma lâmpada [de óleo]
projecta sua luz vacilante sobre minha folha de papel chinês e me
permite traçar estas linhas. Espero dia a dia minha sentença. Talvez
amanhã eu seja conduzido à morte. Feliz morte, não é? Morte
desejada, que conduz à vida. Segundo todas as probabilidades terei a
cabeça cortada: desonra gloriosa da qual o céu será o prémio. A essa
notícia, cara irmã, chorarás, mas de felicidade. Veja então teu
irmão, com a auréola dos mártires coroando-lhe a cabeça, a palma dos
que triunfam levantada nas mãos! Mais um pouco e minha alma deixará
a Terra, findará seu exílio, terminará seu combate. Subo ao céu,
alcançando a pátria, ganharei a vitória. Entrarei nessa residência
dos eleitos, vendo as belezas que o olho do homem nunca viu, ouvindo
as harmonias que o ouvido nunca escutou, desfrutando das delícias
que o coração jamais provou”.
A um
irmão, escreveu Teófano no mesmo dia: “Caro Eusébio, amei e ainda
amo esse povo anamita [vietnamita] com um amor ardente. Se Deus me
tivesse dado longos anos, creio que eu me consagraria inteiramente,
corpo e alma, à edificação da Igreja tonquinense [de Tonkin]. Se
minha saúde, fraca como uma palha, não me permitiu grandes obras,
tenho pelo menos o coração nesse trabalho. Dizemos: ‘o homem propõe
e Deus dispõe’. A vida e a morte estão em Suas mãos; se Ele nos dá a
vida, vivamos para Ele; se nos dá a morte, morramos para Ele”. E
ao outro irmão, Henrique, também na mesma data (20 de Janeiro de
1861) dirigiu Teófano edificantes conselhos: “Eras ainda bem
jovem quando me destes o adeus. Talvez teu espírito tenha seguido as
coisas da época e ideias mundanas, e buscado, com falsos amigos, a
felicidade onde ela não existe. O coração do homem é grande demais
para que as falsas e passageiras alegrias daqui de baixo o
satisfaçam. Meu caro Henrique, não uses a tua vida nas inutilidades
do mundo. Tu tens agora vinte e nove anos. É a idade do homem. Sê,
portanto, um homem. Resistir às inclinações da carne e à escravidão
do espírito, mantendo-se atento contra as ciladas do demônio e os
prestígios do mundo, observando os preceitos da religião: eis o que
é ser um homem. Não agir assim é ser um animal”.
Últimos momentos de vida
Preso,
aguardando o martírio, recebeu diversas vezes a Eucaristia, que lhe
era levada por uma piedosa cristã. A sentença de morte foi
pronunciada pelo imperador Tu-Duc, tendo a decapitação sido feita no
alvorecer de 2 de Fevereiro de 1861, dia de uma festividade mariana.
Precedendo a execução, foi lido o documento condenatório, e Teófano
pôde fazer algumas considerações, afirmando que ele não estava ali
pregando uma religião falsa. Pessoas presentes pediram-lhe que não
voltasse após a morte para se vingar sobre elas, pedido que ele
gentilmente aceitou, tranquilizando-as.
Chegando o momento final, mais um sofrimento foi imposto a Teófano:
o carrasco, desastrado, não desferiu o golpe com habilidade, tendo
que repeti-lo mais quatro vezes. A cabeça, exposta por três dias,
foi lançada ao rio, sendo depois encontrada. Beatificado por São
Pio X, Teófano foi canonizado por João Paulo II em 1988.
Teófano
– cujo nome significa “manifestação de Deus – foi muito
admirado por Santa Teresinha do Menino Jesus, que em meio aos
sofrimentos da doença que lhe precedeu a morte teve o consolo de
receber uma estampa e uma relíquia do missionário mártir. Na
Basílica-Santuário da Padroeira das Missões, em Lisieux, uma
capela é dedicada ao mártir a quem ela venerava e também invejava.
Os 117
mártires do Vietnam assim morreram: 75 decapitados, 22
estrangulados, seis queimados, cinco esquartejados, e nove mortos
nas prisões como consequência das torturas.
Fonte:
http://www.arautos.org/secoes/artigos/doutrina/santos/sao-teofano-venard-missionario-frances-martirizado-no-longinquo-oriente-143478 |