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2 de Janeiro 1948 – Sexta-feiraNovo ano, nova vida, são estes os desejos e ânsias profundas do meu coração. Nova vida, sim; queria agora principiar a fazer o que até aqui não tenho feito, por não ter forças, ou não saber viver doutra forma. Quero ser pura e perfeita em todos meus actos e acções. Quero ser de Jesus, viver só d’Ele e para Ele, para assim, inteiramente d’Ele, poder Ele tirar de mim algum proveito para as almas. Ai que horror, o que foi a minha vida; que vergonha e confusão; foi só miséria, e sobre esta miséria a morte e nada mais; no sentir e ver da minha alma eu não vivi; até aqui, o meu passado foi uma vida morta, foi uma vida das mais horrorosas maldades. Nada mais vejo. Ó meu Jesus, o que fiz eu de tudo o que sofri, orei e amei? O que fiz eu de toda a minha vida que procurei ser vida só para Vós? Ó meu Deus, ai meu Jesus, que desalento o da alma! Não posso com este meu nada, com esta falta de luz, com este vazio de miséria, de graças e de amor. Não tenho nada, não vivi, e sinto não continuar a viver. Eu estou encaixada dentro do mundo e por ele apertada, como se fosse uma prensa. À volta deste mundo, dentro dele e sobre ele, incendiaram-se umas labaredas negras, subiram a altura que os meus olhares não atingem, mas a alma sente e vê que estas labaredas vão de encontro ao Céu, como a desafia-lo. Ai o meu pobre corpo e a pobre alma como estão cansados! Dentro em mim, no meu coração, está um grandioso livro, que eu não sei ler nem compreender; é escrito a negros traços, não lhe vejo uma letra. Faz-me tremer e apavorar este livro, que para mim parece não ter fim. Eu não o compreendo, mas sinto que em mim também está uma sabedoria sem igual, que vê e lê todo este livro e tudo compreende, mesmo assim só com negros traços. Ai, esta Sabedoria é Jesus. Ele lê e fita-me com olhares e modos austeros. Ele é o Senhor e a mim pede contas e eu tenho que responder por todas as gravidades que contém este livro imenso, que para mim, aos meus olhares, parece não ter fim. Ó meu Deus, que horror, que austeridade a de Jesus, que justiça Ele traz com Ele, como me sinto esmagada! Parece-me não poder ver na minha presença Jesus. Se houvesse montanhas, céu ou até inferno, onde eu pudesse esconder-me! Que horror este! A presença de Deus, e eu ter que lhe dar contas. Ó meu Jesus, sou a Vossa vítima, mas que contas Vos hei-de eu dar, que satisfação de mim podeis receber? Ai, meu Jesus, ai, meu Jesus! Todo o meu corpo, coração e alma estão dilacerados, desfeitos, às tiras, em sangue. São tantos os espinhos que me ferem! E cravados por mãos humanas. Fazei, meu bom Jesus, fazei, querida Mãezinha, que eu saiba recebê-los e sofrê-los ao Vosso agrado. Ao terminar este ano, já perto das últimas horas, fiz com os meus a consagração a Jesus e Maria, fiz que se rezasse o Te Deum em acção de graças por tudo o que de Jesus recebi, no decorrer do ano; sofrimentos ou alegrias, tudo o que Lhe aprouve enviar-me. Pedi-lhe perdão e novas graças para mim, para todos os que tão caros são ao meu coração, para quantos às minhas orações se recomendam e por fim para toda a humanidade. Fiz e pedi tudo o que soube, e nada fiz nem soube dizer. As minhas trevas vieram, não só cegar-me o mais possível, mas até tirarem-me toda a vida da alma e do corpo. Tal foi a grandiosidade que atingiu. Meu bom Jesus, tudo por Vosso amor. Aproximou-se o Horto de ontem; não era eu que o via, mas sim Jesus; mas tive que compartilhar com Ele de todo o sofrimento. Sentia que um banho de sangue por Jesus derramado vinha lavar as minhas iniquidades, dar luz a tantas trevas, que escureciam o mundo, reconciliar a terra com o Céu. Ainda no Horto, senti que ia ser despida para ser açoitada. O despir de Jesus vestia-me a mim, as feridas d’Ele vinham curar-me as minhas. Quando os Apóstolos dormiam, Jesus manteve-se sentado por um pequeno espaço de tempo, junto deles. Queria saber dizer como Ele amava e como em tão profundo silêncio a Sua Alma falava. De olhos fitos no Céu, falava para Seu Eterno Pai. As estrelas cintilantes eram luzeiros que, por entre o olival, vinham iluminar o Horto escurecido. Para Jesus elas não cintilavam, não davam luz; a Ele não respondia o Eterno Pai. Contudo a Sua Alma divina falava infinitamente e infinitamente o Seu divino Coração amava. Como Jesus era grande! Como se estendia a todos! Oh! Como Ele amava infinitamente, infinitamente! Desfalecido, com os vestidos ensopados em sangue, numa profunda tristeza e quase sem vida, esperou e viu aproximar-se a soldadagem e o traidor. Recebeu o beijo, foi preso e caminhou para a prisão. Se eu assim me deixasse prender pelo amor de Jesus! Na manhã de hoje, fui com Ele para os tribunais. Senti a humildade e a pequenez de Jesus. Se eu soubesse assemelhar-me a Ele! Que grande lição! O Rei de tudo fazer-se nada! Segui para o Calvário; com Jesus caí, repetidas vezes, sob o peso da cruz e com Ele fiquei, por alguns momentos, desfalecida. Era para perder a vida, se não fosse a vida divina que Ele tinha. O amantíssimo Jesus estava quase sem sangue. Todo o desfalecimento, tristeza e feridas do seu Santíssimo Corpo se reproduziam no meu, todos os espinhos de Jesus cingiam a minha cabeça; não podia caminhar com os olhos colados pelo Sangue. Quantos pedaços de caminhos percorri, arrastada pelas cordas! Cheguei à montanha; fiquei na cruz com Ele e Ele comigo à espera de dar a vida para novas vidas. Pai, Pai, meu Pai, bradava em extrema agonia Jesus dentro de mim. O mundo, em resposta a este brado agonioso, dava crueldades, mais crueldades, ingratidão, mais ingratidão. Chegou o momento de expirar, e Jesus, na mais extrema agonia, entregou ao Pai o Seu espírito. O seu brado moribundo ecoou no meu coração, como se ecoasse no mundo inteiro. Fiquei como morta, por algum tempo. Veio Jesus com uma grande infusão do Seu divino amor, pôs-me nele a arder e disse-me: — Minha filha, vem a ti o teu Rei e mais ainda, que, sendo Rei, é Pai e é Esposo, Esposo fiel que se vem comunicar à Sua esposa e enchê-la do Seu divino amor, de tudo o que é Seu. Quero enriquecer-te, que incendiar-te neste amor divino, quero ver-te nele consumida. Espalha-o, infunde-o nos corações e nas almas, incendeia o mundo numa só labareda. Dito isto, ficou Jesus em silêncio, e eu nadava no mar infinito do amor de Jesus. Não era só o coração que eu sentia arder, mas sim todo o meu corpo se queimava. Falou novamente o meu Senhor: — Quero preparar-te, quero fortalecer-te, minha filha, para melhor poderes percorrer os caminhos do teu Calvário, caminhos que te faltam percorrer. Não falta muito, o cimo da montanha está próximo; os caminhos são dolorosos, não os temas, confia, sigo contigo, e a tua cruz, são as almas a salvar. Muitas vezes te tenho repetido que o mundo é teu, que to confiei, mas hoje quero renovar-te a entrega dele como da primeira vez que to entreguei. É a primeira sexta-feira do ano; é mais uma promessa que te faço de que ele é teu, que o tens que salvar. Dito isto, Jesus abriu-me o coração, de cima para baixo, tomou nas Suas divinas mãos a grande bola do mundo, meteu-ma no coração que ele tinha transformado para grande, muito grande. Cerrou-me, de novo o coração, e pela abertura dele principiou a deitar de baixo a cima fechaduras com chaves doiradas. — Está seguro, minha filha; estas chaves são de oiro finíssimo com pérolas e pedras preciosíssimas; é ouro, são pedras do que há de mais caro; são pedras de dor, são pedras de amor, são moedas para as almas, são moedas de infinito valor. Sabes pelo quê, minha filha? Assemelhando-te a mim, sendo tu uma vítima minha, não vivendo tu, mas sim Eu, todos os teus sofrimentos tomam em mim um valor infinito. Assemelhei-te a mim. Eu vim ao mundo e logo tomei a cruz. Vieste ao mundo, e bem depressa a cruz te entreguei. Eu vim ao mundo, para a toda a humanidade abrir o Céu. Tu vieste ao mundo para, à semelhança minha, à mesma humanidade abrires o Paraíso que com os seus crimes fechou. Acode-lhe, acode às almas; os corpos não têm remédio. Que grande malícia; os crimes levam-Me à cruz! Não tem remédio o mundo. Não pelo haver maior maldade. Vai ser punido, o castigo depressa vem. Quantas lágrimas e gemidos; por quantos horrores tem que passar o mundo, o pobre mundo. — Meu Jesus, meu bom Jesus, descei da cruz, colocai-me a mim sobre ela, não Vos posso ver sofrer. Quero consolar-Vos, e não sei; quero amar-Vos, e não Vos amo; quero salvar o mundo e não posso. Que ignorância a minha; não sei sofrer e nada sei. — Sabes amar-Me e amas-Me sem igual amor; sabes sofrer e sem igual dor sofres. Confia, confia; farei que por ti as almas se salvem. E é essas que Eu quero e são essas que por a tua generosidade inigualável Eu espero. Vem receber a tua vida, a gota do Meu divino Sangue, o Sangue vindo duma Virgem, o Sangue que gera as virgens. Introduziu Jesus o tubo e por ele fez passar o Seu Sangue divino, Sangue que me trouxe fogo, fogo queimador. Então é que eu ardia e me perdia naquele amor infindo. Não vivi na terra, não sei que vida era, mas com certeza era do Céu. Jesus retirou o tubo para cicatrizar a ferida, passou a Sua divina Mão e continuou: — Arde, arde neste amor consome-te nele e nele faz arder as almas. Quero amor, quero ser amado. Vai para a cruz, cruz dolorosa, cruz espinhosa que te espera. Tudo aceitas, nada Me negas? É nela que está a tua missão salvadora; é na cruz que está a tua loucura de amor por Mim e pelas almas por quem dei o Meu Sangue. Coragem! Jesus não te falta, não Lhe negues nada. — Sim, meu Jesus, aceito a cruz, nada Vos nego, nada me negueis também. Aceitai o meu eterno obrigada e sede comigo, Jesus. 3 de Janeiro 1948 – Primeiro sábadoDe ontem para hoje, foi tal a dor do meu coração, que me parece que ele já nem forma tem de coração; é apenas uma massa desfeita em sangue. Sofre e sofre muito, e anseia ainda, cada vez mais. Sinto-me abandonada completamente, sem ninguém. E, com ânsias ardentes de possuir Jesus, digo para mim: ainda que todos me abandonem, Jesus não me deixa, e, se assim é, que mais posso eu desejar? Jesus supre o lugar de todas as criaturas, e todas as criaturas não suprem o lugar de Jesus. Quero Jesus, quero Jesus; só Ele basta. Nesta dor, neste abandono e ansiedade esperei a Sua vinda a mim. Ele veio, não veio, como ontem, cheio de amor, sim, com palavras ternas, cheias de doçura, transformou-me a minha alma, uniu-me a Ele e disse-me: — Minha filha, flor mimosa, flor do Paraíso, que vivendo e florescendo ainda na terra encantas e atrais a ti o Céu; és a alegria do Paraíso celeste. Venho a ti, a fortificar-te para os sofrimentos que te esperam, e agradecer-te a reparação que me deste, as almas que Me salvaste, e a heroicidade em todo o teu sofrer. Minha filha, minha filha, grande heroína, a tua dor escondida, os teus desabafos mais comigo do que com mais ninguém, foram hinos e incensos, honras, louvores e amor que Me deste. Obrigado, obrigado, minha filha. — Meu Jesus, meu Jesus, ai como me custa ouvir os Vossos agradecimentos! Como podeis Vós, como Deus, agradecer à mais pequenina e indigna das Vossas filhas? O que fiz eu, que merecesse os Vossos agradecimentos? O que sou eu sem Vós? Atribuí tudo à Vossa grandeza, e nada à minha pequenez. Sou eu, meu doce Jesus, que tenho a agradecer-Vos todos os benefícios, graças e riquezas que me destes. Fostes Vós, meu Jesus, o Herói, fostes Vós que tudo sofrestes em mim. — Nada faria, Minha filha amada, sem a tua fidelidade e generosidade; quero agradecer-te. Ao findar do ano ajustam-se as contas. Quero agradecer-te e prevenir-te para novas dores. O terminar das horas é sempre o mais difícil. Nada temas; para o Mestre divino não há dificuldades. Se, o na o passado, já raiava o sol, neste raia e vai raiar ainda mais; dissipam-se de todo as nuvens, e esses raios de sol estendem-se ao mundo inteiro; será luz para todos só para ti mais cegueira, mais trevas. Será luz para todos e mais ainda para os que dela necessitam para tratarem da Minha divina causa. Só para aqueles a quem a dei e não a receberam para dela cuidarem, para esses não, esses nunca mais terão essa luz. Coragem, filhinha; coragem na tua cruz. Tem só Comigo os teus desabafos e com aqueles que têm direito a tos ouvirem, dirige para Mim todos os teus gemidos; não Me entristeces, quando gemes, quando suspiras. Também Eu gemi e suspirei na Minha cruz. — Ai, meu Jesus, o que me esperará? Que triste é a data que passa! É sempre nesta ocasião que me prevenis para novos sofrimentos, bendito sejais. — Coragem, ó minha filha; coragem, não temas, Eu estou contigo. Diz ao teu Paizinho que as cadeias, que o arrastaram a tão grande distância, estão quase quebradas. A luz da Minha divina causa deu luz a tudo. Diz-lhe que depressa ele volta ao seu ninho, ao ninho que o viu nascer e crescer em graça, sabedoria, virtude e amor. Dá-lhe todo o Meu amor infinito, diz-lhe o Meu obrigado por todo o seu sofrer; diz-lhe que as Minhas divinas promessas se cumprem, a missão que lhe confiei se realiza. Diz ao teu médico que pelos teus lábios Jesus lhe agradece tudo quanto ele tem feito e terá que fazer pela causa do Rei divino e da Sua vítima. |