Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

DEZEMBRO
1947

5 de Dezembro de 1947 - Sexta-feira

Meu Deus, como se pode aguentar tanto abandono. Tenho medo de estar tão só. Fugir-me, tudo, tudo e todos! Ó meu Jesus, faça-se a Vossa vontade divina. Eu vou à Vossa procura, ao Vosso encontro mesmo com sentir que quanto mais Vos busco mais me fugis. Só Deus me basta, só Jesus quero; confio que não sou por Ele abandonada. Sofro tanto por não poder fazer bem a todas e a todos, mesmo aos meus inimigos, se é que eu os tenho. É tal a dor que sinto por não fazer bem a toda a humanidade, até mesmo àqueles que mais me têm ferido, que por vezes não posso resistir. Consolar a todos, remediar todos os males, dar a todos a graça do Senhor, são os meus desejos.

Ó meu Jesus, que ânsias insaciáveis! Eu não sei que sinto em meu coração, sinto-o cheio, mesmo a transbordar, não sei com quê, que é o remédio de todos os males. Este remédio, isto que me enche o coração, não é meu, é uma coisa muito sublime, muito superior a mim. Parece que tenho o coração aberto e nele umas mãos a apontar para ele a indicar o caminho, a entrada, para ir buscar tudo aquilo de que o coração está a transbordar. Sinto bem que tudo isto é desprezado; poucos se querem aproveitar deste remédio, desta riqueza. E por isso sofro, sofro uma dor quase insuportável. Não posso fazer o bem; fazei-o Vós em mim e por mim, meu Jesus.

Tenho dentro de mim um rochedo mundial, é mesmo o mundo, sinto que o é. À volta deste rochedo, anda um mar infinitamente maior a bater mansamente com suas ondas meigas e doces, ondas de convite, ondas de quem quer entrar. Mas este rochedo, não é só rochedo inquebrável, cobriu-se também de podridão, de lodo e lama. As ondas batem com tanta doçura como que a afagar; querem lavar toda aquela imundície para depois abrandar toda a dureza; mas em vão. Dentro deste rochedo, está o veneno, de que eu sou portadora, está encoberto, mas apesar disso, opõe-se como víbora, como leão furioso, para que não possa este rochedo ser lavado nem amolecido! Ai como Jesus sofre! Que ingrata é a humanidade!

Não posso ver sofrer Jesus, não posso sentir a Sua dor nem a ingratidão. E eu sou do número que O ofende gravemente, sou do número dos ingratos, muitos ingratos. Como posso proceder assim, ó meu Jesus? Parece que não tenho coração para Vos amar; se eu Vos amasse não Vos ofendia. Ai de mim, pobre de mim, que tanto Vos queria amar. Dar o meu sangue, a minha vida pelo Vosso divino amor é pouco; queria todo o sangue, todas as vidas e depois de tudo isso eu ainda dizia que não vos amava e nada tinha para Vos dar. Remediai este mal, Jesus, saciai os meus desejos. A vida foge, o fim aproxima-se, e eu morro de pavor, sozinha, em trevas, de mãos vazias. Existiu porventura algum dia, por algum tempo, em mim a luz? Sei o que é a luz, compreendo os efeitos, que a luz produz? Não, meu Jesus, tudo morreu para mim sem me deixar sinal algum da sua existência, dos seus efeitos. Bendito sejais.

Na tarde de ontem, parecia-me aparecer do Céu uns raios de sol, que davam vida à terra e a iluminavam de tantas trevas, que a submergiam. Contra este sol vinham nuvens negras, assustadas a encobri-lo. Parecia que tinha Jesus dentro de mim a contemplar, a fitar este sol e as nuvens formadas de todas as maldades, que tentavam encobri-lo. Jesus lançava-se às nuvens para as abraçar, embora que apavorado com elas; o Seu divino Corpo cobria-se de suor e sofria sozinho. De longe a longe fitava o Céu e bendizia a Seu eterno Pai.

Durante a ceia, eu queria poder mostrar o rosto de Jesus, tal qual O vi, inflamado de amor. Queria poder fazer sentir a todos os corações o que é o amor de Jesus para com a alma que verdadeiramente O ama. Como se uniram tão docemente o Coração divino de Jesus ao coração do discípulo amado! Jesus consolava-se no Seu discípulo e este no seu Mestre. Esta união suavizou a dor angustiosa de Jesus. Vi-O depois tomar em Suas divinas mãos uma bacia grande, redonda, cingir o Seu pescoço com uma toalha e seguir o lava-pés. Depois de sair da sala e se despedir da Mãezinha, um pouco já retirado, fitou-a novamente, como que a dar-Lhe um novo adeus. Ela fitava o Seu Jesus, no cimo da escadaria. Ele desapareceu, mas ficaram sempre unidos. À saída da cidade, ao principiar a subir, Jesus viu todo o sofrimento que O esperava; banhou-se novamente em suor, e á a cair desfalecido. A Sua vida divina fez que não caísse, e forçou-O a caminhar.

No Horto, senti bem, como se fosse o meu rosto, pousado na terra, todo ensopado em sangue. Pareceu-me que todos os meus vestidos nele se ensoparam também. Sofri tudo, tudo ali com Jesus; ainda que eu quisesse, não podia deixá-Lo; com Ele fui para a prisão.

Na madrugada, muito cedo ainda, em vão procurei consolá-Lo. Como o meu Jesus estava desfalecido! Que pena eu tive! Por mais que Lhe quisesse dizer, quase nada disse, não pude consolá-Lo, não soube amá-Lo. Mais tarde, ainda sem a sentença estar dada, vi os cravos que O haviam de pregar à cruz, o martelo que os havia de bater. O Coração de Jesus desfazia-se pela dor, o peito abria-se com o peso que o sobrecarregava. Eu queria acariciá-Lo, mas sentia no meu corpo que não podia tocar no Corpo divino de Jesus, por todo estar em ferida e em sangue; era tal o sentimento e dor, que eu tinha, que não parecia ser o Sagrado Corpo de Jesus ferido, mas sim o meu. Neste sentimento passei todo o caminho do Calvário e no mesmo sentimento O acompanhei na agonia da cruz. Parecia ser o meu sangue que sobre ela corria, pareciam ser as minhas carnes despedaçadas que caíam junto dela. Pobre de mim, sei que sou nada e nada sofro; era Jesus que em mim sofria. Se ao menos eu soubesse acompanhá-Lo!

O sol escureceu-se, a terra tremeu, aproximava-se o fim de tão grande tragédia. Jesus ia morrer, mas a ingratidão ficava. Que aumento de agonia! Senti perder a vida com tal ingratidão que, até ao último momento foi como que uma lança aguda a ferir-me o coração. Fiquei por algum tempo, como se expirasse Jesus também. Como Ele não tinha morrido, veio, fez-me viver e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, desceu o Céu, desci Eu ao teu coração. Desci, Minha filha, ou melhor fiz que desci para Me comunicar a ti, para ouvires a Minha voz divina. Estou aqui e estou também no palácio riquíssimo do teu coração. Tu és, esposa amada, o espelho das virgens, o anjo dos jovens e das donzelas. Tu vieste ao mundo para escola de toda a humanidade. Em ti aprendem as donzelas a guardarem para Mim o lírio cândido da sua pureza; em ti aprendem velhos e novos, ricos e pobres, sábios e ignorantes; em ti aprendem todos a amarem-Me no sofrimento, a levarem a sua cruz.

— Em ti estou bem, Minha pomba amada, ao abrigo do teu coração não pode o mundo ferir-Me.

― Meu Jesus, meu terno amor, que confusão e vergonha a minha! Quero cair humilhada e contrita aos Vossos divinos pés e aí chorar as minhas culpas. Como podeis Vós que tudo vedes, falar assim da maior de todas as pecadoras, da mais indigna das Vossos filhas!

― Assim teria sido, Minha querida, se Eu não velasse por ti e não correspondesses às Minha divinas graças. O fazer-te conhecer o mal não tirou à tua alma o brilho e a graça; conhecê-lo não é praticá-lo. E só assim podias dar ao Meu divino Coração a reparação para tantos pecados e tantos crimes! És a Minha vítima, a quem confiei a mais alta missão. E como prova disso atende bem ao que te digo para bem o saberes dizer. Quase um século era passado que Eu mandei a esta privilegiada Freguesia a cruz para sinal da tua crucifixão. Não a mandei de rosas, porque as não tinha, eram só espinhos; nem de oiro, porque esse com pedras preciosas serias tu com as tuas virtudes, com o teu heroísmo a adorná-la. A cruz foi de terra, porque a mesma terra a preparou. Estava preparada a cruz; faltava a vítima, mas já nos planos divinos estava escolhida; foste tu. O mal aumentou, a onda dos crimes atingiu o seu auge, tinha que ser a vítima imolada; vieste, foi o mundo a crucificar-te. Agora partes para o Céu e a cruz fica até ao fim do mundo como ficou também a Minha. Foi a maldade humana a preparar-Me a Minha, e a mesma maldade preparou a tua. Oh! como são grandes os desígnios do Senhor! Como são grandes e admiráveis, que encantos eles têm! Poderia Eu na Minha sabedoria infinita assemelhar-te mais a Mim? Desta cruz, desta imolação tirei dois proveitos: o amor à cruz, o amor à minha imagem crucificada e a grande reparação. Não é só a Minha Alexandrina a ser na cruz crucificada, mas Cristo nela e com ela. É necessário maior prova? Estudem os sábios, estudem aqueles, não a quem dei a luz, mas a quem a vou dar. Alguns a quem a dei e a não aceitaram, não voltam a recebê-la. Partes para o Céu, Minha filha, mas por ti continua a obra da salvação. Acode às almas, acode às almas. Fica por um pouco a gozar a Minha paz para dela tomares conforto para a luta. No meio das tuas trevas, recorda estes momentos, lembra-te que sou Eu, confia em Mim.

Jesus ficou em silêncio e eu a nadar em paz e gozo; não tinha dúvidas que era Jesus. Uns momentos depois Jesus interrompeu o silêncio, e com o tubo doirado, ligado ao Seu divino Coração, introduziu-o no meu.

― Vais receber a gotinha do Meu Sangue divino e juntamente o meu divino amor com toda a abundância.

Pelo centro do Coração divino de Jesus saíam labaredas altíssimas; senti-me a arder e a queimar nelas; tudo em mim era fogo. Jesus com carícias e o bafejar dos Seus lábios divinos, desligou o tubo, retirou o Coração, apagou as chamas.

― Vai, filhinha, vai esposa Minha, não temas a cruz; comigo vences. Dá-Me dor, dá-Me dor, dá-Me amor, dá-Me amor. Vai para a cruz, vai salvar as almas, condu-las a Mim. Vai semear, leva o Meu divino amor. Vai, diz tudo, oferece-Me o sacrifício. Coragem, coragem.

― Obrigada, meu Jesus. Por não ter querer, tudo faço pelo Vosso divino amor; dai-me força, dai-me luz.

6 de Dezembro de 1947 - Primeiro sábado.

Passei horas da noite sempre em união com O meu Jesus, na ânsia de O receber com perfeição e amor e em ânsias insaciáveis de fazer o bem, espalhar o bem. O meu coração era como um rio, que não cessa de dar água para o mar, noite e dia, sem parar. Sentia-me e sinto-me cansada, porque ele não pára, não deixa de ansiar, quer dar-me, quer entregar-se para conforto, alívio e amparo de todos; quer desfazer-se no bem, só no bem. Este ansiar não pode estar à frente da minha miséria. Quem sou eu? Que bem posso fazer?

― Ó Jesus, fazei-o Vós por mim e deixai-me esconder em Vós.

Nesta ansiedade, martírio de alma e corpo, preparei-me, o melhor que pude, para a vinda do meu Jesus. Eu não vivia, eu não era eu, nenhum bem fazia, tudo era morte. Chegou Jesus, entrou no meu coração, e, momentos depois, na mais íntima união, disse-me:

― Minha filha, venho a ti com o Meu conforto, com a minha força, com a luz do divino Espírito Santo, para que nos momentos de maior angústia, imolação e trevas, possas recordar os felizes momentos de íntima união Comigo e desta luz, que tudo ilumina, possas dizer: a luz, que recebi; era a luz divina, a união e a paz era a de Jesus; paz, que o mundo não tem, e só do Céu pode vir. Nestes pensamentos vencerás a tua dor; com estes pensamentos confiarás sempre em Mim sem vacilar. Só assim romperás por entre os espinhos, só assim sairás vitoriosa do teu martírio, sem o qual as almas não se salvariam. E elas estão em tanto perigo, perigo eminente de se perderem. Coragem, coragem! Criei-te para elas, para elas criei este milagroso Calvário. É Calvário que lava, Calvário que purifica, Calvário que perfuma, Calvário que abrasa, Calvário que atrai; é Calvário das maravilhas do Senhor.

Minha filha, Minha esposa querida, vou dar-te o prémio do aniversário que hoje passas. Há 9 anos que, pelo Meu divino amor e pela missão das almas, deixaste por alguns dias a tua casa; foste como peregrina, com os olhos fitos em Mim, obedecendo e a cumprir a Minha divina vontade. Foi o primeiro golpe a seguir ao da primeira crucifixão. Aceita como prémio toda a riqueza do Meu divino Coração.

O coração de Jesus era como um vaso formosíssimo, o qual Ele despejou dentro do meu coração.

― Dou-te tudo e com tudo fico, Minha filha; dou-te toda a Minha riqueza, e em Meu nome que o dês ao teu Paizinho também como prémio do seu sofrer. Diz-lhe que o associei ao princípio do teu Calvário e que ele foi o teu cireneu e contigo vítima. Diz-lhe que fui Eu que vos uni e que, nesta união, passais a vida da terra e a eternidade. No dia da primeira crucifixão, vós formaste uma escada para o Paraíso, pela qual não têm cessado de subir as almas. Diz-lhe que Eu sou sempre o seu Jesus, cheio de bondade e amor para com ele. Diz-lhe que Jesus lhe manda todas as graças deste Calvário, deste viveiro das almas. Diz, Minha filha, ao Meu e teu queridíssimo médico que lhe dou o Meu profundo agradecimento pelo seu acto de fortaleza, sem respeito humano para a Minha divina causa. Foi grande a consolação que Me deu pela luz que levou a muitos corações. Como prémio desse acto heróico dou-lhe todas as Minhas bênçãos e graças para ele e para os seus; e prometo-lhe a fidelidade à graça e guiá-lo em todos os seus passos; prometo-lhe a perseverança final e toda a luz do Espírito Santo. Quero fazer compartilhar destas promessas aos que mais de perto te rodeiam e trabalham em defesa do que é Meu. Vi Jesus a abençoar, por um bom espaço de tempo. Vem, Minha Bendita Mãe, à Nossa filhinha, que te espera e necessita do teu conforto para amparo da sua dor.

Veio a Mãezinha; cobria manto de Rainha; tomou-me para o Seu regaço, envolveu-me no Seu Santíssima manto, abraçou-me e cobriu-me de carícias.

― Minha filha, Minha filha, sofre o Coração do Meu divino Filho e sofre o Meu também. Tira-Lhe do Dele os espinhos, tira-Me do Meu as setas. Passa para os que amas as minhas carícias, diz-lhes que também são para elas, que Eu lhas mando. Pede-lhes, em Meu nome, para fazerem o mesmo que a ti peço. Quero que Jesus seja amado, quero ser amada também; quero que o Coração divino de Jesus seja reparado, e não quero que nele fique nem um só espinho. Peço reparação para o Meu santíssimo Coração e para dele lhe serem tiradas todas as setas e espadas que tem. Pede aos que amas para Nos amarem e por Nós sofrerem, dizendo e repetindo sempre: quero que o meu amor, o meu sofrimento vão tirar aos Corações de Jesus e Maria todo o ferimento quer têm; e que o mesmo amor e sofrimento Jesus por Maria o aceite pela salvação das almas, pela conversão dos grandes pecadores. Diz, Minha filha, que quero que o Meu desejo seja propagado.

Aproximou-se Jesus e com a Mãezinha, de novo, me acariciaram e com os Seus lábios docemente bafejaram-me.

― Vai, Minha filha; o Céu não demora, não receies a cruz. O bafejar do teu Jesus e da tua Mãezinha será para ti a vida da tua dor e o maná celeste que quero que espalhes pelas almas que amas, por toda a humanidade. Tem coragem! Quando mais ansiares a tua Pátria, recorda as almas do Purgatório, a quem tanto amas, que tanto anseiam por Me gozarem e contemplarem face a face, e oferece-Me para seu alívio as tuas ânsias, saudades de voares para o Céu para junto de Mim. Coragem! Leva a Nossa paz, leva o Nosso amor.

― Obrigada, Jesus; obrigada, Mãezinha. Já me sinto na cruz; toda ela é de espinhos.

12 de Dezembro de 1947 - Sexta-feira

Parece-me sentir e ouvir que uma voz me chama para a eternidade; sinto que é o fim que se aproxima e que essa voz é a voz de Jesus. Eu não O vejo, mas sinto que Ele me espera, de braços abertos, para me receber e pedir contas. Eu não sei como Lhas hei-de dar. Eu anseio por esse momento de ir para Ele, e sinto que não posso demorar-me mais tempo aqui, mas tenho medo de comparecer na presença de Deus, de mãos vazias, só cheia de misérias; é só o que tenho, é só o que vejo. É tremendo o meu sofrimento, é horrorosa a minha dor.

No dia 8, no dia da querida Mãezinha, apesar de me lembrar muito Dela, de querer amá-La, honrá-La, dar-Lhe todo o louvor, passei todo o dia morta, sepultada numa sepultura, na maior profundidade das minhas trevas. Só à noite ressuscitei, e saí dessa sepultura, para ver que nada tinha feito e só a minha miséria e nojenta podridão me apareceram. Depois de contemplar bem o meu horroroso estado, voltei a morrer e a sepultar-me na mesma sepultura. E, todos os dias, mais de uma vez, ressuscito e saio dela só para ver e contemplar o que me causa horror. Não passo daqui, da morte à vida horrorosa e da vida horrorosa à morte. Vejo-me sozinha, inútil para mim, inútil para todos, sem o mais pequenino amor a Jesus e o menor bem para as almas e para a humanidade.

Não sei como poder resistir ao horror, ao nojo que me causam as visitas, quero fazer-me compreender; este horror, este nojo não são as visitas que mo causam, sou eu que sinto nojo de mim mesma e causa-me horror ver a podridão vergonhosa e nojenta que as visitas vêm contemplar. Não sei dizer o que sou e o que sofro com o que sou. Meu bom Jesus, minha querida Mãezinha, amparai-me, tende dó de mim, sou a Vossa vítima. Eu aceito e quero todo este sofrimento, mas quero amar-Vos e ver salvas as almas. O meu viver é entre espinhos, é um martírio contínuo de alma e corpo, os espinhos atravessam-me a alma e não deixam o mais pequeno bocado do meu corpo sem ser ferido; sinto-me sempre a derramar o meu sangue.

No meio de tudo isto, sem querer nem querer libertar-me do sofrimento, nada faço daquilo que o meu pobre coração anseia; fazer o bem; praticar só o bem, acudir a todos, remediar todos os males, assemelhar-me a Cristo, seguir em tudo os passos de Jesus. Nada sinto que se realiza e é de utilidade para a humanidade porque apesar de tanto sofrer, nada é meu, nenhum bem eu faço. Sou tão nada, como hei-de levar a minha cruz! Neste mar de sofrimento, envolvida nas ondas mais furiosas, vi por vezes o Menino Jesus caminhar à minha frente com um grande madeiro aos ombros. Ele era tão pequenino, não sei como o podia levar; só a força de um Deus. Causava-me dó e grande impressão vê-Lo tão pequenino com tão grande cruz. Ele olhava para mim, fitava-me docemente e caminhava sorridente, como se nada levasse. A vista de Jesus dava conforto à minha alma, dava-me amor à cruz.

Ontem, era já quase noite e eu sem saber compreender o que a minha alma sofria. Veio do alto, um raio do sol foi cercar toda a humanidade, ficou como que uma muralha luminosa à sua volta: depois parecia que mexia e remexia toda a terra e envolvia-se nela. Nesta altura senti que o Céu irado e revoltado contra mim caía sobre o meu pobre corpo a esmagá-lo. Com este peso abriu-se-me o coração, sentia nele grande ferida a sangrar.

Fui com Jesus, até junto do aposento onde ia ser a ceia; não pude subir, fiquei ali esmagada pelo mesmo Céu, e, ali quase morreram as minhas pobres forças. Subiu Jesus, subiu o amor, subiu o que era divino. Não fui ao Horto, quase sem vida dali o contemplei; vi a sua solidão e escuridão, vi o solo tremer com a folhagem que continha; vi todos os sofrimentos, que lá esperavam Jesus; não fui lá, mas deste lugar com Ele sofria.

Na manhã de hoje, senti que eu mesma O fui buscar à prisão, vinha algemado, desfiguradíssimo, sem nenhuma beleza. O meu coração foi o lugar onde Ele foi açoitado, e dentro dele caía a chuva, de gotas de sangue, que produziu a coroa de espinhos. Os mesmos espinhos atingiam-me também o coração e foi sempre ele o caminho que percorreu Jesus para o Calvário; eu caminhava com Jesus e dentro do que era meu caminhava. Jesus desfalecia e caía e eu também; Ele recebia os maus-tratos e eu compartilhava deles. Passou pelo meu coração a Mãezinha e nele foi seguindo a Jesus; a Ele veio a Verónica limpar o rosto de Jesus e limpou o meu também que era com o de Jesus um só.

No Calvário, pregado na cruz, foi ainda o meu coração escada por onde desceram Jesus, o lugar e o lençol com que Ele foi amortalhado. E ainda nele a Mãezinha teve lugar para cuidar do corpo divino do seu Jesus. Tudo senti e vi antes de expirar. Que grande aumento de agonia! Tudo me estava presente. Como Jesus em mim, bradava o Seu Eterno Pai A vida de Jesus deixou-me e então é que eu me senti morta. Esta morte foi por pouco tempo; Jesus não demorou a dar-me de novo a Sua vida.

― Minha filha, Minha querida filha, a tua vida é Minha, o teu sofrimento é Meu. Tu estás no mundo e não és dele; tu vives, e a vida não é tua, sou Eu que vivo. A Minha vida está introduzida no teu corpo; é como que um sopro divino, e a tua alma, ó maravilha, é só a vida do Céu. Tu não sofres, sofro Eu, tu não sofres e Eu não posso sofrer sem ti. Nada em ti podia ter feito nem continuar a fazer sem a tua fidelidade e correspondência às Minhas divinas graças. É Cristo na Sua vítima e a vítima em Cristo. Confia em Mim, confia no que te digo.

― Confio, meu Jesus, e temo e sofro por confiar. Eu estou tão cheia de pecados, caio em tantas e tão grandes faltas; sou tão pequenina, tão nada, como podeis falar-me e viver em mim? Não tendes nojo, meu Jesus?

― Não, não, minha filha. O teu nojo é para que Eu não tenha nojo das almas; o teu nada, é para encobrir as minhas grandezas e maravilhas em ti. Quero-te assim pequenina, quero-te assim tão nada para dares tudo. Não viste como Eu tão pequenino levo tão grande cruz? Foi tara te mostrar que a graça tudo pode e que tu assim pequenina, com a Minha vida e força divina tudo vences; com o sorriso e amor à cruz tudo suportas e és vitoriosa no teu Calvário. Confia, Minha filha, querida, confia que te amo e tu Me amas muito, a mais não poderes amar-Me. Tu não és do mundo, e o mundo é teu; entreguei-to, dei-te o título de mãe da humanidade, dei-te todos os tesouros e graças do Meu divino Coração para a salvares. À semelhança do que disse aos Meus Apóstolos, quero dizer-te, não como lhes disse a eles: aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados, mas sim aqueles a quem prometeres a salvação, serão salvos, é deles o Céu. É em nome de Jesus que lho prometes, é Jesus a falar em teus lábios, no teu coração. Dou-te tudo, tudo faço para acudir às almas. Que grande prova de amor!

― Ó meu divino Jesus, se prometeis a salvação a todos quantos eu a prometer, eu prometo-a a todo o mundo, pois todas as almas eu quero salvar, todas são filhas do Vosso divino Sangue.

Jesus com um sorriso na Sua infinita bondade disse:

― Não pode ser, filha querida; assim como para serem perdoados os pecados são necessárias as disposições da alma, igualmente as exijo para a promessa que te faço, para a graça dispensada. É por isso que o Meu divino desejo é que venham junto de ti muitas almas, todas as almas, se isso fosse possível. De ti Eu deixo transparecer a Minha doçura, o Meu sorriso, tudo o que é Meu. Por ti e junto de ti, receberão o toque da Minha divina graça; por ti Eu serei por muitos amado, muito amado. Fiz e vou fazer de ti uma vida maravilhosa, uma vida de prodígios. Coragem, muita coragem! És mãe da humanidade; a mãe dá vida e dá à luz os seus filhos. Recebe agora a gota do Meu Sangue divino; sem ela não vives, sem ela não resistes ao teu sofrer.

Jesus tomou nas mãos o Seu divino Coração, uniu o centro do Dele ao centro do meu, e pelo pequenino tubo passou Dele para mim, muito lentamente o Seu Sangue divino. Foi como que um fogo que me abrasou toda; senti-me queimada, até o rosto me ardia. Jesus levantou o Seu divino Coração e com o centro para cima deixou-o por algum tempo, ligado ao meu. Nesta estreita união, depois de um pouco de silêncio, enquanto que as labaredas continuavam a abrasarem-me, Ele disse-me:

― É fogo, é fogo, é amor, é amor divino, Minha filha. Dois Corações num só Coração, duas vidas numa só vida. É Jesus pela Sua crucificada a salvar o mundo. Acode-lhe, acode-lhe, esposa querida; acode-lhe que é teu, entreguei-to, salva-o, ou salva as almas, que aos corpos já não acodes, têm que ser castigados. Já não demora sobre ele a justiça de Meu Pai. O mundo, o mundo, o pobre mundo, que não atendeu à voz de Jesus, ao convite de oração, penitência, emenda de vida! Coragem, coragem, Minha filha! Brada-lhe bem alto, convida-o para Mim. Dá-me dor, vai para a tua cruz, acode às almas, é essas que Eu quero ver salvas. Vai alegre para a cruz, vai espalhar o bem, vai infundir amor. Não temas as trevas, não temas a tua ignorância. Sentes nada saberes dizer? É quando mais dizes, mais luz dás aos que te estudam, já disso te preveni. Tem coragem! O tempo é breve; bem depressa cantarás as glórias do teu Senhor. O Meu divino Coração anseia por dar-te a tua Pátria, ver-te junto de Mim! Vai alegre, vai em paz, vai cheia de amor, da vida divina.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Aceitai-me o meu sacrifício e todo o meu sofrer, e poupai o mundo ao castigo.

Tenho tanta pena de Jesus e tanta da pobre humanidade. Tanto a queria salvar! Custou-me tanto ditar tudo isto. Sinto como se tudo fosse escrito com o sangue do meu coração. Que Nosso Senhor me aceite as faltas das minhas forças, para que as almas tenham força para não pecarem.

19 de Dezembro de 1947 - Sexta-feira

Como o meu coração sangra: ó meu Deus, como eu o sinto ferido; já não parece coração, mas sim uma massa de sangue toda desfeita! E se a alma tivesse algum bocado de carne, eu podia dela dizer o mesmo. Parece que a sinto toda golpeada. Que dor quase insuportável! Vivo porque Jesus o quer; resisto, porque Ele resiste em mim. Ai de mim, se assim não fosse; o que teria sido e seria o meu viver. Tudo é dor, tudo são espinhos e espadas a cortarem-me, tudo é abandono, trevas e morte.

Vou saindo, de vez em quando, fora do meu sepulcro; respiro, vejo todo o sofrimento que me rodeia e sem ter nada que dar a Jesus, sem nada fazer em benefício das almas, logo caio na mesma sepultura. Fica-me a dor e as ânsias de fazer bem e imitar Jesus, de valer a todos e a todos socorrer. Que novo martírio Jesus inventou para mim com estes sentimentos de praticar o bem, de não viver nem pensar em mim, mas sim viver e pensar em toda a humanidade. Só por amor a Nosso senhor e às almas eu recebo as visitas. Que podridão elas vêm ver e observar! Meu Deus, que vergonha a minha, que doloroso tormento!

Tive três combates com o demónio. Como ele vinha desesperado! Eu sentia tal raiva contra mim, que a mim mesma me parecia morder toda. Ouvia uivos e ranger de dentes. Que inferno desesperador e malicioso! Eu era toda demónio. Não queria ter ouvidos para ouvir as suas malditas e feias coisas; mas tinha que ouvi-las e tive que lutar. Sentia o meu coração preso ao demónio por fortes cadeias e parecia-me que não podia deixar o pecado, queria até viver nele, sentia gosto em praticá-lo. Queria tomar para os meus braços o crucifixo e A Mãezinha, mas não podia; era eu mesma que O queria escarrar, escarnecer e calcar aos pés. Não deixei contudo de dizer a Jesus que era a Sua vítima e do íntimo do coração Lhe dizia que não queria pecar e só queria a Sua divina vontade. Confesso que não podia mais. Eram tão fortes as palpitações do meu coração; parecia-me que ele rebentava. Nesta altura, ouvi a voz de Jesus que disse:

― Aparta-te, maldito, tenho domínio sobre ti, deixa a Minha vítima.

Os demónios fugiram espavoridos, uivando e rangendo os dentes. E um Anjo formoso, em tamanho natural, de asas brancas, no meio de uma luz luminosa, parou por uns momentos à minha frente, a apontar-me para o Céu. Desapareceu a visão. Fiquei dorida com o receio de ter pecado, mas com a alma forte, depressa fiquei em paz.

Não tenho a certeza, mas parece-me que, ao menos três vezes, vi passar Jesus, no meio de uma grande multidão de vultos pretos, com a cruz aos ombros a ser maltratado. Ele fitava-me e caminhava sempre, mas oh! como Ele ia desfigurado e triste! Triste e em grande dor me deixava a mim também. Eu podia poder consolá-Lo, tirar dos Seus Santíssimos ombros a cruz e passá-la para os meus. Lá O via caminhar e desaparecer sem o poder conseguir. Queria desviar Dele a multidão que O seguia para O maltratar, e não foi para mim, não tive força para me aproximar de Jesus, para O libertar e suavizar a Sua dor.

― Que estou eu, Jesus, aqui a fazer, se não evito os Vossos sofrimentos. Entrego-me em Vossas divinas mãos, sou a Vossa vítima.

Tudo isto aumenta em mim a sede ardente de amar a Jesus, de me dar a Ele, de viver para Ele. Aumenta-me esta sede, estas indizíveis ânsias, para mais e mais rápido tudo ver desaparecer e morrer. Bendito seja o que dá o Senhor. Se eu o soubesse corresponder ao Seu amor infinito para comigo!

Ontem, logo de manhã, vi Jesus, preso à coluna, e, no decorrer das horas, tudo era dor, tormento imenso à minha volta. Tudo o que era sofrimento me rodeava; sei que era dor, mas não sei exprimir-me. Montanhas negras e duras batiam contra o meu peito, feriam-mo, abriam-mo, deixavam-mo a sangrar. O Céu parecia repelir-me, não me querer fitar, mas dentro em mim ia uma força que não olhava ter que sofrer. Abria os braços para abraçar a imensidade daquela dor, e, mergulhada nela; queria dar vida à terra, queria dar luz, cuidava das coisas do Céu.Com os desejos de delas cuidar, sempre fui para o Horto, não com as minhas forças, mas com outras superiores a elas.

Lá, com a visão de tudo o mais que me esperava, que era a prisão, a cruz e o Calvário, abriu-se-me o coração e reguei de sangue a terra. Com os vestidos e cabelos nele ensopados fui para a prisão com Jesus e com Ele lá fiquei por muito tempo.

Hoje de manhã, voltei ao Seu encontro; comoveu-me o estado em que O encontrei; estava desfiguradíssimo, desfalecido, tiritava de frio. Mesmo na prisão estava de mãos atadas. Foi o meu corpo a prisão e os caminhos que o conduziram aos tribunais, foi o meu coração o pescoço, a cintura onde foram atadas as cordas para arrastarem Jesus. Assim segui com Ele o Calvário; viagem dolorosíssima e triste. Mesmo o sol parecia envergonhar-se; de vez em quando, escurecia-se. Repetidas vezes no Coração senti os puxões das cordas e Jesus cair por terra; quando caía os espinhos da coroa penetravam ainda mais fundo, as feridas abriam-se, rompia o sangue. Sem uma força sobre-humana não conseguia chegar ao fim da montanha. O sangue colava os divinos olhos de Jesus, caminhava às cegas. Contudo os Seus olhares divinos viam tudo e todos os sofrimentos, que ainda faltavam.

Fiquei com Ele pregada na cruz, tão presas à Sua dor e agonia, que nada havia que nos separasse. Era ainda no meu coração que Jesus, no Seu abandono, fitava o Céu, num brado profundo a Seu eterno Pai. Causava dó o Seu brado dorido que devia ser ouvido pelo mundo inteiro. Veio o momento de expirar; expirei com Ele. E desta vez a nossa separação e morte prolongou-se. Depois desta demora, veio Jesus ressuscitar-me e deu-me vida também, deu-me uma vida doentia. Eu falava com Jesus, e sofria ao mesmo tempo.

― Minha filha, tabernáculo do divino Espírito Santo, companheira inseparável de Meu Eterno Pai, sacrário da Minha habitação, paraíso das Minhas delícias, em ti habitamos sem nos separarmos; o divino Espírito Santo para te iluminar e instruir, o Eterno Pai para te acompanhar e admirar a obra da criação, Eu para te guiar, fortificar e dar a vida. É de Mim e para Mim que tu vives, é por Mim que és enriquecida, é com as Minhas riquezas que salvas as almas. Enchi-te, enriqueci-te como a nenhuma outra alma, porque por nenhuma sou assim amado; a todas ultrapassas na dor e no amor, a ti como a nenhuma outra Eu dei todas as Minhas graças e tesouros, a ti como a nenhuma outra Eu entreguei e confiei tão completa missão, a maior, a mais sublime missão e operei tantas e tão grandes maravilhas. Por nenhuma fui tão amado, não te igualou outra na generosidade, nem assim correspondeu às Minhas graças. Amas-Me muito, Minha filha, amas-Me a mais não poderes amar-Me, confia em Mim, confirma na afirmação do teu Jesus. Mas não é o bastante, quero mais, tenho sede de amor, sede devoradora.

Quero mais não de ti, porque não podes, mas por ti. É por ti que as almas se salvam, é por ti que Eu quero que elas Me amem. Pede-lhes, pede-lhes amor, pede-lhes reparação; é urgente, venha depressa esse amor, essa reparação; é preciso aplacar a justiça de Meu Eterno Pai, é preciso fazer-Me esquecer os crimes com que sou ofendido. Ai do mundo, o pobre mundo, o que o espera, o que ele vai bem depressa sofrer e gemer! Não quer ouvir-Me, não atende aos Meus pedidos. Quanto sofre com isso o Meu divino Coração!

― Ó meu querido Jesus, estou triste, humilhada e confundida. Queria prostrar-me aos Vossos Santíssimos pés para com lágrimas e verdadeiro arrependimento dos meus pecados Vos bendizer e agradecer pelos dons e graças que me tendes dispensado, sem atenderdes à minha indignidade e extrema miséria. Muito obrigada, meu Jesus. Eu queria na mesma posição receber de Vós todos os sofrimentos e de Vós implorar e obter o perdão e a misericórdia para o mundo. Não Vos posso ver sofrer nem ver as almas perderem-se. O que quereis que eu faça Jesus? Vejo que sofro tanto e tento Vos vejo sofrer! Quero sofrer eu sozinha e evitar os Vossos sofrimentos.

― Minha filha, Minha pomba branca, quando Me vires caminhar com a cruz, renova a tua oferta de vítima, repete-Me os teus actos de amor. Eu é em ti e não sozinho que caminho, sofro e levo a cruz. Estas visões que te dou é porque assim mais te levo à compaixão e posso melhor pedir-te a reparação. Leva a tua cruz, dá-Me a tua dor, o teu amor, dá-Me os combates do demónio, só eles podem reparar a gravidade de tão grandes crimes.

― Ai, meu Jesus, que medo eu tenho, aceito-os por vosso amor, velai Vós, velai sempre para eu não Vos ofender.

― Confia, confia, filhinha amada: nunca permitirei que Me ofendas. Vem receber agora a gota do Meu divino Sangue, a grande e única maravilha do Meu divino amor. Recebe, é vida; recebe, é força; recebe é amor, amor, amor!

Jesus introduziu o tubo no meu coração e sobre ele colocou o Dele; a gotinha do Sangue passou vagarosamente, foi um bálsamo para todo o sofrer do meu pobre coração. Senti-o tanto no íntimo! Aquela fortaleza e suavidade do sangue divino de Jesus fez-mo crescer tanto, não cabia no peito, respirava profundamente. Jesus passou sobre a abertura a Sua divina mão, bafejou-me repetidas vezes e disse:

― Vai para as trevas, vai para a cruz, repara, repara o coração do teu divino Esposo. Leva este conforto, leva a vida que te dou, a vida do que vives. Tem coragem! O teu Céu está perto. Eu espero os homens descuidados das coisas de Deus. Venho falar-te para confortar-te e até que eles venham. Vai, esposa Minha, vai, jardim de encantadoras flores, espalha o bem, espalha o aroma, o perfume de tão heróicas virtudes. És Minha, leva o que é Meu, vai levá-lo às almas, vai acudir ao mundo. Conto contigo. Conta com o teu Jesus.

― Obrigada, obrigada, meu doce amor. Já fugiu a luz que neste colóquio de Vós recebi. Mergulha-me na dor, mergulho-me nas trevas por Vós e pelas almas.

26 de Dezembro de 1947 – Sexta-feira

Quero amar e falar do amor de Jesus e não amo, nem tão pouco sei falar do Seu divino amor. Que ânsias insuportáveis de O amar e insuportáveis desejos de uma vida mais pura e perfeita! Que grande dor não poder nem saber amar Aquele, que tanto me ama e morreu por mim, e não ter nem saber viver aquela vida de perfeição, de que Jesus é digno que eu viva. Que horror!

Constantemente cai sobre mim como que uma chuva de maldades e de crimes. Sinto-me queimada e carbonizada dum fogo indizível de paixões. Eu sofro, ó meu Deus, e sofro tanto, sei que sofro e em quase nada se resumem os meus sofrimentos. Não sei exprimir-me, não sei falar, não sei dizer nada desta dor, que me consome; tudo se apaga, tudo morre. Ai meu Deus, que trevas tão doridas! A morte não fala, a dor vive, mas é muda, é por isso que eu não sei dizer o que sofro. Sem saber sofrer, sem saber orar e falar com o meu Jesus, esmagada com este peso, que me causa a dor, de que não sei falar, levanto muita vez os olhos para Jesus crucificado, e digo: meu Jesus, eu sofro sem saber falar da minha dor, mas Vós a compreendeis e mais ainda sabeis que é só por Vosso divino amor e por amor às almas. Que me importa a mim que ela se oculte e esconda aos olhos do mundo, se é vista por Vós, por quem é suportada e ao vê-la, a aceitais para a salvação das almas. Ó Jesus, ó Jesus, eu sou Vossa e para Vós é todo o meu viver! Mãezinha querida, querida Mãezinha, ensinai-me a amar a Jesus, amai-O por mim, mostrai que sois minha Mãe.

Tudo quanto eu digo se perde num abismo infindo. Não sei orar, não sei sofrer, não sei amar. Que pobreza sem igual! A tudo isto se juntam os sofrimentos, de que já, por vezes, tenho falado. Os meus caminhos são espinhos, os meus caminhos são de dor. E quanta maior festa no Céu, maior tormento para mim, maior dor muda e que não se fez compreender. Veio a noite de Natal; sem saber, tudo ofereci a Jesus e tudo Lhe pedi para mim e para os que me eram mais queridos e por fim para o mundo inteiro pelo qual tenho uma fome insuportável de o salvar. Para mim o que mais pedi foi amor, humildade, pureza e desprendimento de tudo. A minha prece ao Céu, mais me mergulhou no meu nada, mais vazia me deixou.

Tive uns momentos de sono; ao despertar, senti logo no meu coração o presépio; ou melhor, era eu a cabana onde tinha nascido Jesus. Tive uma visão de alma, visão bem clara; dentro de mim, Jesus nas palhinhas e ao lado S. José e a Mãezinha. Sobre Jesus Menino poisava uma luz brilhantíssima que O iluminava a Ele e a todo o presépio. Essa luz vinha duma pomba mais branca que a neve que se sustentava no ar, de asas abertas, pouco mais ou menos à altura de um metro; era um sol de fogo que saía dessa pomba; era um silêncio profundo que reinava nesta habitação. O que fazia eu? Nada. O meu amor eram umas secas palhas onde Jesus poisava, as minhas palavras nada mais representavam do que as pedras da cabana. Que dureza e ingratidão a minha para com Jesus!

Passei algumas horas neste sentimento e visão. Pouco depois da Sagrada Comunhão, uni-me de tal forma a Jesus Menino neste presépio que com Ele compartilhei, logo desde a manhã, de todo o sofrimento do Horto e do Calvário.

Vieram de encontro ao presépio todos os preparativos para a ceia, a entrega de Judas, o suor de sangue, o romper das veias, o Horto completo cheio de amargura e por fim o Calvário com a cruz. Eu sentia tudo, mas todo este sofrimento caía sobre Jesus pequenino. Foi este o meu Horto de ontem, Horto que durou todo o dia e parte ainda da noite.

Na madrugada de hoje, fui assaltada pelo demónio; foram quatro os ataques. Com aflição e bater do coração tive a impressão que por algum tempo perdi, ou quase os sentidos. Que maldade infernal! Vi-me tão entregue ao demónio! Pedi tanto a Jesus para O não ofender, mas que era sempre a Sua vítima! No último combate, quando o maldito me afirmava levar-me ao prazer veio Jesus e disse:

― Aparta-te, maldito; já tirei da vítima a reparação desejada.

Ele com uma tromba como de elefante, lambia-se de contentamento, como se tivesse conseguido de mim o que desejava. Depois, já longe, uivava desesperado. Jesus uniu ao meu o Seu Santíssimo peito, e, cheio de doçura, disse-me:

― Minha filha, alma com alma, coração com coração, amor com amor. Passo para o teu coração o bálsamo do Meu divino amor para suavizar a tua dor. Coragem! Tirei destes combates muita reparação para os grandes crimes que nesta noite se praticaram.

Esteve por algum tempo à minha frente o Sagrado Coração de Jesus, em tamanho natural; era formoso, todo Ele era doçura e amor. Quando assim me apareceu nada me disse. A Sua divina presença encheu-me, deu paz e tranquilidade à minha alma. Quando O recebi sacramentado, esqueci por muito tempo toda a luta do demónio.

A visão do presépio, a pouco e pouco, tem-se ido apagando, mas alguma coisa ainda seguiu hoje comigo os caminhos do Calvário. Senti como se me viessem abrir o peito e a ele unir a cruz, toda a tragédia dos caminhos da amargura e do Calvário. O peito fechou-se, e lá dentro ficou, unido ao presépio, todo este sofrimento que sinto ter que me acompanhar na vida e até ao momento da morte: Aqui fui crucificada, aqui agonizei com Jesus. Não sei como O pude sentir pequenino no presépio e na cruz crucificado. Neste estado de alma e união, entreguei ao Pai o meu espírito. Esperei por alguns minutos a nova vida e união com Jesus. Ele veio, pôs-me a nadar num mar de fogo, e disse-me:

― Minha filha, vem descansar, vem dormir em Mim o sono do amor, é conforto para a tua alma, é vida para a tua dor, é vida, é amor que podes e Eu quero comuniques às almas; vive, fá-las viver. Descansa, dorme, recebe de Mim toda a abundância de amor, enquanto que Eu de ti também o recebo. O Meu divino amor é para ti o bálsamo, a força do teu inigualável martírio, assim como o teu é para Mim o bálsamo para as Minhas feridas e esquecimento para tantos crimes com que sou ofendido. Tu amas-Me, tu amas-Me, confia que Me amas; tu sofres e sabes sofrer, confia em Mim. O não saberes dizer quando sofres não te entristeça, pois já disso estavas prevenida, e, de dia para dia, menos saberás dizer. Tu sofres, sabes sofrer, Eu to afirmo; ai do mundo sem o teu indizível sofrer. Se não fosse a tua dor e a reparação que nesta noite te pedi, repara em que estado vias o teu Jesus.

Tudo isto que fica dito, Jesus mo dizia com intervalo de profundo silêncio, enquanto que eu ia nadando no mesmo mar de fogo e parecia-me dormir muito unidinha a Ele. Quando Jesus assim me falava, vi-O todo retalhado, o Seu Santíssimo corpo numa só ferida, coroado de agudos espinhos, que O faziam derramar uma chuva de sangue! Compreendi que assim estaria se eu por Seu divino amor não tivesse sofrido.

― Querias, filha querida, ver neste estado, sofrendo assim o teu Jesus?

― Não, não, meu dulcíssimo amor. Quero sofrer e com alegria levar a cruz que me dais. Ensinai-me, meu divino Mestre, ensinai-me a sofrer e a esconder a minha dor para maior consolação Vossa e grande proveito para as almas. Não sofro com perfeição, tende dó de mim.

― Permito, Minha filha, que alguma coisa deixes transparecer porque disso tiro glória e assim convém para a Minha divina causa. Sabes sofrer e oh! como é grandiosíssimo o teu martírio. Assemelha-te tanto a Mim! Acabo de dar mais uma prova e uma lição de quanto a Mim te assemelhei, unindo ao presépio o Horto, o Calvário, a morte; a vida de Cristo, do nascimento à cruz. Toda a Minha vida foi cruz, toda a Minha vida trouxe em Meu divino Coração todos os sofrimentos, por que tinha de passar. Coragem, Minha filhinha, é grande e doloroso o teu martírio, mas é grande e doloroso ver o perigo em que está o mundo. Acode-lhe, brada-lhe que Me tenha a Mim. Já ouço os seus gemidos; o que será para bem breve. Ele não quer ouvir o Meu chamamento, a Minha divina voz. Sofre por ele, sofre com alegria, acode-lhe, acode às almas. Recebe a gota do Meu divino Sangue, a grande maravilha das Minhas maravilhas.

Jesus com o tubo unido ao Seu divino Coração introduziu-mo no meu, passou a gotinha do Sangue e eu senti como se um pincel molhado nele pincelasse por dentro todo o meu coração. Jesus tirou o tubo, cicatrizou a abertura com as Suas mãos divinas e disse-me:

― Vai agora com nova vida para a tua cruz, vai salvá-las. Coragem, nada temas, porque estou contigo.

Obrigada, meu Jesus. Vinde e não Vos separeis.