Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

OUTUBRO 1945

4 de Outubro de 1945

Existe a minha dor, existe o meu prolongado e indizível martírio. Sim, existe, e bem penoso. Sofro, ai quanto sofro! Mas o meu corpo, não sei se existe. Quantas vezes vivo na dor, como se não possuísse corpo; parece-me que ele foi destruído, desapareceu. E a minha vida, não sei se a tenho nem sei se a possuo. Foi para esse mundo, para essa região, que eu desconheço. E aqui estou eu sem mundo, sem céu. Que penar, que não sei explicar! Que vida, que não sei dizer! Eu anseio por uma nova vida. Rompo por entre as minhas trevas, para a possuir.

— Ó meu Deus, que profundeza e escuridão as do meu espírito! E eu sozinha, de todo sozinha, em tanta cegueira. Posso bradar vidas e séculos; posso pedir socorro à terra e ao céu; para mim não há socorro, não há ninguém. A minha cegueira a tudo deu a morte. O abandono é só para mim. Meu Jesus, quereis-me assim? Quereis que eu assim sofra? A Vós me entrego toda e inteiramente, contanto que eu não Vos perca, contanto que a perda, que eu sinto, não seja a realidade. Reinai, Jesus, reinai no mundo, reinai no meu coração, dai-me amor à cruz, dai-me força para tudo.

É a vida da minha dor que arde no inferno, que lá ouve os maiores horrores entre os maiores tormentos. É a vida da dor, porque outra não tenho. É a dor que sofre na dor. Sinto-me quase a desesperar. Quero ver e não vejo, quero viver e não vivo. Não posso convencer-me, quero abraçar essa vida que desejo. Sinto-me na mais alta montanha de trevas, e sobre mim um céu de trevas, um céu de tremenda escuridão, um céu da mais rigorosa justiça. Sinto que Jesus espreme o meu coração no meio desta montanha e deste céu. Ele espreme, espreme, mas pobre coração que não dá nada! É palha seca, que Jesus aperta na prensa das Suas divinas mãos. Sinto-me envergonhada, não ter que dar a Jesus. Sinto-me deveras aterrada, ao ver a vida da minha dor manchada, envolta no lodo mais nojento. Mas o coração em tantas horas arde, arde em vivas chamas e quer voar à procura de nova vida, da vida real, da vida que é divina. Que sede de me dar a Jesus, e que vergonha de me aproximar d’Ele!

O demónio ou demónios trabalham com canseira para conseguirem que eu ofenda o meu Jesus, que caia no desânimo, no desespero. Vêm sempre com novas formas de pecar, vergonhosas e descaradas. Que horrorosas feras, à minha frente com feias cenas, como se fossem pessoas e a fazerem-me pecar também. Tudo me leva a crer que pequei. Num grande ataque na noite passada, em que lutei aproximadamente uma hora, sempre banhada em suor e sempre na maior aflição do coração, repetidas vezes ele falava-me, parecia-me no mesmo momento morrer.

— Entrega-te a mim, entrega-te ao prazer – repetia muitas vezes o maldito. – Se queres viver alegre, se queres uma eternidade feliz, entrega-te a mim, renuncia a tudo o que é de Deus. Revolta-te contra Ele, não tem mais nada para te dar a não ser essas trevas e sofrimentos. Se queres possuir a luz, ama-me. Só amando-me, sairás dessas trevas e sofrimentos.

Fiquei triste com o medo de ter ofendido a Jesus e, sem querer, vi, vi a minha grande vida de sofrimentos. Tudo me estava presente: a data da minha primeira crucificação; sete anos passados, tudo vivi, hora a hora, momento a momento. Senti os medos, os pavores dessas horas amargas. Senti grande aflição do meu Pai espiritual nessa ocasião junto de mim. Senti as lágrimas dos meus, que vi chorar também aterrados. Se Jesus me mostrava todos este martírio de uma vez só, vencia a morte. Sem um milagre teria morrido. E tudo isto sofri na grande cegueira do meu espírito.

O demónio tudo aproveitava para os fins que desejava, que era o pecado, o desespero. A noite ia alta, e alta estava a minha dor e agonia do corpo e da alma. Jesus veio. A um gesto da Sua mão santíssima, fez cessar a luta infernal.

— Pára, não vences, a vitória é da minha vítima.

E, tomando-me nos Seus santíssimos braços, estreitou-me docemente.

— Minha filha, venho afirmar-te que não pecaste. Esta grande reparação sou eu que a exijo. Só a um coração puro a posso pedir. Quero levantar-te do teu desfalecimento, quero suavizar o peso da tua cruz.

Vi Jesus com ela em Suas mãos, e eu, liberta do seu peso, pude respirar e continuar a ouvir a doce voz de Jesus.

— Minha filha, tu és o mimo dos pecadores. Ai deles sem ti, ai deles sem a tua crucificação, dolorosa crucificação! Depois desta luta, não podia deixar-te em tão grande desfalecimento e não podia deixar passar as últimas horas deste dia ditoso do aniversário em que pela primeira vez te crucifiquei. Tem confiança. Nunca te enganaste nem enganarás. A tua crucificação é a mais real, a mais semelhante à minha. Oh! quanto te amo e quanto amo as almas! Tudo faço por elas. Vai para as tuas trevas, toma a tua cruz, leva-a alegre e por amor.

As palavras de Jesus são para mim como uma aragem que passa, luz que desaparece. A minha cruz! O meu penar! É quinta-feira, e já sinto nas mãos, nos pés e no coração como se as chagas estivessem abertas. Todos os tormentos se anteciparam. Vieram tantos veados a beberem o meu sangue, o sangue que banhou o horto. Levantei-me da terra depois de o regar com ele. O silêncio convidava ao descanso. Alguém dormia, mas eu estava como que desnorteada. Foi o cansaço, a agonia, a perda de sangue. Os olhos levantava-os ao céu. Suspiros e mais suspiros, dor e mais dor. Voltei a unir o rosto à terra nua. Voltei a orar ao Pai, mas ser ouvida e sem conforto. Levantei-me novamente, ou melhor, levantou-se Jesus dentro de mim. E a minha alma viu o Seu rosto divino cadavérico, coberto de sangue e suor e os olhos amortecidos. O que sofreu Jesus! Pobre de mim, pobre do mundo, que não compreende, continua a ofendê-Lo. Queria morrer muitas vezes para o fazer conhecer e compreender tudo isto.

5 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Não tenho forças, só vindas do céu. Se eu pudesse deixar de escrever os muitos sentimentos da minha alma, parece-me que então podia gozar alegria. Que grande sacrifício o meu! De manhãzinha e cedo, ainda descia das escadas da prisão. Que cansaço o meu! Ao fundo delas, já tropecei e caí, não podia levantar-me. Fui logo maltratada. Fui para a flagelação e para a coroação de espinhos. Não via com o sangue, que em grande abundância me corria pelo rosto. Não podia mover-me com as minhas carnes despedaçadas. Recebi a cruz. Esmagada, curvada com o seu peso, caí debaixo dela no mesmo lugar. Fez-me lembrar as minhas crucificações, senti o mesmo peso que me fazia desfalecer. Segui com ela, mas quantas vezes voltei a cair! No caminho do calvário, na grande subida para a montanha, não pude mais. Desfaleceu o corpo, desfaleceu a alma. O meu cireneu foi Jesus. Tomou Ele a cruz, e eu, a custo, atrás d’Ele, fui seguindo o Seu caminho. Eu já sentia e via tudo o que no calvário me esperava. Fui despida e crucificada. Senti, já lá vão umas horas, e ainda sinto as chagas das mãos, dos pés e do coração; causaram-me imenso sofrimento. Quando foram retalhados os vestidos, não foi em mim, mas senti como se fosse dado no coração um grande corte com a espada numa capa roxa. Não feriu o pano, mas feriu-me a mim. Vi leiloar tudo: vestidos verdes e também vermelhos ou cardinais. Os curiosos, que desciam o calvário, quando ele foi escurecido, como se já fora noite, iam aterrados. Eu senti o seu terror. Desciam timidamente a ver quando eram pela terra engolidos. Como o solo estremecia e parecia abrir-se! Meu Deus! Mas no cimo da montanha a dor era mais, infinitamente mais. Jesus crucificado dentro de mim, e de mim passavam para a Mãezinha, que estava ao pé, e d’Ela passavam para Jesus, por uns fios, como se fossem eléctricos, dor, agonia e amor. Aqueles fios prendiam os dois Corações e faziam-Nos viver um do outro. Jesus não via com os Seus santíssimos olhos o pranto da querida Mãezinha, porque os tinha ora fechados ora levantados ao céu. Mas tudo via e ouvia com os Seus ouvidos e olhares divinos. Ó triste e dolorosa agonia! Ó abandono mais aterrador! Dentro do meu peito estava o calvário, Jesus e a Mãezinha a sofrerem com sofrimento inigualável. Eu era o calvário; Jesus e a Mãezinha, n’Eles e com Eles sofria. Um mundo de misérias, de podridão e crimes esconderam-me o céu. O meu sangue tinha de apagar tudo aquilo que me cobria e revestia. Por aquele mundo tão nojento é que eu tinha de responder e por ele mesmo é que eu era abandonada pelo Eterno Pai. Bradei, mas sem ser ouvida. Vi a esponja, vi a lança. Tinha sede, estava a arder. Os meus lábios foram molhados, e o coração murmurava: não é essa a minha sede, a minha sede é das almas. Continuei a bradar no meio do abandono e da minha cegueira. Veio Jesus a dar a luz a tanta escuridão, dar a vida a tão grande morte.

— Minha filha, no fontenário do teu coração está plantada a flor fina do amor. Nasceu, cresceu, subiu à maior altura. É à sombra dela que estão as outras mais finas flores das tuas virtudes: a flor da pureza, a da caridade e todas as outras. É o amor que conserva e guarda a pureza. Oh! como tu és pura! É o amor que faz praticar a caridade. Possui-la no mais alto grau. É o amor que aceita a dor. Se não amasses, não sofrias; se não amasses, não eras crucificada. E, porque amas o meu Divino Coração e as almas, entregaste-te ao sacrifício. O amor é tudo, o amor tudo a si atrai. O fontenário da fina flor do amor está cheio de mim, das minhas riquezas. Sou eu quem cuida e rega essa flor. Possuis as minhas maravilhas, o meu perfume. E tudo isto é para as almas. Deixa que elas venham todas a ti purificarem-se, enriquecerem-se. Minha filha, minha filha, repara, consola o meu Divino Coração. O mundo peca, não cessa de me ofender. Depressa, depressa, está a ser tarde. Ele está em tanto perigo! Ecoe em toda a humanidade a voz do seu Pastor, a voz do Santo Padre. Que a sua voz se faça ouvir dum pólo ao outro. Jesus falará em seus lábios, a luz do Divino Espírito Santo o iluminará. Depressa, depressa, o momento é de perigo. Um fogo de justiça quer abrasá-lo. O seu rigor quer destruí-lo.

Via descer do alto uns fios de fogo, e com esses fios parecia o mundo a arder, as pedras estalarem, a terra abrir-se.

— Minha filha, que mais posso eu fazer para salvar o mundo? Eu não quero castigar, mas não posso mais. Esta é a justiça de meu Pai. Salva-mo, salva-mo, confiei-to. Continua a minha obra, nova redentora.

— Meu bom Jesus, como poderei salvá-lo, se ele está em tanto perigo? Salvai-o comigo, salvai-o, se ainda é tempo.

— Filhinha amada, tu és o remédio, a salvação das suas almas. É por ti, sempre por ti que elas são salvas, mesmo que o mundo seja castigado. No momento de elas expirarem, lá irás tu com a tua medicina, medicina dada por mim, medicina divina. Serás o seu conforto e guia na vida e luz na hora da morte. És toda de Jesus, és toda das almas. Vou agora, pomba querida, dar vida ao teu coração, dar-lhe umas gotas do meu divino sangue. É o sangue virginal de Cristo, é o sangue que gera as virgens. É o sangue que vai correr em tuas veias, é o sangue que perdes por amor às almas. É uma redenção contínua. Peca-se como nunca se pecou. São contínuos os crimes da humanidade. Aceita umas gotinhas apenas. Sou o médico da tua alma. É medicina divina. Enquanto a aplico, opero milagre, para conservar-te a vida. Não pode dilatar-se o coração.

Jesus uniu os nossos corações e os nossos lábios. De longe a longe deixava cair no meu uma gota do Seu sangue divino. Ao mesmo tempo com os Seus lábios acalentava-me. Senti mais vida e disse:

— Jesus, arde-me tanto o coração, mas não sinto alegria no que recebo de Vós. Estás na cruz amado, estás na cruz sofrendo, estás na cruz gozando. São gozos dolorosos.

— O fogo do teu coração é sinal da minha passagem em ti. Tem coragem! Eu não fujo. Escondo-me nas tuas trevas, nelas vejo o teu penar. Abraça, abraça a cruz. Vai para ela. Sofre alegre, contigo estou sempre.

— Obrigada, meu Jesus.

Ai de mim! Deixei Jesus, entrei logo nas minhas trevas, na minha cegueira tremenda. Sinto-me na cruz, mas oh! que madeiro! Estou presa a ela da cabeça aos pés. São inquebráveis as cadeias que me prendem. Ah! se eu nela amasse o meu Jesus!

6 de Outubro de 1945 – Primeiro sábado

Não parece sábado, não parece o dia da Mãezinha. Quantos espinhos me ferem! Quantos mundos de trevas me atormentam! O meu espírito não vê, não sossega, não descansa. Curvei-me sob o peso da cruz. Caminhar não posso. Sinto o coração destruído, oprimido pela dor. Só a morte reina. Não encontro a vida que anseio. Perdi o céu, deixei a terra. No meio desta amargura foi que me preparei e recebi Jesus esta manhã. Que ânsias tão grandes de O amar, de Lhe dar graças, de O conhecer melhor. Nada consegui. A cegueira do meu espírito nada mais deixa viver nem reinar em mim. As palavras de Jesus, o Seu conforto divino quase só valem nos momentos em que Ele vem. Pouco depois de Ele baixar às minhas dores e trevas, disse-me:

— Minha filha, tu és a vítima que maiores encantos tem, para mim e minha Bendita Mãe. És a criatura na terra mais enriquecida por nós. Eu amo-te, Ela ama-te, e com loucura e amor. Porque muito recebeste, muito nos dás. Fiz-te a entrega dos nossos corações cheios de amor e riquezas. Que ditosa é a tua vida, cheia das maiores maravilhas e prodígios! Nunca o mundo viu nem volta a ver. O meu perfume divino, o de minha Bendita Mãe, irradia em ti, espalhar-se-á pelo mundo com o perfume das tuas virtudes. Que perfume celeste! És o nosso anjo em carne. Dei-te muito, tudo te dou. Pedi-te muito, tudo te peço. Olha, pombinha amada, já que por amor a ti e da humanidade te fiz a entrega dos nossos corações, quero que repares no coração da tua querida Mãezinha. Ela é tão ofendida! É ferida gravemente, falando da Sua pureza virginal, pureza sem igual. Que pecados graves se cometem! Tiveste a graça, minha filha, de conheceres e compreenderes como estão unidos os nossos corações, na mesma dor e amor. Recebeste toda a luz do Espírito Santo e com ela tudo vês. Estão unidíssimos os nossos corações e, nesta união, compartilham a mesma dor e amor. Podes tu, virgem amada, suavizar a dor da Virgem das virgens, da Mãe celeste, da Mãe bendita. A tua virtude e pureza atraem os corações e as almas. És, como já disse, o bálsamo que as cura, a medicina delas. Repara, repara. Com os ataques violentos do demónio, que incendeia no mundo o mal da impureza, repara, repara pelos sacerdotes. Quanto sofro, quanto sou ferido por eles!

— Não sei o que hei-de fazer, meu Jesus. Eu aceito esses ataques, eu quero reparar tudo, mas o meu temor sabeis bem que é só o de Vos ofender. Não quero poupar o meu corpo, mas, sim, uma ofensa ao Vosso Coração Divino.

— Confia, minha filha, flor mimosa, confia, que estou contigo; confia que não me ofendes. És vaso de amor, és o meu instrumento de reparação, és o farol luminoso, que no centro da humanidade eu coloquei, para a salvar. És guia das almas, és o caminho que as conduz ao céu. Dá, minha filha, ao teu Paizinho o meu Divino Coração e o da minha Bendita Mãe. Dá-lhos cheios da abundância do nosso amor e da nossa graça. São prova do nosso amor a ele, tudo é para ele distribuir às almas. Dá-lhos escritos com estas letras: vitória, vitória, triunfo, triunfo. Só vence o amor de Jesus. Hoje, minha filha, diz ao teu médico que está nele o meu coração e o meu divino amor. Dá-lhe a certeza de todo o amor, de todas as graças, de toda a protecção, a ele, à esposa e filhinhos, que lhe confiei. Por ti recebeu tudo, por ti tudo receberá. Os cuidados dele por ti, não por mim; é de mim que ele cuida. Diz-lhe que não descanse, que vá com os amigos da minha divina causa contra as prisões, desprender os voos daquele que está preso, inocente e só por amor. Vou retirar-me, não esqueças as palavras do teu Jesus. Vai para a cruz, vai para a cegueira inigualável, tormento que o mundo ainda não viu. Confia, que a tua cegueira, a tua cruz são a maior glória para mim, o maior meio de salvação para as almas. Dá aos que amas a abundância das minhas graças e do meu amor. São todos por mim amados. Vai dar às almas, vai espalhar ao mundo o perfume das virtudes: é perfume de salvação. Tenho de abreviar, vou esconder-me, e depressa, para aproveitar-me do teu martírio para curar tantas chagas e feridas. Anima-te, vai em paz.

Não recebi carícias de Jesus nem da Mãezinha. Perdi logo toda a alegria da Sua companhia divina. Sinto a necessidade de correr o mundo, a animá-lo a não pecar, a vir a Jesus e à Mãezinha. Mas as trevas não me deixam. Parece-me bradar desesperada:

— Tudo perdido, tudo perdido! Jesus, aceita o meu sacrifício. Que peso tão grande, causado por ser obrigada a ditar tudo o que vai na minha alma!

Sob este ponto, levo de rasto a minha cruz. Tento desobedecer. Não sei se são coisas minhas, se do demónio.

— Perdoai-me, meu Jesus! Não quero ferir-Vos. Venci a minha maldade!

9 de Outubro de 1945

Vejo, sinto que aqui na terra nunca mais poderei ter alegria, desta alegria que nos vem das criaturas, que nos dá o mundo. A minha alegria está simplesmente, e isso basta, em aceitar e cumprir a vontade de Jesus. É a alegria da alma. Mas aceitarei eu e cumprirei com perfeição o que Jesus de mim exige?

— Ó meu Deus, nisto estão os horrores da minha alma.

Eu não quero as alegrias do mundo nem nada que a ele pertença. O que eu queria era fazer em tudo a vontade do Senhor. Sinto que nada faço; sinto que não tenho vida para O servir e amar.

Não posso suportar esta vida que em mim existe: horrores e desesperos, meu Jesus. As minhas trevas! A noite tremenda do meu espírito! Sinto-me mergulhada nos abismos infernais, como quem se mergulha de cabeça para baixo no fundo do mar.

O meu espírito é atormentado por todas as maldades do demónio, e todo meu ser por eles está revestido. Passa um dia, dia que, para a minha alma, não tem um momento de luz. Chega a noite, e eu neste estado de alma, coberta de misérias, de mãos vazias para a eternidade. E sozinha, sem ter um guia que me aproxime de Jesus. Não sinto, mas confio que, por este viver, só uma força vinda do alto pode resistir. Confesso, por mim não posso. Vejo sobre mim todas as misérias da humanidade. Sinto-me envergonhada e confundida até diante das criaturas. Como não me hei-de sentir diante de Jesus? É impossível descrever.

Na madrugadinha de ontem, vi Jesus à minha frente, prostrado por terra na atitude do horto. Não estava com o rosto pousado em terra, como costuma estar, mas sim de cabeça levantada e o rosto voltado para mim. A Sua face santíssima não era aquela desfigurada e cadavérica, como costumo ver e sentir, mas sim bela e formosa. Os Seus lábios não se abriam para me pronunciarem palavra, mas os Seus olhares convidavam-me a tomar eu aquele lugar. Esta visão não me deu o mais pequenino momento de alegria, não senti nenhuma consolação, porque aqueles olhares de tanto convite ao horto encheram-me de grande pavor. Forçada a dizer a Jesus que sim, pois sentia em mim uma força que me obrigava a não dizer que não, disse:

— Jesus, o meu coração não Vos pode ver por terra. Tomo eu o Vosso lugar, tomo-o alegremente, para não sofrerdes Vós, para só ocupardes no Vosso trono o lugar de honra, para só Vós serdes consolado. Não sois Vós Jesus, e eu a maior miséria, a mais indigna criatura Vossa? Aqui me tendes, sou a Vossa vítima.

Jesus desapareceu, e eu fiquei como se me cravassem no coração um grande punhal, que o atravessasse dum lado ao outro, punhal que ainda não saiu. De vez em quando sinto-o, ferindo-me como se lhe tocasse já com o fim de ele ferir. Esta ferida, pelo punhal causada, escorre sangue e causa-me sofrimento em todo o corpo. Parece que faz tremer o céu e a terra, quando este punhal corta e remexe o coração. Sinto-me sempre abismada nos grandes sofrimentos do horto. Sorrio, mas não sou eu. Tudo em mim é morte, tristeza e dor, trevas e abandono, perda de Jesus e desespero de inferno.

E o demónio, meu Deus, que grande consumição! Tenho sido por ele atormentada raivosamente, com tal furor que só vindo do inferno, do inferno. Num pequeno intervalo de tempo, lutei com ele por duas vezes. Sentia ter o conhecimento da ofensa a Deus, mas nada temia, dizia:

— Quero pecar, quero satisfazer meus gostos, quero-me entregue às paixões.

Momentos angustiosos, horas de grande desalento. Perdia as forças da alma e do corpo. Quando eu estava no auge do perigo, bradei:

— Jesus, valei-me. Quem sois Vós, e quem sou eu? Que será de mim sem Vós?

A luta cessou, mas fiquei por muito tempo entregue ao desejo do prazer, sem pensar na morte e na ofensa feita a Jesus. Dúvidas sobre dúvidas, dor sobre dor, e o coração sempre sequioso por dar a Jesus aquilo que não tem: o amor de que Ele é digno, as almas que tão caras Lhe são. Por nada possuir, caio com a cruz, fico debaixo do seu peso, abandonada à borda da estrada. A escuridão não deixa que eu seja vista. A morte não deixa ouvir meus brados e gemidos. Quando deixarei esta vida?

11 de Outubro de 1945

Estou cansada de tanto sofrer e envergonhada de tantos queixumes. Tenho que dizer as grandes agonias e torturas da minha alma e não tenho coragem para o fazer.

— Ó meu Deus, que cruz levada com tanta repugnância! Levo-a arrastada e forçada, não queria conduzi-la ao seu lugar. Será este tormento útil às almas? Será de glória para Vós, meu Jesus?

Tenha a utilidade que tiver, eu tenho de obedecer. Não posso falar em consolações e alegrias, pois não são esses os sentimentos da minha alma. Abro o meu coração, só a verdade quero dizer. Desconheço a alegria e a luz, a vida e o amor. Ai de mim, não tenho nada, sou a morte, a morte, que não conhece a vida; a cegueira, as trevas, que não sabem o que é a luz. Não sei o que se passa, não sei o que me espera. Estou esmagada, sinto-me a infundir na terra com o peso das humilhações; tudo o que me pertence é destruído pela dor. Não posso suportar tanto abandono, e a cegueira do meu espírito não pode vencer mais. Quero quem me guie, quero quem me acuda e não tenho ninguém.

Na manhã deste dia, quando comunguei, como não sabia dizer nada ao meu Jesus, nada de alegria e consolação para Ele, disse-Lhe:

— Meu Jesus, quero ser toda Vossa e amar-Vos tanto quanto mereceis e quereis ser por mim amado.

Tornei-me tão pequenina e tão cheia de misérias que me senti desaparecer diante de Jesus. E Ele estreitou-me fortemente ao Seu Divino Coração e disse-me:

— Já toda me pertences, já possuo de ti o amor que desejo.

Esta voz terna saiu tão do íntimo do meu coração que me tranquilizou e fez sentir por uns momentos que estava nos braços do meu Jesus, muito unidinha a Ele. Logo depois, veio a dor destruidora consumir meu corpo e alma. Não posso, ai não posso lembrar-me que é quinta-feira, que a sexta me espera. Tudo leva uma eternidade, só estes dias se aproximam. Sinto que sobre o meu corpo, da cabeça aos pés, cai uma chuva de sangue. Os mesmos ouvidos ouvem palavras, os meus olhos vêem gestos rancorosos contra mim. Os olhos, mas não os do corpo, só os da alma é que vêem tudo isto: movimento de pessoas, que caminham apressadas para um e outro lado a prepararem-me a traição, o laço para me prenderem. Sinto que tudo me foge, e eu vou ficar sozinha no horto na minha grande agonia. E o cálice da amargura é de vez em quando por Jesus oferecido ao céu. Ele é quem sofre, é quem oferece; eu sou sempre o encaixe d’Ele.

O demónio, o maldito demónio, abre sob mim um medonho inferno: estava mesmo a cair nele. Eram tantas, tantas as serpentes; eram monstros aterradores. Chegaram quase a tocar-me. Veio depois o demónio malicioso obrigar-me a ofender a Jesus. O meu corpo, o meu pobre corpo, oh! que instrumento de tantos pecados. Eu não queria pecar, mas parecia-me que todos os lugares do meu corpo eram mundos de crimes e dos mais maliciosos. Ele fingia que não era o causador de tanto mal; que era eu e só eu. E de verdade que eu sentia tanta vontade de me entregar àquela maldade! Que montão de malícias! Venci aqueles desejos, que espero não fossem meus, e bradei:

— Pecar não, pecar não. Meu Deus, a quem tanto devo! Meu Deus, a quem tanto devo, valei-me, valei-me.

Fugiu o demónio, e a dor ficou com o receio de ter pecado.

— Amo-te, amo-te, minha cruz bendita.

12 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Ao romper do dia, saí da prisão. Mas desta vez diferente das outras prisões. Sinto que saí da prisão do Coração Santíssimo de Jesus; senti que era o amor às cadeias que a Ele me prendiam. Senti que n’Ele reparei as minhas forças; cobrei ânimo e coragem para suportar as grandes amarguras, as grandes dores da alma e do corpo. A lembrança daquela prisão e amor de Jesus forçava-me a caminhar e a esquecer tanta dor.

Bem depressa veio ao meu encontro a Mãezinha das Dores. Preciso foi que Jesus me enchesse d’Ele, para A poder fitar tão dolorosa e para poder suportar mais a dor que Ela por mim sentia. Ela seguiu os meus passos de rua em rua, ou para melhor se compreender, seguia os de Jesus, que levava a cruz aos Seus ombros dentro de mim. Os olhos da alma, os olhos que possuíam os olhares de Jesus, viam-na caminhar atrás, lacrimosa e com o coração atravessado de setas e mais setas. Que dor a d’Ela! Dor, que nenhuma criatura seria capaz de suportar, não poder aproximar-se de Jesus e levantá-Lo das Suas quedas. Ela queria beijá-Lo, limpá-Lo, lavar-Lhe as feridas mesmo com as lágrimas dos Seus santíssimos olhos.

Tudo isto a minha alma viu, o coração sentiu. Foi o quadro mais doloroso e triste, que o mundo pode observar.

— Ó meu Jesus, eu pensar que tudo isto foi por amor da minha alma, e eu que tão mal correspondo, nada sofro com perfeição!

A Mãezinha viu o sangue de Jesus, que Ele derramava em grande abundância pelos caminhos do calvário. A esse sangue misturava Ele as Suas lágrimas. Custa-me tanto sentir que Jesus e a Mãezinha sofrem tanto! Eu vou com Ele. Ele leva a cruz. O sangue corre, é d’Ele, não é meu. Contudo, sinto-me apavorada. Os sofrimentos do calvário são como balas de chumbo e de um e outro lado a desfazerem-me e a despedaçarem o meu corpo. Sinto que todo o mundo cai sobre mim com todas as maldades e barbaridades. Não vejo ninguém, mas sinto que todos os da pobre humanidade maltratam o meu corpo. Com este medo pavoroso fui obrigada a chamar alguém para junto de mim. Não podia estar sozinha.

— Meu Deus, tanta dor e tantas trevas!

Fui no calvário tão apressada e bruscamente! Os olhos com o sangue não podiam abrir-se, mas a vergonha obrigava a conservá-los mais profundamente fechados. Ser despida em público! Senti logo que a Mãezinha queria com o Seu manto cobrir Jesus, revestido em mim. E, como não Lhe foi permitido, as espadas, que Lhe atravessavam o Coração, feriram-Na ainda mais. Eu estava presa à cruz, e a cruz ao calvário. Sentia em mim duas vidas: uma, que não resistia a tanta dor; outra, que tudo vencia. Ou fossem duas naturezas. O coração ia perdendo a vida, e no meio de tanto abandono e tão dolorosa agonia bradava:

— Jesus, Jesus, valei-me.

Disse isto por grande espaço de tempo. Jesus não se apressou, veio devagarinho. Quando veio, disse-me:

— O calvário e a cruz são a moeda de mais alto preço para comprar as almas. É a moeda real, é sangue derramado, é o que há de mais caro. Minha filha, minha filha, criei-te para dares vidas, muitas vidas, ó rainha do mundo, mãe dos pecadores e guia e salvação. Dá-me as almas, dá-me as almas. Consolo-me, esposa amada, consolo-me, avezinha branca e pura, de ver e ouvir bater as tuas asas de arminho, à procura de nova vida. Voas, voas, minha avezinha celeste, voas sem descanso, voas sem parar e não encontras ou desconheces essa vida, que desejas. É a vida que tens, é a vida que vives, vida que não compreendes, vida que te prepara a verdadeira vida, a pátria celeste. Só lá compreenderás a vida que agora te faço viver. Deixa-me beber na tua fonte, deixa-me saciar a minha sede, deixa-me esquecer em ti as minhas mágoas. É para mim fonte de alegria, consolação e reparação e para o mundo fonte de purificação e salvação; é medicina divina, que neste fontenário preparei para as almas. Deixa-me beber, ó pastorinha divina. Divina, porque foste enriquecida; divina, porque possuis toda a riqueza que é divina.

Ouvia Jesus a beber como quem está sequioso, que não acaba de saciar-se. E com os olhos da alma via um numeroso rebanho beber também. A fonte dava para tudo.

— Bebei, Jesus, e fazei que todos bebam. Vós bebeis do que é Vosso, e as almas bebem o que Vosso é. Por isso podem ser salvas.

Jesus deixou de sorrir como sorria, quando dizia consolar-Se ao ouvir bater as asinhas brancas. Agora estava triste, muito triste. E continuou.

— Em que perigo está o mundo! Em que grande perigo estão as almas! Em que grande perigo está Portugal! Depressa, depressa, a humanidade inteira a ouvir a voz do seu pastor, a voz do Santo Padre, que é a voz de Jesus. Escuta, ó mundo, a sua voz, como trombeta que alguma coisa vem anunciar. Oração, oração e penitência, se não queres ser carbonizada, pastorinha, minha pastorinha. Guia ao meu Divino Coração o meu rebanho.

— O que quereis que eu faça, meu Jesus?

— O que até aqui tens feito, esposa querida. Coragem! A tua morte é vida, as tuas trevas são luz, por cada gota do teu sangue perdido. Perdido, porque sentes a falta, mas não perdido, porque dás a vida e a salvação. São salvas centenas, milhares e milhares de almas. Vê que riqueza! Alegra-te e tem coragem! É o teu sangue, transformado no meu, e o meu no teu; é uma transformação divina. És a nova redentora, derrama-o em vez de mim, já que eu agora não posso.

— Tudo, tudo, meu Jesus, é tudo por Vosso amor. Aceitai-me o sacrifício. Só por Vós pode ser avaliado e conhecido.

— Sossega, sossega, meu encanto, minha loucura. São sacrifícios, é a reparação o que te peço. Só de pureza se pode tirar pureza. Os anjos louvam-me, não pecam; os anjos amam e guiam para mim as minhas almas. Tu és o meu anjo em carne. Vou para o meu esconderijo, mas mais que nunca estou em ti. Quero deixar-te quase por completo ou fingir deixar-te para mais depressa te levar para mim, mas não o faço sem que tenhas junto quem ocupe o meu lugar, nem que te ampare aquele que te escolhi. Será um amparo e não luz, será um conforto e não alegria. É por mim tudo, é pelas almas. Que dias, que fim da vida doloroso te espera! Mas que morte de amor, que grande glória, poder sobre as almas lá na pátria celeste te esperam também.

— Obrigada, meu Jesus. Meu Deus, com quem se passou tudo isto?

Em tão poucos momentos tudo esqueci. Só vejo as minhas trevas e sinto a minha dor. Não vejo nada do céu, não sinto nada de Jesus. Sou miséria, mas oh! que tremenda miséria.

16 de Outubro de 1945

Não sei sofrer, não sei viver esta vida que Jesus me dá. Não posso compreender: passando eu o dia e a noite, o mais que me é possível, unida a Jesus, chegue ao fim do dia, chegue ao fim da noite de mãos vazias e numa morte total de todas as coisas. Chego ao fim do dia e da noite como se não vivesse e nunca me lembrasse de Jesus, sem nada fazer por Ele, pelo meu próximo, pelas almas. Que vida triste, embora a finja alegre! Parece-me enganar a mim mesma, enganar a todos. Mudou-se o cenário das minhas trevas: até agora infundia-me nelas, nelas caminhava, mas sempre em terreno duro. Agora, ó meu Jesus, são mares universos delas, mas mares sem fundos, e eu sem saber nadar. Aprofundo-me nelas, queira não queira, mas tenho que caminhar sempre, sempre para a frente. Vou mergulhando, mergulhando como peixe que não pode nadar e como avezinha sem voos que ao chão tem de vir cair.

Caminho nesta horrorosa escuridão de espírito, como criancinha tímida que não pode nem sabe andar. No meio deste sofrimento, veio repetidas vezes a Mãezinha ao meu encontro. Umas vezes, a Mãezinha do Carmo com o Menino Jesus ao colo, de bracinhos abertos, virado para mim; outras vezes, sozinha, sendo a Imaculada Conceição. Duma vez, tanto a Mãezinha como Jesus pareciam feitos de ouro luzente. Que formosura! E sempre cheios de luz. Só esta luz do céu me podia iluminar em tanta cegueira. Estas visões nunca foram demoradas nem me falaram. Naqueles momentos, ficava apenas como a criancinha que, estando assustada, ao ver sua mãe, lhe estende os braços e já não teme.

— Ó meu Deus, eu nada temia, mas só naqueles momentos.

Bem depressa me senti curvada e caída sob o peso da minha cruz. Mas logo sentia que Jesus a tomava em Seus ombros e caminhava com ela. Isto, para maior vergonha e confusão minha.

— Ó meu Jesus, se havia de ser eu que sofria, por Vosso amor, sois Vós que continuais ainda a sofrer por mim. Compadecei-Vos da minha miséria e não permitais que a perda que sinto de Vós seja a realidade. Sede a luz do meu espírito, pois bem sabeis que outra não tenho.

Veio, nesta noite, o demónio, mas veio tão disfarçado! Assim é que ele podia provar-me que só eu, e não ele, era causa de tanto pecado. Não quero pensar em tantas maldades dele.

— Eu não te toco. Para que fazes tu isso? Pecas tu só e queres pecar.

— Meu Deus, em que aflição eu me vi. Não podia mais. Estava toda entregue àquela vontade infernal. Não queria pecar e sentia não querer deixar o pecado. Quando pude chamar pelo nome de Jesus e da Mãezinha, parecia-me que Os invocava só com os lábios e que nada me saía do coração. Quando a luta terminou, sentia ter pena por ter terminado para satisfação dos meus maus desejos. E sentia-me tão presa ao pecado que não podia sair dele. E sentia que aquela maldade era causa de muitas e muitas mortes, muitas vidas perdidas, da alma e do corpo. Que horrores, que desordens eu sentia na minha alma! Que rancores de morte! Parecia-me que de mim, pedra de tantas maldades e tão grandes escândalos, saíam espadas que iam ferir e matar. E, depois disto, depois de tantas maldades, não ter um guia, não ter uma luz. Poderá ser, sair livre de pecado?

— Confio, Jesus, confio.

18 de Outubro de 1945

Deixei cair dos ombros a minha cruz e caí também desfalecida, não capaz de poder levantar-me. E não me atrevo a levantar os olhos ao céu. E para quê, se não vejo? Cegou o meu espírito, e sinto como se cegassem também os olhos do meu corpo. A minha cegueira só vê morte e miséria por toda a humanidade. E toda esta humanidade eu vejo representada dentro de mim. Apavoro-me ao vê-la. O meu coração sente, e os meus ouvidos ouvem o eco estrondoso de trovões destruidores, e os olhos da alma vêem o relampejar faiscante de nuvens negras, que caem do alto, saídas das mãos do Eterno Pai. É justiça, é justiça divina. Jesus vem aflitivo ao meu coração, tira dele um cálice amargurado, transforma-o, junta-o ao d’Ele e oferece-o ao Seu Pai. Mas Ele já não quer aceitar. Vejo-O a desviar d’Ele Seus olhares e a Sua santa face. O quadro é tristíssimo. Que amargura a de Jesus! Ai pobre de mim! Tudo isto me leva ao abatimento. Jesus quer acudir ao mundo e já não pode. Vem a mim buscar a minha dor. Sinto-O a levar das minhas veias todo o sangue para, assim unidos, satisfazer Seu Pai, e nada consegue.

— Ó meu Deus, ó meu Deus, o que posso eu fazer por esta pobre humanidade?

O meu corpo está como o linho no sedeiro: está dilacerado, dilacerado. O meu sedeiro são espinhos, posso dizê-lo, por vezes insuportáveis. Se Jesus não se apressa a terminar os meus dias, só se for Ele. Eu, por mim, não resisto a este martírio, não venço tanta cegueira. Estou esgotada de tanto me infundir nos mares das minhas trevas, sem saber nadar. Tenho de caminhar. E é por esta cegueira que hoje mesmo tenho de chegar ao horto. Eu já o vejo, é para mim. Vejo-o, porque é de dor, é de amargura. E a minha cegueira mostra-me tudo o que é dor. Por detrás de mim já fica a cidade, cidade de crueldades, cidade de ingratidões. À frente o horto, ao lado o calvário, onde hei-de dar a minha vida.

— Ó horto, cheio de agonia! Ó horto, cheio de tristeza. Ó gruta, onde vou orar. Ó solo, onde vou prostrar-me.

A alma tudo vê e tudo sente. Sente já o rasgar das veias deste corpo. Vê a terra, que vai beber o sangue; sente a dor do beijo ingrato, que este rosto vai levar. Ai, ai, ai o que é a dor! O que são os sofrimentos do horto! O mundo não os conhece, não sabe o que sofreu Jesus. Mas eu sinto-O sofredor dentro de mim. É em mim que a Sua sagrada paixão é renovada. Que mistura num só corpo! Jesus e eu, eu e Jesus. Eu queria poder desenhar num painel os sofrimentos de Jesus, que sinto na minha alma, e poder gravá-lo em todos os corações, para eles sentirem e compreenderem o que sofreu Jesus, para não pecarem mais, para não mais O ofenderem, para só O amarem, para só o amor divino ser o fogo de todos os corações, de toda a humanidade.

— Ó meu Deus, eu queria salvá-la. Meu Jesus, sou vítima dela. Ó meu Jesus, procurai, a ver se encontrais mais alguma coisa que eu Vos possa dar.

19 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Quando, nesta manhã, fazia a minha preparação para a vinda de Jesus, o primeiro sentimento mais doloroso da minha alma foi ver e sentir dentro do meu peito Jesus coroado com agudos espinhos. Apesar da minha cegueira assustadora, eu vi o Seu rosto divino banhado em sangue e a cabeça coberta de medonhos espinhos, que bem profundo a penetraram. Neste sentimento doloroso, recebi Jesus e percorri o calvário. De um lado e do outro surgiam espinhos dispersos, que vinham ferir-me até ao mais íntimo. Os meus lábios cerrados nada diziam. Só um Deus, só a Sua força divina podia vencer em mim.

Chegou o calvário, aquele calvário tão doloroso e triste. Ao ser crucificada na cruz, senti as marteladas e vi os braços, que cruelmente se levantavam com o martelo na mão, para de novo e com mais fúria o deixarem cair. Vi as línguas blasfemadoras, que blasfemavam contra mim. O coração sentia tudo aquilo; a dor era dolorosíssima. E, dentro do meu peito, estava o mundo, o mundo mais duro que um rochedo. Nenhum sofrimento sensibilizava, nem o sangue de Jesus amolecia tal dureza.

Veio ao encontro destes sofrimentos o demónio. Assaltou-me em forma de homem. Quando o pressenti, quis apertar o crucifixo e a Mãezinha, mas já não podia. Nos sofrimentos da manhã, não tinha sentido a prisão e vim a senti-la na cruz e presa pelo demónio. Queria levantar os olhos ao Sagrado Coração de Jesus e não fui capaz. A cegueira do meu espírito não me deixou ver, e também o maldito não me deixou abrir os olhos. Parecia-me estar completamente presa por ele. Nos momentos que foram de maior angústia, soltou-se-me a língua.

— Ó meu Deus, que medo de pecar! Ó luta, ó luta infernal. Ó Jesus, venha já o inferno, se Vos hei-de ofender.

Fiquei na dúvida, dolorosa dúvida de ter pecado. E continuei na cruz. Nos meus olhos e no meu rosto estavam os olhos e o rosto de Jesus. Lágrimas de sangue rolavam por ele. Vi descer o Eterno Pai, todo envolvido numa grande nuvem. Fora dela vi a Sua face e um braço levantado ao alto com uma enorme foice; descarregava-a sobre mim com raios de fogo faiscante. As minhas trevas não me deixavam ver o céu nem sentir que o meu brado de agonia ia ter a ele. Ele estava próximo de mim, para descarregar a Sua justiça, mas estava longe, longe, para ouvir o meu brado e ter de mim compaixão. Quando Lhe bradava, Ele voltava para o lado a face e não Se dava por satisfeito, descarregando mais a Sua foice de justiça. As lágrimas de sangue continuavam, e eu não podia resistir mais a tanta dor e agonia. Eu assim esperei por Jesus, que não se apressou. Quando veio, disse-me:

— Dá-me, minha filha, toda a tua sede de amor, que eu dou-te toda a minha sede das almas. Dá-me a tua dor e cegueira de espírito, que eu dou-te a minha luz, sem que a vejas. São trevas e dor, que dão a vida. Dá-me tudo, tudo quero transformar em mim, para oferecer ao meu Eterno Pai. O que te fiz sofrer, eu o sofri também. A reparação, que Ele de ti exige, de mim exigiu também. És a nossa vítima amada. Repara, repara agora tu, já que eu não posso. Em que perigo está o mundo! Olha como as almas nadam nesse mar, nesse universo de misérias.

— Ó meu Deus, o que eu vi de almas, nadando loucas, sujas, nojentas, enlameadas. Era um mar de podridão.

— Minha filha, esse mundo pertence-te. Tem coragem! Não são inúteis os teus sofrimentos. As tuas trevas, o teu calvário, a tua imolação sem igual são para elas motivo de salvação. Tem coragem, chaveira do meu coração divino e do de minha Bendita Mãe, depositária e senhora deles. Entra, entra com a humanidade, guarda-a nestes Corações, que são de amor.

— Entro, entro, meu Jesus, com todos os que me são queridos. Devo-lhes tanto! Entro com todos os meus, entro com o mundo inteiro. Quero salvar a todos.

— Coragem, flor de amor, que o meu coração adorna. Flor de pureza, flor de caridade, que sempre o asseia. Coragem, rainha das flores, rainha das rainhas. Acabaram para ti as minhas consolações. Acabou para ti a minha luz e tudo o que é gozo. É para salvares o mundo. Ao ser conhecida a tua vida, os meus prodígios, as minas maravilhas em ti, o poder que tens sobre os pecadores, muitos dos que têm feito sofrer hão-de sentir remorsos quase desesperadores. És a vítima das vítimas, a alegria dos meus olhos, o amor do meu amor.

— Eu sinto-me humilhada e confundida!

— Escuta o que te digo. Não te tenho dito que nas tuas misérias é que eu me escondo? Não posso fazer nas almas o que quero e como quero?

Jesus disse-me estas palavras em tom de quem ralha e ralha seriamente. Fiquei logo tímida. E Jesus, sorrindo, disse-me:

— Queres ouvir meus ralhos, e a sensibilidade do teu coração não aguenta com nada. Olha a criancinha tímida diante de seu pai… Alegra-te, não temas. Não te ralho, porque sofres como eu quero; amas-me como eu desejo. É por isso que saem dos meus lábios as palavras mais encantadoras. És minha e és das almas. Não temas a tua cegueira, a tua vida sofredora. Tudo vai a caminho do seu fim, venho em breve. Recebe agora três gotas do meu divino sangue em honra das três horas da minha agonia. Recebe-o antes que percas todo o sangue tens em tuas veias. Quero sempre esta mistura: o sangue da vítima deste calvário, da maior vítima da humanidade com o sangue da vítima do gólgota, de Cristo Redentor. Assim tens todo o poder e tudo vencerás. O céu é teu. A tua morte sem luz será de amor.

Jesus tomou em Suas mãos o Coração, introduziu-o no meu e, como quem aperta uma mola, deixou-me cair três gotas do Seu sangue divino. Depois disto beijou-me, acariciou-me, estreitou-me ao Seu peito santíssimo e disse-me:

— Descansa aqui por um pouco, toma conforto, minha pomba amada, para continuares depois o teu sofrimento inigualável de levares ao termo final a tua cruz. Descansa sem as minhas alegrias e consolações. E vai depois pedir ao mundo oração e penitência.

Descansei encostada a Jesus, como quem descansa fatigada à sombra de uma árvore. Não sentia alegria nem sentia dor. Estava como quem dormia. Momentos depois, senti-me sem Jesus, e continuou a dor. Ele não se demorou como de costume, apressou a visita. Veio logo a minha cruz, e, até ao terminar deste dia, das coisas mais pequeninas às de maior importância, nas quais devia sentir alegria, tudo foi tristeza profunda e o navegar da minha cegueira. Bendito seja Jesus! Sou a Sua vítima.

23 de Outubro de 1945

Tenho medo, muito medo. Oh que medo!

— Meu Jesus, meu Amor, vede como estou apavorada. Quero fugir do mundo, quero esconder-me. A vida que possuo aterra-me.

É vida de dor, é vida de cegueira. Mas oh que cegueira! Não vejo os caminhos que me levam a Jesus; não vejo o amor d’Ele, de que tenho imensa pena. Em todas as coisas sinto e vejo perdê-Lo e em nada aproximar-me d’Ele. Quero ir ao Seu Santíssimo Coração e não posso. Morro por saciar-me n’Ele e não consigo. Sou ceguinha e sempre mergulhada na mais triste cegueira. Quero dar almas a Jesus, sinto que Ele as quer e está louquinho por elas. Sinto que Ele anda como um mendigo a mendigar.

— Meu Deus, que dor a minha!

Com esta cegueira não consigo apanhar uma alma para Jesus. E com os olhos da alma vejo-os a fugir d’Ele, loucas para o pecado. Sinto que Jesus chora em meu coração, e a minha alma vê-O nele de mãos estendidas a pedir-me para eu Lhe dar as almas, que com tanta amargura Ele vê fugir, e para O deixar saciar no meu coração.

Pobre de mim! Sinto que Jesus não pode beber. Está seca, sequíssima, esta fonte. Não Lhe dou o amor que Ele deseja, não Lhe dou nenhum, não o tenho, não o tenho. Não Lhe dou as almas, por quem Ele suspira; não sou capaz de as prender. Ai a minha cegueira! Ai a minha morte! A minha perda de Jesus e os grandes horrores do inferno!

— Ó vida, como suportar-te! Ó dor, como vencer-te! Ó Jesus, ó céu, vinde a mim.

Sinto grandes tentações contra a fé. Por vezes parece-me não acreditar na vida de Jesus, nas Suas coisas, nas Suas grandezas, maravilhas e prodígios.

— Meu Deus, parece-me que nada é verdadeiro. Tende dó de mim, quero confiar e confiar cegamente.

Parece-me que não estou no mundo, que desapareci dele para tudo, que só nele ficou a minha dor, a minha cegueira, a minha miséria com uma vergonha sem fim. O susto de ver junto de mim todos os que me são queridos. Tenho medo. Se eu pudesse esconder-me de todos! É noite, nunca mais é dia para mim. Nunca mais neste mundo poderei ter um momento de alegria.

— Perdoai-me, Jesus, os meus desabafos. Alegro-me em sofrer por Vosso amor, sem possuir esse amor.

O demónio consome-me o meu espírito e rodeia-me de várias formas: em forma de cães e feras raivosas, com cena feiíssimas à minha frente. Outras vezes, para prenderem-me mais a eles, vêm em forma de cães festeiros, engraçados, mas com olhares maliciosos e enganadores. Cansam-me tanto estas coisas. Tive um ataque tão violento com este maldito! Fez-me lembrar a morte. O coração quase que estalava, e me rebentava o peito: era um palpitar demasiado. O suor banhava-me o corpo. E eu, entregue àquelas maldades, que ele dizia serem só minhas, não me esforçava por chamar Jesus. Só no momento do transe, quando o fogo parecia queimar-me tudo, bradei:

— Jesus, Mãezinha, pecar não, pecar não. Valei-me.

Fiquei libertada. Foi de noite a luta e noite quase sem dormir e sempre unida a Jesus. Mas, depois de tão tremendo combate, tinha vergonha de me unir a Ele e de com Ele viver nas Suas prisões de amor. Ai com que humilhação eu me preparei para O receber! Depois da comunhão, que me pareceu ser sem fervor nem amor, recebi de Jesus a graça de me fazer desaparecer esta vergonha e esquecer que tinha tido tão grande combate. Fiquei na cruz, ferida com espinhos variados.

— Bendita cruz! Bendito Jesus!

25 de Outubro de 1945

Sofri e não soube sofrer. Não me aproveitei do sofrimento. Vivi e não soube viver. Não compreendi a minha vida, não foi minha. Senti o meu corpo todo esfacelado pela dor, todo ferido de espinhos, parecendo-me ficar com a alma num banho de sangue, só sangue. Mas nada disto me aproveitou. Fora do céu, fora do mundo, vivi nessa região desconhecida, mas mesmo nela despida de tudo, envergonhada e confundida. A minha alma queria gritar, mas estes gritos, que sinto em mim, são gritos desesperadores.

— Não venço, Jesus, não venço. Tende dó de mim. Ai quem me acode em tão grande dor! Eu tenho medo e sede de Vós. Eu tenho vergonha, mas ânsias ardentes de Vos possuir eternamente. Já não posso estar aqui por mais tempo, Jesus. O céu, o céu! Oh quando chegará o céu! Quero ir, Jesus, quero voar, mas temo comparecer, temo dar-Vos as minhas contas.

Vejo um mundo de vergonhosas misérias sobre mim, pelas quais eu tenho de responder. Não posso caminhar, não sei nadar, afogo-me nas minhas trevas, nesta cegueira de espírito. Ouço os gemidos do inferno, sinto-me neles.

— Perder-Vos para sempre, Jesus! Mas mesmo lá queria ver-Vos, queria abraçar-Vos e não posso. Oh que desespero!

Sinto que a verdadeira morte, a que eu quero chamar vida, se aproxima. Sinto que espadas de fogo, espadas de amor vêm dar-me esses cortes no momento derradeiro. Estas espadas vêm de Jesus. Este amor d’Ele vem também. Este último momento, causado por essas espadas, será de amor. Mas não é meu, não vem para mim este amor. A ele se uniram as minhas trevas, trevas que me assustam, cegueira que me mata. Esta cegueira tudo esconde e tudo parece afastar de mim.

O demónio, meu Deus, o maldito demónio, quer vencer-me, quer obrigar-me ao mal.

Que lutas tão tristes e tão perigosas! Ele quer que eu diga, nos momentos mais graves, que eu quero pecar, que não me importa de ofender a Jesus. Desprendeu-se-me a língua e eu disse:

— Sou a Vossa vítima, meu Jesus. Não, não quero pecar.

Mas, por muito tempo, fiquei a sentir grandes desejos de pecar e estava entregue à vontade do demónio. Quando ele ouvia a minha oferta de vítima a Jesus, enchia-se de raiva e queria assaltar-me e despedaçar-me. Não há nada mais triste do que parecer e sentir que se ofende a Jesus e não querer ofendê-Lo. É um espinho que penetra sempre, uma espada que sempre corta.

— Ai, meu Jesus, e eu sem conforto e sem luz. Parece-me que sou ferida por todos e por todos abandonada.

Sinto na minha alma os preparativos para a grande ceia, para a ceia do amor. Sinto que Jesus vai dando aos Seus as Suas ordens e, parando, de passos a passos, olha com os Seus olhares divinos a cidade ingrata, o horto de tanta amargura, o calvário que O espera. Tudo isto está representado dentro de mim. E toda a dor de Jesus se faz sentir em minha alma. Que olhares tão ternos, que palavras tão doces Ele tem para aqueles que O atraiçoam e O vão prender! Já vejo o sangue de Jesus, que vai correr no horto, o cálice da amargura, que ao Eterno Pai se vai levantar. E o anjo, que vai descer para conforto do seu Rei. Jesus sofre comigo, e eu com Ele. Sinto que é das minhas veias que o sangue vai sair, e que sou eu com Ele quem todo o sofrimento do horto vai aguentar. O mundo não sabe quanto sofre a minha alma, mas é por ele que eu sofro e por amor de Jesus. Quero sofrer e sofrer sempre para Lhe dar glória e salvar-Lhe as almas.

26 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Esta noite, juntaram-se dois hortos ao mesmo tempo. Não o esperava. Parecia-me que o que era permitido por Jesus bastava. Mas não, veio outro causado pelas criaturas.

Como resisto a tanto sofrimento e à compreensão de tudo? Não sou eu que resisto, é Ele em mim, e isso basta para aumento da minha cruz. Sofrer Jesus! Não posso com esta dor. Queria que Ele vencesse comigo, mas não sofresse. Sinto-me tão esmagada, tão desfeita com o peso dos sofrimentos, como Satanás debaixo do santíssimo pé e poder da Mãezinha. Logo de manhã, tomei a cruz, não a coloquei eu, mas senti que ma colocaram aos meus ombros, e caminhei para o calvário. Que gritos e algazarras de escárnio atrás de mim! Era um eco só. A minha cabeça era uma só ferida. Parecia um só espinho. O meu corpo senti-o como um esqueleto sem carnes e tão desfalecido, como se nele já não houvesse uma única gota de sangue. A dor da chaga do ombro tirava toda a vida ao coração. A força que resistiu, a vida que viveu, foi a força e a vida de Jesus. Oh! como eu O senti também, como Ele estava bem gravado em meu coração e em minha alma! Ai, como a Sua santíssima paixão é renovada tão repetidas vezes! O Seu santíssimo pescoço e cinta tinham regos profundos, em ferida, causados pelas cordas, e sem haver das criaturas um acto de amor e compaixão. Houve e há ingratidão, só ingratidão. Caminhei sempre, mas sempre numa cegueira mortal. Se houvesse milhões de mundos, com este sentir da minha alma eu poderia dizer:

— Todos estes mundos são trevas e habitados por trevas. Ó morte, ó tremenda morte! Ó cegueira de espírito, ó aterradora cegueira!

Despedaça-se de dor a minha pobre alma. Não vem do alto uma luz, não vem do céu um conforto.

— Meu Deus, meu Deus, se é assim, como poderei recebê-lo das criaturas? Ó amor vencedor da dor e da morte! Se tu fosses meu, se me pertencesses!...

Estava na cruz. Parecia-me que de cada cabelo da minha cabeça caíam bastas gotas de sangue, mas sentia que o meu corpo já não tinha nenhum. Parecia-me que de um e outro lado de toda a humanidade atiravam para ele pedradas, escarros e tudo quanto podia causar dor. E eu sempre na cruz, em tanto abandono e cegueira. Senti e vi com os olhos da alma aquela nuvem, que vi há oito dias com o Eterno Pai. Não O vi a Ele, vi só por fora da nuvem à espécie de forcas, guilhos e instrumentos de suplício. Tudo isto saía das mãos do Eterno Pai. A nuvem era mais carregada e feia e estava mais baixa ainda do que da outra vez. Tudo isto descarregava sobre mim. Era assustador. Em tamanho abandono, esmagada por tão grande peso, bradava ao céu, mas o brado não era ouvido, passava ao lado da nuvem, e eu sentia que o Eterno Pai mais Se escondia e virava para o lado a Sua divina face. Veio então Jesus.

— Minha filha, o Eterno Pai já não é o mesmo que até agora, já subiu à Sua glória, não descarrega neste momentos sobre ti e sobre mim, que estava em ti, o peso da Sua justiça. Voltarás a senti-Lo logo que voltares à tua cruz.

Vi então no alto essa nuvem muito branca e formosa, e nela, cheio de luz, o Eterno Pai. Que grande transformação! Jesus continuou.

— Ele descarrega sobre ti a Sua justiça, porque és a Sua vítima. Há oito dias, viste-Lo, mostrando a Sua justiça, mas convidando e chamando ao mesmo tempo: era convite e chamamento de quem quer salvar. Hoje, desceu mais perto com o Seu peso vingador. Os instrumentos que viste são instrumentos supliciosos para o mundo, se ele não se converter. Desceu mais perto, porque mais perto está a hora. Escondeu-Se, para mostrar que todo aquele que se envergonhar de nós que também nós nos envergonhamos dele.

— Ó meu Jesus, então o mundo não vai ser salvo? Não valem nada os meus sofrimentos? Que mais posso fazer, meu Jesus?

— Sossega, sossega, filhinha. Se o mundo não se vencer pelo amor, há-de salvar-se pela dor e pelos pavores horrorosos dos suplícios. Tem coragem! O que eu quero são as almas. Ele é teu, confiei-to, e por ti será salvo. Tu és a maior vítima, a vítima mais querida e amada do meu Divino Coração e da minha Bendita Mãe. Quero que sofras, necessito que sofras, mas fito-te, contempla-te todo o céu com paixão. Penitência, penitência, oração, oração. O teu sangue, vítima querida, flor mais pura do meu jardim, vai dar um mundo novo, um mundo de pureza. Coragem, coragem, estrela luzente! A rainha fiel ao seu Rei, que sofre por vê-Lo ofendido, sofre por ver perder-se o povo do seu reinado. O teu Rei sou eu, o teu povo, o teu reinado é o mundo. A mãe, que dá a vida a seus filhos, dá-lha pela dor. Tu, a quem elegi mãe da humanidade, é pela dor inigualável que a salvarás. Tudo te fere, muitos te ferem? Alegra-te, é a dor a moeda das almas. É a dor e sangue o preço do resgate. Tu és a porta-voz de Jesus para o Santo Padre. Tu és o eco da voz e desejos de Jesus para toda a humanidade. Penitência, oração, e sem demora.

— Jesus, prometeis-me então pelos meus sofrimentos as almas?

— Sim, minha filha, dei-tas para mas dares. És poderosa, é poderosa a tua dor, poderoso é o teu sangue. És a semente de nova geração, és o bálsamo e salvação das almas. Anima-te, tem coragem um pouco mais. O teu sofrimento chega ao auge, assim como a cegueira do teu espírito. É sinal de proximidade do teu céu. Será tal a tua cegueira que deixarás de saber dizer quanto sofre a tua alma. Dispenso-te então de escrever. Apenas uma coisa ou outra saberás dizer por alto ao teu director. As espadas de amor, que sentiste ferir-te, serão a tua morte. Será aquele amor que te arrebata ao céu. Mas nesse momento a tua cegueira não te permitirá vê-lo nem senti-lo. Vai para a tua cruz, que te espera. Desta vez não demoro tantos dias a vir confortar-te. Necessitas. Recebe por último um estreitado abraço.

Jesus apertou-me contra o Seu Divino Coração. Fez isto com tanta lesteza, mostrava estar com pressa. Fiquei logo na cruz a sofrer, por me parecer que Jesus se queria retirar de mim. Sinto-me tão longe d’Ele e tão sobrecarregada pela justiça divina.

— Bendita seja tão pesada cruz! Sou a Vossa vítima, sempre, sempre, Jesus.

29 de Outubro de 1945

— Ouvi, Senhor, a minha voz. Ouvi o meu clamor.

O meu coração não pode resistir a tanta dor. Aterra-me a minha cegueira, aterra-me o abandono em que estou e a minha vida, que me parece só enganos, só de enganos. Tomo a cruz, mas é tal o desfalecimento que a não sustento, caio para um lado e deixo-a cair para o outro. Há dias, Jesus me dizia:

— Vai para a tua cruz que te espera.

Pensei ser a mesma, que deixei para falar com Jesus, mas não. Aumentou o seu peso e não sei como aguentar. Parece-me desfazer debaixo dela. Que tremenda é a minha amargura! Queria fugir dos olhares de toda a gente, amigos e inimigos, se os tenho, mas mais ainda dos amigos. Fugiu a luz, escondeu-se, e com ela escondeu-se e fugiu a minha alegria. Nunca mais a poderei ter na terra. Os meus sorrisos são forçados, até esses são enganadores. São arrancados do meio das mais dolorosas dores, agonias e trevas mais profundas.

— Que fazer a isto, meu Jesus? Como aguentar, querida Mãezinha, sem o auxílio do céu? Mas esse mesmo fechou-se, escondeu-se, não chegam cá abaixo os Vossos olhares, os Vossos sorrisos.

Morreu o céu, morreu Jesus, morreu a Mãezinha, morreu tudo o que é vida, morreu tudo o que é amor. Só as maldades me cobriam e me vestiam, só a morte assustadora existe com a dor, deixem-me dizer, com a dor insuportável.

— Ó meu Deus, ó meu Deus, anda o meu espírito a navegar nas trevas e quase desesperadamente. Compaixão, compaixão, meu Jesus, peço-Vos compaixão.

Hoje, logo após a visita ao meu coração, principiei a desabafar com Ele, não com o fim de obter resposta, mas para desafogar as minhas mágoas, e só com Ele o podia fazer, pois não tinha ninguém, mais ninguém, depois de Lhe dizer que a minha vida me parecia só de enganos, que não queria enganar-me nem enganar ninguém e muitas mais coisas ainda. E, para provar que confiava n’Ele, disse-Lhe:

— Juro-Vos, juro-Vos, meu Jesus, que confio em Vós.

Ele apressou-se a responder-me:

— Confia, confia, minha filha, e isso basta, nada mais é preciso. Cá estou eu para justificar toda a verdade. Já te disse muitas vezes que não te enganas, que nunca enganaste nem enganarás. A tua vida não é de enganos, é de loucuras de amor por mim e pelas almas. É verdade que a tua vida é de enganos, porque são raros, muito raros, quase nenhuns que compreendem o amor com que me amas, o amor com que amas as almas. Por essa razão é que é vida de enganos. Confia, não esperes outra vida, é vida de maior cruz, das maiores trevas. Todo o sofrimento, que te venha, é para te firmar sempre no mesmo amor e não para te aumentar mais, porque mais não podes amar-me. Firmo-te, seguro-te, sempre no mesmo amor até que me possas amar à luz clara do Paraíso, à luz consoladora da eternidade. O meu divino amor é força da tua cruz, é a vida de que vives, é a vida da tua vida.

O sofrimento da minha alma foi suavizado com estas palavras de Jesus. Não foi visita de consolação nem de luz nem de alegria, mas foi de união e de conforto. Mas tão pouco duradoiro! Pouco depois voltou a cruz a sobrecarregar-me com o seu peso e todas as dores, e espinhos voltaram a ferir o meu coração tão pouco resistível à dor.

— Fazei, Jesus, que eu suba o restante calvário e não me deixeis vacilar na fé, na confiança e no amor. Serei sempre Vossa, Jesus, e sempre a Vossa vítima.

NOVEMBRO

1º de Novembro 1945

Sinto que o fogo do inferno me atormenta todos os membros e sentidos do meu corpo. Sinto-me cansada com o ouvir o rumor das labaredas. Por vezes parecem-me passar por todo o corpo. Até as próprias entranhas com o espírito são queimadas. Sinto-me revoltada, revolta desesperadora contra o fogo e contra Deus. Sofro mais com a perda de Jesus do que com todos os sofrimentos do inferno. Não posso conformar-me. Parece-me que o demónio faz do meu espírito uma bola de entretimento e de destruição. Traz-me tudo à imaginação, faz um conjunto de todas as coisas da minha vida e todas me apresenta como falsas e enganadoras.

— Ai, meu Jesus, eu não posso resistir. É certo que nunca pensei enganar ninguém, mas o demónio tem mais força do que eu. Valei-me por misericórdia, doce Jesus. Vinde, Mãezinha, num pronto socorro.

Que desprezo sinto por mim! Que abandono o das criaturas! Que vergonha a minha vida! Vergonhosa para o mundo, vergonhosa para diante de Jesus. É só miséria, é só miséria. Não encontro em mim nada digno de louvor, nada de grande para o céu. Sou podridão, sou miséria, sou nada, sou vergonha, sou morte, morte triste e tormentosa.

— Ai, Jesus, ai, Jesus, a minha cegueira. Não Vos vejo, não vejo o Vosso amor nem os caminhos que conduzem a Vós.

Quero um guia, necessito dele. Morre a minha alma, morre sem luz, morre, não tem quem lha dê. E de verdade sinto-me morrer, sinto que a morte está bem perto. Temo-a, temo-a, pelas contas que hei-de dar a Jesus, pela vida tão horrorosa que se me apresenta. Quero confiar, custa-me a confiar. Mas confio na bondade do meu Senhor, na misericórdia de Jesus. Queria, antes de Lhe dar as minhas contas nos meus últimos momentos, poder falar ao mundo:

— Morro por teu amor, porque és filho de Jesus. Morro para te dar a vida. Depois de tanto sofrer por ti, ficarás satisfeito de me veres morrer? Cessarás de caluniar-me, abandonar-me, perseguir-me? Estarás satisfeito de tanto ferires o meu coração? Mas, mesmo assim, juro que te amo, juro-te que vou junto de Jesus interceder por ti. Juro-te que te quero no mesmo lugar em que quero estar. Amo os que me amam, amo os justos e os pecadores, amo todos os que me ferem, porque em todos vejo Jesus e a todos amo por amor de Jesus. Adeus, ó mundo, não sejas mais ingrato, não peques mais. Vou para Jesus, mas continuo a velar por ti.

— Meu Jesus, que sede eu tenho de Vós, que saudades do céu!

Mas como chegar lá com esta cegueira e com esta vida de misérias? O coração despedaça-se de dor, e a alma momento a momento continua a rasgar-se como um trapo imundo, fio a fio. A minha dor, a minha agonia não são compreendidas.

— O que fazer, meu Jesus, a não ser esperar e confiar no Vosso Divino Coração, que é amor, só amor, misericórdia e compaixão?

É quinta-feira e dia de Todos os Santos. A lembrança do que será no céu abate-me ainda mais.

— Meu Deus, não conheço senão o dia de sofrimento.

E dentro de mim tenho dum lado o calvário e do outro o horto. A vista de tantos sofrimentos, se não fosse por milagre, causava-me a morte. Sinto que o mesmo aconteceu com Jesus. Se não fosse a Sua vida divina, Ele teria morrido antes de os sofrer. Vejo os cravos e o martelo que me vão pregar. Vejo os caminhos por onde hei-de cair com o peso da cruz. Sinto a crueldade com que hei-de ser despida. Sinto sair nos vestidos a pele e pedaços de carne. Tudo isto é dor que se antecipou. Sinto-me esmagada no horto pelo peso da justiça divina. Sinto que este peso vem do alto a esmagar-me, a desfazer-me contra o duro chão. O coração é que recebe todos os maus-tratos. Parece-me que ele, desfeito em sangue, rasteja pelo solo do horto. Rasteja como se fosse uma serpente venenosa sobre a qual todos descarregam as maiores barbaridades, para lhe tirarem a vida. E sinto que o Eterno Pai, revoltado contra mim também, não me poupa aos Seus suplícios. Que tremenda cruz! Oh! Como Jesus sofre dentro de mim! Que lágrimas tão amargas os Seus divinos olhos derramam dentro dos meus! Jesus sofre, porque o mundo O faz sofrer, e eu sofro, porque vejo e sinto Jesus a sofrer dentro de mim.

2 de Novembro de 1945 – Sexta-feira

Não posso falar, não sei como hei-de escrever. Que Jesus abençoe o meu sacrifício, que Se utilize dele para as almas. Sinto o meu corpo tão varejado pelo sofrimento, como um ramo verde varejado pela fúria do vento numa tremenda tempestade. Sinto que o meu pobre corpo necessita de dormir o sono dos mortos na sepultura, para a alma poder descansar em Jesus para sempre. Não sei como é, não sei pelo quê, que sinto a alma querer separar-se do corpo, e é com toda a violência que ela o quer fazer, para o poder deixar. Esta vida não é minha. Este mundo, apesar de tão querido ao meu coração, não me pertence. Tenho de o deixar. É-me querido não por ele mas pelas almas, almas que são de Jesus, almas que quero salvar.

— Ó meu Deus, quanto eu sofro!

Ai de mim, se me falta o céu com a sua graça e a sua força. Eu não vejo, não vejo nada. Morro, mergulhada nestes tantos mundos de medonhas trevas. Durante esta noite, vi o grande ingrato que se atreveu a esbofetear Jesus, vi o rancor com que ele Lhe deu a bofetada, e deu-Lha, e Ele em meu coração. Era alto, magro, moreno, mal-encarado. E Jesus recebeu-a na maior serenidade e mansidão. Muitas vezes senti na minha face a bofetada, enquanto tive a paixão, mas nunca tinha visto quem Lha dava, nem aquele rosto tão mal encarado. De manhãzinha, foram descarregados sobre mim muitos e muitos açoites. Era uma chuva deles. Depois de coroada de espinhos, segui ao calvário. Na viagem, senti que Jesus, dentro do meu peito, desandou ao lado o Seu divino rosto a fitar alguém. Era a Mãezinha, que Ele fitava. E, em todo o trajecto do calvário, eu sentia como se Ele fosse sempre de rosto ao lado, de olhos fitos sempre n’Ela e a Ela preso de alma e coração. Quanto isto me custou a mim! Que indizível dor! Já na cruz, sem poder desprender os braços, senti que Jesus o queria fazer, para apontar o Seu Divino Coração ao mundo e dizer-lhe: “antes de ser aberto pela lança, está aberto pelo amor e é para te receber”. Jesus esquecia toda a ingratidão e desculpava-nos a Seu Eterno Pai, mas sem que Ele se desse por satisfeito. Que agonia, que agonia! Jesus, em tanto abandono, tinha de responder por toda a humanidade. Esperava a morte, pois só com ela Ele Se dava por satisfeito. Sentia que peso da justiça divina descarregava sobre o madeiro, sobre mim e Jesus. Esmagava tudo. Dos meus lábios saía um brado contínuo ao Eterno Pai, e dos olhos corriam-me lágrimas de sangue. No meio desta agonia, dentro de mim expirava Jesus. Só de longe a longe sentia a Sua respiração. Ele não morreu, viver para mim, pois nestes momentos principiou a falar-me.

— Venho depressa, minha filha, a dar-te a vida. Só recebendo-a de mim, poderás viver. E, para que vivas, opero milagre. Vou dar-te mais três gotas do meu sangue divino. É com ele que tu vives. Vou fazer esta transformação sagrada, transformação divina. Transformar-me em ti, transformar-te em mim. És o fontenário das almas. É este sangue o maná que lhes preparo, o maná que vem do céu. Dá-o, dá-o ao mundo. É este sangue o sangue da pureza, o sangue de nova geração. O sangue de Cristo, o sangue da minha esposa e virgem. Estudem, estudem os doutores de Igreja, estudem os sábios. Repito-o: estudem os doutores e sábios das ciências divinas. Que maravilhas! Que prodígios opero na tua alma! Que riquezas dou por ti ao mundo, ao mundo que é meu, ao mundo que é teu, porque to confiei.

Jesus injectou do Seu Divino Coração para o meu as gotinhas do Seu sangue. Vi-as cair. E, quando Ele me dizia: que maravilhas, que grandezas opero em ti, sorria e fez-me compreender a grande riqueza do Seu sangue divino, as maravilhas que em mim operava. Conheci que era grande como Deus o que d’Ele recebia.

— Meu Jesus, com sou pequenina diante da Vossa grandeza. Queria dizer-Vos tanta coisa, mas não sei falar-Vos.

— Falas, minha filha, com os teus desejos. O teu silêncio diz-me tudo. De cada vez me saberás dizer menos. Tem coragem! Tudo passa, tudo muda, só eu não. As minhas divinas palavras cumprem-se. Anima-te no meio das tuas trevas, no meio das tuas dores. A dor é para a mãe que dá a vida a seu filho. Tu és mãe que dá vida a tantos filhos. Dás a vida à humanidade. Descansa sobre o meu Divino Coração, inclina-te, toma um pouco de conforto. A criancinha que dorme nos braços de sua mãe, quando dorme, não sabe que é nela que descansa. Ao despertar e ver-se acalentada em seu seio, tranquiliza-se e nada teme. Agora não sentes a doçura do meu Divino Coração. Mas, uma vez que voltes às tuas trevas, quando despertares de mim, recorda o que de mim recebeste, para poderes aguentar a tua cegueira, venceres as tuas dores e caminhares sem temeres. Recorda o que opero em ti. Vê a minha loucura de amor, e que vejam a minha loucura pelas almas, e o que por ti a elas dou. Salva o mundo, acode-lhe em tanto perigo. Quero-te firme, firme na tua cruz, abrasada de amor, de amor escondida nas tuas trevas, na cegueira do teu espírito. Queria falar-te de umas almas que muito me ofendem, mas não me demoro, toma a cruz.

Levantei-me do lado de Jesus. Sobre o Seu Santíssimo Coração tinha descansado. Custou-me a deixá-lo, não pela alegria, mas pelo conforto. Pareceu-me dormir n’Ele um sono, um sono que me deu vida e me fez reparar algumas forças. Saí d’Ele, para cair logo aos mundos, aos abismos das minhas trevas, bem curvada sob o peso da cruz e com o coração a sangrar de dor.

3 de Novembro de 1945 – Primeiro sábado

Continuo a sentir-me ferida daquele amor de que já falei: do amor, vindo do alto. E a alma continua na mesma violência, a querer deixar o corpo, para ir ao encontro desse amor.

— Mas, meu Jesus, se não vejo nada? A cegueira do meu espírito tudo encobre, e o peso da dor tudo destrói. Só a vontade de Vos seguir, de Vos amar, de Vos imitar, de Vos pertencer, de ser-Vos fiel até à morte permanece firme, mesmo com a cegueira a esconder tudo.

Fiz a minha preparação para receber Jesus, mas oh! como a fiz eu tão triste e amargurada! Recebi-O, não Lhe sabia falar. Mas Ele, na Sua infinita bondade, não olhou a isso. Logo me fez sentir a Sua união e presença real em minha alma. Demorou-Se a falar-me. Só depois de alguns minutos me disse assim:

— Minha filha, paraíso de delícias aqui na terra para o meu Divino Coração, jardim celeste, jardim divino, onde me delicio. É nestas flores divinas, no jardim deste calvário que eu esqueço a ingratidão do mundo. São flores divinas, porque as semeei, fiz crescer e desabrochar neste terreno, que é meu, que só a mim pertence. São divinas, porque saíram do divino. É jardim formoso e encantador; é jardim de perfumes e de delícias. Está guardado e cercado de espinhos. Os espinhos, com suas dores, são para ti; as flores, com seu perfume, são para glória e consolação minha; são para as almas. Dá o teu sangue, sacia as almas com esse fontenário de prodígios. Converte os pecadores, dá-lhes esse remédio: é sangue de Cristo nas veias da sua vítima, é o sangue de Jesus, transformado no da sua vítima amada. Que loucura a minha pelas almas! O que faço por elas! Dá o teu sangue, dá o teu sangue, minha filha, e nada temas. Não pode naufragar a barquinha, de que o leme e o piloto são Jesus. Coragem, coragem, sempre firme e confiada que passará tudo, menos as minhas palavras. Cumprir-se-ão sem nada faltar.

Jesus falou-me de certas almas da minha família, ainda. Disse-me que O ofendiam muito, mas prometeu salvá-las. E, para desagravar o Seu Divino Coração, pediu-me para por elas suportar três ataques do demónio. Pediu-me mais dois para completar cinco em honra das Suas cinco chagas, sendo um para O desagravar pelas famílias e outro por certas almas da freguesia e de fora dela, homens e mulheres de avançada idade.

— Minha filha, a medida está cheia. Vê como elas me ofendem. A sua salvação está em risco. Repara, repara por elas.

— Custa-me tanto, meu Jesus, saber-Vos ferido por todas as almas, mas mais ainda por aquelas que me pertencem. Queria lançar-me às feras, por elas ser devorada. Queria arrancar do peito o coração, para ser esmagado aos pés, aos pés de todas as criaturas. Enfim, queria sofrer tudo, tudo para não Vos ver ferido e para as almas serem salvas.

— Alegra-te com o teu sofrimento, minha pomba bela, para com ele elas se poderem salvar. E agora, filhinha, diz ao teu Paizinho que os homens nada vencem. Nas minhas divinas mãos estão os seus corações, posso obrigá-los a fazerem o que me aprouver. Não é só ele que é massacrado e ferido. Sou-o eu também pela forma como eles procedem. Que grande glória ele me dá com o seu sofrimento inocente, e que grande proveito para as almas. Dá-lhe toda a luz do Divino Espírito Santo, para ele facilmente as conhecer. Dá-lhe o meu Divino Coração com toda a intensidade do meu amor, doçuras, riquezas e graças, em recompensa da sua dor. Dou-lhe tudo por ti. Apresenta, filhinha querida, ao teu médico o centro do meu Divino Coração com todas as iguarias celestes, com todas as riquezas divinas. São para ele, são para todos os que lhe são queridos. É o prémio do seu trabalho, é a recompensa da sua defesa pela minha causa divina. Que ampare o teu corpo, que ampare a tua alma: o que a ti faz a mim o faz. Velar por ti é velar por mim. Tudo o que de mim tem recebido e vai receber pelas tuas mãos passou e vai passar. Vem, ó bendita Mãe, dar força à nossa filhinha, para que ela possa subir o calvário. Vem comigo a confortá-la, vem depressa, para não demorarmos.

Veio a Mãezinha, tomou-me em Seus braços, apertou-me ao Seu santíssimo rosto, acariciou-me e disse-me:

— Nada temas, filhinha amada do meu Jesus. Estou contigo no teu martírio, assim como Jesus está. Sofres como nenhuma outra vítima! É a prova do nosso amor. Jesus ama-te. És amada como nenhuma criatura da terra. Eu amo-te. És enriquecida como nenhuma outra alma. Nunca o mundo viu, não viu nem volta a ver Jesus operar numa esposa Sua tão grandes maravilhas, nem dispensar tão grande amor.

Veio Jesus e acrescentou:

— Minha filha, a tua cruz espera-te. Vai para ela, vai para o teu martírio, para a tua dor. Vai confiada que o céu não demora, e a minha causa triunfará. Triunfarei eu sempre nela com todos os que são queridos do meu coração e que dela cuidam. Não temas a escuridão, não demora a luz eterna.

Logo caíram sobre o meu corpo as dores, as amarguras, com a noite mais carregada como um chuveiro fortíssimo. Aceitei e bendigo a Jesus e à Mãezinha, porque Eles assim o querem. Ao deixar os braços da Mãezinha, Ela ainda me disse estas palavras:

— Repara, repara, minha filha, os nossos corações, o de Jesus e o meu.

6 de Novembro de 1945

Não sei fugir das minhas trevas nem tão pouco salvar-me delas. Infundo-me de braços abertos, a saber-me perdida sem me esforçar por saber nada. São mundos e mundos, mares e mares de cegueira. Mas ah! bendito seja o Senhor. Não quero fugir à minha cruz. Ela é toda de espinhos, e neles me sinto cravada da cabeça aos pés. Todo este pobre corpo, que já não é meu, é uma chaga viva. São tais as ânsias de me  dar a Jesus, são tantas e tão grandes de O amar e salvar-Lhe as almas que, para esses fins, queria ver este mísero corpo num esqueleto desfeito: sem sangue, sem carne, sem vida.

— Meu Jesus, nem sei o que quero. Não sei o que sofro, não sei o que vivo. Sou ceguinha, Jesus, e não Vos vejo. Não sei onde habitais nem onde posso encontrar-Vos. O que sei, Jesus, ai isso sei, é que este pobre coração, com esta vida que tem, com a vida da alma, quer ir ao Vosso encontro, ao encontro da Vossa luz. Quer deixar o corpo e o mundo, porque aqui não pode existir. Que revolta! Que revolta! Quero separar-me deste lodo, desta lama e quero ir para Vós. Mas ai, meu Jesus. Vede o sentir da minha alma de Vos ter perdido e compadecei-Vos de mim. Sofro com todos, e parece-me que a todos faço sofrer. Sofro com a presença das almas que andam por caminho errado. E, se eu assim sofro, quanto não sofreis Vós! Sofro com a sua presença, mas quero consolá-las e prendê-las ao Vosso Divino Coração. Mas não sei como e não vejo. Não sei como e não tenho quem me ensine e me dê luz. Tudo me roubam, fico sozinha. Ficou o meu santo médico, mas sinto como se não o tivesse. Ele diz-me palavras de conforto, e por vezes parece-me que o não ouço nem vejo. Cobri-o de glória pelo que tem feito por mim. Eu não queria ser ingrata para o Vosso Divino Coração nem para ninguém. Mas para ele sinto que sou ingrata e por vezes lhe falo bruscamente. Enchei-o do Vosso amor, recompensai-o por mim

Já dei a Jesus duas lutas com o demónio. E que dolorosas elas foram! Parece-me ficar tanto tempo entregue ao pecado! Não posso pensar que haja tanta maldade da parte dos homens e que tenham coragem para dizerem palavras tão feias e tão cheias de malícia.

No primeiro destes ataques, que foi ontem, quando pude bradar fortemente ao céu a pedir socorro e dizer a Jesus que não queria pecar, Ele apressou-se a vir, pois eu parecia-me que estava perdida.

— Não pecaste, não, minha filha. Confia em mim. A tua luta foi como a vida e a morte; foi o pecado com a virtude. Lutaste, lutaste e não me ofendeste. Peço esta reparação a quem posso pedir. Alegra-te, acredita em mim. Desagravaste mais o meu Divino Coração do que se durante um ano sofresses, jejuasses e orasses. Vê que valor! Vê a minha loucura de amor pelas almas, o que exijo da minha virgem pura para as salvar. Acreditas, acreditas em mim? Sou Jesus.

— Acredito, meu Jesus, confio em Vós cegamente. Acredito que não me enganais, como sabeis também que não quero enganar-Vos.

Fiquei a acreditar em Jesus, mas com a minha alma tão dorida! Que pena saber que Ele é tão ofendido, e ainda para maior dor ser pelos meus!

8 de Novembro de 1945

Não posso falar, não tenho forças. Confio e temo. Confio a custo, mas confio cegamente. Jesus não falta, mas pobre de mim que tenho tanto medo de Jesus e medo de vacilar, medo de não confiar como devia. Disse muitas vezes a Jesus:

— Quero dar-Vos até à última gota do meu sangue pelo Vosso divino amor e para acudir aos pecadores, assim como Vós o destes por mim.

Mas não pensava que Jesus tomava as coisas tanto a sério. Só ontem é que me lembrei da minha oferta a Jesus. E, como me sinto sem sangue, sem vida, temo de um momento para o outro deixar o mundo sem a realização das promessas de Jesus. Temo, temo, é a minha fraqueza. Mas Jesus, o meu querido Jesus, não falta. E eu, no meio da cegueira horrorosa do meu espírito, hei-de confiar n’Ele e Ele há-de perdoar-me os meus desfalecimentos, os meus desânimos, que por vezes me parecem serem desgostosos para o meu querido Jesus, porque sinto em alguns momentos que estou como que arrependida das minhas ofertas e entrega total a Jesus. Mas não é verdade este meu sentir de alma. Eu sou e quero ser sempre de Jesus e das almas. Não quero viver senão para O consolar e salvar-Lhe os filhos Seus.

— Mas como, meu Jesus, se eu não vejo nem sei o que é verdade nem acredito em mim nem nos meus sentimentos? Ó meu Deus, ó meu Deus, ai de mim, se deixo de confiar em Vós! Ó céu. Se a ti não recorro, quem poderá valer-me?

Das criaturas nada espero, e parece-me que até as aborreço. Mesmo daquelas, a quem eu mais amava, sinto que as desprezo, e elas a mim. Sou sozinha, sozinha e ceguinha sem ninguém. Perdi tudo por não ter um coração para amar, um coração para sofrer. Não tenho utilidade nem para o céu nem para a terra. Perdi-me na minha cegueira, estou a falar com as trevas, com a morte. Ah! Se eu soubesse mendigar amor e nesta cegueira o pudesse mendigar! Não fazia outra coisa a não ser mendigar amor das almas para Jesus.

— Ó minha cruz, beijo-te e abraço-te mesmo assim coberta de espinhos, porque em ti está Jesus. É nestes espinhos tão agudos que eu quero passar da terra ao céu, já que assim o quereis, meu Jesus.

O demónio atormenta-me, assalta-me. Repetiu por algumas vezes as suas ameaças, mas não veio fortemente. Mas uma vez venceu, tive que lutar com ele. Se Jesus não me acode, quem poderá fazê-lo? Ninguém, só Ele. Antes queria estar no inferno nos momentos da luta. Que receio de ofender o Senhor! Pareceu-me que só pedi socorro ao céu depois de não ter remédio. Sentia-me estar toda entregue ao vício e uma grande criminosa diante de Jesus. Ao tempo que eu chamava por Ele e terminava o combate com o malvado, eu vi no abismo medonho, que sob mim estava, aqui e ali, umas grandes rosas brancas. E Jesus disse-me:

— Sossega, não pecaste. Olha, são flores de virtude. A tua reparação fez penetrar a luz naquelas almas, por quem te pedi este combate. São para ti estes momentos, momentos de dor, mas também de amor. E para elas hora de graça, momentos de salvação. Coragem, coragem, pois! É contigo o meu amor.

Deixei Jesus muito dolorosa e tímida com o medo de ter pecado. Deixei-O, para seguir ao horto. Ele seguia dentro de mim, a ver, como no momento, os sofrimentos que lá O esperavam. Ia com o peito aberto, e do Coração saía-Lhe uma grande fornalha de fogo. Era aquele amor que O levava a tanto sofrer. Senti lá o beijo traiçoeiro de Judas, o prender das mãos, o cair por terra dos soldados. Não posso igualar a inocência e mansidão de Jesus e a maldade deles. Oh! Com que custo subimos a subida que se seguia ao horto.

Ai tanto pontapé e maus-tratos, e quantas vezes Jesus já caiu por terra com os empurrões que Lhe davam. Não sei dizer o que mais senti e nem posso falar.

9 de Novembro de 1945 – Sexta-feira

Caminhei morta para o calvário e sobre a minha morte levei a morte de toda a humanidade. Que peso sobre mim! O meu coração ia dentro de um ouriço de espinhos. No meio deles tinha que dar a vida com grande prova de amor. O coração não era meu, era de Jesus, a mim nada pertencia senão uma frágil teagenzinha. Em todo o percurso do calvário não tiveram conta as varadas que o meu corpo levou. Apenas chegada ao lugar, o verdadeiro e doloroso calvário representou-se dentro de mim. Que corações aflitíssimos rodeavam a cruz! Mas o da Mãezinha, o da Mãezinha em nada se parecia com os outros. Nem toda a dor unida se podia comparar à d’Ela. E, por entre aquelas nuvens negras da morte, rompeu Jesus, sobressaiu, foi brilhar mais além. Venceu tudo e de tudo triunfou. Mas eu não O acompanhei naquele vencimento, naquele triunfo, naquela luz. Fiquei sempre na minha dor, amargura e agonia. Ele foi, mas ficou sempre comigo no meio do gozo, da luz triunfal; unido a mim e transformado em mim sofria.

Queria saber falar desta separação de Jesus para o gozo e ao mesmo tempo da união dolorosa dentro do meu corpo, mas não sei. O que sei é que a agonia continuou, o sangue corria das minhas chagas, e as trevas ficaram sempre a cegar todo o meu espírito. O brado foi contínuo, sem o Pai ceder a confortar-me. Bradava mais forte para ser ouvida, mas apenas aumentava ainda mais a agonia. Ia a morrer. Veio Jesus.

— A minha paz é contigo, minha filha. Contigo está sempre o teu Esposo, o teu Rei, o teu Pai, o teu Senhor. Sempre velei por ti e continuo a velar até ao fim. Tem coragem! Faltava ainda nisto assemelhar-te a mim. Eu temi os sofrimentos, temi a morte. Foi o pavor que no horto me abriu as veias. És a vítima mais semelhante a Cristo. A perda do teu sangue é uma crucifixão contínua, é nova obra de resgate. Milagre, milagre! Prodígio, prodígio, ó grande maravilha! Bastava isto, não era preciso mais nada, minha pomba querida, para que os homens compreendessem a minha grandeza divina na tua alma. É a maior das minhas maravilhas. Calvário, ditoso calvário, lugar bendito, que possuis a rainha do mundo, és abençoado por mim. Minha filha, os dias, as horas que passam são graves, são de grande perigo para a humanidade. Pede oração, penitência e reparação. Depressa, ainda é tempo. Se assim o fizessem, poderiam dizer: “a nossa rainha não só nos acudiu às almas mas também aos corpos; foi ela que, em nome de Jesus e com Maria, nos veio salvar”. E não são as almas, filhinha querida, a quem queres acudir? Diz-mo com toda a simplicidade do teu coração.

— Sim, meu Jesus, primeiro as almas, mas, se puder ser tudo, poupar-lhes os corpos à justiça divina. Perdoai-lhes, Jesus, e imolai-me sempre.

— Vem cá, louquinha do meu amor, louquinha das almas. Quero pertencer-te todo como tu a mim pertences. Fiz-te a entrega do meu Divino Coração e faço-te agora a entrega de todo o meu corpo.

Neste momento, Jesus abriu o Seu peito santíssimo. Era como um sacrário: o peito de Jesus, o sacrário, o coração, o sagrado vaso. Jesus disse-me:

— Entra, minha filha, com umas almas para dentro do coração, que é cofre, tesoiro infinito, e deixas outras fora, mas dentro do abrigo desse cofre de riqueza. Entra com elas para o peito até que as prepares para entrarem no coração. És poderosa, e dou-te mais outro poder: às almas, às quais disseres que lhes dás todo o meu amor, ele será dado. Mas mais ainda: àquelas, às quais disseres que Jesus lhes dá o céu, têm-no de certeza; e às que disseres que Jesus lhes perdoa os seus pecados ser-lhes-ão perdoados. Sim, não as dispensando do sacramento da penitência. Isto é para as almas tímidas e receosas do meu perdão. As tuas palavras servir-lhes-ão de grande conforto. Coragem, filhinha. Terás os dons do Espírito Santo: a Sua luz divina, para nos outros tudo veres e compreenderes; o da fortaleza, para tudo suportares e venceres. Coragem nos teus desfalecimentos. Coragem até que chegue o céu. No meio dos maiores sofrimentos e trevas terás uma morte de amor. A tua passagem será como o adormecer dum anjo. Vou dar-te, minha filha, uma transfusão de sangue: outras três gotas, mas mais pequeninas ainda. Assim, irei diminuindo até que terminem.

Injectou-me Jesus numa veia sobre o coração as gotinhas do Seu sangue divino. Era pouquinho, mas o coração ia a dilatar-se. Jesus não deixou, disse:

— Não, isso não, não aguentarias com essa dilatação, sou o teu médico divino. Faço milagre, para não castigar; espero, para não punir.

— Obrigada, meu Jesus.

— Sinto-me desaparecer à vista de tanta bondade, de tantas grandezas para comigo. Sinto-me menos ainda do que a poeira que se espalha nos ares, o fumo que desaparece para nunca mais ser visto. O Senhor do céu e da terra inclinou-Se sobre o que há de mais vil e miserável.

— Bendito sejais, meu Jesus. Aceitai o meu grande esforço e enorme sacrifício. Quando voltarei, Jesus, a dizer o que me vai na alma? Quando for da Vossa vontade. Eu já pouco sei dizer.

 

N.B. – Há três meses que a doentinha tem diariamente perda de sangue. Atendendo a isso, ordenei que, até nova ordem, não ditasse os seus sentimentos de alma senão nos dias em que não perdesse sangue.

Assina: o médico assistente.

 

16 de Novembro de 1945

O aumento dos meus sofrimentos físicos fizeram-me aumentar os morais. Desfaleci, desfaleci. Desgostaria a Jesus? É a minha maior pena. Sofri tanto, tanto! Sei que sofri. Foi este pobre corpo e alma que sofreram, mas não sou capaz de dizer essa espécie de sofrimento. É indizível. Eles vieram dum lado e doutro, apressadamente, como rios de água a correrem para o mar. Vieram esses rios de dor parar ao mar infindo da minha cegueira, e ali toda a dor se mergulhou e morreu. É por isso que não sei falar da dor, só sei falar da negra escuridão. Não sei e não posso. O meu peito não tem vida.

— Ajudai-me, Jesus, se desta vez assim o quereis.

Na noite de onze para doze, no meio dos meus tremendos sofrimentos, ouvi repetidas vezes uma doce voz, que me dizia:

— Convite para o céu, convite para o céu.

O meu espírito levantava-se, a pensar nessa Pátria. Ficava ainda mais a suspirar por ela: o horto de ontem, o calvário de hoje, a cruz e todo o meu corpo. Todo o meu corpo foi uma massa de sangue com a mistura dos sofrimentos, que não sei dizer, de que acima falei. Nesta agonia triturante, veio Jesus ao meu encontro e disse-me:

— Minha filha, quando for conhecida a tua vida de inigualáveis sofrimentos, o que dirá o mundo, o que vão dizer muitas almas, almas que nada conhecem e nada compreendem de mim? Que não te amava com amor de Pai, com amor de Esposo; que não te amava como digo. Grande engano! Deviam dizer: “Oh, como Jesus amou esta alma e como nos amou também a nós! O que Ele fez para nos salvar!” Sim, minha filha amada, tudo o que faço é para acudir aos pecadores. E, assim, como és inigualável às outras almas no sofrimento, assim és também no amor e no poder. Amo-te como nunca amei; dei-te poder como nunca dei; enriqueci-te das minhas divinas riquezas como nunca tinha enriquecido nem voltarei a enriquecer. És grande no poder, és grande na graça, na pureza e no amor. És grande, porque possuis a grandeza do que é grande e poderoso. O aumento dos teus sofrimentos nestes dias foi para bem do mundo, foi para bem do teu e meu querido Portugal. Pesaram, pesaram na balança do Bem. Foi para ele não sofrer aquilo que devia sofrer. Aumentei-te os sofrimentos, para te ouvir repetir muitas vezes por ele a oferta de vítima. Fiz-te sofrer muito, para não haver aquela injusta ingratidão àquele que, com a tua imolação e auxílio da minha Bendita Mãe, foi guia da Nação, escolhido por mim. Foi instrumento manejado pela mão divina, mas com a dor nunca igualada deste calvário.

— Meu Jesus, acudi, acudi a Portugal. Não é por mim que ele pode ser salvo, mas por Vós e pela Mãezinha, à qual me entrego de alma e coração com todos os sofrimentos, para que Vos utilizeis deles para salvar a minha pobre Pátria, para salvar o mundo inteiro. Sou miséria e nada posso, mas em Vossas divinas mãos está o poder. Sou a Vossa vítima, Jesus.

— Ai de Portugal, minha filha, se não corresponde! Ai do mundo, se não se emendar. Penitência, penitência! Depressa, já penitência! Coragem, minha filha, confia: não te abandono. Confia, estou contigo. És a glória do mundo.

— Meu Jesus, estou esgotadíssima, não posso falar. Não Vos sinto a Vós nem sinto a ninguém por mim. Não sei como hei-de ditar.

— Toma ânimo. Não o sentes, mas estou em ti e a teu lado. Tens muito quem seja por ti e pela minha divina causa. Não podes falar, mas tudo continua, enquanto dura a tua pequena vida na terra. Quero-te assim enfraquecida, mas continuam a falar às almas os teus olhares, os teus sorrisos, a tua doce tranquilidade e resignação no sofrimento, o teu amor à cruz. Tudo isso fala e diz tudo. Tudo isso convida as almas a virem a mim. Quero que o teu médico, ou alguém que em pouco te compreenda, faça um relato do que em ti se for passando, para provar que a minha vida divina na tua alma não acabou, continua, e continua sempre, até à realização das minhas promessas. Só te deixarei, para no mesmo momento te receber na Pátria celeste. És minha, só minha, rainha do mundo, mãe da humanidade.

Há catorze dias que eu recebi a visita dum senhor padre desconhecido e de longe. Não sabia nada como era o seu viver. Senti logo que ele tinha bom fundo e boas qualidades. Mas, apesar disso, sofri muito. Nos primeiros momentos em que fiquei a sós com ele, não ouvi uma voz, mas tive uma luz que me fez ver tudo, tudo, meu Deus. Dei-lho a entender. Ele, cheio de boa vontade, só queria saber o que era a vontade do Senhor, para a cumprir. Hoje mesmo, Jesus falou-me nele. Prometeu perdoar-lhe, prometeu salvá-lo, indicou-me o caminho que ele devia seguir. Oh! Como Jesus é bom!

Há dois dias que senti, como nunca, que o meu Pai espiritual vai ser libertado. Os olhos da minha alma viram como que cadeias cortadas, portões abertos, para poder sair. Mas dum e doutro lado saíam teiazinhas de aranha, que punham estorvo à sua sida. E então muitas mãos amigas tudo desfaziam e faziam desaparecer. O sol quer romper as nuvens e raiar com toda a força. Com ver e sentir tudo isto, nada me alegrei. Em trevas estava, em trevas fiquei.

— Meu Jesus, para mim já é tarde, nem ao menos posso falar-lhe. Mas, apesar disso, de nada poder, quero-o, Jesus, para Vossa glória, para bem das almas. E esta ânsia de o ver e de pouco a pouco dizer-lhe o que foi a minha vida destes quatro anos consome-me o coração, fá-lo chorar cá por dentro. Jesus, quando chegará esse dia?

Quando eu podia ditar, embora muitas vezes com enorme sacrifício, fazia-o obrigada: não o queria fazer. E agora que nada posso queria ditar. Tenho pena de o não fazer. Bendito seja o Senhor!

22 de Novembro de 1945

Sinto o meu corpo a dar os últimos arrancos de vida. É como uma máquina que não tem forças para arrastar o peso das carruagens. Este peso, de que falo, são os meus sofrimentos.

— Ó meu Deus, ó meu Deus! Ai, o que me fere! Ai, quem me fere! Não tenho forças para mais. Tomai a minha cruz, Jesus. Deixo-a cair, não resisto, não posso mais. Ó ingratidão, negra ingratidão! Ó bom Jesus, quanto sofrestes com ela! Até mesmo nisso me assemelhais a Vós. Houve ingratidão para o Vosso amantíssimo Coração até aos últimos momentos, e eu para lá caminho, meu Jesus, sobrecarregada de ingratidão também.

— Cruz, cruz bendita, eu te abraço como a maior prenda do meu Jesus.

A minha alma sente e dorme o sono do corpo na sepultura. Tudo é noite, tudo é morte, tudo é silêncio. Podem bradar o que bradarem por ele, que ele não ouve. Mas a alma sofre com esta surdez, com esta prisão de lábios, com este silêncio. Sofre, sofre, não sei dizer o que ela sofre. Quanto mais quero dizer, menos sei, e menos ela sente. Que cegueira! Que cegueira! Sofro e não sei sofrer! Quero amar e não sei amar!

— Ó morte destruidora do meu corpo e da minha alma! Ó morte, ó cruel morte, como eu te temo, e me causas horror!

Jesus já está entregue dos ataques do demónio, que me pediu. As últimas duas reparações foram-me pedidas em forma de cães. Que cenas dolorosas e tristes! Atormentou-me o espírito com várias falsidades, mostrando-me o meu médico e pessoas, que estimo, de ventre aberto e cabeças degoladas. Isto era para me mostrar que de nada valiam os meus sofrimentos e a renovação da oferta de vítima pela minha Pátria. Sou inútil ao céu e inútil à humanidade.

Estou no horto, horto que se desfaz para o meu corpo em mantos de dor e da mais extrema agonia. E, com todo este sofrimento, sinto as veias a rasgarem-se-me no meu corpo. Sinto-me morrer com o peso da justiça divina. Estou por terra, e sob os meus lábios o cálice da amargura.

— Jesus, para Vós e para as almas o meu enorme sacrifício.

Não posso ditar mais nada.

23 de Novembro de 1945 – Sexta-feira

— Não posso falar, meu Jesus. O que hei-de eu fazer para cumprir a Vossa santíssima vontade? Dizer alguma coisa do muito que me vai na alma, deste muito que já tão pouco sei dizer?

Se milhões de mundos houvesse, eu diria que todos caíram sobre mim, para me encobrirem toda a luz e mais me mergulharem na cegueira do meu espírito. Não posso com mais escuridão. Não posso com mais dor. Que enleios de sofrimentos! Não lhes vejo o princípio, o meio nem o fim: vêm-me de todos os lados, estão enleados uns nos outros. Os açoites de hoje senti-os na alma e não no corpo. No caminho do calvário, queria levantar-me depois de ter caído e não podia. Ainda com o joelho em terra, caía novamente para a frente, ficando-me o rosto todo esfacelado e em sangue. E todos os sofrimentos, que mais 4senti, foram na alma e não no corpo, dos sofrimentos que dizem respeito ao calvário. No meio da tremenda agonia, o meu brado contínuo era escondido na cegueira do meu espírito. É indizível o meu desfalecimento.

Jesus apressou-Se a vir confortar-me e apressou-Se também a retirar-Se de mim.

— Minha filha, amada minha, quando quiseres encontrar-me, entra dentro do teu coração. É nesta doce morada que eu estou sempre. E como me encontras tu? Todo deliciado com as tuas virtudes, cheio de glória e amor, daquele amor que tu dás às almas, daquele amor de que tu és incendiária. Fujo do mundo, não posso habitar nele. Escondo-me no tabernáculo do teu puro e rico coração. Tem coragem! O teu martírio sem igual é a minha maior consolação e alegria. É também reparação sem igual. A tua cegueira e trevas de espírito são a luz mais luminosa para a cegueira das almas. Alegra-te com as palavras do teu Jesus.

— Parece-me, sinto, meu Amor, que nada há que me alegre, que nada faço por Vós. Vejo-me tão sozinha e sem saber o que hei-de fazer!

— Escuta, esposa minha. Todas as palavras das ofertas que me fizeste não foram deitadas ao vento: aceitei-as todas. Fui eu que te inspirei, para que mas fizesses, e o Espírito Santo que te iluminou, pois encontramos em ti uma generosidade sem igual. Não querias tu ser junto de mim como a lampadazinha que se extinguia? Assim vai ser: vais-te extinguindo dia a dia. Não és só a lâmpada dos sacrários, és a lâmpada do mundo, és a lâmpada dos tabernáculos das almas, és a sua luz e vida. És lâmpada que não chega a apagar-se. No mesmo momento em que fores amortecida, acender-te-ás com novo brilho, com nova vida, com a vida da eternidade. Filhinha, filhinha querida, as tuas forças não voltam mais. Vais ser, momento a momento, a lampadazinha de que falei. As tuas falas aumentam de grandes sacrifícios, mas nada temas, que a tua vida de amor, a tua vida de bem para as almas continua nos teus olhares, sorrisos e doçuras até ao último momento. Que vida de encantos e maravilhas divinas! Quero que tomem nota da minha contínua vida de acção divina na tua alma, rica e encantadora. Tem coragem! Deus não muda. Coragem! Coragem! Não voltam atrás as minhas divinas palavras.

Jesus disse-me isto em tempo muito breve. Retirou-Se ou fez que Se retirou, e eu fiquei por algum tempo com a alma mais forte, mas parada no meio da cegueira, sem ver ninguém, num lugar desconhecido. Queria abraçar com toda a força a minha cruz, coberta de espinhos, e não posso, não tenho força.

— Abraçai-a por mim, meu Jesus, e não permitais que eu deixe de Vos amar e deixe de amar as almas!

29 de Novembro de 1945

Tenho que desistir, não tenho forças, não posso falar para dizer os sentimentos da minha alma. E, agora que o não posso fazer, apetece-me chorar.

— Meu Deus, que cegueira a do meu corpo e a da minha alma!

E, no meio desta noite tormentosa, sinto dores horrorosas. Sinto na alma e no corpo um tormento inexplicável. Por maior que seja o meu esforço, nada digo, porque não sei. Não posso pensar que o meu corpo há-de ser tocado ou poisar na minha cama ou por ele passar qualquer aragenzinha. Queria poder sustentar-me no ar, onde nada pudesse tocar-me. Que tremendo horror! Ai, como tenho o corpo e a alma feridos! Tenho nojo e medo da minha cama. Quantas vezes, de repente me apetece chamar-lhe maldita e excomungada. Queria abandoná-la, não posso estar nela. Tenho medo, tenho medo!

— Sim, meu Jesus, quem há-de resistir a isto? Só Vós, só Vós. Oh! Se eu neste ponto soubesse dizer o que sinto!

Tive um novo ataque do demónio, violento, mas pouco demorado. O coração estava aflitíssimo e o peito ofegante. Ao ouvir as suas feias palavras, mais em espírito do que com os lábios, oferecia-me a Jesus e à Mãezinha e pedia-Lhes para não pecar. Ao terminar da luta, fiquei aterrada na minha escuridão e no receio de ter ofendido a Jesus. Não resistia, se Jesus não viesse. Ele apressou-Se a vir e disse-me:

— Não pecaste, não, amada filha. É à sombra da Eucaristia que a alma, louca de amor por mim, se consola e delicia. É à sombra da tua pureza que o mundo se purificará. É da tua pureza que eu recebo a reparação das suas maldades e crimes. Dá-me tudo, dá-me tudo o que te peço, para que as almas tudo possam receber. Coragem, estou contigo.

Desisti, não posso. Vou a caminho do horto. Vejo todos os sofrimentos que lá me esperam. Tenho de sofrer em silêncio sem um desabafo. No meio deste sofrimento não peço a Jesus o céu, mas lembro-Lho. Fico em espírito por muito tempo a repetir:

— Jesus, o céu, o céu, o céu…

30 de Novembro de 1945 – Sexta-feira

Sei dizer que sofri e pouco mais. O meu calvário de hoje foi como um sarilho que em si enrola fortes cordas. Enrolei-me no sofrimento e na mais tremenda cegueira. Montanhas, montanhas e mais montanhas, que chegaram ao céu e o encobriram. Abafaram também os meus gemidos e os meus brados: tudo era abandono. Mas, mesmo assim, sentia dentro de mim um coração, que se abria para receber a pobre humanidade ingrata. Não posso falar, vou apenas dizer as palavras de Jesus. Ele veio ao encontro da minha cegueira, tirou-me dela, suavizou a dor da minha alma e disse-me:

— Anda, minha filha, ao meu encontro, entra no palácio real, onde habito sempre, que é o teu coração. Sim, escuta-me, estou aqui, mesmo quando o abandono não te deixa sentir-me, e com a cegueira do teu espírito não consegues ver-me. Estou aqui, não te deixo. Vem, diz-me o que queres de mim, o que de mim queres receber.

— Meu Jesus, quero o Vosso divino amor, a graça de levardes comigo a minha cruz e a realização das Vossas divinas promessas.

— O meu amor já o possuis todo. Sou louco por ti, amo-te como nunca amei a nenhuma das minhas esposas e vítimas. A tua cruz levo-a contigo, não temas, confia em mim. Auxilio a todos e como poderia eu deixar de te auxiliar a ti, se o teu sofrimento atingiu toda a altura, e a tua generosidade é sem igual?

Quando Jesus falou dos sofrimentos, levantou ao alto as Suas divinas mãos, como que não pudesse subir mais. E, quando falou de generosidade, abriu os braços e o peito, como quem deu tudo e não tem mais que dar, e continuou:

— À realização das minhas promessas nada vai faltar. Não duvides, por mais que te pareça morreres. É verdade que a lampadazinha se vai extinguindo, a luz vai baixando o seu clarão. Sim, filha, porque a tua vida já é do céu, a vida da terra é quase só fingida. Mas, para continuares a viver, para o meu milagre continuar a operar-se, vais receber mais três gotinhas do meu sangue, mas mais pequenas ainda.

E, como quem injecta, Jesus deixou cair sobre o meu coração, muito devagarinho e espaçosas, as três gotinhas do Seu divino sangue, mas tão pequeninas que mal as via cair. Ao cair a última, Jesus veio logo com Sua divina mão sobre o meu coração e disse-me:

— Pronto, pronto, não podes sentir a minha força. Sou médico divino, mas tenho de ter o cuidado do médico humano, que, para não matar, aplica os remédios com brandura. Oh! Maravilhas divinas! Que loucura de amor tenho por ti e que loucura tenho pelas almas! O que faço para as salvar! Vai em paz, flor bela de Jesus, pastorinha do Pastor divino, confia, confia sempre.

DEZEMBRO

1º de Dezembro de 1945 – Primeiro sábado

Depois da Sagrada Comunhão, principiou logo Jesus a suavizar a dor da minha alma e a dar-lhe um bocadinho da Sua luz divina.

— Minha filha, estrela do mundo, luz que o ilumina, farol que o guia ao meu Divino Coração. Escuta, alegria dos meus olhos divinos, aceita os meus divinos braços, abraça com eles a cruz que te dou, abraça-a com as forças divinas, já que as forças humanas não as tens. É cruz de amor para ti. Na tua vida de sofrimento está bem provado o amor com que te amo e o amor com que me amas a mim. Amo-te, tu amas-me. És minha, és das almas. A cruz que te dou é a cruz da mais alto valor para elas. Coragem, sempre firme nos braços do teu Jesus. O mundo fere tanto o meu Divino Coração! Suaviza a minha dor, salva-me os pecadores, compra-os com esta cruz do mais elevado preço. O teu sofrimento não é igualado a outro. Confia em mim, não temas vacilar. Dos teus olhos, dos teus sorrisos, da tua voz enfraquecida caem encantos atraentes, sai abundância de amor, saem bálsamos suavíssimos para as chagas dos pecadores. O mundo está nojento. Faz com os teus sofrimentos que os meus olhares divinos o possam fitar.

— Jesus, sinto a força dos Vossos divinos braços, com a qual estreito a mim a cruz bendita que me destes. Quero acudir ao mundo, mas primeiro que tudo quero suavizar a dor do Vosso Divino Coração. Aqui me tendes, Jesus, com os meus desejos, com a minha boa vontade. Mais nada tenho, sou a mais inútil e indigna das Vossas filhas. Se alguma coisa vedes de bom em mim, é Vossa, Jesus. Sofrei em mim e por mim. Vencei neste pobre corpo e alma, sede a minha força.

— Minha filha, eu não te falto, não duvides. O céu vem, e bem depressa tudo se realizará. Dou-te o teu Paizinho. Diz-lhe que o meu divino amor para ele é grande, tão grande como grande é o meu poder. Diz-lhe que a luz e guia das minhas maravilhas, das minhas grandes coisas, tinham que assemelhar-se no sofrimento a ti. Tirei dele grande proveito para as almas e grande glória para mim. Diz-lhe, Jesus lho afirma: será o mestre das grandes almas, das almas abrasadas de amor por mim. Diz ao teu médico, minha filha, que lhe dou por ti o meu Coração, cheio de amor, como penhor do meu agradecimento, por cuidar da minha causa, amparar teu corpo e alma. A minha bênção para ele e todos os que lhe são caros. Não posso exigir de ti o esforço de ditares mais. É grande violência. Quero que ele, ou alguém que saiba, o faça apenas para se conhecer a minha acção divina na tua alma. Que façam um apanhado de algum sentimento, que sem esforço e até distraída fores dizendo, e de algumas palavras que eu for dizendo para encorajar-te e confortar-te. Que apanhem tudo, enquanto alguma coisa sabes dizer. Quando vier o teu Paizinho, aumentará o teu martírio por não saberes dizer a dor que sentes. A tua cegueira fará, por assim dizer, uma cegueira total. Tem coragem! No meio das tuas trevas está sempre o teu Jesus. Minha Mãe bendita, toma em teus santíssimos braços a nossa filhinha, dá-lhe o conforto do céu, já que o da terra todo lho tiraram. Estreita-a agora em teu Coração até que breve a possas estreitar no céu.

A Mãezinha abraçou-me, aqueceu-me com o calor do Seu amor. Uniu a mim o Seu santíssimo rosto, beijou-me e por último abraçou-me com Jesus.

— Vai em paz, minha filha, leva o amor do teu e meu Jesus. Vai semeá-Lo, vai dá-Lo aos que te são queridos; vai dá-Lo ao mundo inteiro. Semeia, minha filha, as nossas graças – disse Jesus – semeia aqui na terra, para, dentro em pouco, a mesma sementeira continuares no céu.

7 de Dezembro de 1945 – Sexta-feira

Jesus e a Mãezinha me abençoem mais este sacrifício, que vou fazer, em ditar algumas palavras. Que Eles sejam a minha força. Que tremendo é o sofrimento da minha alma e do meu corpo! Temo morrer e já temo não morrer. Temo morrer sem que me seja dado o meu Pai espiritual. E já temo não morrer depois de ele vir junto de mim. Falo do corpo e falo da alma, mas parece-me que nem a um nem a outra tenho. No lugar do corpo ficaram as dores físicas, e no da alma as dores morais. Sinto serem estas que ocupam os seus lugares. Ai de mim, não sei dizer o que se passa. Para onde foi o meu corpo? Para onde foi a minha alma? Eu queria-os e não os tenho. Parece que não os possuo nem nunca os possuí. A minha cama, a minha cama! Não posso estar nela. Que medo eu tenho! Quero abandoná-la e desaparecer. Apetece-me dizer a Jesus que não quero sofrer.

Que tentação do demónio contra a fé! O céu não existe, não há Deus, não há almas a salvar, de nada vale sofrer assim! Não sei dizer as minhas amarguras. Sinto que ninguém me compreende. Todos me desprezam, e as humilhações esmagam-me. A cegueira do meu espírito cegou-me por completo.

— Ó trevas, negras trevas que me matastes! Ó meu Jesus, tinha tanto que dizer e não sei e não posso falar. Quero gritar, quero chorar. Não há quem se comova das minhas lágrimas.

O horto de ontem foi tão duro ao meu coração! A terra, onde eu estava prostrada com Jesus, eram só espinhos. E eu não podia ver Jesus prostrado sobre eles. Era um banho de sangue para mim e para Ele. Vi-O no meio de tanto sofrimento, de rosto tão sereno, a oferecer ao Pai, repetidas vezes, o cálice da amargura.

E o calvário de hoje? Eu era como que uma bola que rolava de cima a baixo e de baixo a cima pelo meio dos sofrimentos. Era a bola de entretimento dos algozes. Descia, quando pelo furor era arrastada. Subia, quando a violência me fazia subir. E sobretudo o amor, sim, esse me obrigava a caminhar. No calvário senti a Jesus de tanta forma! Primeiro, de braços abertos, ouvindo os ossos a estalarem, deslocando-se dos seus lugares. Depois, de cabeça inclinada sobre o meu coração a agonizar e a bradar, quase sem vida. Por último, senti-O depois de ter expirado. E isso, o silêncio da morte, é que condizia com a morte e cegueira do meu espírito. Veio Jesus. O sol rompeu um pouco por entre as nuvens, a alma viveu.

— Minha filha, os cravos que te prendem à cruz são cravos de amor. É o que há de mais forte, são cravos inquebráveis. Anima-te, encoraja-te. Esmaga-te o peso da justiça divina? Não temas: é para não ser esmagado o mundo e esmagado para sempre. Nada vês com as trevas e cegueira do teu espírito? Alegra-te: é para as almas saírem da cegueira do pecado e não viverem nela eternamente. No céu verás, filha querida do meu Divino Coração, quanto os teus sofrimentos foram úteis para as almas. No céu verás, e dentro em breve, a vida maravilhosa, a vida mais rica, a vida mais divina que viveu em ti. Operei em tua alma o que há de mais encantador. Vivi eu, viveu o céu, e não tu, e não a terra. a tua vida foi sempre do céu e não do mundo. Por ti velei, em ti semeei, em ti colhi os frutos mais deliciosos para e para as almas. Ó vida toda de amor! Coragem, flor bela, flor mais rica, que a terra encerra! Ó perfume, ó perfume! Ó encantos, ó encantos!

— Não digais mais, meu Jesus. Só se quereis aumentar mais a minha dor. A minha miséria envergonha-me. Vede que não resisto. Olhai para a dor do meu pobre coração e lançai sobre mim o Vosso olhar de compaixão. Os meus ouvidos não podem ouvir coisas tão lindas, depois de me sentir tão miserável.

— Eu posso dizer, posso clamar bem alto, tenho os meus direitos: a tua generosidade e o teu amor assim o exigem. Posso chamar-te os nomes mais belos, dizer-te as palavras mais encantadoras e digo. Dou-te todos os títulos, tens o lugar de honra em meu Coração. És a chave de oiro, que tudo abre e tudo fecha. És poderosa, poderosa, a alma mais poderosa. Olha o mundo: salva-mo! Bem depressa, no céu, poderás ver todas as almas, a sua vida, o perigo em que vivem. Quando te forem recomendadas, dá-me por elas um sorriso, um olhar e diz-me: “Jesus, são para salvar”. Isso basta. E, mesmo que não tas recomende, vendo-as em perigo, lembra-mas.

— Ó meu Jesus, então vou lembrar-Vo-las todas, pois a todas quero salvar, e Vós ainda muito mais.

— Lembra, lembra, filhinha, tens os teus direitos. Vai ser muito pequenino o número das que se vão perder, só mesmo aquelas que não quiserem salvar-se. Vou, depois de amanhã, pedir-te alguns ataques do demónio. Não tos pedi nestes dias por ser a novena da tua querida Mãezinha. Ela ama-te, tu ama-La. Não mos negas, não? Vou pedir-tos pelos sacerdotes, que tanto me ofendem, pelas famílias, pelo mundo. E continua a dar, alegre, por ele o teu sangue. É teu, é meu. Ó maravilha! O Sangue de Cristo Redentor unido, transformado no da nova redentora! Ó resgate, ó redenção contínua! Vai, filhinha, tem coragem, nada temas. Tenho poder para romper todas as nuvens e vou fazê-lo, hei-de vencer os corações. Os homens nada podem contra o poder divino, são apenas estorvos à Sua luz, à Sua causa.

14 de Dezembro de 1945 – Sexta-feira

Para reparar o mal que fiz, para provar que obedeço a quem tem direito de me mandar, vou ainda fazer mais um sacrifício, ditando, embora alternadamente, o que me vai na alma. Custe o que custar, Jesus será a minha força, para eu dizer alguma coisa. Quanto se sofre e como se sofre! Tenho sofrido tanto, mas não com a perfeição com que devia sofrer. Que pena eu tenho!

O demónio tem procurado todos os meios para fazer-me perder e desgostar o meu Jesus. Fui por ele assaltada três vezes fortemente. No primeiro ataque, atormentou-me em forma de cão. Nos outros dois, em forma de homem. Que gestos feios, que feias coisas ele me disse! Houve um pequeno intervalo, dum ao outro ataque. Foi de madrugada. Cansada de combater, fiquei com uma tristeza mortal e com duas vergonhas ao mesmo tempo: a corporal e a espiritual. De cabeça baixa, não podia levantar os olhos para Jesus. E a alma não podia aguentar-se na Sua divina presença. Nunca tal vergonha tinha sentido. E tinha, dentro de poucas horas, de comungar. Mas, no momento da comunhão, a vergonha desapareceu, e pude em paz receber Jesus. Eu repeti-Lhe, ao terminar da luta, o que muitas vezes Lhe tenho dito: que antes queria o inferno, naquele momento, do que ofendê-Lo.

— Pecar, não, pecar, não, Jesus.

Mas o maldito afirma que eu tenho pecado e que de mim haviam de sair muitos descendentes do demónio.

O dia oito, o dia da Mãezinha, foi da maior escuridão e tristeza profunda. Queria amá-La, consolá-La, falar com Ela, dizer-Lhe muitas coisas e não sabia. Que vida perdida, de vez em quando, me sugeria o demónio! E, logo no dia seguinte, quando me atormentou fortemente, dizia-me:

— Não és amada por Maria. Se o fosses, Ela não deixava passar o dia de ontem sem te consolar e não te deixava sofrer mais.

Isto avivava fortemente a minha dor. Há dias em que mal podia resistir com as ânsias de ter junto de mi o meu Pai espiritual. Se sempre tenho sentido a união das nossas almas, agora muito mais ainda. Não são coisas da imaginação, é a alma que o vê, que o sente, como se viesse voando de longe para junto do meu leito. E, por vezes, em espírito falava com ele, desabafava dolorosos sofrimentos, que nestes quatro anos de separação feriram profundamente o meu coração e a minha alma. Quando reflectia que eram com ele estes desabafos, a custo resistia à dor.

— Meu Deus, o que será isto? Será para mo deixarem vir agora junto de mim?

E assim ia vivendo nisto. Chegou o dia dez. Pelas nove e meia da manhã, tive alguém amigo, que veio visitar-me e deu-me a triste notícia de que o meu Pai espiritual sairia para o estrangeiro, mas sem saber a certeza se sim ou não a novidade tinha fundamento. Ao ouvir isto, fiquei como se um punhal agudo me atravessasse o coração e me tirasse a vida. Fiquei calma, serena e confiada e disse:

— Não me convenço, não pode ser, não pode ser, não pode ser! Nosso Senhor não falta ao que promete. Se isso assim fosse, seria o bastante para eu desesperar.

Foram poucos os momentos desta tranquilidade: uma tempestade fortíssima se levantou em meu espírito. O demónio trazia-me à imaginação quanto havia. Via a minha vida enganosa e cheia de ilusões. Enganosa, porque me parecia ter enganado, mas nunca procurava enganar os outros. E, nesta angústia, ouvia uma voz que me segredava: “não, não, não vai, confia! Até aqui mandaram os homens, mas agora mando eu”. A alma via uma mão como que a impedir a sua saída e a acalmar tudo. Mas a tempestade furiosa, a cegueira tremenda do meu espírito tudo fizeram desaparecer. Seria o demónio a enganar-me? E continuaram as mesmas dúvidas, o mesmo tormento. A minha cabeça parecia transformar-se em água. Não podia mais. É indizível o meu sofrimento, estava no auge. Chorei muitas lágrimas, mas lágrimas resignadas. Oferecia-me a Jesus como vítima. Umas vezes com os lábios, outras em espírito. Rezava o Magnificat em acção de graças por tanto sofrer e dizia:

— Louvado seja o Senhor! Bendito seja o Senhor!

E, quando isto dizia, o meu coração vibrava de entusiasmo, pois o seu único fim era que Jesus fosse bendito e louvado. De noite, nos momentos em que tive sono, ao despertar, sentia o coração tão vivamente ferido e perguntava a mim mesma:

— O que é esta dor? O que é que me fere?

E, no mesmo momento, principiava a tempestade, relembrava tudo.

— Jesus, sou a Vossa vítima!

Na comunhão do dia onze, queria perguntar a Jesus se sim ou não era verdade o que se dizia da saída do meu Pai espiritual. Não me atrevi.

— Jesus, quero fazer só aquilo que é mais perfeito. Fazei que a minha confiança em Vós suba, suba, suba, vá tão longe quanto pode ir.

Ao fazer as vinte e quatro horas deste martírio, disse:

— Jesus, vinte e quatro horas de agonia, e sem ter uma luz! Dai-me, dai-me quem me console!

Lágrimas, oferta de vítima, magnificat, louvores ao Senhor, era o meu entretimento de todas as horas. Mas ai! Em quantas me parecia vacilar, desesperar! Por grande espaço de tempo, repetia sempre:

— Jesus, Mãezinha, tende dó, valei, valei à Vossa pobrezinha!

Ao fazer as quarenta e oito horas, disse:

— Jesus, sabeis bem que toda esta minha preocupação, todo este martírio são por Vós, pelas almas, não por mim. Passasse eu pelo que passasse, mas não sofresse a Vossa divina causa, não sofressem as almas. Vede o bom nome dos que me são queridos, vede o que têm feito por mim. Se eu tivesse que vender e fosse possível eu poder pagar-lhes, não só o valor material, mas as canseiras, os carinhos, o amor que me foi dispensado, já ficava satisfeita. Ai, se ao menos as minhas pobre orações fossem valiosas! Jesus, Jesus, aceitai tudo isto, para que o meu Paizinho seja libertado, dado à minha alma, dado às almas. Jesus, Jesus, não me deixeis vacilar! Ai de mim, não tenho ninguém, não tenho luz, não há quem me console! Jesus, mandai-me alguém, para conforto da minha alma.

Eu pedia a consolação não para alegria minha, mas sim para vencer sem desgostar a Jesus.

— Ó sofrimento insuportável!

Sentia e via, apesar da minha negra cegueira, que nada faltava para eu desesperar. Os pratos da balança estavam certos um com o outro. O mais pequenino sopro bastava para o do desespero baixar. Que horror, que pavor! Veio o meu médico, vieram algumas pessoas amigas, bem esperava conforto, mas não o tive. Jesus não o permitiu. Ainda me atormentou mais a lembrança de que as minhas lágrimas, ou qualquer palavra, os edificasse mal ou talvez os escandalizasse. Apesar de me parecer na balança vencer o prato do desespero, as lágrimas foram sempre resignadas. Eu não duvidava de Jesus, mas sim de mim. Temia ter-me enganado. Não desconfiava de Jesus, mas sim de mim, só de mim. Era a mim que eu temia e temo. Logo que os tenha junto de mim, vou-lhes pedir perdão pelo mau exemplo que dei. Para provar que foi a minha dor que falou e não eu, aqui estou a fazer este sacrifício, pois disse que não obedecia mais, que não ditava, para assim morrer a minha vida. Foi a dor, foi o temor de mim mesma a causa de tudo isto.

— Perdoai-me, meu Jesus. Bem sabeis que por mim não me importa voltar a ver aqui na terra o meu Pai espiritual para gosto meu, mas, ó Jesus, sois Vós, são as Vossas promessas, são as almas. Mas eu confio e espero em Vós.

Neste triste penar, passei pelo horto, subi o calvário com o coração oprimido, apertadíssimo por mãos humanas. Eu era o grãozinho de trigo moído, transformado em farinha, mas essa farinha continuava a ser moída, moída, até desaparecer. Eu era o cachinho de uvas, apertado entre a prensa, e, depois de ter dado todo o sumo, até esse tinha para ele novas prensas, que o faziam dar tudo até extinguir-se. Estava no calvário, ligadíssima à cruz. Sentia na cabeça os espinhos tão agudos que pareciam até chegar à garganta. O abandono de tudo e de todos, um clamor contínuo: meu Deus, meu Deus! A minha alma via a balança e o perigo em que estava. Queria Jesus e tinha medo de Jesus. Temia que Ele estivesse triste comigo. Queria-O para confortar-me. Temia desesperar. Ele veio de encontro à minha agonia.

— Sossega, sossega, sossega, minha filha. O que temes tu? Não sou eu teu Pai, teu Esposo e teu Rei? O que pode temer a filha de seu Pai, a esposa de seu Esposo, a rainha de seu Rei, se se amam com amor leal, com amor puro, com amor igual ao amor com que nos amamos? Eu amo-te com todo o amor, tu amas-me com todo o amor que te é possível. Sossega, sossega, não me temas. Diz-me, esposa amada, quero ouvir a tua voz. Responde-me, diz-me a causa do teu temor.

— Bem o sabeis, meu Jesus. Tenho medo de Vos ter ofendido e de não ter sofrido com a perfeição que desejais.

- Sossega, sossega, conheci bem a causa das tuas lágrimas. Quero que penses mais nas minhas palavras. Diz-me: não confias em mim? Não confias nas minhas divinas promessas?

— Sabeis bem que confio, Jesus, e, se mais não me lembro delas, Vós assim o permitis. Confio no que me dizeis, mas não confio em mim nada, nada, e temo ter me enganado.

— Não te enganaste, não te enganas, minha filha. Poderia eu deixar-te enganar-te, tu que há tanto tempo tens tido uma vida de dor, de generosidade e amor? Não, não, sossega. Dou-te o teu Paizinho, não falto às minhas promessas. Dou-te o céu em breve, muito em breve. Estás no último degrau do sofrimento e dele passarás ao céu. Não terás luz, não terás conforto, não tos dará o teu Paizinho, o suficiente para viveres? Ó vida maravilhosa, ó vida semelhante à minha! Também eu clamei, como tu tens clamado muitas vezes: “meu Deus, meu Deus!” E, como tu, também não recebi conforto. É verdade, minha crucificada, que o teu sofrimento é inigualável, chegou ao auge, nada faltava para seres lançada ao desespero. Pus no prato da vitória a minha divina mão. Podes contar com ela e com que a agonia chegue ao seu auge. Tem coragem! O mundo necessita de todo o martírio, está em perigo. Salva-o! Salva-o! Deste mar de dor, deste mar de sangue, levantam-se estrelas cintilantes, pétalas perfumadas das flores mais belas a espalharem-se pelo mundo. As estrelas dão-lhe luz, as pétalas perfumadas vão com o seu aroma cicatrizar as feridas das almas. É a tua missão, é missão salvadora. Olha a violência da dor como arranca, como espalha pelo mundo essas formosas pétalas. Têm mais força, vão mais ao longe do que as folhas das árvores, arrancadas pelo furor dos ventos, pelos horrores das tempestades.

Vi Jesus com a Sua divina mão a tirar dum abismo de sangue essas pétalas e estrelas,, a espalhá-las, a fazê-las voar. Pareciam chegar aos confins do mundo. Jesus, muito sorridente, semeava-as com canseira.

— Olha o fruto da tua dor, olha o tem amor a Jesus e às almas. Tem coragem! Vai em paz!

Após uns breves momentos, senti-me mergulhada nos mesmos sofrimentos e a alma revestida da tremenda cegueira. Vou repetindo muitas vezes:

— Meu Deus! Meu Deus! A Vós me entrego, sou a Vossa vítima. Não quero nem posso ter uma palavra de censura contra os que me fazem sofrer. Não me esqueço de orar por todos e agradeço a Jesus por tanto ter que me dar.

19 de Dezembro de 1945

Se eu estivesse no fim da minha vida, queria que a minha primeira palavra fosse: “faça-se a Vossa vontade!” Depois, como um rasto de sangue que alastrasse pelo mundo todo, queria repetir com toda a força possível: “amai, amai, amai a Jesus!” Não sei o que me vai na alma. é uma mistura de cegueira e de ânsias de salvar o mundo…

Ontem e anteontem, não perdi o sangue. O dia de ontem foi de sofrimento. Sofri muito por não perder esse sangue, que não é meu, que é a vida de tudo, pois Jesus mo disse que é um resgate contínuo. Se o perco, é o medo horroroso de morrer com o medo de que se não cumpram as promessas de Jesus. A alma, numa aflição indizível, quer dar sangue, sangue pelas almas. Hoje, voltei a dar esse sangue, mas acompanha-me neste sofrimento o pensamento de que hoje dou o sangue, mas amanhã não voltará a derramar-se. Jesus vem muita vez a consolar-me acerca do Paizinho.

— Sou Jesus, sou Jesus, confia. Dou-to, mando eu!

Veio neste dia o inimigo e deixou-me um descaramento que me deixava insensível diante de Jesus. Quanto sofri pelo meu descaramento!

Noto que, quando tudo parece ruir, a minha alma fica como um mar sem ondas… Costumo pedir a Jesus e à Mãezinha que cada momento seja como o último da minha vida. Hoje, a certa altura, senti uma consolação que me não dá alegria e vejo que Jesus então fica muito satisfeito por ver a minha disposição interior de que nada me entristecem as coisas deste mundo. Se Jesus me tirasse o sofrimento, antes queria o inferno até ao fim do mundo, porque vejo que o sofrimento é vida das almas. Não posso suportar este nada que eu sou diante de Nosso Senhor. Além do meu sofrimento, que é a minha vida, sinto em mim como que uma voz poderosa que chega até ao fim do mundo e que clama com um eco, que se não mede; clama amor e chama a humanidade a converter-se.

 

N.B. – Os sentimentos do dia dezanove foram recolhidos pelo Sr. P. Humberto, em conversa com a Serva de Deus.

21 de Dezembro de 1945 – Sexta-feira

Horas de alívio, momentos mais felizes para melhor poder levar a pesada cruz e aguentar com o aumento do seu peso.

Tive junto de mim quem bem compreende a minha alma. Pude abrir-me, pude desabafar. Não foi gozar, mas senti-me outra, era mais forte. Parecia-me ter um coração novo, com mais vida. Não sabia como agradecer ao Senhor. Rezei o magnificat, esforcei-me por Lhe dar louvores. Ao cabo de poucas horas, tudo estava modificado.

Voltei a não ser eu, voltei às minhas trevas, à minha negra cegueira. Voltei aos meus horrores, horrores mesmo à minha cama, ao meu sofrer. Veio a hora de eu comungar. Jesus veio fortalecer-me. No fim de Lhe dar graças, novo punhal veio cravar-se na mesma ferida que o coração já tinha. Uma carta, vinda de quem não conheço, veio pedir-me orações em favor do meu Pai espiritual e anunciar-me a sua ida para o Brasil. É de estremecer e o sangue gelar nas veias. É impossível dizer a dor do coração, mas nesta hora não chorei, estava a agonizar, mas uma força, vinda não sei de onde, obrigava-me a sorrir. Fitei meus olhos em Jesus e na Mãezinha e disse-Lhes:

— Aceito, aceito, mas amparai-me, velai por mim.

No decorrer das horas, a tempestade levantou-se fortíssima. A alma manteve-se em grande serenidade e paz, mas as lágrimas deslizaram-me na face. Ia-as oferecendo a Jesus como actos de amor. Dizia-Lhe que aceitava e confiava e que Ele fosse bendito na terra e no céu. De novo rezei o magnificat e deixei crucificar-me mais fortemente na cruz.

Veio o demónio com um forte ataque. Aumentou o desfalecimento, e de novo a querer vencer a balança do mal. Parecia-me que estava toda revestida do demónio e toda presa por ele. Acudiu-me Jesus.

— Minha amada filha, a cada pancada fortíssima do teu coração, tão enfraquecido e consumido pela dor, são arrancadas as almas para sempre das garras de Satanás, saem da cegueira para a luz, do pecado para uma eternidade feliz, para o céu. Vê o valor da tua reparação. Confias em mim? Tem coragem! Não me ofendes. Eu te ajudo a levantar e a caminhar com a cruz.

Jesus levantou-se com as Suas benditas mãos e levantou também a cruz, que de novo ficou sobre os meus ombros. Foi Jesus que me levou à minha posição. Libertada do demónio, continuei na mesma cegueira e dor. Dentro de mim apareceu o horto. Temia-o tanto, tanto! Via os sofrimentos a esperarem-me e as ciladas armadas. Sentia no meu coração outro coração amarguradíssimo, e nos meus lábios outros lábios, que a toda a amargura sorriam com a maior doçura. Hoje, apresentou-se-me o calvário, tão alto, tão alto, parecia subir às nuvens. Desfalecida, não podia dar um passo sem sentir as carnes a desfazerem-se, os nervos a destruírem-se. No subir deste calvário, oh! quantos espinhos vieram ferir-me! Reguei-o com muitas lágrimas dolorosas, mas resignadas.

— Jesus, Jesus, ai quem me acode! Se não me valeis Vós, quem poderá valer-me?

Bendito, bendito e louvado seja o Senhor! A tempestade pavorosa acompanhou-me sempre. Tombou-se a barquinha nos mundos, nos mares das minhas trevas. Entregue à horrorosa cegueira, não consegui salvar-me nem voltar para dentro dela. Sentia-a junto de mim, mas não tinha força para me prender a ela. Eu não tinha corpo, era apenas um pouco de espuma do mar. Dos profundos abismos da minha cegueira, clamei fortemente ao Senhor. Clamei, mas não fui ouvida. Queria dar-Lhe, mas não tinha quê, pois não era eu quem sofria.

— Ó agonia, ó abandono, ó escuridão!

Não vinha um conforto do céu. Jesus não aparecia. De repente, a minha alma vê-O a ser descido da cruz, cruz que estava dentro de mim. A santíssima cabeça pendurada, um braço já estendido e a Mãezinha já sentada ao pé da cruz, de braços abertos para O receber. Mas ai, quanto isto me custou! Estremeci, parecia-me sentir o corpo de Jesus sem vida, frio e gelado. Eu ia com este Jesus e morta também. Mas ainda cheguei a ver a Mãezinha cuidar d’Ele, a limpar-Lhe o sangue e o pó. Que dor, que agonia! Falou Jesus:

— Filha amada do meu Coração, demorei a falar, mas não tardei em vir, porque habito sempre em teu coração, sem interrupção de um só momento. Ó maravilha, ó maravilha! O Artista Divino continua a Sua obra em tua alma. O Jardineiro celeste não cessa de colher as mais viçosas flores neste jardim, neste terreno por Ele preparado. Demorei-me a falar-te, para fazer-te participar da dor de minha Bendita Mãe, ao receber nos Seus braços o meu corpo frio e inerte, e para provar-te que, assim como Ela compartilhou da minha divina paixão, velou, cuidou de mim, assim compartilha da tua vela e cuida de ti. É a mesma redenção a seguir, é o mesmo mundo a salvar. Ó maravilhas, ó maravilhas sem igual! Não te preocupes, minha filha, com o teu desaparecimento. Sentes desaparecer todo o teu ser, só brilhar a tua miséria, para só eu aparecer e brilhar a minha grandeza. Não te importes ser apenas um pouco de espuma do mar. A tua vida já não existe, é só Cristo transformado na Sua vítima, é a vítima transformada em Cristo. Nada temas com o virar da barquinha. Nada temas da tua cegueira. Apesar de tombada e a lutares na ta escuridão, não permiti separares-te dela: é sinal de salvação. Escuta-me atentamente. Tem coragem. As minhas palavras não faltam, são firmes, mais firmes que um rochedo indestrutível. Não há mãos humanas que possam abalá-lo.

Vi Jesus, que era esse rochedo, e via-O todo rodeado por quem, a todo o custo, O queria despedaçar e destruir. E Jesus, com Suas divinas mãos, fazia como quem abana uma árvore e dizia:

— Vê como estou firme, ninguém pode destruir a minha divina obra, aquilo que é meu. Tem coragem, tem coragem! A dor é o selo real. A tua dor é amor, a tua cegueira é luz: amor que incendeia os corações, luz que ilumina as almas. O mundo é teu e está em perigo. Eu tiro do teu corpo, da tua dor sem igual, de todos os espinhos que te ferem, flores belas, flores puras, flores cândidas, para colocar na minha sacrossanta cabeça, no lugar dos espinhos que o mundo me colocou e continua a colocar.

A minha alma viu a coroa de espinhos de Jesus, transformada em lindas rosas.

— Meu Jesus, ver-Vos no gozo e na alegria, ver-Vos louvado, glorificado e adornado com as mais belas flores são os meus desejos. E, para isso, que eu viva sempre na dor, não me importa. Mas olhai, meu Jesus, não me deixeis enganar. Eu temo-me a mim mesma. Parece-me que tudo está perdido, parece-me que todo o meu viver tem sido uma completa ilusão.

— Escuta, sossega, vale tudo a palavra afirmativa do teu Jesus. Não te enganaste, não te enganas. Podes contar com o teu Paizinho. Dou-to, dou-to para a tua alma. É grande a malícia dos homens. São dignos que eu me envergonhe de os ter por meus discípulos. Foram punidos, serão punidos. Fazem escandalizar, fazem grande mal às almas. Haverá entre eles grande revolta. Hão-de sentir o peso da mão vingadora da justiça divina. É grande a responsabilidade daqueles que mais a sério tinham de ver, de tratar e cuidar daquilo que é meu. Hei-de pedir-lhes graves contas.

— Isso não, isso não, meu Jesus. Peço-Vo-lo pela Vossa cruz. Não castigueis, não lhes peçais contas. Fazei que entre todos reine a Vossa paz, reine o Vosso amor. E não Vos queixeis mais, meu Jesus. E permiti-me que eu oculte os Vossos queixumes.

— É bela, é encantadora, é grande como Deus a tua caridade, minha filha, porque é a caridade do mesmo Deus. Tudo isso me alegra e consola, mas têm de ser punidos. E já com isto são castigados: diz tudo, tudo; tudo quero saído, ditado pelos teus lábios. Serei contigo, para te dar força e para venceres todo o sacrifício. E, para te iluminar, terás toda a luz do Espírito Santo. E todas as outras coisas ficarão para quem em pouco te compreende. Não quero violentar-te. Daquilo que eu queira só dito por ti previno-te. Tem coragem! Para ti o meu castigo será de amor.

— Dizei-me, meu Jesus, o meu Paizinho sempre sai para fora de Portugal? Perdoai-me o meu atrevimento. Bem sabeis quanto me custa.

Jesus sorriu e demorou um pouco no Seu sorriso a dar-me a resposta.

— A nova pátria dele será a Pátria celeste, quando eu o permitir. Vou pedir-te mais ataques do demónio. Repara-me, é remédio para as almas, é bálsamo para as feridas dos pecadores. Nada temas, não me ofendes. Virei com a minha Bendita Mãe acalentar-te, aquecer-te ao calor do nosso amor. Vai em paz.

— Obrigada, obrigada, meu Jesus! Ai de mim! A tempestade não cessa. Ai tantos sofrimentos! Ai tanta cegueira! Oh! como estou esmagada com o peso da minha cruz!

1947

Janeiro

3 de Janeiro de 1947 - Sexta-feira

Onde estais, meu Jesus? Para onde fugistes de mim? Eu não posso passar sem Vós, meu Jesus. Vede que estou sozinha; vede quanto sofre a minha alma. Ela está cega e muda, não vê nem sabe dizer o que tem. Tremo de pavor e temo vacilar. Não posso dar um passo que não caia num poço sem fundo; este poço dá-me a morte. Mais um ano é passado, meu Jesus, e eu não posso olhar para trás, não vejo outra coisa senão treva atrás e à frente de mim. Como passei o meu tempo? Como o empreguei ao vosso serviço? Que mal, que mal, meu Jesus! Ó vida, ó vida que eu não soube nem sei viver! Que pobre, que miserável, e nada sou! Ah, se eu visse, mesmo muito ao longe, uma luz que me guiasse para vós! Se eu tivesse no meu pobre coração um pouquinho do vosso amor! Nada, nada, meu querido Jesus. São as trevas a luz que eu tenho; é o gelo o meu amor; é a morte que fala, é o silêncio da morte a voz, o brado da minha alma. E o Céu, o Céu, morro de saudades, morro, morro, Jesus. Nada faço para o merecer, nada sofro por vosso amor. A minha oferta, Jesus, a minha entrega a Jesus na noite de Natal foi para mim mais um fogo de vistas e não um amor sincero a Jesus, nem o fim de O consolar. Não sei o que me levou a fazer tal entrega; nem compreendo o que Jesus quer com estes sentimentos da minha alma. Seja o que for, lancei-me nos seus braços divinos como a criancinha sem olhos, sem pernas, sem vontade, sem entendimento. É em espírito, nos seus santíssimos braços que me conservo, com o coração, a cabeça e todo o corpo em sangue, dilacerado pelos espinhos. É nele e com Ele que a alma, momento a momento, vai agonizando. Que me importa não ter luz se a razão e a fé me afirmam que ela existe? Por vosso amor, meu Jesus, deixo passar sobre mim toda a tempestade. Ao terminar os últimos momentos do ano com as luzes acesas rezei o “Te Deum”. Foi o meu acto de acção de graças a Jesus por tudo o que Se dignou enviar-me que me causasse dor ou alegria; por tudo O bendisse pela grande prova do seu amor. Que ignorância a minha! Não soube dizer-Lhe mais nada. Principiei o novo ano tirando à sorte os meus protectores. Calhou-me S. José e Santa Teresinha. Fiquei contente pela sorte que me caiu. Que eles sejam os meus guias por entre as trevas que tanto pavor causam à minha alma. Convidei todo o Céu a interceder por mim e a ensinar-me a amar a Jesus e à Mãezinha. Queria só viver a vida do amor.

Passou no dia 2 o quinto aniversário em que Jesus me disse: «Prepara-te para a luta, que tens que combater aparentemente sozinha». E que luta foi esta, meu Deus! Oh, como esta data me mostrou, por entre as trevas, os caminhos espinhosos que pisei! Ao principiar o ano, principiei a sentir cair sobre mim uma chuva torrencial; esta chuva para desfazer e queimar o meu corpo, sinto-o mesmo como se ele ardesse em chamas, parece que me deixa toda em cinzas de fogo. Estou cansada de tanto sofrer. Mas a alma está como de braços abertos para receber tudo o que Jesus quiser dar-lhe.

Tive um combate tão grande, tão grande com o demónio! O coração, de aflito, bateu tanto e tão fortemente que por último acabou por não viver; fiquei quase morta no pecado. E na morte que me senti não tinha força para sair do pecado nem tinha coração que me levasse ao arrependimento. Mergulhei-me no lodo e nele tinha que morrer. O demónio continuava com as suas feias palavras e indecentes lições. Senti dentro de mim alguém que com todo o rigor lhe fez sinal para se retirar. Retirou-se, ou retiraram-se, porque eram mais que um; fugiram espavoridos. Eu fiquei abismada na minha dor. Não há sofrimento que me lembre tanto de dizer a Jesus que não como os combates do demónio, quando sinto ele a aproximar-se.

Ontem já de noite, quanto mais me esforçava por desviar do Horto o meu pensamento, mais o coração dele se aproximava. O solo do Horto e a justiça de Deus eram para mim as pedras dum moinho. O meu corpo era o grãozinho de trigo que entre elas era esmagado e moído. O coração, à semelhança duma nuvem que se abre para descarregar a água, abriu-se para descarregar amor e receber toda a dor. Aquela dor fez-me sentir como se o meu corpo suasse água, suasse sangue. Prostrada por terra numa gruta retirada, senti e a minha alma viu um anjo levantar-se. Fiquei mais forte para o que me esperava. Hoje, logo de manhã, estava Jesus no meu coração com a sua santa cabeça cercada de tão agudos espinhos que me feriam também a mim toda quando Jesus Se inclinava sobre mim. E as carnes divinas de Jesus caíam dentro do meu corpo aos pedaços. Ele era açoitado dentro em mim; eu era a coluna, eu fui a cruz. E assim passei o Calvário e cravada nele senti bater brandamente, mesmo a agonizar, o Coração divino de Jesus. E senti que Ele no alto da cruz, no meio da mais dolorosa agonia, nos últimos momentos da sua vida espalhava amor, só amor. O amor estendia-se a todo o mundo como o perfume se espalha. E eu com Ele, por seu amor e pelas almas, agonizava. Fiquei como morta um bom pedaço. Sentia uma vida vinda muito do alto como que a contemplar a morte do meu corpo, mas não era a vida que a ele pertencia. Veio o meu Jesus.

― Minha filha, aos corações que se amam com o amor puro e santo nada há que os separe. Os nossos corações estão unidos: o meu e o teu, no maior amor, no amor divino, no amor de Deus. Não há nada, querida filha, não há nada que nos separe. Mas Eu quero, ao principiar do ano, na primeira sexta-feira, dedicada ao meu divino Coração, uni-los e enleá-los novamente. Quem vem deitar-lhes esses novos enleios é a tua e minha bendita Mãe.

Jesus tomou em suas mãos divinas o seu divino Coração e o meu; uniu-os tanto, tanto! Veio a Mãezinha, enfaixou-os, enleou-os bem com fios finíssimos doirados e conservou-se ao nosso lado. Jesus continuou:

― É um só coração, é um só amor nos nossos corações. É como uma sala com dois compartimentos com a entrada livre. Ambos têm o mesmo poder, o mesmo encanto, o mesmo Céu. Passei para o teu toda a riqueza que o meu contém. Queres saber, filha querida, o significado disto? Entreguei-te o mundo e hoje mesmo renovo a entrega. É por ti, pelo poder e missão que te confiei que este mundo vem a Mim. Passa livre do teu coração para o meu. Tu não podes ver, minha filha, nem sentir com consolação as graças e maravilhas com que te enriqueci; não convém à tua alma e é mais proveitoso para as almas dos pecadores. Enriqueci-te, elevei-te tanto as alturas como é alta a missão que te dei. Enchi-te do meu divino amor e da minha vida divina, para venceres e suportares todos os espinhos que ainda hão-de ferir-te. Não esperes consolações e alegrias: és a minha vítima. Não esperes luz, mas sim conforto e toda a abundância de amor, com a certeza de Eu sempre estar contigo e sempre em ti vencer. Sou o teu Jesus, confia em Mim. Tem coragem, que depressa vai acabar na terra a tua missão. Estou contentíssimo, minha filha, afirmo-te: foi grande a consolação que Me deste, foi grande o número de almas que salvaste com o amor com que suportaste todo o sofrimento que te dei no ano que terminou. Aqui não podes sabê-lo, no Céu o verás.

― Meu Jesus, tudo isso me humilha, mas ainda quero ser por Vós mais humilhada; falai-me dos meus pecados, porque até aqui só falastes do que é vosso. O que tenho eu de bom que não fosse vindo de Vós?

― Eu não quero falar dos teus pecados, porque nas tuas faltas escondo a grandeza e a riqueza que só no Céu será conhecida e verdadeiramente compreendida. E não falta na terra quem te humilhe. Mas coragem, essa humilhação exalta-te e também Eu fui humilhado. Não quero, minha filha, terminar este colóquio sem te prevenir, sem dar ao mundo este aviso: a chuva de fogo que sentes sair sobre ti é por seres a minha vítima; é a chuva que depressa cairá sobre o mundo, se ele não se converter; é o castigo que apenas deixará um pequeno número dos seus habitantes.

― Ó meu Jesus, e não haverá remédio? Que posso eu fazer por ele, para o salvar?

― Sofre, sofre, não é as almas que queres salvar? Os corpos nada valem. Eu te prometo: com os teus sofrimentos e o poder da minha bendita Mãe, as almas serão salvas; os corpos, a sua emenda de vida o fará. Se a vida for pura, se fizerem penitência, são poupados ao castigo. Diz, diz, minha filha, que é Jesus que chama, que é Jesus que pede, que é Jesus que convida: é o Pai que quer salvar os seus filhos. Vem, minha bendita Mãe, cingir os espinhos e a cabeça da vossa vítima.

Vi a Mãezinha com uma coroa de espinhos em suas santíssimas mãos; não sei de onde pegou nela. Em todo o tempo que esteve com Jesus não A vi com ela. Colocou sobre a minha cabeça, senti-me quase morrer.

― Coragem, minha filha, sou Mãe de Jesus, sou tua Mãe também. É com estes espinhos que ainda falta ferir-te que vais acudir às almas. Eu quero estar unida ao Coração do meu Jesus e ao teu, quero comunicar-te o meu amor, a minha ternura e doçura, para melhor poderes atrair as almas a Jesus.

― Vai em paz, disse Jesus. Leva contigo toda a confiança: nada temas: Eu não te falto. Leva a minha riqueza, leva o meu amor, leva as riquezas da tua Mãezinha querida e vai salvar o mundo. Coragem! Avizinha-se o Céu.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Vinde comigo, sede a força da minha alma.

4 de Janeiro de 1947 - Primeiro sábado

Durante a noite senti-me atormentada pelo medo pavoroso com o receio dos sofrimentos que virão de encontro aos meus caminhos. O meu corpo rolava neles doidamente, quase desesperadamente estava louca pela dor. Aqueles espinhos punham-me o corpo e a alma numa só chaga e em sangue. De hora para hora ia desfalecendo e morrendo como uma lâmpada a apagar-se. Veio o momento da Sagrada Comunhão. Tinha sido grande o meu esforço para preparar-me bem, para bem receber o meu Jesus. Não me foi possível afervorar-me, nem abrasar-me de amor. Recebi-O friamente. Passaram-se uns minutos e eu no mesmo abatimento, na mesma cegueira e dor. Falou-me Jesus:

― Coragem, minha filha! Pouco depois de raiar o dia, vem o sol com os seus raios a espalharem-se pela humanidade, para aquecerem a terra. O dia já raiou: os raios do sol, sol doirado, vão aparecer, não para aquecerem a terra, mas sim as almas; não para te consolar e alegrar, mas para honra e glória minha e grande triunfo da minha divina causa. Tem coragem, não te atemorizes! A vida da vítima tem sempre espinhos. Os teus espinhos, as tuas trevas são a salvação do mundo, são a luz das almas. A nova redentora assemelha-se ao seu Redentor. Os espinhos, as chagas, o sangue e a dor acompanharam-Me até ao último momento. Assim serás tu também. Eu estarei sempre contigo; a tua morte será de amor.

Coragem! O teu temor, o temor de ti mesma não Me desgosta. Pelo contrário, consola-Me, contanto que ao temor juntes sempre a confiança em meu divino Coração, que é louco de amor por ti.

Confia, confia. Vem comigo, minha bendita Mãe, levantar do seu desfalecimento a nossa filhinha. Vem com as tuas ternuras, vem com o teu amor. Neste desfalecimento o seu coração não pode bater asas, não pode levantar para Nós o seu voo de amor. Vem já, vem já, Mãe bendita, dar-lhe comigo a nossa vida divina.

Veio a Mãezinha, tomou-me em seus braços; oh, como Ela me acariciou e me apertou ao seu peito.

― Tem coragem, minha filha! Eu serei contigo na hora da tua dor até ao último alento; expirarás em meus braços. Qual é a mãe que não cuida da sua filha, quando a vê com o seu corpinho em sangue, numa só chaga? Eu cuido de ti, para que possas salvar os filhos meus.

Com as carícias da Mãezinha eu fiquei quase a dormir. Jesus, à volta de mim, como quem queria acariciaram-me, caminhava, pé ante pé, como se não quisesse acordar-me. Passou-se assim algum tempo; a minha alma enfortaleceu com este descanso suave e doce. Jesus continuou:

― Diz, minha filha, ao teu Paizinho, diz-lhe, quero que lho digas: que a alvura da sua alma não se mancha; o que é branco, branco fica por mais que teimem deitar-lhe nódoas, manchá-lo. É com essa alvura e com a abundância do amor do meu divino oração que Eu derramo sobre ele que ele há-de atrair para Mim as almas e levar ao mais alto grau de perfeição algumas das que lhe confiei. Criei-o para as almas; pelas almas tem de sofrer. Ele bem depressa retomará o seu posto. A sua inocência e a brancura da sua alma mais se justificarão com os acontecimentos dos factos. Eu não queria que os homens assim, mas permiti-o para maior glória minha, grande brilho e triunfo da minha divina causa e bem das almas.

Dá ao teu médico os agradecimentos de Jesus pela defesa que tomou pela causa divina. Diz-lhe que quando ele escrever alguma coisa em defesa dela, tomará a sua mão e a guiarão a mão de Jesus. O divino Espírito Santo iluminará a sua inteligência com a sua luz divina. Eu o encherei de Mim, do meu divino amor e farei que ele o comunique aos seus como doença que a todos contagie, como veneno que tudo envenena. Farei que ardam de amor por Mim.

Dá o mesmo agradecimento a todos os que te rodeiam e amparam e grande lugar ocupam em teu coração. Todos os que estão elevados em teu coração também o estão no meu. Elevo-os às alturas no amor, assim como os elevas tu. Dá-lhes, dá-lhes por Mim os meus agradecimentos.

Disse a Mãezinha:

― Une, minha filha, aos de Jesus os meus também e leva-lhes, junto ao de Jesus, o meu amor com a minha ternura e protecção.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Parece-me tão humilhante Jesus e Maria agradecerem a umas criaturas suas! Mas faça-se como quereis e, custe o que custar, eu obedeço, meu Jesus; sou a vossa vítima.

― Se soubesses, minha filha, se pudesses compreender aqui na terra o que é defender a minha divina causa e o que é amparar a maior vítima que tenho na terra, vias que eram justos e louváveis os meus agradecimentos. Bem depressa tudo verás no Céu, tudo compreenderás, e então sem prejuízo da tua alma. Se soubesses as riquezas que te dei no ano que terminou, para por ti serem dadas às almas, que alegria e consolação sentirias! Não te preveni Eu, no princípio dele, da mistura de dor e alegria, mas essa alegria não seria para ti? O mesmo te digo hoje. As tuas alegrias ficam para o Céu, que está próximo. Foram e serão alegrias para aqueles que estudam a minha divina causa e a compreendem ao saberem como te enriqueci. Foram e são alegrias para as almas que vieram e hão-de vir por ti ao meu divino Coração. Coragem! Os Anjos levam aos braçados as flores das tuas virtudes, formam com elas a mais rica, a mais formosa coroa. Que bela que está e adornada por todos os pecadores que por ti são salvos! Vai para a tua missão, para a nobilíssima missão que te confiei. Vai dar às almas, vai semear pelo mundo a pureza e o amor. Coragem! A minha paz, a minha força é contigo.

― Obrigada, meu Jesus.

10 de Janeiro de 1947 - Sexta-feira

Perguntam-me se amo a Jesus. Não sei se O amo, mas sei que O quero amar; não sei falar-Lhe nem sei como Lhe falo; sei que tudo se mergulha nas trevas e aí desaparece e morre. São tantos os meus sofrimentos! É tanta a minha amargura! Todos os meus caminhos parecem ser de sangue, mas as minhas trevas engolem tudo mais rápido que furiosas feras. O meu corpo é como o grãozinho que nunca acaba de ser moído; não cessa de moer, não falha a levada que o moinho toca. Vivo assim abandonada, sem na terra encontrar conforto. Nem nas minhas confissões que procuro serem frequentes, para mais enfortecer a minha alma com a graça do sacramento, nem nesse encontro alívio e conforto. Seja o pároco, seja o que está a fazer o lugar de meu director espiritual, estou sempre tímida, assustadíssima e a sentir sempre que não sou compreendida. Será minha a culpa, meu Jesus? Ou sois Vós que assim o permitis? Bendito sejais! Ai de mim, de quantos desabafos precisava e minha pobre alma! Quando me sinto quase perdida, a cair no abatimento e desespero, rompo por entre as trevas em espírito e lanço-me nos braços de Jesus. É dele e da querida Mazinha que eu espero auxílio, conforto e paz. Nesta angústia, sem Os ver, sem sentir que estou em seus braços, sinto-me acariciada e estreitada a um peito todo bondade. E, neste momento, sinto-me respirar, libertada de todo o peso que me esmaga; com a alma tranquila, volto bem depressa para as mesmas amarguras.

Foi no dia 7 o quinto aniversário da proibição do meu Pai espiritual vir junto de mim. Tudo recordei, cena por cena, passo por passo. A Santa Missa que no meu quarto celebrou, ó meu Deus, que saudades! As lágrimas que chorei por saber que alguém tinha publicado o que tinha observado da paixão, e eu, que tanto ansiava viver escondida, ver-me assim com as minhas coisas íntimas espalhadas. Mal eu sabia que não voltaria, em tantos anos, a ter o meu Pai espiritual, que tão bem compreendia a minha alma e em tanta pureza a queria, a dar-me os seus santos conselhos e a luz que tanto precisava! Meu Jesus, sou a vossa vítima: faça-se em tudo a vossa divina vontade.

Continuo a sentir o meu corpo a desfazer-se em cinzas de fogo com a chuva queimadora que sobre ele cai. Cansa-me ao máximo, deixa-me sem vida. Combati com o demónio; aproximou-se de mim furioso. Veio como quem vem vestido e logo ao pé de mim se despiu. Principiou com as suas feias cenas e tremendos conselhos. Invoquei os nomes de Jesus e da querida Mazinha, muitas vezes. Terminou este combate e eu fiquei como se estivesse morta. Não sei dizer a perda de vida que senti em meu coração. Não combatia, mas sabia que estava debaixo do seu poder. E ele, desviado um pouco, ria-se e lambia-se de contente. Travou-se logo a seguir outro combate. Meu Jesus, sou a vossa vítima; aceitai-me todo este sofrimento para o que Vos aprouver, para os vossos fins divinos. Ai, quanto me custa! E se eu soubesse, Jesus, se eu soubesse, Mãezinha, que não Vos ofendia! No meio do grande perigo, gritei bem alto, de alma e coração: antes o inferno que pecar. Senti-me libertada sem ver fugir o maldito; fiquei na minha posição, com a alma em grande tranquilidade e paz. Este conforto foi a vida para novos sofrimentos. Vieram as dúvidas, veio o Horto.

Era de tarde, o sol luminoso entrou no meu quarto. Este sol era a luz para todos, era a luz para o mundo, menos para mim que só via trevas. Senti o coração, não o corpo prostrado no Horto duro. Eram tais os arrancos que ele dava que parecia obrigar o corpo a rolar pelo chão e a suar sangue.

Veio a noite e então senti-me em corpo e em espírito lá. Era moída, esmagada. Era tão grande o peso da justiça divina que me pareceu que se virou o solo do Horto com o de cima para baixo, e eu, nele infundida, fui mais aniquilada. Vi depois a prisão de Jesus, o trocar de espadas, as armas dos soldados. Que grande combate, se Jesus com os seus olhares divinos e o levantar da sua mão não acalmava e fazia tudo serenar.

Hoje, no caminho do Calvário, senti Jesus curvado dentro de mim, com a sua grande e pesada cruz. As bagadas de suor que corriam do seu santíssimo rosto caíam dentro em meu peito. E eu sentia o seu divino Coração ofegante pelo cansaço. Os seus lábios iam serrados, o amor O arrastava. No alto da cruz sentia todas as chagas, mas mais vivamente a do ombro e a cinta ainda parecia ser cortada pelas cordas. A pouco e pouco todo o Calvário ficou em silêncio: só os suspiros de Jesus se ouviam, só a dor reinava aumentada com o rancor de muitos corações que, abafados não sei pelo quê, já não falavam. Eu no meu coração sentia como se todo o mundo maltratasse e apedrejasse Jesus mesmo ao vê-Lo assim a agonizar. Uni-me tanto às dores da Mãezinha; ansiava com Ela tê-lo em meus braços para curar o seu divino corpo tão chagado. Que dó, que compaixão por Jesus! Que mútua união de amor e agonia! Veio o meu Jesus e logo transformou a minha alma.

― Minha filha, a cruz é vida, é amor, sinal de redenção. Eu serei contigo, sofro, venço em ti. Os teus caminhos de sangue, os teus espinhos, orvalho doloroso que cai sobre ti, são o bálsamo, a consolação e reparação do meu divino Coração. A tua vida é amor. Assim como não cessam um só momento os crimes do mundo, não cessam também de cair sobre ti, que és a minha vítima, a chuva da imolação, do sacrifício, do martírio. Tem coragem, é contigo, em ti está o teu Esposo Jesus. O Céu espera-te, aproxima-se; bem depressa receberás a glória, o prémio do teu martírio. Vês, minha filha, como os pecadores tratam o meu divino Coração? Repara na minha sacrossanta cabeça, tão cheia de espinhos! O que seria do teu Jesus sem a reparação que Lhe dás? Vês esta chaga? Trespassa dum lado ao outro o meu Coração: foi um sacerdote. Com que maldade ela foi feita! Repara por ele. Sabes quem foi?

― Meu Jesus, se é do vosso divino agrado, se não Vos entristeço com o que vou dizer-Vos, deixai-me falar.

― Fala, minha filha, diz-me tudo.

― Pedi-me a reparação que quiserdes, aceitai por ele todos os sofrimentos que Vos aprouver, mas sem que eu saiba quem ele é, sem me dizerdes o seu nome. Não posso eu reparar-Vos desta forma?

Jesus alegrou-Se tanto e transformou logo o seu divino Coração em amor, em fortes labaredas. Aquela ferida que o vazava dum lado ao outro desapareceu: tudo era luz. A sua santíssima cabeça ficou sem espinhos e sem sinais de ferida. E aquele amor de Jesus abrasou-me a mim também.

― Que transformação tão grande, meu Amor? Para onde foi aquela chaga tão profunda e todo o ferimento, todo o sangue que o Coração continha e a vossa santa cabeça?

― Foi o teu amor, foi a tua generosidade no sofrimento: deixares-te imolar sem saber por quem. Dá-Me então a reparação que te pedir, dá alguns combates do demónio. Não tos pedirei muito tempo. Quando estiver próximo a deixar de te falar, quando a cegueira não te deixar exprimires a tua dor serás libertada dele: não permitirei que ele volta a atormentar-te de tal forma. Tu ficarás como se não tivesses inteligência para não compreenderes a tua dor, mas não deixarás por isso de sofrer menos: sofrerás amargamente. Hás-de sentir como se nunca ou quase nunca Me possuísses, e não deixarás por isso de Me possuir inteiramente, o mais que é possível possuir-Me uma criatura humana. Eu farei a graça de muitas almas verem em ti inteiramente a Mim com toda a minha riqueza, com os tesouros inesgotáveis do meu divino Coração. Tu és, minha filha, e serás depois da tua morte, para cada alma em pecado, um pára-raios a atrair a si o peso da justiça divina. E serás para cada alma em graça um íman atraente a traí-las a ti, a buscarem o amor que em ti depositei. Prometo-te isto, minha filha: seres toda vida, toda amor, toda graça para as almas. Promete seres luz para toda a humanidade. A chuva de fogo que sentes cair sobre ti era para já ter caído sobre ela: és vítima, sofre alegre, o teu peito é um jardim divino, porque nele habita, no trono do teu coração, o Jardineiro celeste. És o cofre, és a depositária das riquezas e toda a graça e poder do Senhor. Vai, pomba querida, vai para a tua cruz, cruz de amor, cruz de salvação. Vai dar ao mundo, vai dar às almas o que te dá Jesus. Vai, corajosa, vai mãe das almas! Vai, leva contigo a minha força divina, a luz do Espírito Santo. Vai depressa, para não demorarmos este colóquio.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, meu Amor. Dai-me o que quiserdes e como quiserdes. Eu não busco a minha honra e glória, mas sim a Vossa; eu não sofro com os olhos no prémio para mim, mas sim com o fim de Vos salvar as almas.

Quando Jesus disse que o meu peito era um jardim, eu possuí tanta luz que me mostrou que todo o meu peito era um vasto jardim de encantadoras flores. Mas já tudo desapareceu. Perto de terminar de ditar tudo isto, o meu espírito ficou como que encerrado numa negra prisão de ferro ou bronze onde não podia entrar luz, entendimento nem vida. Em que trevas estou já mergulhada!

— Meu Jesus, sou a vossa vítima. O vosso amor, o vosso amor, só Vós, Jesus: outra coisa não quero, só o vosso amor em basta.

17 de Janeiro de 1947 - Sexta-feira

A dor desfaz o meu corpo e tão desfeito que me parece que não existe, que só ela vive. Eu já nem sou um trapo podre; não sou nada. Oh, como eu sofro! E tão oculta; só Jesus conhece. E por amor d’Ele e por amor às almas, eu escondo o mais possível. Sofro com Ele; basta que Ele o saiba. Queixo-me, gemo, quando sinto que mais não posso. Mas a alma, a pobre alma, alastra-se, estende-se mais ainda o seu sofrimento. A dor faz a alma desaparecer tanto que já nem é um pouco de fumo que no ar desaparece.

— Ó meu Jesus, não tenho a vida da alma nem do corpo, sustenho só a dor; e é ela e com ela que estou a viver dentro de mim. É a dor a companheira inseparável da vida interior, da vida íntima com Deus.

Digo a Jesus: Quero viver dentro deste corpo que não existe, quero viver lá tão dentro a vida interior, a vida íntima com Deus Pai, Filho, Espírito Santo que não quero sair cá fora cuidar do exterior sem deixar de viver sempre no interior.

Ó meu Jesus, meu Jesus, não deixeis que o mundo me separe de Vós!

Mas eu não sei viver e sinto que nunca aprenderei a viver aquela vida perfeita, aquela vida do alto que tanto anseio viver. Perco-me à procura desta vida que não sou capaz de possuir; mas são tais as ânsias que tenho de a viver que por vezes parece cair no abismo dessa vida e, na realidade, deixar de aqui viver. Não é a vida: parece uma nuvem vaga que me absorve e leva não sei para onde. Nada disto é visto aos olhos do corpo, nada disto é palpável; são coisas da alma, e nada mais sei dizer, pobre de mim; sinto que não amo, sinto que não sou perfeita.

Quantas mais e maiores ânsias de perfeição, mais podridão, mais horror, mais miséria! É o que me mostra e faz ver a minha cegueira, por vezes tão aterradora.

Tive com o demónio dois ataques violentíssimos; foi mais tempo, mas não sei quanto. Creio que chamei uma vez alta por Jesus e pela querida Mãezinha que viessem acudir-me em tão grande perigo. Não fui ouvida, a não ser por estes amores queridos. Durante a luta queria sair dela só para não pecar. Via-o satisfeitíssimo por me obrigar a pecar. Fiquei por um espaço de tempo a dizer: não quero o gozo, não quero pecar, não quero ofender-Vos, Jesus; não, não, não quero.

Quando isto repetia muitas vezes, ouvi uma voz doce que me disse:

― Não queres não, Minha filha; sei que não queres e não pecas; sossega, vem descansar.

Tomei a minha posição e o demónio fugiu. A minha cabeça, o meu corpo, a minha roupa estavam ensopadas em suor. E o meu coração sem vida e sem poder resistir à dor do pecado disse a Jesus:

Aceitai todas as gotas deste suor como actos de amor para os vossos sacrários e cada uma delas sejam prisões que prendem as almas ao Vosso divino Coração e as arrastam das garras de Satanás.

Sentia a paz da alma, mas sentia a dor e temia com aquela dor receber Jesus, que não demorava muito a vir. Quando Ele veio e deu entrada em mim esqueci-me por completo da luta enquanto Lhe dei graças.

Depois voltei à dor, à pena, ao receio de ter pecado.

Na tarde de ontem, de um momento para o outro, senti cair sobre os meus ombros um peso esmagador. A alma viu que era o Céu que descia, era a justiça de Deus. Pouco depois, e sem pensar nisso, senti-me quase nua, presa à coluna e em público, em lugar onde todos podiam ver-me.

Já à noite, dentro dumas muralhas, à saída do portão que dava saída para o Horto, senti que Jesus chorava dentro de mim, chorava escondido, chorava de dor; essa dor abriu-Lhe o coração e fez como se Ele no mesmo momento desse ali todo o sangue. Com a Coração aberto vi dali toda a viagem do Horto. Para lá puxava-O o amor e para cá empurravam-no os maus-tratos de toda a humanidade atrás de Jesus representada. Que grande dor, que doloroso martírio sentir e ver tanta ingratidão!

Fui levada logo por umas grandes escadarias à presença dos Juízes. Como eu sofri, ao sentir Jesus, grandeza sem igual diante deles, ser tão pequenino, ser mesmo um nada! E eles, os verdadeiros nadas, cheios de orgulho e vaidade, cheios de grandeza sem nenhum poder. Abateu-se o Poderoso, e elevaram-se no seu orgulho, aqueles que nada tinham. Como Jesus sofria caladinho!

Hoje, com o coração retalhado, segui com a cruz, em marcha apressada, os caminhos do calvário. Uniam-me os pedaços do coração, ligavam-nos uns aos outros fios finíssimos de amor. Só o amor era a vida. Quanto mais caminhava e subia, mais alto se me atravessava a montanha. As golfadas de sangue eram quase contínuas e o desfalecimento levava-me à terra.

Que segredos indizíveis a alma via em tão grandes sofrimentos, em tão dolorosa viagem e por último no Calvário. As trevas negras da noite não impediram que a alma pudesse pressentir todos aqueles segredos, segredos que só a sabedoria dum Deus pode e sabe revelar. Foi unida a essa sabedoria, de quem eu nada sei dizer, que eu me senti obrigada a sofrer e a agonizar. Quantas lágrimas de Jesus, e eu não uni as minhas às d’Ele; não uni as dos olhos, mas sim as do coração, e tanto mais chorava, quanto mais ouvia e sentia o Seu brado agonizante.

— Meu Jesus, disse-Lhe eu, como é doloroso, quanto me custa este calvário; mas amo-o!

E assim fiquei, até que Ele veio; e toda a noite desapareceu.

― Minha filha, a dor é para a tua alma o que o cadinho é para o ouro; é ela que a purifica e faz grande aos meus divinos olhos. Tem coragem! A tua alma é pura, é grande, grande para Mim. À medida que ela se tem feito pura e grande, Eu te tenho acumulado das Minhas graças. És grande para Mim, és grande para as almas. Os Anjos escrevem o teu sofrimento, todo o teu martírio, e Eu vou-te enriquecendo com Meus tesouros, as Minhas maravilhas.

— Meu Jesus, quero ser pequenina, para só ser grande com as Vossas coisas, com aquilo que é Vosso. Quero ficar vazia, de todo vazia, para só Vós me encherdes. Quero em mim Jesus, Jesus, só Jesus.

Quero ser grande, por Vosso amor e para Vos consolar; quero ser grande para salvar-Vos as almas; e para mim pequenina, sempre pequenina. Não é para glória minha que busco a grandeza do céu, mas sim para Vós, só por Vós. Tende dó de mim, sinto-me tão fraca, incapaz de nada, sem saber sofrer e sem saber amar-Vos.

— Coragem filha querida; tudo em ti é amor, mesmo assim entremeado com as imperfeições, imperfeições que Eu permito. Quanto mais Me ansiares, mais Me possuis; quanto mais sofreres, mais Me amas e mais almas Me salvas; quanto mais te sentires desaparecer e morrer, mais em ti aparecem as Minhas obras e mais vida dás às almas. Coragem! Vem a Mim levantar o teu desfalecimento.

Neste momento, Jesus ficou na cruz todo chagado, coroado de espinhos e do Seu divino Coração nascia constantemente uma fonte de sangue. Eu não chegava a Jesus, mas senti como se uma força me elevasse e sustentasse junto a Ele.

— Minha filha vem à chaga do Meu divino Coração, não beber, porque não podes aguentar tanto sangue, mas sim refrigerar nele os teus lábios, saciar a tua sede e amor.

Uni à chaga de Jesus os meus lábios e sem beber o sangue senti o meu coração abrasar-se em fogo. Passado algum tempo, Jesus fez com que eu retirasse dele os lábios e, elevando-me acima um pouquinho, uniu os Nossos dois corações, deixando cair no meu uma gota do Seu sangue divino, continuou:

― É o Meu sangue que é a tua vida; é esta vida que dás às almas; é vida de salvação.

— Ó meu Jesus, sofro tanto e de nada valem os meus sofrimentos. Onde está a representação que Vos dei? Em que estado estais Vós? Eu não posso ver-Vos assim sofrer: exigi tudo o que quiserdes de mim; fazei que eu sofra o que Vos aprouver, mas saí dessa cruz e não Vos deixeis chagar assim.

― Minha filha, este sofrimento ainda não tem reparação; se queres reparar-Me, dá-Me mais sofrimentos; se não queres que as almas caiam no inferno. Que loucura e maldade é a do mundo! Como Eu sou ofendido!

Já sabeis, meu Jesus, que sou sempre Vossa vítima; quero a vossa consolação, quero almas.

― Basta, basta, nada mais é preciso; vem tu tirar-Me da cruz e curar-Me as Minhas chagas.

Pude tirar os cravos das mãos e dos pés sacrossantos de Jesus; cada cravo que eu Lhe tirava, logo a chaga cicatrizava. Tirei-Lhe, com toda a cautela, a coroa de espinhos e, com os meus lábios, ou não sei com quê, cicatrizei a chaga do Seu divino coração; deixou de escorrer sangue; a cruz desapareceu. Jesus ficou Formosíssimo, sentado no trono, coroado de Rei e cheio de glória. Tudo n’Ele e à volta d’Ele era amor; por toda a parte se irradiava.

― Olha a tua generosidade, a tua reparação, a tua aceitação do martírio. Não sofro senão em ti, revestido em ti, sozinha não sofro. Vai, pérola de Jesus, jóia preciosa; vai confiada em Mim, vai dar ao mundo a Minha vida, vai convidá-lo à penitência, vai pedir-lhe pureza, graça e amor; vai sofrer por ele. Leva a minha paz. Tem coragem, confia sempre que Eu sempre em ti vencerei.

― Obrigada, meu Jesus. Guardai-me só para Vós. Sede a minha força; não me deixeis ofender-Vos. Não morre a minha vontade, não desaparece o meu eu. De vez em quando vou a querer dizer: não quero escrever mais, não quero aparecer diante dos meus nem dos meus grandes amigos; de todos tenho medo. Em tudo aparece o meu querer. Ó minha cruz, eu quero-te, eu quero-te.

24 de Janeiro de 1947 - Sexta-feira

Não posso falar e tenho que falar. Sofro horrivelmente e não compreendo a minha dor. Caí num tal abismo de cegueira que nada vejo nem sei compreender. Apesar do meu viver ser dor, sempre dor, mergulhei-me nela e nem um só momento posso libertar-me. Perdi toda a vida; só a vida do sofrimento ficou, e, sem fim de toda a espécie de sofrimento contínuo, estou louca a querer viver, a vida para onde o meu coração e a minha alma batem as asas, levantam voo, lá vão voando noite e dia à procura daquela vida que não conseguem viver. Tão sequiosa e faminta, por vezes me parece cair das alturas à terra; é o desfalecimento de não encontrar aquilo por que tanto suspiro. Quando estou caída e triturada de toda a dor, a sentir ir quase a naufragar, a desesperar-me por completo eu chamo pelo meu Jesus, pela querida Mãezinha: vinde em meu auxílio, vinde acudir-me, eu sou Vossa inteiramente Vossa, eternamente Vossa, sou a Vossa vítima, não me deixeis ofender-Vos. Neste duro martírio logo o meu coração e a alma são transportados para um enlevo, para uma vida que os absorve e parece tirar da terra. E logo posso levantar-me e caminhar abraçada à minha cruz, louca, de amor por ela. Estes momentos de enlevo são raros, mas alimentam a alma; fico mais forte, por algum tempo; posso melhor resistir à dor. Tenho passado noites de tormentosos sofrimentos. E a Mãezinha, a querida Mãezinha do Céu tem vindo junto de mim, mostrando-me o Seu coração como Mãe do Perpétuo Socorro, e, ainda outras vezes, trazendo consigo um Menino Jesus muito pequenino. Estas visões são rápidas, mas confortam-me; sinto-me outra, por algum tempo. Ora confortada, ora desfalecida, vou passando as horas e os dias, vivendo dentro em mim a adorar a Trindade divina, a quem tanto amo. Unida a Jesus, unida à Mãezinha, balbuciando os Seus Santíssimos Nomes, vou sentido sempre contra mim a grande tempestade, a grande derrota, mas com o coração fito no Todo Poderoso e os olhos fitos no Céu, saudosa Pátria por que tanto suspiro, espero levar ao cimo da montanha a minha cruz. Foram dois os ataques do demónio na noite que passou. Antes da luta andou horas a sondar à minha volta. Parecia que eu mesma era o inferno e que pedaços do inferno caíam sobre mim. Que bichos tão feios, que medonhas serpentes me rodeavam! É o sofrimento mais amargo, por ser num ponto tão delicado. Que medo, que medo de pecar! Ouvi as suas feias lições e maldosos ensinamentos; forçava-me por os não atender; só por Jesus e pela Mãezinha chamava. Vieram muitos demónios e alguns em forma de animais. Terminou a luta para, pouco depois, principiar outra. Não sabia quando terminaria, mas sentia-me não poder mais. Depois de um brado contínuo pelo nome de Jesus não O vi, mas senti na alma como se Ele levantasse a mão e ouvi uma voz que dizia: aparta-te, retira-te para o teu lugar.

― Descansa, Minha filha; és Minha, sossega, não pecaste.

Retirou-se o maldito desesperado, mas ainda por algum tempo passavam à minha frente vultos pretos; pareciam pedaços de negras nuvens. Com a alma em paz, passei por um ligeiro sono. Ao acordar, logo fiquei a sofrer por nem uma só vez receber o meu Jesus sem um ataque do demónio, depois de me ter confessado para ter a minha alma muito pura para O hospedar.

Bendita seja a vontade do Senhor! Ao terminar o dia de ontem, ao chegar à noite, senti-me tremer e comigo tremer toda a terra. Senti os sofrimentos causados por todo o mundo, e do mesmo mundo senti todo o medo. Apavorei-me. Afastou-se tanto, tanto de mim o Céu que fiquei como se da terra não pudesse fitar o firmamento. Tudo tinha desaparecido, só o Horto ficou. Principiei a sentir da cabeça aos pés o corpo cheio de gotas de sangue. De novo voltou o mundo inteiro a aproveitar-se dos meus sofrimentos, a servir-se do meu sangue. Oh! Que diferença! A maior parte lançava-se a mim como feras, despedaçavam-me as carnes, causavam-me ainda mais dor. O número mais pequeno servia-se do meu sangue, ou, para melhor dizer, do sangue de Jesus, mas com mais paz, com mais doçura, com mais amor. Refugiada, escondida de todos os olhares pude chorar. E, logo depois, subi a encosta debaixo de uma chuva de pontapés e varadas. As lágrimas de Jesus continuam, dentro em meu coração. De manhã, continuou o coração a receber os maus-tratos em toda a tragédia do Calvário; foi ele que foi calcado e arrastado. No Calvário para serem revirados os cravos não foi virada a Cruz rente com a terra, mas sim levantada a alguma altura para o rosto de Jesus e todo o Seu Santíssimo corpo ser ferido novamente com toda a crueldade. E quando foi para ficar ao alto que grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixá-la cair na cova com tanta força; pareceu cair num poço E, ali com Jesus, sofri imensas trevas. Ele, moribundo, observava tudo. Perto de dar o Seu último suspiro, a um impulso do coração, vieram-Lhe ainda aos lábios algumas golfadas de sangue e correram no Seu Santíssimo rosto as últimas lágrimas e agonizou; agonizou e viveu; agonizou e falou-me.

― Minha filha, branco lírio, pomba querida, consolação e amor do Meu Divino Coração, guia e conselheira das almas, cópia mais real e fiel de Cristo crucificado. Eu uno, minha filha, à tua missão à mais alta e nobilíssima missão todas as minhas graças, todos os meus tesouros e méritos da Minha Santa Paixão, para teres todo o poder para melhor desempenhares a missão de nova redentora. É Cristo que sofre em ti, é Cristo que fala, vê e move em ti. Ó bela, ó encantadora, ó altíssima missão, a missão das almas. Mas nada podia fazer, filha querida, sem o teu consentimento, sem a tua generosidade, sem o teu amor. Quanto te deve o mundo, quanto te devem as almas! Faço-te poderosa, e faço que maior número de almas se encontrem e atraem para ti e vejam em ti o que é Meu. Eu dou luz; eu faço luz; mas ai pobres daqueles que mais se deviam deixar iluminar dessa luz e não deixaram; por Mim Lhe pedidas rigorosas contas. O brilho é da Minha divina causa, a dor é tua. Ela não podia passar sem prejuízo, senão à custa dos teus sofrimentos. Tem coragem! É Minha a vitória. A causa divina está na sua primavera de flores, flores que em toda a parte do mundo depressa vão desabrochar. São flores saídas dos teus espinhos. A tua vida é a vida de luz, vida de salvação. Quantas almas por ti se irão converter! Quantas levadas pelo teu exemplo, imitar-te-ão seguindo os teus caminhos atraídas por ti. Que milagres prodigiosos! Para tudo isto, minha filha, é sempre preciso a tua dor. Eu estou pronta, ó Jesus, para tudo sofrer e amar; pronta para Vos deixar trabalhar em mim à vontade. Manejai o meu corpo como Vos aprouver contanto que sempre em mim estejais Vós para com a Vossa força sofrer para com o Vosso amor eu amar. Vem então, Minha esposa querida, tirar do Meu Divino Coração estes punhais, estas espadas, que tão cruelmente o ferem. Tira-mas tu, uma a uma, e depois com o teu amor, com a tua reparação cura-lhe todas as feridas, para ficarem de todo cicatrizadas; para dares-Me a maior prova do teu amor, tira-as e crava-as em teu coração, para ficarem continuamente a ferirem-te.

Voltei-me para Jesus, vi-Lhe o Seu lado aberto e por aquela abertura saíam os cabos das lanças e punhais que tão vivamente Lhe atravessavam o Coração. Eram tantas! Muito devagarinho, a tremer de dor e de compaixão por Jesus, principiei a tirar-lhas e com toda a força a cravá-las em mim Longe de terminar, caí desfalecida. Senti mais a dor a tirá-las de Jesus, porque me parecia feri-Lo ainda mais, do que ao espetá-las em mim. Parecia-me que o sono da morte me ia levar. Jesus levantou-me, acariciou-me e incendiou d’Ele para mim labaredas de fogo e disse-me:

― Coragem! Coragem!

Pude continuar a tirar-Lhas todas. E depois Jesus uniu o Seu peito Santíssimo ao meu e disse-me:

― Cura-Me todas as feridas. O teu carinho, o teu amor, a tua reparação é o bálsamo. Meu Jesus, sou a Vossa vítima, amo-Vos. Como pode haver coragem para Vos ferir assim meu Jesus! E de que servem os meus sofrimentos se não evitam os Vossos? Sossega, sossega; a tua reparação, o teu sofrimento curam-Me as feridas para poder de novo receber outras. E evitas de tantas e tantas almas caídas no inferno! Ele lá vai continuando fechado. Os pecadores salvam-se, aos milhares, aos milhões. Olha para Mim; já não tenho em Meu coração nem uma só ferida.

Vi o coração Divino todo em fogo e vi cerrar-se o lado de Jesus que estava aberto. Ele ficou todo resplandecente de luz. Vai em paz Minha filha amada; vai corajosa, vê o valor da tua dor. Vai semear; É florescente a tua sementeira.

― Coragem! Tua dor, o teu amor é a salvação do mundo. Pede: não te canses. Quero oração quero penitência, quero emenda de vida, a principiar pelos sacerdotes. Foram deles os primeiros punhais que me tiraste; são eles que mais Me ferem por serem discípulos Meus. Haja reparação. Ai, tanta inocência perdida, tanta vida roubada ao Céu antes da sua existência na terra. Ai que maldade humana! Até por um grande número de velhos anciãos sou ferida. Que horror, que horror; tudo é lodo. Sofre com alegria Minha filha, dá-Me o teu amor. Tem coragem, não te enganas, vai em paz.

― Obrigada, Meu Jesus. Sede a vida da minha dor, sede a força do meu Calvário. Fiquei a sentir no meu coração os punhais que lhe cravei, e sinto o peito aberto como estava o de Jesus. Quero sofrer; é por Ele e pelas almas.

28 de Janeiro de 1947

Nem um guia, nem um raiozinho de luz! Tenho um medo de morte da minha escuridão. Não sei dizer, não posso explicar, parece-me que os meus dias findaram na terra, que perdi toda a vida humana.

Foi no dia vinte e quatro que principiei a sentir-me assim. É esta reparação, este estado de alma com as minhas trevas, com esta negra cegueira que me faz sentir que todas as almas e todo o mundo vivem nas mesmas trevas e na mesma cegueira de espírito. Não sei o que é, desapareci e fiquei. Esta vida, que perdi, foi ressuscitar não sei onde e lá continua numa sede ardente de salvar o mundo. Sinto que desse lugar, onde foi a ressuscitar, vem uma ligação para a terra, uma ligação para a dor, que dá força à mesma dor, faz companhia na terra. Não compreendo. Foi e ficou, findaram os dias e continuam os dias.

Noite de Natal! Ao nascer Jesus, disse-Lhe muitas coisas, sem saber dizer-Lhe nada. Pedi-Lhe muitas graças, muita luz, sem nada sentir, receber nem ver. Acompanhei-O no presépio sem ter vida, sem ter nada para poder fazer-Lhe companhia. Entreguei-me assim ceguinha ao Seu Coraçãozinho e bracinhos pequeninos. De manhã, ao recebê-Lo, tive com Ele os meus desabafos. Fiz-Lhe a entrega do meu Pai espiritual, mas queria as Suas promessas realizadas e que toda a minha preocupação era por ele, pelas almas e pelos que me eram queridos. Se fosse só eu a ser humilhada, nada me afligia. Nesta oferta o coração retalhava-se de mais viva dor. Disse-me Jesus:

— Sossega, tranquiliza-te, minha filha. Eu aceitei a tua oferta e com ela consolaste e alegraste o meu Divino Coração. Aceitei, mas não quero ter sacrifício. Cumprem-se as minhas divinas promessas. Confia, manda agora Jesus, governa agora Jesus. Que fazem os homens sem mim? Confia, tesoureira de Jesus, cofre dos meus tesouros divinos. Confia neste coração que te ama. Recebe o fogo deste coração, louco de amor por ti. Recebe-o a transbordar e dá-o aos que tu amas, dá-lho, são mimos do céu, são mimos que lhes dou por ti. Enche-os do amor e dá-o ao mundo, que é teu.

O demónio rodeia-me, põe-se à minha frente como cão raivoso que quer morder-me. Lutei, combati com ele por duas vezes. Era para morrer, se Jesus não desse a vida ao meu pobre coração, que à força de tanto bater ficava de todo desfalecido. Ao último combate, veio Jesus, deitou-me os Seus divinos braços como para levantar-me.

— Sossega, minha filha, tu não pecaste. Confia que é reparação que te peço e em ponto tão delicado que são raras as almas a quem lha posso pedir.

Veio a Mãezinha, fiquei entre os Seus braços e os de Jesus e por Um e Outra bafejada e docemente acalentada.

— Coragem, ó esposa de Jesus. Desagrava os nossos Corações e confia que por ti velamos e por ti somos consolados.

Logo que me vi sem Jesus e sem a Mãezinha, a minha dor, amargura da minha alma eram insuportáveis. Que quadro tristíssimo da minha vida se representa à minha frente! A bradar repetidas vezes, a pedir o auxílio do céu, passei pelo horto e lá, com Jesus a agonizar, vi os apóstolos reunidos, a dormirem despreocupados. Jesus, cheio de doçura e mansidão, a chamá-los para o grande acontecimento, para a prisão. Se o mundo pudesse ver tudo isto! Passei depois ao calvário, depois de ter estado à coluna e o meu corpo com o de Jesus cruelmente açoitado. Subi a montanha. Maior, muito maior que a fúria dos algozes. Era a força do amor que me arrastava. Não olhando à carne, que, desfeita, ficava por entre as pedras em todo o percurso da jornada. No alto da cruz, entre dor e trevas, sentia a tal ligação, de que acima falei. Vinha não sei de onde aquela vida compartilhar a dor, vencer a dor. Era só isso, pois meu já não era o corpo, minha já não era a vida. Depois de muito sofrer, atemorizada com tanta escuridão, veio Jesus. Veio, e tudo serenou.

— Minha filha, escolhi-te para a dor, escolhi-te para o amor. A dor é o selo real, a dor é a chave de oiro que abre os corações dos pecadores mais empedernidos. A dor vence e condu-los ao meu coração. A dor é o bálsamo que cura as suas feridas. Quem sofre bem ama-me com o maior amor. É por isso que te escolhi para a dor e para o amor. Sofres com a maior perfeição, amas-me com o amor mais puro e elevado. És a mestra e rainha da dor e do amor. O mundo em ti aprenderá. E que belas lições, que lições de maravilhas e prodígios, que lições divinas por recebem, logo que a tua vida seja conhecida!

— Meu Jesus, que confusão a minha! Eu não sei sofrer, eu não sei amar-Vos. Vede como estou envergonhada. O meu maior anseio é consolar-Vos e dar-Vos almas. Mas ai, pobre de mim! Mergulhada em trevas, sou só miséria e nada mais. Oh! como eu temo a minha fraqueza!

— Minha filha, esposa amada, canteiro mimoso, donde brotam as mais belas flores. Sossega, ainda não ouviste dos meus divinos lábios dizer-te que não sofrias bem. O teu temor consola-me, encanta o céu. Vejo os teus desejos, as tuas ânsias e com isso me alegro. Venço contigo, sou a tua força, confia nas minhas divinas palavras: são infalíveis. Sofro com a maldade dos homens, sofro com a prudência exagerada de outros. Mas a causa é minha, tu és minha, és das almas. Irradia-as do meu amor, perfuma-as com o aroma das tuas virtudes. Vou dar-te o meu sangue divino, o sangue da tua vida maravilhosa, da vida que vives, da vida que dás às almas.

Uniu Jesus os nossos corações um ao outro. Mal percebidas, sim, mas deixou-me cair três pequeninas gotas do Seu divino sangue. E logo principiou a bafejar-me com o Seu bafo divino.

— Não se dilata o teu coração, não podes sentir a força do meu amor. Não deixas por isso de me amares com o maior ardor. Vai em paz, coração de fogo, língua de louvor. Vai espalhar ao mundo, distribuir às almas, de quem és mãe. Prometo-te, minha filha, depois da tua morte, a conversão de muitos pecadores junto do teu túmulo. Virão visitar-te e sairão outros de junto de ti. Lá do céu, da tua Pátria, velarás por elas, cobrirás de bênçãos as suas almas. És rainha e mãe do mundo, és rainha e mãe de todos os pecadores.

— Obrigada, meu Jesus.

Sinto que todos me abandonaram, todos, mesmo todos; que não há quem cuide do meu corpo nem da minha alma. Sou cegueira, só cegueira. Parece-me que mesmo o meu Pai espiritual nada se interessa pela minha alma. perdi tudo, nada tenho.

— Que será de mim, ó meu Deus? Que eu não perca a minha confiança em Vós. Sou a Vossa vítima. Bendita seja a cruz que me dais. Não sei e não posso dizer mais nada.

31 de Janeiro de 1947 - Sexta-feira

Faltará muito para chegar ao cimo do meu Calvário? Não sei, o que sei, o que sinto é que cheguei ao auge da minha dor, dor que, sem um grande auxílio do Céu, já teria chegado ao desespero. Que dias tristes! Que dolorosa amargura! Que horas trágicas e de tanto desfalecimento! O meu olhar fixo em Jesus e na Mãezinha falavam mais do que os meus lábios; era a pedir-Lhes socorro; e juntamente ia o murmúrio do coração com um estreito abraço a tudo o que era dor.

Por Vosso amor, Jesus, por Vosso amor, Mãezinha, e pela salvação das almas. Mas com o aumento da dor e tentar esconder as minhas lágrimas pensava: se não fosse a graça do Sacramento, não queria junto de mim um sacerdote; queria-me abandonada, como de verdade eu me sinto. Queria dizer aos meus amigos que fizessem de conta que não existi no mundo; queria esconder-me de todos os olhares. Jesus basta ao meu coração, mesmo a sentir que nada O possuo. Uma tempestade fortíssima me absorvia; tempestade desastrosa, tempestade sem remédio. Fui lutando, fui chorando e dando a Jesus as minhas lágrimas; Ele foi vencendo em mim; Ele sem que eu o sentisse, levantou-me, e encaminhou-me a romper por entre as trevas: Bendito seja Deus! Valha-me o grande poder de Deus, valha-me a grande caridade de Deus, valha-me o amor imenso, o amor infinito de Deus. Assim costumo dizer, assim vou vencendo. Sinto em meu coração as grandes espadas, os grandes punhais que há oito dias me ficaram cravados; quanto mais me trespassam, quanto mais mo cortam maiores se fazem; parecem crescerem, momento a momento. Estes punhais vêm do meio do mundo; é dele que me atingem o coração; é o mundo que os move; são mãos cruéis que os obrigam a cortarem com seus fios afiadíssimos. Quando eu sofro assim, o quanto não sofrerá Jesus! Ah! Se eu pudesse atrair para mim todos os sofrimentos e não deixar que nem um só fosse ferir o Coração Divino de Jesus! Ele deu-me há dois dias um grande mimo, um mimo do Seu Divino amor. Ao recebê-lo parece que todas as amarguras me atingiram mortalmente o que fez tirar-me toda a alegria e consolação que desse mimo podia receber. Se Vós quereis assim, Meu Jesus, porque o não hei-de querer eu também! Para Vós tudo, toda a consolação e amor. Faça-se em mim a Vossa vontade divina. Este mimo passou em mim despercebido, mas deixou-me o coração forte; foi como que uma injecção que o ajudou a suportar novos golpes que o vieram ferir. Louvado seja o meu Senhor que tanto tem para me dar e tão cuidadosamente vela por mim. Se eu soubesse corresponder às graças do meu Jesus! Foi dolorosíssimo, foi amargosíssimo o meu Horto de ontem, foi um Horto de todo o dia e da maior parte da noite. Fazia por retirar dele o meu espírito, mas não sei o quê, uma força invisível me unia, prendia o coração àquele solo duro e triste; era um Horto mundial ladrilhado de pedra dura, rochedo inquebrável. Lançou-se sobre mim o peso brutal da humanidade; o seu peso esmagou-me, abriu-me o peito, tirou-me a vida superior, sublime, muito sublime, deu-lhe entrada no coração e abrasou toda a humanidade em amor; triunfou da morte e abraçou toda a ingratidão humana. Vi à minha frente uma floresta de espinhos que atingiam grande altura. Desses espinhos foi formada a minha coroa; tive que atravessá-los e neles da cabeça aos pés foi todo o meu corpo ferido; espetados neles ficaram muitos pedaços das minhas carnes. Logo a seguir, pela noite fora, andava o demónio, à volta de mim, a querer-me assaltar. Várias vezes me convidou ao mal e me ensinou as suas feiíssimas palavras. Veio a madrugada, travou-se então o combate. Em forma de animal, assaltou-me; tive que combater. Não deixei de bradar ao Céu em tão tremenda luta; porém este parecia-me fechado e surdo.

Satisfeitos os gostos do maldito, deixou-me; mas, ó meu Deus, como me deixou ele! Deixou-me despercebida, não o vi fugir; levou consigo a inocência, deixou comigo a maldade. A culpa era só minha. Fiquei como caída na valeta da estrada, não podia levantar-me nem tão pouco levantar os olhos ao Céu para os fitar em Jesus. Que indizível vergonha! Não sei por quem fui levantada, mas sentia a minha alma chorar com profunda dor. Tem ferido o meu Jesus? Com a vinda d’Ele ao meu coração esqueci mais as maldades do demónio; pude unir-me mais a Jesus e desabafar com Ele. Os meus espinhos do Horto deram princípio às ruas estreitas e tristes do Calvário. Segui por entre eles abismada na noite mais negra; neles perdi a carne e o sangue. Subi ao cimo da montanha e a mesma noite se espalhou nela. No alto da cruz que era eu e nela estava pregada. Sentia o levantar do peito de Jesus, o seu ofegar, palpitar do coração. Sentia o brado triste, o eco agonizante dos Seus gemidos; sentia o Seu sangue divino que caía ao pé da cruz. Sentia uma dor de alma que a obrigava a chorar e a dar a vida despedaçada de dor. Eu não podia aguentar aquela dor que era de Jesus. O que Ele sofreu! Ai a dor do Calvário, a dor, a visão da maldade humana. Eu não resisti; por alguns momentos pareceu-me mesmo a minha morte ser real. Não quero pensar, porque não posso recordar o sofrimento do meu Jesus. Ele veio; fez-me viver.

― Minha filha, levanta-te, tem coragem, vem seguir os caminhos dolorosos do Teu Esposo Jesus. Repara, olha a montanha, estás quase no fim, pouco tens que subir, pouco tens que caminhar. Olha a cruz, olha o seu brilho, vê tantos raios luminosos; são raios saídos de todas as suas chagas; são raios saídos de todos os espinhos que a tua cabeça cinge. Saem de ti, saem de mim que em ti estou, de ti Me revesti: são raios poderosos, raios atraentes, raios de salvação. Olha como correm aos bandos para eles as ovelhinhas; são as almas, vêm de ti para mim. Coragem! Olha o valor da tua dor, do teu calvário.

Vi a montanha, vi a cruz; parecia estar de sol iluminada. Eu já tinha quase subido tudo, estava perto dela; mas era aquela a minha cruz e via-me como se nela estivesse cravada. Dos pés, das mãos, do coração, da cabeça saíam fortes raios de luz; vinham penetrar na terra. Fez-me lembrar o arco-íris que vai absorver a água ao rio ou ao mar. Para todos aqueles raios que rodeavam a cruz, vinham de todos os lados, grandes rebanhos de ovelhinhas; não lhes via o fim. Oh! Como era belo vê-las atraídas para aqueles raios sem que ninguém as guiasse, sem levarem pastor. Meu Jesus, oh! Como é belo e atraente o amor do Vosso divino coração.

― Oh! Como são poderosas as Vossas chagas, todos os Vossos sofrimentos. Quero sofrer convosco, convosco quero estar sempre na cruz para nem um só momento cessem as almas de virem a Vós; de virem ao sol resplendoroso do Vosso divino amor. Sede a minha força, vede como sou fraca, meu Jesus. Minha filha, Minha amada, quem com Jesus está com Jesus vence. Tem coragem! Da cruz passas ao Céu, ao Céu que te espera: E pela cruz fazes subir as almas aos milhões, aos milhões para a sua pátria. Sofre sempre, por meu divino amor, e nada temas; sofre alegre, se não Me queres ver ferido. Enquanto que viveres na terra, não mais deixarás de sentir em teu coração essas espadas, esses punhais. És a minha vítima, é ferido o teu coração para não ser ferido o Meu.

Sabes, filha querida, porque é que quanto mais eles te ferem e te cortam estas espadas e atravessam o coração, mais as sentes e vês crescer? É o aumento, é a repetição dos novos crimes. Reparas uns, mas a maldade desses infelizes inventa outros; vem logo com novos golpes. Se soubesses quem Me fere e como Me ferem! Quero explicar-te, quero desabafar as minhas mágoas.

― Meu Jesus tirai de mim, se é possível, a reparação precisa; eu aceito, eu quero sofrer por quem quer que seja, amigos ou inimigos meus não me importa; são filhos do Vosso sangue divino, eu a todos quero salvar. Sou a Vossa vítima, vítima a sério, só para não Vos ver ferido. Eu sei que sofreis, Jesus, e eu quero reparar sem saber por quem.

― Ó Minha louquinha, Minha louquinha de amor, que grande e encantadora lição tu dás ao mundo; que grande prova de heroísmo, que apreciável valor dás às almas! Vai, vai contente. Para conseguires a realização dos teus desejos, não mais terás alegrias sensíveis na terra; apenas o necessário conforto para venceres e resistires à dor… Vai, alma pura, não te deixes abater demasiado com os teus defeitos; Eu os permito para mais em ti brilhar aquilo que é Meu. Vai espalhar o amor, vai acudir às almas, vai dar a luz ao mundo. Eu farei que nele brilhes com o Meu brilho que a ele encantes com os Meus encantos. Coragem, coragem! Eu vou e estou sempre contigo.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Ajudai-me a vencer este medo pavoroso, que já vejo à minha frente. Quero a cruz, quero as almas, mas temo as minhas fragilidades. Não me abandoneis meu Jesus.

Fevereiro

1 de Fevereiro de 1947 – Primeiro sábado

Passei a noite em grande sofrimento e em grandes ânsias. O meu corpo era um montão de cinzas, desfeito pela dor, e o coração sentia horrivelmente o cortar fino e contínuo de fios de espadas. Ao mesmo tempo queria desprender-se e voar para o alto, para Jesus, mas não podia; estava encarcerado em negra prisão. Sentia-o cansado e desfalecido com tanto sofrer. Abraçada ao meu crucifixo e à Mãezinha querida, não cessava de pedir-lhes amor. As dores eram quase insuportáveis, mas as ânsias de amor iam mais longe, muito mais longe ainda. E nesta angústia não perdia a minha união com Deus; ia murmurando sempre: meu Jesus, lanço-me nos Vossos divinos braços, prendo-Vos para não mais Vos deixar nem desistir de Vos pedir amor; ainda que, por cada vez que vo-lo pedisse, me repelísseis e me batêsseis, não Vos deixaria, nem me calaria, mas sim com mais coragem ainda dobraria o meu brado: Jesus, sou a vossa vítima. Foram estes os meus entretimentos com Jesus, mas sempre mergulhada em trevas, angústias e sofrimentos. Veio a hora de O receber e eu de mãos vazias, despida de todo o bem, sem ter uma morada digna para O hospedar. Ele não recusou entrar. E logo os punhais deixaram de ferir o meu coração, e todos os sofrimentos desapareceram, mas em todo o tempo que estive com Jesus; depressa voltaram. Ele disse-me:

― Minha filha, onde está a cruz, a verdadeira cruz, a cruz real, está o amor; e onde está o amor está Cristo. Tu sofres, possuis-me, amas-Me, tens todo o amor de Jesus. Sofres e amas sem igual dor sem igual amor. Farei que a tua dor seja de salvação para o mundo e que esse amor com que Me amas se espalhe, se comunique às almas.

A tua dor, o teu amor, são as escadas de pecadores e justos subirem ao Céu. Há-de o teu amor abrasar as almas, há-de a tua dor ser tão poderosa que, já tu no Céu, e ela continuará na terra, até ao fim do mundo, a ser poderosa e de salvação para os ingratos pecadores. Coragem, Minha filha! O que te espera no Céu!

― Ó meu Jesus, como estou humilhada, como me sinto pequenina! Faça-se tudo, segundo a Vossa vontade divina. Só Vós sabeis quanto me custa que faleis assim.

― Sossega, sossega esposa querida; o que Eu digo não é para te elogiar; não falo para ti, falo para o mundo. É a ele que eu quero mostrar o que é a minha vida divina nas almas e o que é uma vítima generosa fidelíssima. É ao mundo que quero mostrar os elogios de um Deus, dados a uma esposa, a uma alma louca por Si. Diz-Me o que quiseres, pede-Me o que quiseres, Minha filha querida.

― Meu Jesus, dais então ao meu Paizinho a luz que ele pede, a luz que ele necessita?

― Dou-lhe tudo, sempre lhe tenho dado. É o amante da minha cruz, é o possuidor de todo o Meu amor; dá-lho por Mim; repete-lhe, diz-lhe que Eu o amo, diz-lhe que é o mestre das almas e que eu farei que elas em grande multidão o sigam, à semelhança de Mim. Diz-lhe que Eu o assemelho à minha vida na terra. Diz ao teu médico que o amo loucamente e que amo aos que lhe são caros. Diz-lhe que lhe repito: conto com ele, como vara forte e firme a amparar-te e à minha causa divina, que, depois de humilhada, será o triunfo de todos os tempos. Diz-lhe que recomendo a vigilância; o mal corre, o veneno penetra. É necessário um milagre até ao fim. Vem Mãe Bendita; não deixes sem conforto a nossa filha.

― Estou aqui, Meu filho, ansiosa por confortá-la.

Veio a Mãezinha, inclinou-me para Ela; acariciou-me e abraçou-me.

― Coragem, Minha filha! Em nome do meu bendito Filho, venho afirmar-te: estás na verdade, és-Lhe fiel, Ele está contentíssimo contigo. Deste-Lhe tudo, ama-lo com todo o amor com que O podias amar. Em troca, filha querida, da tua vida de dor e de amor leva os Nossos amores àqueles que te amam e com tanto empenho te rodeiam; é o prémio do Céu, por ampararem uma esposa tão querida de Jesus, e acrescentou: Diz-lhes em meu nome que lhes prometo o Céu e mais ainda àqueles que do fundo da alma e do coração com eles falarem no meu nome e nas minhas coisas. Farei que os que te rodeiam e te são queridos comuniquem aos outros o que de ti receberam; que é a comunicação dos tesouros do Céu. Vai, Minha filha querida; tem coragem; não deixes de correr, mas também não deixarás de amar. Vai em paz, vai com O teu Jesus, leva o teu Jesus. Para que as minhas palavras se cumpram, tenho que abreviar os meus colóquios, mesmo eles têm de ser para ti dolorosos. Coragem, coragem, nova redentora, salvadora do mundo!

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha acompanhai-me, não me deixeis por um só momento. Já me parece mentira estar Convosco, e Convosco falar. O que eu vejo à minha frente! Valei-me, valei-me; sou a Vossa vítima.

7 de Fevereiro de 1947 - Sexta-feira

Faltam-me as forças; o sofrimento impede-me de poder falar. Será o sofrimento, meu Jesus, ou serei eu que não sei sofrer e o pouco parece-me muito? Que luta renhida no meu espírito! Que mar de dúvidas! Que vida a minha tão cheia de incertezas! O demónio tem tentado assaltar-me, mas, acorrentado, não o tem conseguido; não veio com os seus tremendos combates. Quando o vejo a formar salto, para se atirar a mim, fico assustada e com receio que alguma vez sempre vença e me leve ao pecado. Ele tem tantas formas de nos atormentar a alma! Eu já a tenho tão dorida, sem ser por ele; parece que a tenho em sangue: ó meu Deus, ó meu Jesus, tudo o que sofro é por Vós, é pelas almas. Tenho olhos, mas não para ver nas negras trevas que vou passando. Cada passo que dou é em falso, é um abismo negro, onde caio, e o meu desfalecimento auxilia-me de boa vontade a deixar-me mergulhar neles. Morro de dor, morro sem remédio nestes abismos pavorosos de cegueira. Sinto os punhais, sinto as lanças a cortarem-me o coração tão lentamente, tão finamente. Quantas vezes tenho a impressão de ouvir nos meus ouvidos o cortar das carnes; é arrepiante, a dor sufoca-me, tira-me a respiração. E logo em espírito elevo ao Céu a minha oferta de vítima. Aborreço o mundo com tudo o que nele encerra; não porque tudo deva aborrecer, mas sim porque de tudo quero e devo desprender-me: sinto como se alguém dentro de mim, ande a espanar, a polir, a assear a habitação do meu coração, da minha alma; tudo é deitado fora, sinto-me vazia, é uma casa sem mobília. Este vazio é para se encher e quando sinto que se enche de uma vida de que não é falar, uma vida superior a esta vida, a alma vê o coração cheio, transbordar e pelo centro saírem grandes labaredas que sobem ao ar. Nestes momentos fico como que a dormir nesta vida e como que se do mundo desaparecesse. Volto a sentir o vazio e as ânsias devoradoras do amor de Jesus. E de verdade queria mesmo devorá-Lo, possuí-Lo só a Ele e nada mais. Vós, meu Jesus, Vós e só Vós e nada mais. Sinto logo o abandono de todas as criaturas mesmo das mais queridas. Mas sou eu mesma a querer-Lhes ser grata, agradecida; mas não querer viver delas, para só de Jesus viver. São cortes dolorosos, são indizíveis sofrimentos. Mas se eu assim amasse a Jesus, se eu soubesse que O amava quase deixaria de sofrer. Ontem, ao cair da noite, de surpresa, senti-me atada e arrastada por grossas cordas que me cingiam o pescoço; obrigavam-me a ir com o rosto a terra até o ferir. Logo me introduzi por um túnel de todos os sofrimentos formado; ali não entrava luz nem conforto.

Caminhei, fui parar ao Horto; pouco depois recebi em meu rosto o beijo de Judas. Que beijo cruel, mas que ainda mereceu dos lábios bondosíssimos de Jesus a palavra terna de amigo. Que doçura a do seu coração divino: se todos a compreendessem! Os modos, os olhares de traidor eram desconcertantes e desesperados. Quando Jesus chegou ao fim do Horto, mesmo na saída, debaixo daquela chuva de maus-tratos e de crueldades eu senti, dentro do meu peito, a Seu divino coração palpitar tão aflito pela dor e pelo cansaço que já parecia dar ali a vida. Vi, pouco depois, a lareira onde se aqueciam os inimigos de Jesus e uma falsa e provocadora mulher que fazia o lugar de correio, onde S. Pedro se aquecia também; era por eles interrogado e trocavam uns para os outros seus olhares maliciosos. O galo cantou; na alma senti o seu canto e tive visão do abrir e fechar do seu bico.

Hoje já no Calvário ecoou dentro em meu peito o som descontrolado do bater dos cravos; fiquei com os meus pulsos e pés abertos como se fosse por eles trespassados. Não senti ali só os maus-tratos de Calvário, mas sim os de todo o mundo. Tinha uns olhos que tudo contemplavam; tinha uns ouvidos que não só ouviam os insultos do calvário, mas sim os de toda Humanidade. Os gemidos e o brado de Jesus com o Seu coração cheio de amor e doçura não eram um convite, um chamamento só ao calvário, mas sim ao mundo, a todo o mundo. Jesus com a sua agonia e morte queria salvar a todos. Os lábios de Jesus estavam cerrados, mas oh! Como falava e amava o Seu coração divino. Eu pecava com o mundo e sofria e agonizava com Jesus; e ao mesmo tempo ansiava possuir para mim o mesmo mundo. Veio Jesus e falou-me.

― Estende, minha filha, por todo o mundo a tua dor, assim como Eu por ele estendo o Meu divino amor. É pela tua dor e com a tua dor que este amor lhe é dado. Tem coragem, minha filha! O teu corpo, o coração e a alma é um jardim celeste onde Eu plantei e semeei toda a variedade de flores. Uns anjos cuidam de outros anjos. E porque assim é Jesus to afirma. São os anjos que com todo o cuidado cultivam e tratam destas flores. A tua alma está pura. Eu nunca consenti, esposa querida, que ela fosse manchada pelo pecado; se alguma coisa permiti, foi para que tivesses o conhecimento das graves ofensas que Me são feitas, para melhor Me poderes reparar e desagravar. Quanto mais sofreres, mais reparas; quanto mais reparares, mais pecadores salvas e mais amor por ti as almas recebem de Mim. Estende, estende a tua dor ao mundo. Como ele Me ofende! Quando sentires mais, minha filha, o ferimento dessas espadas e punhais, tem a certeza de que nessas horas é que Eu estou a ser mais ofendido. Renova-Me muitas vezes a tua oferta de vítima, e redobra de amor, multiplica os teus actos de amor. Vou pedir-te nestes dias, alguns combates do demónio; preciso dessa reparação. Aceitas? Bem sabeis que sim, meu Jesus, mas com que medo eu aceito; que receio de Vos ofender! Tomai conta da Vossa filhinha, da Vossa mais indigna vítima. Eu quero reparar mas temo, eu quero amar-Vos e não sei como. Que pobreza, que pobreza, que miséria, meu Jesus! Coragem, nada temas do que o demónio te lançar em rosto; bem quisera ele que fosses o que te diz.

Anima-te. O teu amor a Jesus atingiu a maior altura. Sabes quem é aquele que sentes trabalhar em tua alma? Sou Eu, O teu Jesus, O teu esposo, O teu Rei; sou Eu que tudo esvazio, sou Eu que tudo encho. Todo te possuo e tu toda a Mim possuis. Eu deito, fora de ti, os que te são queridos, mas sem prejuízo, sem ingratidão da tua parte, sem por isso os deixares de amar. Eu podia lá consentir que fosse ingrata uma esposa Minha, Eu que sei quanto custa a ingratidão e que sinto tanto; quando são ingratos para ti! Não, não, não és ingrata. O que faço é para tirar de ti tudo o que é humano, para só possuíres o que é divino, para só o divino te encher. E assim é filha querida. Em ti existe só o amor todo o amor de Jesus. Vou dar-te agora a vida de que vives; uma gota do Meu divino sangue com a Minha eucaristia, é o teu alimento; é o conforto que te dá Jesus, é a vida para ti e para dares às almas.

Jesus abriu o Seu peito, fez do Seu divino coração uma pequenina infusinha pela qual deixou cair no meu coração uma gotinha de sangue. Esta gota de sangue abrasou-me tanto! Foi um fogo que me incendiou. Colocou novamente dentro de Si o Seu divino coração cerrou o peito e disse-me:

― Vai, esposa Minha, vai ao mundo dar este amor, vai dar-lhe esta vida, vai salvá-lo que é teu. Custa-Me tanto ver-te sofrer, mas é para que seja salva a humanidade. Continua sempre a obra de resgate, a obra de redenção; és a nova redentora. Tu serás para o mundo, filha querida, estrela brilhante, estrela de ouro que o guies para Mim. Vou despedir-Me, vou deixar-te para abreviar o colóquio, vou deixar-te para ficar sempre contigo. São colóquios dolorosos, é para Mim só o sabor, é para mais receber de ti. Vai depressa, vai espalhar pelo mundo a tua dor com o Meu amor. Vai com paz e alegria; Jesus to pede.

― Obrigada, meu Jesus, sede comigo. Ai, tanta dor não sei repará-la; a Vós me entrego; destruí-a, meu Jesus. Tende sempre diante de Vós os meus pedidos, bom Jesus!

14 de Fevereiro de 1947 - Sexta-feira

Aumentou o peso da minha cruz, e aumenta também, dia a dia, a minha sede de sofrimento, a sede de me dar a Jesus e às almas, a sede de consumir-me, enlouquecer-me e perder-me no amor de Jesus. E é verdade que me sinto queimada; parece que um fogo invadiu tudo. Ah! Se fosse o fogo do amor de Jesus! Se na realidade eu O amasse! Ai pobre de mim! Tive no dia 11, uma grande tribulação, das maiores da minha vida. Não sei se foi permitido por Nosso Senhor se pelo demónio. Não sei, mas sofri muito. Não sou capaz de mostrar quanto sofri. Sofri resignada. Não fui capaz de fazer várias das minhas orações diárias, cansada de tanto sofrer. Mas o que não perdi foi a minha união a Deus. Abraçada ao meu crucifixo, dizia de alma e coração: eu te abraço minha cruz, com o meu Jesus; eu quero-te, eu amo-te. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Apertava contra o peito a imagem da querida Mãezinha e dizia-lhe: fostes Vós, Mãezinha, fostes, Vós, que no Vosso dia me trouxeste este miminho. Valei-me, valei-me, dai-me um conforto. Pareceu-me ouvir o coração estalar de dor, e depois, sentia como que o sangue me corresse no peito. Vi, à minha frente, tudo o que há de pior, tudo o que há de mais desastroso. Quanto mais oprimida pela dor, mais fortemente o meu brado subia ao Céu. Meu Jesus, aceitai-me parte destes sofrimentos por tais intenções e nomeei-as; e o restante aceitai-o Vós e espalhai-o pelo mundo, meu Jesus, a minha dor. Passou de 24 horas que eu assim sofri, a sós com Jesus sem com mais ninguém desabafar as minhas mágoas. Por mais que me interrogassem, procurei disfarçar, nada disse; calei, calei até não poder mais. Queria chorar, e não fui capaz; assim mais me custava sofrer.

No dia 12, levantei uma ponta do véu que tanta dor encobria. Fui confortada e quiseram desiludir-me que tal sofrimento não tinha o fim que eu lhe dava. Fiquei um pouco mais libertada, mas sempre com o coração a sangrar. Tinha a alma e o corpo sem vida. Passaram-se umas horas mais suaves. Depois então recebi o golpe que foi realidade; não foi nada da minha imaginação. Longe de me revoltar, recebi-o, abracei-o: oro e sofro por quem me fere. Perdoo como quero que Jesus me perdoe as minhas culpas. O que eu não quero é ofendê-Lo nem deixar um momento de O amar. Se me dessem, de preferência o amor de todas as criaturas, honras, louvores e senhora do mundo inteiro e nunca mais ser escarnecida desesperada e humilhada contanto que por um só momento eu deixasse de amar Jesus, eu dizia: não, não, sempre não. Quero amar a Jesus sempre oprimida pela dor e humilhada, sempre humilhada. Não posso dizer que o sofrimento não custa; mas é verdade que esta vida passa e o amor de Jesus dura eternamente. Quero amá-Lo, quero amá-Lo. Tenho sido rodeada por feras e bichos tão feios, tão desconhecidos! Não me tocaram, mas temia tanto o seu veneno! E os demónios com rostos humanos, feiíssimos, por entre elas; os olhos e os dentes causavam terror. Tive quatro combates seguidos; parecia-me ver todo o inferno em mim e à minha frente; ouvia-lhe os seus ruídos e estalos como de lenha verde. Parecia passar por mim todo o fogo infernal. Não me foi possível, de um ataque ao outro, desprender-me daquele inferno. Que cadeia com tão seguras prisões. Nos momentos mais assustadores, quando mais eu temia ofender a Jesus, eu dizia: Jesus, Mãezinha, é de alma e coração que Vos digo: dai-me o inferno se hei-de ofender-Vos; sou a Vossa vítima. Pensava em fugir daquelas cadeias, mas não tinha força. Não queria escutar as feias palavras do demónio, mas tinha que ouvi-las. O coração batia fortemente e eu repetia: não quero pecar. Quando fui libertada, estava num banho de suor. Acrescentei: meu Jesus, que este banho do meu suor seja para as almas com banho de dor e fortaleza que as levem a arrepender-se e a quebrarem as cadeias do pecado. E seja também um banho do Vosso perdão e amor. Sem eu querer, senti em mim, por algum tempo, vontade de voltar a unir-me ao demónio. Só Jesus sabe quanto isto para mim  é doloroso. Tudo o que fica dito e não sei dizer tem sido para esta pobre alma e corpo um contínuo Horto e Calvário. Durante esta noite senti-me no Horto; lá sofri como se fosse despido e açoitado. Lá vi, lá sofri como se fosse coroada de espinhos e com o corpo despedaçado pelos açoites, levada à varanda de Pilatos. Vi a multidão do povo ouvi suas gritarias: tinha que ser condenada à morte. A noite estava escura e serena, que não deixava mover uma só folha das oliveiras, a não ser quando a dor tudo obrigava a tremer, à solidão e a vir todo o abandono, mesmo até do Eterno Pai. E àquela hora onde estava a Mãezinha? Quanto sofria Ela com a reparação e a despedida de Jesus! Ele, dentro de mim, via e sofria a Sua dor, via onde Ela estava, via a distância que Os separava. Que dor sem igual! E, hoje, sinto em meu coração a dureza dos corações, que acompanhavam Jesus, pelas tristes ruas do calvário; nada os comovia, nem o sangue de Jesus, nem o Seu santíssimo corpo ferido, nem ver o amor com que Ele aceitou e levou a cruz, já quase moribundo. Ao terminar do calvário, Jesus deu-me um profundo suspiro; e o Seu olhar moribundo, mas divino levou a todos um olhar de convite, amor e perdão. Que olhar de tantos segredos misteriosos! Quisesse ou não eu tinha que sentir e ver as graças abundantes que davam aqueles olhares de Jesus; quisesse ou não quisesse, tive que sentir e ver o calvário e todo o mundo a desprezá-las a deitá-las fora. É indizível a dor de Jesus e a minha com a d’Ele; ver tantos sofrimentos inúteis, ver para tantos nada valer a Sua paixão e morte. Senti dentro em meu peito o último suspiro de Jesus: agonizei com Ele. Momentos depois, senti abrasar-se-me o coração; parecia-me estar a nadar num mar de fogo. E logo me falou Jesus assim:

― Venho a ti, minha filha, cheio de amor e compaixão; amor para te encher e compaixão pela tua dor, por tanto te ver sofrer. Sofreste tu, Minha filha, mas não Eu. Repara; vês como venho sem nenhum ferimento? Foi atingido o teu coração e não o Meu. Tem coragem, Minha filha! Eu pedi-te dor, sempre dor, para espalhar pelo mundo, e foi ao mundo que a estendi com a mistura do Meu divino amor. Pedi-te dor, sempre dor, porque de muita dor necessito, para bem das almas, e muita dor via para te darem. Coragem! Eu poderei dizer de ti o que disse: as portas do inferno não prevalecerão contra mim, isto é, contra a Minha Igreja. E agora digo: a raiva humana, que mais parece infernal, nada poderá contra a Minha divina causa. Anima-te, esposa querida. Consentes em te pedir dor, sempre mais dor? Consentes em seres imolada, a mais não poder ser? Peço-te consentimento, porque nada vale a dor sem a generosidade, sem o teu querer, sem o teu amor. O mundo necessita de tudo. Não deixeis, filha amada, morrerem as almas de fome. Aceitas?

― Já sabeis que sim, meu Jesus; escusado é dizer-Vos que tudo aceito e sofro, por Vosso amor e pelas almas. Sou a Vossa vítima. Mas pedis-me assim tanta dor; o que virá mais? Eu já queria dizer-Vos, na última vez que falei convosco, o que me esperava, pois achava que acentuáveis tanto a palavra dor, que tanto fazíeis penetrar em mim, e que tudo isso queria dizer mais alguma coisa; mas não me atrevo a perguntar-Vos nada.

― Compreendi tudo, todos os teus desejos, mas nada te disse, para não te atemorizar.

― Dizei-me, meu Jesus. E não serei eu uma iludida das Vossas coisas e nossa ilusão a iludir tantos e mais ainda aos que me são tão queridos?

― Sossega, sossega, Minha filha, confia no teu Jesus. Não é uma ilusão; é a realidade. Tu foste cheia das maiores graças das maiores maravilhas do Senhor. Sossega, de ti quero o sofrimento com o silêncio. E darei a minha luz, a luz do Espírito Santo àqueles que precisam dela. Confia em Mim; todo o Céu se alegrou com a consolação que Me deste, com a coragem do teu sofrer. A tua dor foi para as almas uma primavera de flores. O teu heroísmo, o teu amor à cruz, pôs o Céu, a tua pátria em festa. Entoaram, em Meu louvor, hinos jubilosos. Vou dar-te agora uma gota do Meu sangue divino, para reparares as forças perdidas. Consumiste mais forças nestes dias de sofrimento do que num ano dos trabalhos mais austeros de jejum, a pão e água. Vem a mim; é fácil a operação.

Jesus abriu o Seu divino lado e abriu também o meu; uniu os Nossos corações e logo deixou cair do d’Ele no meu uma gotinha do Seu divino sangue. Senti logo o coração mais forte, a dilatar-se. Jesus colocou um e outro no seu lugar; cerrou o Seu santíssimo peito, cerrou também o meu, bafejou com o Seu bafo divino, deixou-o sem cicatriz.

― Vai agora, filhinha amada; vai sofrer, vai cheia do Meu divino amor; vai espalhá-lo pelo mundo; leva a Minha graça, leva a Minha força. Tem coragem; nada temas. Jesus é contigo; sempre contigo.

― Obrigada, meu Jesus; só em Vós é que eu confio. Como gosto de dizer: Bendito seja Deus, bendita seja a minha cruz. Voltei para os meus sofrimentos, a tudo ver desenrolar à minha frente; tudo me causa pavor, nada queria escrever. Se não fosse a minha oferta da noite de Natal ao Menino Jesus, mais nada escrevia; ficava como se tudo morresse. Assim quero só, quero sempre a vontade do meu Senhor.

21 de Fevereiro de 1947 - Sexta-feira

Se tenho Jesus e a Mãezinha, não estou só. Que posso temer? Abraçada às Suas imagens, nas horas mais dolorosas e mais aflitivas, é este o murmúrio do meu coração. Quanto mais sofro e me sinto de todos abandonada; mais aperto contra o meu peito o crucifixo e a querida Mãezinha, e vou-lhes segredando: tenho que confiar, não posso ser abandonada por aqueles em quem só tenho confiado, a quem me entreguei totalmente, alma e corpo e todo o ser. Jesus, Mãezinha, sou Vossa e Vós meus. Morri para não mais viver; o mundo para mim não tem luz, não tem flores, não tem encantos. Tudo dá louvor ao Senhor, todo o ser criado bendiz o seu Criador, só eu não. Mergulhada nas trevas, nesta cegueira que me mergulhou e vejo o mundo mergulhado, nada vejo que possa dar glória ao Senhor e louvor como criatura Sua. Tudo é miséria e um mundo de podridão e desventuras. Quantas vezes sinto a tentação de maldizer a minha sorte; não o tenho feito. Nos momentos de desânimo, uma força inesperada me levanta e me obriga a confiar no Senhor. Espero um dia, espero outro dia, sempre a ver quando chega um sacerdote, em quem eu possa confiar e abrir a minha alma, para assim me poder guiar para Jesus e amparar, nestes caminhos tão dolorosos e espinhosos. E não aparece ninguém; estou sozinha nesta luta constante. Quero amar a Jesus e não O amo, nem sei como, não tenho quem me ensine. Volto-me para S. José, peço-lhe do fundo da alma que seja ele o meu mestre, o meu director e que por mim ame a Jesus e à Mãezinha e toda a Santíssima Trindade. Estou esmagadíssima. Com tantas humilhações; nem posso respirar. À volta de mim, tudo são montanhas com seus feios bosques, por entre os quais tudo são feras aterradoras a correrem, a descerem para mim; querem devorar-me; não há quem me defenda e possa salvar-me. Nada mais sei dizer; a não ser: meu Jesus sou a Vossa vítima. E a mesma repetição faço todas as vezes que sinto estes dolorosos punhais, as espadas afiadas lentamente a cortarem-me o coração. Este corte tão fino e profundo faz-me, por vezes, arrepiar e desfalecer. Amo o meu calvário com todos os sofrimentos que ele a mim conduz. E parece que se deixasse de sofrer deixaria de amar. Quanto mais espremida, mais me enlouqueço por Jesus, mais ânsias tenho de O amar. Mas, ó meu Deus, quanto custa a dor!

Passou, ontem, o primeiro aniversário da partida do meu Pai espiritual para a Baía. Recordei todas as coisas e sofri mais, muito mais ainda, por ver que nem o seu desterro acabou com as humilhações e injúrias para ele e para mim. E se eu não visse alguém a sofrer por minha causa, se fosse só para mim a dor! Mas não; quantos se imolam consigo, ao mesmo tempo! Ó Jesus, ó cruz, ó dor, como eu Vos quero amar. Que esta visão de tantos sofrimentos e o peso tão esmagador seja para as almas que vivem na treva do pecado, visão de luz, conforto e amor. Que este peso mortal que eu sinto seja para elas o peso que lhes quebre as cadeias que as prendem a Satanás.

O que foi o meu Horto de ontem, no meio de tantos sofrimentos. Mas não bastavam; tive que sentir os de Jesus. Ele veio sentar-se em meu coração e nele foi coroado de espinhos. Apesar de O ter em mim, também eu tive a coragem de O ferir. Com uma vara nas minhas próprias mãos, batia-Lhe e na Sua Sacrossanta cabeça mais se enterravam os espinhos. Havia tanto quem Lhe fizesse o mesmo, mas toda a maldade se reflectia em mim. O sangue que rebentava de todos os espinhos corria em meu peito. Depois ficou Jesus, de mãos atadas, a receber açoites. Eu continuei com a mesma maldade. Sem dó nem piedade despedaçava o Seu corpo divino. Aquelas cenas não eram daquela hora; via-as um pouco afastadas, mas feriam como se fossem de momento. Desfaleci, fiquei por terra, a derramar sangue com os lábios pousados no solo duro.

Hoje, levada; arrastada pela dor, tristeza e noite mais escura, cheguei ao cimo do calvário, sem outra coisa ver e sentir, e logo fiquei na cruz cravada, de pés e mãos. Principiei a sentir uns olhos, dentro em minha alma, olhos que não me pertenciam, que penetravam no mais íntimo de todos os assistentes do Calvário. Aqueles olhares tão altos viam naquele número toda a humanidade representada, como aquela visão de maldade e crueldade. Jesus inclinou sobre o meu peito, que era a cruz a Sua Sacrossanta cabeça. Palpitou o Seu divino coração aflitíssimo, um profundo suspiro e estendeu ao longe; cerraram-se os Seus lábios, só os Seus gemidos abafados eu sentia e acompanhava-O na Sua dolorosa agonia. De longe a longe, quando a dor era mais aguda e os suspiros mais profundos, vinham aos Seus lábios divinos escassas gotas de sangue. Nesta agonia sem igual que lição me deu Jesus, para a minha dor e agonia de alma com o Seu silêncio. Se cá aprendesse à Sua semelhança, a sofrer caladinha! Com o aumento da Sua agonia, mais cresceu em mim o ódio; queria fazê-lo desaparecer de todos de todos os olhares humanos. Odiava-O, e, ao mesmo tempo, na mesma dor, na mesma união, com Ele agonizava. Pouco depois, um fogo ardente abrasou-me o coração e estendeu-se a todo o peito. Logo depois falou-me Jesus:

― Sobe, Minha filha, podes subir, elevada pelo amor até ao Meu trono divino. Sobe, Minha filha e podes fazer subir muitas almas para a Pátria celeste com a tua dor, com o teu amor. Tens duas escadas que chegam da terra ao Céu pelas quais constantemente, noite e dia, sobem as almas; é a escada da dor e a do amor. Pela do amor, sobem aquelas que, embora frias e tíbias, não viviam em estado grave e se deixaram encher da abundância do amor, que de Mim recebeste. Pela da dor, sobem os pecadores que a tua dor arrancou às garras do demónio e lhes obtive o perdão e a graça. Como é belo vê-las subirem. Se pudesses vê-las! Cada alma é acompanhada por um Anjo que sobe com ela à Pátria celeste. Eu quero-te, filha querida, constantemente esmagada pelo sofrimento, não por te querer ver sofrer, mas porque quero a tua alma pura, cândida, para voares da terra ao Céu, sem passares no purgatório e dares-Me toda a glória e, pela alta missão que te dei, altíssima, poderes salvar-Me as almas. Coragem, Minha filha. A dor é a arma mais poderosa. Espalha-se a dor, espalha-se o amor pela humanidade, e, sem que tu saibas nem sintas, vai penetrar e esconder-se nas almas, como fumo ou nuvem que se espalha, como perfume que irradia e penetra.

― Meu Jesus, ó meu Jesus; eu não quero a minha alma pura com o fim de não ir ao purgatório sofrer; eu quero-a pura para Vos consolar, eu quero-a pura, porque não quero ferir-Vos, eu quero-a pura para com a mesma pureza vos salvar as almas. É por isso que eu sofro, é por isso que tudo aceito, meu Jesus. Mas custa-me tanto, tanto, meu Jesus; vejo tudo perdido, vejo-me tão sozinha.

― Não estás só, não, esposa querida: confia que estou contigo. O fim do teu sofrer, o fim da pureza da tua alma maior glória Me dá, e maior número de almas atrais ao Meu divino coração. Eu quero, eu anseio que, à tua escola, venham aprender os grandes e sábios do mundo.

É nesta escola que se aprendem as artes e ciências divinas. Diz, Minha filha, e confia que é Jesus que to afirma: é a primeira escola e a última escola de tão grandes maravilhas.

― Ó meu Jesus, sinto-me desfalecida, vejo tudo perdido. Acerca-me tão forte tempestade! Não cessam os relâmpagos, não cessa o estrondo destruidor do trovão. Valei-me, valei-me, Jesus.

― Sossega, sossega, Minha filha. Os relâmpagos, são relâmpagos de amor; o eco estrondoso é voz de convite para que venham a Mim todos. É sempre a tua dor, é sempre o teu amor. Anima-te. A tempestade não destrói a Minha causa divina. Olha, são os braços do teu Jesus que a sustentam. Eu guio a barquinha, em mar tão tempestuosos, e ela chegará ao fim, ao porto de salvação. Tem coragem! Eu velo por ti. Eu sou o Pai terníssimo, Esposo fiel, que não abandona a Sua esposa na mais dolorosa dor. E, como prova do Meu cuidado por ti, vai mais uma vez correr em tuas veias uma gota do Meu divino sangue. É a vida de que tu vives. Vou com ela substituir o que a violência da dor, nestes dias te roubou.

No mesmo momento em que Jesus dizia isto, uniu os nossos corações. O de Jesus cercavam-no raios luminosos e parecia um centro de lindíssimas flores, com o mesmo brilho dourado. Deixou cair o Seu sangue divino, e logo os separou. O meu dilatava-se e não aguentava tanto amor.

― Vai, Minha filha, mais forte, com a fortaleza divina; vai; leva contigo a força do Céu, o amor do teu Jesus. Vai para a tua cruz, abraça-a. Eu te prometo: sempre que ao teu peito, com tanto amor, abraçares o crucifixo, Eu chamarei e estreitarei ao Meu coração um pecador. Coragem! O Céu está para breve, já te sorri.

― Queria ter Convosco um desafio, Jesus, já que me falas do Céu, mas não tenho coragem, meu Amor.

Jesus sorriu e disse-me:

― Sei o que tu queres, conheço tudo, podes desabafar e dizeres o que quiseres, mas não hoje; fica para breves dias. Não posso demorar-Me; vai para a tua cruz, leva amor; vai para a tua cruz, leva paz, leva alegria; vai para a tua missão, para a missão das almas.

― Obrigada, meu Jesus. Ficai comigo mesmo escondido; não me deixais sozinha.

28 de Fevereiro de 1947 - Sexta-feira

O meu espírito tem sido, nestes dias, um verdadeiro teatro representado por Satanás; tem trabalhado bem. Tem-me atormentado tanto! Tem-me mostrado todas as falsidades, todos os caminhos errados, tudo perdido. Pobre de mim, se Jesus, e a querida Mãezinha não me amparam!

De manhãzinha, a alegria, o trinado das avezinhas, a darem glória ao Senhor, é para mim motivo de maior dor. Os seus gorjeios são golpes, que mais vem avivar as feridas da minha alma. Oh! Como eu sinto todo o meu ser dilacerado! O aproximar-se da primavera não é para mim de alegria, como para as avezinhas. Para mim, apresenta-se negra, cada vez mais negra. As árvores a cobrirem-se de flores que nos fazem admirar o poder de Deus e nos obrigam a prestar-Lhe o nosso culto de louvor por tantas maravilhas, para mim são finos espinhos que me ferem, são flores murchas e negras, são flores da morte. O que é que me alegra a alma? A vontade do Senhor. Essa, sim, a vontade do meu Deus, dá-me alegria, por mais doloroso que seja o meu martírio. Tantas quantas vezes sinto em meu coração, os punhais, as espadas a cortarem-me finamente, eu abraço o meu crucifixo. E ao dizer-Lhe amo-Vos, Jesus, repito-Lhe sempre: sou a Vossa vítima. Sim, e eu queria amar até à loucura, quero amar o meu Jesus, sem o fim da recompensa do Céu. Não me interessa o prémio que me dá Jesus; quero amá-Lo a Ele; só a Ele sobre tudo, porque Ele é digno de amor. É o fim do meu viver, é o fim da minha dor Jesus e as almas; mas é sempre Jesus, porque as almas a Ele pertencem.

A minha razão não está conforme ao sentir da alma; a alma sente-se humilhada, sozinha, sem ninguém, sem uma luz, sem um apoio, sem um conforto da terra e do Céu. Para a alma não há amigos na terra; tudo morreu, e até o Céu deixou de existir. A razão, sem se sentir alegre, mostra-lhe, quer provar-lhe que tudo isso tem; que o Céu existe, que Jesus e a Mãezinha não lhes faltam na terra, que ainda tem amigos firmes ao seu lado. Que luta renhida que só causa a morte; a alma em desarmonia com a razão! Meu Jesus! Sou a Vossa vítima; continuai a esvaziar-me, Vós, só Vós a encher-me, isso me basta. Nas horas tristes deste viver, perdida no meio do mar, arrastada pela violência das ondas sinto como se viesse alguém que tem todo o poder sobre elas, a deitar-me as mãos; levanta-me e fica-se a fitar-me com compaixão. Parece-me ser Jesus; poisado sobre as ondas, não se mergulha nelas, não se molha, e não me deixa a mim ir ao fundo. A minha alma fita os seus olhos naquele olhar terno, pede-lhe compaixão, é presa em Seus braços, não quer desprender-se. Isto conforta-me por um pouco mas fica-me sempre a dor vinda do temor. Ai de mim, se Jesus me deixa! Quando a tempestade é mais desastrosa e as nuvens negras mais me escarnecem, para darem lugar a maiores dúvidas, invoco o Divino Espírito Santo, peço luz ao Céu, principio por examinar a minha consciência, e logo principia a minha alma como que a nadar num mar de paz, uma paz sem consolação, mas paz que dá a vida e obriga a caminhar. E vou seguindo por entre as trevas, na confiança de encontrar Jesus.

Na tardinha de ontem, senti Jesus, sentado dentro em mim, cabeça inclinada, olhos baixos, quase cerrados, a chorar amargamente. Este fitava, via coisas de grande destruição, que Lhe causava grande amargura. Levantou-se em meu coração uma montanha mundial; estava cheia de feras que se atiravam para ferir Jesus. Por entre aquela montanha, nasceram grandes varas de espinhos que serviam de suplício para o corpo Sacrossanto de Jesus. Pelos Seus divinos olhos e ouvidos principiaram a sair gotas de sangue. Foi tal a dor do meu coração, que me parecia abrir-me o peito, e ele, louco pela dor, sair para fora. Tinha momentos que não podia respirar; quase perdia a vida. Repetiu-se depois a cena do lava pés. Digo repetir, porque já não foi a primeira vez. Vi Jesus com a toalha sobre os ombros, bacia na mão, a lavá-los a Seus discípulos, incluindo aquele, que ia entregá-Lo. Quero assemelhar-me a Jesus; quero, ainda que com muito custo pedir sempre, sempre por aqueles que me ferem. Quem é Jesus, e quem sou eu? Como sofreu Jesus, e como sofro eu? Pobre de mim, que miséria a minha; não sei sofrer, não sei imitá-Lo!

Passei daqui, no mesmo momento, ao Horto; lá fui sentir a cruz antecipada, o coração aberto; veio para o Horto o Calvário. Vi uma massa de almas a desperdiçarem o Sangue de Jesus, com os Seus sofrimentos, com a Sua morte. Vi algumas a aproveitarem de tudo o que era de Jesus, de tudo o que era dor. Vi um que subiu acima de todos e foi mesmo beber no sagrado lado, à chaga do Seu Divino Coração. O meu corpo foi o palco, foi o Horto, a cruz; Jesus, à massa das almas que O desprezavam e as que d’Ele se aproximavam. Hoje, quanto me custou a seguir o Calvário! Que desfalecimento tão grande! Parecia-me caminhar mais de rasto do que de pé. De passos a passos, caía. O meu corpo era um esqueleto descarnado, coberto de sangue. Queria respirar e não podia, sentia como se me arrancassem o coração e as entranhas. Cheguei ao cimo, vi sobre a terra a cruz, onde ia ser cravada, ao lado o martelo e os cravos. Fui crucificada, erguida ao alto na cruz e fiquei num negro cárcere sem saída; esse cárcere era um mar imenso de dor sem fim. Eu só sentia a vida que vivia aquele sofrimento, aquela noite escura que me mostrava tudo o que era dor, tudo o que era maldade. Ali sofri com Jesus, ali senti os Seus suspiros, ali recebi em meus lábios a esponja. A minha sede era outra, Não foi com a esponja saciada, a minha sede era do coração, era uma sede indizível. Cresciam as muralhas daquele mar imenso, daquele mundo de dor, e, ali presa, tive que agonizar. Ao voar de mim aquela vida que era a verdadeira vida fiquei em completa liberdade, romperam-se aquelas negras muralhas e fiquei outra. Principiou-me o coração a arder em vivas chamas e falou-me o meu Jesus.

― Minha filha, em trono de Rei estou Eu em teu coração, e sou, na verdade, Rei e Senhor de todo o teu ser. Sou teu esposo fiel, mas não estou só, está comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Dizer-te a Nossa consolação, como estamos aqui deliciados com os encantos, com as belezas de tão variadas flores, de perfumes atraentes é escusado; só à vista clara da luz divina, da luz eterna, numa visão beatífica, o poderás compreender. Fui Eu que rasguei, que rompi as muralhas, onde estavas encerrada. O seu significado é aquele: quando pela Minha morte resgatei as almas; resgatei-as do pecado, e deixei-as em plena liberdade de entrarem no Céu. Há nos teus sentimentos de alma tantos significados, tantas lições que Eu queria que aprendessem! São provas tão claras de em tudo te assemelhar a Mim. Tu na continuação da Minha obra resgatadora com a tua dor rompes os cárceres, as muralhas em que as almas estão presas pelo pecado. Como é poderoso o teu sofrer! Como é bela a tua missão!

— Meu Jesus, dizeis muito bem, se eu soubesse sofrer, com o Vosso poder, com a Vossa graça rompia tudo, tudo vencia. Mas, ai de mim, estou sempre caída; não sofro com perfeição! Esmagada com o peso de tantas humilhações e tanta dor, parece-me que quase ninguém me acredita. Mais uma vez me entrego a Vós, para ser vítima em Vossas divinas mãos.

— E não querias tu, Minha filha, sofrer tudo isto só para salvares uma só alma! E são tantas, tantas; são milhares e milhões que salvas. Se soubesses como Me amas e como Me fazes amado! Confia, acredita no Teu Jesus; e tens tanto quem te acredite! Eu farei que vejam em ti as Minhas riquezas e maravilhas. Eu farei que aqueles, que te atormentam, venham a sentir em si horríveis remorsos.

― Meu Jesus, perdoai a todos. Eu não Vos digo que eles Vos amem como eu Vos amo, mas sim como desejo amar-Vos. Que todos se enlouqueçam por Vós, como eu queria enlouquecer-me. Jesus, meu Amor, quanto mais Vos digo mais queria dizer-Vos, mais ânsias tenho e amor, mais vazia me sinto, mais queria possuir-Vos. E não vos amo, não Vos amo, meu Jesus.

― Amas, amas, Minha louquinha. Não viste, quando, ontem, te conduzi ao Horto, aquela alma que subiu acima de todas as almas, entrou em Meu lado e foi beber ao Meu Divino Coração? Fui Eu que te quis mostrar; eras tu mesma. Não és igualada nem na dor, nem no amor. Salvas com a dor, salvas com o amor. Tens em ti o poder de Jesus.

― Quanto me custa isso, que me dizeis, só Vós o sabeis, Senhor. Eu não sou digna de tão grande prova de amor; eu não sou digna que tanto baixásseis até mim... Eu bem senti, meu Jesus, como se fosse eu mesma que subi e entrei, à frente de todas as almas, mas não o disse quando há pouco ditei os sentimentos d’alma. Que vergonha, que confusão; não pude dizê-lo! Como eu me sentia miserável!

― É assim mesmo, esposa querida, pequenina, escondida, como a violeta entre a sua folhagem. Quero-te pequenina, para mais brilhares entre a folhagem das minhas maravilhas. Quanto mais pequenina, mais poderosa. Minha filha, tenho tantas almas em perigo. O peso dos seus crimes levou ao fundo o prato da balança; se lhes não acodes, caem no inferno. Queres salvá-las com a tua dor?

Vi Jesus com a balança em Suas mãos divinas, um prato em baixo outro em cima, um com tudo outro com nada. Bradei logo:

― Jesus, temo os sofrimentos, mas quero-os. E o que virá ainda! Antecipai-me o valor do sofrimento, como por vezes me antecipais a dor; colocai-o já sobre a balança; sou a Vossa vítima, quero salvar as almas. O prato, que estava em cima, baixou logo abaixo.

― Pronto, pronto; heróica, heróica! Estão salvas, estão salvas. Que alegria para o Meu Coração de Pai! Como Médico Divino da tua alma, vou dar-te uma gota do Meu sangue divino para viveres, para dares vida, para resistires à dor. É rápida a operação.

Jesus abriu-me o peito, e, já com o d’Ele aberto, tomou o Seu Coração divino sem tocar no meu, deixou cair a gota do Seu sangue. O fogo do meu coração aumentou; ele crescia, dilatava-se por todo o peito.

― Vai, esposa querida, vai para a tua cruz; leva este amor, leva este Sangue divino; é de resgate, é de salvação. Tu, a nova redentora das almas, possuis em tuas veias o Sangue do teu Redentor. Coragem! Leva a força, leva o amor do teu Senhor.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sinto-me queimada por Vós. Sede a minha força.

Março

1 de Março de 1947 - Primeiro sábado

Hoje, a minha preparação para receber a Jesus foi feita, na mais profunda dor, dor em que fiquei mergulhada, ontem, pouco depois de ter com Ele o meu colóquio. Depressa me apareceu a cruz com todos os seus espinhos e sofrimentos. Preparei-me na ânsia de bem O receber, para melhor O conhecer, para mais O amar.

Todos os meus esforços eu sentia serem baldados. Tudo o que nasce em mim morre, sem que eu chegue a gozar deles a ver os seus encantos. A morte está sempre em mim, a ceifar o que há de bom; só a minha miséria me deixa, e, momento a momento, cada vez maior aparece. Triste cegueira que só me mostra maldades! Veio o meu Jesus; logo que entrou em mim, dissipou as trevas; todo o meu interior ficou iluminado com o Seu amor, com a Sua paz. Fiquei outra, agora bem podia dizer não sou que vivo, mas sim Jesus. Falou-me:

― Minha filha, aqui estou, aqui Me tens no teu coração, para te confortar, e dar vida. Escuta-Me, quero dizer-te, quero afirmar-te que te amo e que Me amas; que estás na verdade e que tudo fazes e sofres como Eu quero. Esta afirmação não é dos homens, é do teu Esposo, do teu Jesus. Onde está a cruz, a cruz resignada, a cruz abraçada, a cruz amada, está a verdade, está a vitória. Onde está a dor, está o amor. Eu amo-te, tu amas-Me, confia em Mim. Tens a vida que te deu Jesus, tens a missão que te deu Jesus; tens os teus lábios, em teus olhares, em todo o teu viver a verdade. Coragem! Se tens a Jesus, o que te falta, que mais precisas? Diz-Me agora, Minha filha, o que querias dizer-Me; desabafa comigo com toda a simplicidade, como Eu contigo.

― Meu Jesus, bem sabeis que me arrependi por dizer-Vos que queria desabafar Convosco; eu não tenho querer nem vontade, mas já que me mandais, eu obedeço, meu Jesus. Tão bem me falais do Céu e que ele está perto, e nunca cá chega? Nunca mais saio deste desterro? Que vem a ser isto?

Jesus fitava-me e sorria-se para mim, cheio de bondade.

― Julgas, Minha filha, que és por Mim enganada? Bem sabes que te não engano. O que são as trevas deste mundo em comparação da eternidade? Digo-te que o Céu se aproxima, digo-te para te animar e dar conforto e digo-te, porque é verdade. Não se compara o tempo que viveste, os sofrimentos que sofreste com o que te resta para viveres e para sofreres. O Céu espera-te, sorri-te, está para breve. Conforta-te com as palavras do teu Esposo Jesus. O mesmo conforto quero dar ao teu Paizinho para que ele resista às suas agonias, às suas angústias e dores. Quero confortá-lo, para que não dê lugar ao demónio tentador. Diz-lhe que a sua vida fui Eu que lha escolhi; diz-lhe que o criei para as almas e que ele as encaminha e conduz como o Meu Divino Coração deseja. Diz-lhe que lhe quero e amo como as pupilas dos Meus olhos. Diz-lhe que fiz da vida, a vida de um outro Cristo. Diz-lhe que Me vejo a Mim nele e que é por isso que em tudo o assemelhei a Mim. Eu amo-o, Eu amo-o. Diz ao teu médico que lhe abro o Meu Divino Coração e o faço depositário de todo o Meu amor, de todas as Minhas graças para ele cooperar com elas e como bom agricultor semeie para Eu colher. A glória é Minha: Dou-lhe a luz do Espírito Santo para ele e para todos os que como ele cuidadosa e sinceramente trabalham naquilo que Me pertence e é Meu. Vem, Minha bendita Mãe, toma-a em teus braços, aceita-a, é nossa filhinha, conforta-a.

Jesus colocou-me nos braços da Mãezinha, que estava à minha direita. Ela abraçou-me e com o Seu Santíssimo rosto, unido ao meu, cobriu-me de carícias.

― Coragem, Minha filha, esposa querida do Meu Jesus. A tua vida é de imolação, mas também é de salvação. As almas salvam-se com o teu martírio; anima-te. Tu vences porque tens contigo a graça e a força do Senhor. Eu não te falto com o Meu auxílio e a Minha protecção. Leva as minhas graças, leva o Meu amor e carinho a todos os que te são queridos que também o são Meus e do Meu Jesus; estão presos os nossos Corações com os laços do mesmo amor.

Acrescentou Jesus:

― Vai, Minha filha, vai para a tua cruz; toda a tua vida é cruz, toda a Minha vida na terra o foi também. A nova redentora em tudo se assemelha ao Seu Redentor. Vai, leva paz e leva amor; vai, leva alegria para abraçares todos os sofrimentos. O Céu está alegre, rejubiloso. Coragem! Quanto mais Me possuíres, menos Me sentirás. Quanto mais Me amares, mais em ti desaparecerão os efeitos do Meu divino amor. Quanta mais luz de Mim receberes, mais escuridão, mais trevas te vão mergulhar. Quanto mais quiseres esclarecer, menos saberás exprimir-te. Quanto mais rica e unida a Mim estiveres, mais pobre e longe de Mim te encontrarás; tudo será noite, tudo será noite. Coragem, coragem!

― Ó Jesus, ó Mãezinha, muito obrigada pelo Vosso conforto, pelo Vosso carinho, pelo Vosso amor. Quero ir para a cruz e tenho medo; ela só tem espinhos. Ai que medo, ai que medo! Sede a minha força. Fazei que eu tudo aceite e tudo sofra, só por amor.

7 de Março de 1947 - Sexta-feira

As agonias, tonturas e dores não cessam de consumir a minha alma e o meu corpo. O meu crucifixo, Jesus, Jesus, a Mãezinha, são a minha força. Não me conheço; não sei porque vivo nem para quem vivo. O meu fim, o meu único fim é Jesus, só Jesus. Será assim? Será para Ele que eu vivo? Que vida amarga, tão cheia de incertezas! O meu coração arde, e quantas vezes parece ser nas brasas mais vivas. O meu coração anseia por amar, por se dar, por se esconder em Jesus, desaparecer por completo ao mundo, para só Jesus viver; para só Jesus aparecer. Não vejo estas ânsias realizarem-se, não sinto viver esta vida; só a miséria em mim aparece, causa-me horror. Continuo a ver os sofrimentos que me causam a morte; é mesmo a morte que eu vejo em todos os seus tormentos e dores. Tanta crueldade! Tantos assassinos, cada qual com os seus horríveis sofrimentos para mim! E eu vou, ou melhor, sinto que Alguém, dentro de mim, vai ao encontro de todos esses assassinos, que povoam o mundo inteiro; com que ternura, com que amor lhes pede para não ser ferido; com que bondade lhes estende os braços para a todos abraçar, para a todos colocar em seu regaço como mansos cordeiros; com que bondade lhes abre o Coração e os convida a entrarem n’Ele para ali viverem, para ali morrerem. Finge não saber que eles O querem matar. Ah! Se eu possuísse esta bondade, este amor! Ah! Se eu usasse assim para com os que me ferem! Ó meu Deus, Ó meu Deus, se eu soubesse exprimir esta bondade: Bendito sejais; digo o que Vós quereis; eu nada sei dizer; falai Vós, meu Jesus. Por vezes, parece que vejo em mim, acima e em baixo de mim, o inferno aberto; quer-me engolir. As serpentes, feras e negro fogo tentam engolir-me, tentam devorar-me. É um pavor, parece que todo o mundo é inferno. Eu não fujo dele, e, se não me acodem, tenho de cair nele. E, por vezes, com a visão deste martírio, vêm-me cheiros horrorosos; cheiros que eu desconheço, podridões insuportáveis. Meu Jesus, sou a vossa vítima; abraçada ao meu crucifixo, repito-Lhe a oferta; sou a vossa vítima, quero salvar as almas. Não Vos largo mais, meu Jesus; abraçada a Vós, não corro o perigo de cair no inferno. Fazei que comigo a Vós se abracem todas as almas. Mãezinha, querida Mãezinha, não sou digna, sei que o não sou, de Vos chamar pelo dulcíssimo nome de Mãe; valei-me, acudi-me, acudi ao mundo, acudi a todos os filhos Vossos e fazei com que eu prove, com a minha vida perfeita e o meu amor a Jesus, ser Vossa filha. Escondei-me, ajudai-me a desaparecer, a perder-me em Jesus, a ser louca por Jesus. Temos as trevas, tremo com a cegueira, tudo me escurece o meu espírito, toda me mergulho nelas. Estou vazia, vazia de tudo, sem ter que me encha e sem ter ninguém por mim. As humilhações parecem ferir-me o corpo e desfazer-me a alma. Tudo quero, tudo aceito, todos os sofrimentos me lembram Jesus, todos os sofrimentos me provam neles a existência de Jesus. O amor de Jesus, o amor de Jesus. Quem não há-de sofrer, quem não há-de amá-Lo! Ó minha cruz, ó minha cruz, eu não te troco nem pela terra nem pelo Céu; em ti vejo Jesus a quem só quero, a quem só amo. Não posso abafar, por mais tempo, os sofrimentos, as ânsias que há semanas me atormentam novamente. Eu não sei o que quero do Santo Padre. Temo-o como temo toda a gente, mas quero lançar-me a seus pés, quero ouvir-lhe um som, quero receber dele alguma coisa. Sofro, oro, amo-o como Pai extremoso, e como filha quero ser por ele aceite e dele alguma coisa receber.

Ontem, pouco depois do meio-dia, vi um mundo de sofrimentos, senti um mundo de pavor, um mundo que me dava a morte. E uma voz dentro em mim, murmurava: vou morrer. Horas depois, senti e vi como se o sol se metesse por debaixo de uma grande montanha, montanha que era um rochedo fechado. Esse sol movia-a e removia-a e fez com que ela se destruísse ficando em cinzas, em nada. Os habitantes, que a rodeavam, desapareceram já de noite, caí no Horto, naquele solo duro; ali sofri as maiores dores e amarguras naquela noite escura. Num rápido momento, dentro em meu peito de dor, abria-se um coração que não era o meu; abriu-se e deu todo o sangue no qual ficou o meu corpo mergulhado, nadava nele e nele se purificava. Hoje, logo de manhã, coroada de espinhos, com a cruz aos ombros, sem forças e com todo o corpo chagado, arrastado, obrigada a caminhar apressada, seguia o caminho do Calvário. O Céu não me poupou com o peso da sua justiça. Senti como se a abóbada do firmamento, coberto de nuvens, caísse sobre mim a esmagar-me contra o chão duro. Jesus dentro em mim, tudo suportava e recebia com doçura e amor. O peso esmagador, os Seus Divinos olhos para o mundo cerrados, ou quase cerrados iam abertos para Seu Eterno Pai. Eu sentia que Ele não deixava de os fitar Nele e Dele se separava. A chuva de chicotadas e pontapés, murmurava sempre o Seu Divino Coração: Eu amo-Vos, eu amo-Vos e vou morrer por Vós. Ao terminar a montanha, sentia-me desfalecer e morrer, ao mesmo tempo que sentia a tranquilidade, a paz e amor de Jesus que era a tranquilidade e paz ainda só de um Deus.

No alto da cruz fiquei a sentir a Sua Sacrossanta Cabeça em meu peito inclinada. Estava tão ferida, e os seus espinhos feriram-me também o coração e a alma! A dor de tais feridas tirava-me a vida a todo o corpo. E assim agonizava, unida a Jesus. Nesta união entreguei com Ele o espírito ao Eterno Pai. Momentos antes de Jesus expirar, eu sentia como se dos Seus lábios divinos voassem para o Eterno Pai ósculos do mais puro amor. Como Jesus amou as nossas almas no meio de tão grande sofrimento, de tão pesada cruz. Só eu não sei imitá-Lo. Momentos depois de sentir ter expirado, Ele chamou-me:

― Minha filha, Minha filha, escuta o teu Jesus. Vem, esposa amada, vem, esposa querida; convido-te a entrares em Meu Divino Coração; vem abrasar-te, vem alimentar-te, vem consumir-te neste fogo divino. Entra, demora aqui, quero-te mergulhada em amor. Serás a louca das loucas do amor divino. Demora-te aqui, toma este alimento divino que dá vida à tua alma. Viverás na dor e no amor, e na dor e no amor morrerás. Terás o amor na proporção da dor. Assim como não és igualada na dor, também o não serás no amor. Subirás, subirás, elevar-te-ás às alturas. Serás queimada, serás consumida nas chamas do Meu amor divino, serás à semelhança da borboleta queimada nestas chamas; nelas darás a vida. Eu farei que o Meu amor transpareça em ti; ele será conhecido e visto em todo o teu ser como num espelho cristalino. O Meu divino amor em ti será atraente; farei que atraiam as tuas palavras; os teus olhares, os teus sorrisos, todo o teu ser. És de dor, és de amor, és de salvação para as almas. Dou-te amor, peço-te dor, sei que não ma negas; sofre com alegria. Coragem sempre; as almas necessitam do teu sofrer.

Ao convite de Jesus para o Seu Divino Coração, eu entrei, e, dentro dele fechada, fiquei como que a nadar num mar de fogo. Jesus continuou a dizer-me:

― Sacia, sacia, Minha filha, a tua fome; é o Meu amor que dá a vida, alimenta a tua alma e suaviza também a dor do teu corpo.

Os Anjos desceram do Céu, e, em turnos, assistem a verem dar-te este alimento divino. Escuta-os. Calou-se Jesus, e principiei a ouvir uns toques harmoniosos e arrebatadores, com misturas de vozes tão doces, que na terra não conheço. Cantavam:

Vida divina, vida de amor,
Manjar celeste do Rei de amor.

Fogo divino, vinde do Céu,
Manjar celeste do bom Jesus;
Fogo divino, vida das almas,
Força invencível da sua cruz.

Glória, glória! Glória ao Senhor
que é nosso Rei e Criador!

Cessou a música, cessou o canto, e eu ainda dentro do Coração divino de Jesus. Vi os Anjos, aos bandos como de andorinhas, a subirem, a baterem as suas asinhas brancas. Jesus abriu o Seu divino Coração, fez que eu saísse Dele e, sem se separar de mim, disse-me:

― Vou dar-te uma gota do Meu divino Sangue para alimento do teu corpo; não deixarei de to dar, enquanto que não deixar de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir, enquanto viveres na terra.

Jesus abriu num rápido momento, o meu peito; dentro do coração, deitou uma só gota do Seu Sangue divino. O coração principiou a dilatar-se, e Jesus, muito apressado, cerrou a abertura, passou por cima as Suas divinas mãos e bafejou-o com os Seus lábios.

― Vai, Minha filha, leva a minha vida, leva o Meu amor. Confia, confia que Me amas; estás cheia de Mim. A tua morte ‘e vida, a tua cegueira é luz, o teu vazio é o sinal, é a prova mais clara de que de Mim estás cheia, toda cheia, que só de Mim vives, que só a Mim pertences, que só a Mim amas. Vai, Minha filha; vai dizer que Jesus é muito ofendido, que a malícia humana não pode aumentar mais. Vai dizer que Jesus, pelos lábios da Sua vítima mais amada, pede a oração, pede reparação, pede penitência; e sobretudo pede pureza, pede amor. Vai, filha querida, para a tua amargura, para a tua cruz; vai com alegria, vai confiada, que contigo está sempre o teu Jesus. Coragem, coragem!

Já lá vão umas horas; o coração queima-me, estende os seus ardores a todo o peito, mas já o sinto cercado de espinhos e todo meu espírito mergulhado em cegueira. Bendita seja para sempre a minha cruz.

14 de Março de 1947 - Sexta-feira

Não me tenho conhecido, e, de dia para dia mais se apaga a luz do meu espírito e menos me conheço. Não me compreendo, ó meu Jesus; o que será de mim! Eu já morri; tudo em mim desapareceu com a morte, só a minha miséria ficou, só as maldades que me causam vergonha e nojo aparecem. Não sei porquê e não sei quem fez que outra morte corra para mim; sinto-a e vejo-a vir para mim, depois de ter morrido e desaparecido. Sinto como se o meu pobre corpo todo se desfizesse pela dor; parece que a lepra do pecado a mói; todo ele é pó e sangue. O meu crucifixo, o meu crucifixo é o companheiro dos meus braços, não posso separar-me dele. É Jesus, é a Mãezinha a força do meu sofrer. Eu não me contento em frequentes vezes renovar-lhes a oferta de vítima, dizer-lhes que Os amo; que lhes pertenço, que sou Deles. Quero mais, muito mais, sempre mais e é esse mais que eu não tenho. Como hei-de pertencer-Lhes, se não existo; como hei-de amá-Los se não tenho amor; como hei-de dar-Lhes mais se não tenho esse mais! Caio no desalento, morro de fome e sede. Quero Jesus e não O encontro, quero ter que Lhe dar e nada posso. Meu Deus, meus Deus, que dor de morte! O meu coração está sempre aberto; sinto-o, dia e noite, sangrar; sinto os punhais e espadas que me cortam; que cortar finíssimo, que dor tão aguda! Quanto mais me ofereço a Jesus mais vezes Lhe digo: Meu Amor, sou a Vossa vítima.

Pobre de mim, mergulhei ao fundo do mar; toda a água desse mar imenso é dor; estou perdida; estou no fundo; mas oiço a tempestade furiosa, destruidora, que passa pelas ondas na superfície das águas. Quem poderá valer-me? Quem poderá salvar-me? Quem poderá salvar-me? Só o Céu, só o Céu. Sinto todo o mundo em desordem, a perde-se. Sinto a grande necessidade de me purificar, de ser pura, pura, santificar-me, para poder acudir ao mundo, para o salvar. E não aumento na graça, nem na virtude; não dou um passo para a minha santificação; não sei viver a vida do Céu, não sei seguir o meu Jesus, não vejo para caminhar pelos Seus caminhos. Mesmo assim, a minha alma tem paz; e digo a Jesus: ou amar ou sofrer, ou então morrer. Eu gozo na dor, mas é gozo sem conforto; mas quero sofrer para consolar Jesus, quero sofrer para Lhe dar almas, quero sofrer abraçada à cruz, à cruz das humilhações, das calúnias, à cruz de toda a dor e martírio. Sinto-me esmagadíssima, mas é por Jesus, só por Jesus que me deixo esmagar. Não sou compreendida? Deixá-lo. Ele compreende e vê o meu coração. Sinto-me apavorada com o aproximar-se da Primavera, de flores de martírio, de flores de espinhos para a minha alma; mas quero abraçá-las; em tudo o que é dor eu vejo Jesus.

O demónio, o maldito demónio não perde ocasião nem tempo; quer levar-me ao desespero e a ansiar pelas consolações, gozos e alegrias. Tenta pôr-me ódio ao sofrimento, encher-me de dúvidas, e mostra-me a minha vida perdida. O que seria de mim, se, por um só momento, Jesus me abandonasse, e perdesse a confiança Nele. Que luta sem fim; que luta tão só; que luta tão cheia de medos de tudo e de todos. Ó Jesus, avós me entrego, para ser sempre Vossa vítima. Quando me vêm novas contrariedades, novos espinhos, mais dou a Jesus os meus abraços, beijos e carícias. É um dar sem dar, é um viver sem viver. Seja pelo Seu amor.

Na tarde de ontem, o meu coração sentiu, a minha alma viu uma lança que o feria, que o trespassava, e todas as mãos humanas opunham violência a essa lança para ela mais violentamente o ferir e o coração mais sangrar. Assim segui o caminho do Horto, ainda mais com a dor da separação de Jesus e da Mãezinha. Se soubesse dizer o que sofreram aqueles dois Corações com aquela separação, ao saberem, um e outro o que iam sofrer! Eles separam-se, mas a dor e o amor ficaram em união um com o outro. Naquele Horto triste, foi o meu corpo que serviu de cálice cheio de amargura para apresentar a Jesus, e foi ele ainda que lhe serviu de cruz para o Seu corpo divino, e, dentro em mim, Ele encheu o cálice do Seu preciosíssimo Sangue, sangue que corria do Seu coração aberto. Depois disto, senti no meu rosto o rosto de Jesus, a suar sangue, e sentia-O inclinar-se sobre mim, desfalecido na Sua tormentosa agonia.

Hoje subi o Calvário, desfalecida, abrasada em sede. O meu corpo maltratado morria, mas a sede do coração, a sede de morrer, a sede de abrir o Céu, para fazer aparecer e brilhar o sol nas almas, sabia, aumentava, vivia mais, quanto mais se aproximava o Calvário e o momento de dar a vida; sede insuportável, sede indizível, sede que não era minha. E foi no Calvário esta sede até ao último momento a vida de todo o meu sofrer. Com o rasgar das chagas sentia os nervos encolherem-se, o corpo gelar, os olhos cerrarem-se e a cabeça inclinar-se; estava moribunda, ou para dizer melhor, estava moribundo Jesus. E foi ainda a mesma sede que revestiu de vida o Seu brado e o fez subir ao Pai. Nos últimos momentos de vida, dos olhos moribundos de Jesus brotaram ainda algumas lágrimas, por sentir e ver os últimos impulsos e crueldades feitas pelos homens, pela maldade humana, ao Seu Santíssimo Corpo agonizante. A sede do Seu divino Coração avivou mais, voou ao alto, ia a entrar no Céu ao encontro do Pai, enquanto o corpo morria. Que sede ardente, mas tão doce era a de Jesus!...Eu com Ele tive sede, com Ele subi, com Ele expirei. Ele expirou, para pouco depois viver e fazer-me viver a mim e falar-me:

― Minha filha, vem, vem, entra; está aberto, de par em par, o Meu Divino Coração; entra, não temas o fogo que o cerca; é amor que vivifica, é amor no qual eu quero purificar o teu, é amor que te dá a vida. Entra; vem alimentar a tua alma, enfraquecida pelo sofrimento; vem, descansa em Mim, suaviza a dor do teu corpo.

Jesus estava com o Seu divino Coração aberto, à volta Dele tudo eram chamas, parecia um jardim de doiradas flores. Entrei, Jesus inclinou-me a Ele e disse:

― Descansa, descansa, alimenta-te deste amor divino, é o Meu amor, a vida de que vives, a vida que quero que dês às almas. O médico divino vela sempre pela Sua vítima. Quantas vezes vires descerem pata ti os raios que têm descido, confia, é o amor, são raios de amor que saem da chaga do Meu divino Coração e vêm penetrar no teu. É o alimento que te dou, quando te vejo no desfalecimento, mergulhada no mar da tua dor. Confia, confia, não é ilusão tua, não te enganas. Eu virei a ti com esta medicina, com este fogo divino, frequentes vezes. Assim como o teu martírio tem toda a variedade de dores, também Eu procuro, na Minha Ciência divina, toda a variedade de conforto para te aliviar. Ó meu Jesus, eu não falei nos raios que a mim vi descer com receio de me enganar, de ser uma ilusão minha. Que medo eu tenho! Prometi, esposa querida não te deixar enganar; não falto à minha promessa divina, confia. Ó meu Jesus, é tal o medo que tenho de me enganar, que mal posso resistir ao aproximar-se a sexta-feira e a hora a que me falais; e a dor, que nasce daqui, continua mesmo quando estou convosco; porque é meu Jesus? Não te disse Eu, esposa querida, que seriam dolorosos os teus colóquios? Assim ferida, nadando no Meu divino amor, não sentes consolação; fica essa para Mim, toda para Mim. E não queres tu consolar-Me? Não queres tu reparar o Meu oração ultrajado? Vê em que estado me põem os pecadores.

Saí fora do Coração de Jesus, e vi-o despido da sua beleza, todo ferido, todo em sangue, a tremer e chorar. Que ternura senti por Jesus; disse-Lhe logo:

― Aceitai o meu pobre coração, para nele descansardes; aceitai todos os meus sofrimentos, nenhum valor têm, mas revesti-os de Vós, quero com o que é Vosso revestir-Vos da Vossa beleza, enxugar-Vos as lágrimas, sarar-Vos as Vossas feridas. Sou sempre a Vossa Vítima Jesus.

Enquanto que dizia isto, sentia como se abraçasse, beijasse, acariciasse Jesus e Lhe enxugasse as lágrimas.

― Não choreis, Jesus; eu amo-Vos; eu quero sofrer e quero reparar.

No mesmo momento, vi-O revestido da Sua beleza; já era o mesmo Jesus.

― Dás-me então, Minha filha, o que tanto te custa dar-Me e a Mim custa pedir-te? Dás-Me nos dias que vão seguir-se alguns ataques violentíssimos do demónio? Os pecadores vão às minhas prisões de amor receberem-Me, e dentro deles sou apunhalado, assassinado. Passo pelas suas línguas de fogo infernal, e, dentro das suas imundas prisões, sou morto. Dá-Me reparação, dá-Me dor, toda a dor, se não Me queres ver sofrer e se não queres que as almas caiam no inferno. Dou-Vos tudo, tudo, meu Jesus. E Vós prometeis-me toda a Vossa graça e força? Eu não te falto. Vai então; fala do Meu divino amor, da minha misericórdia e perdão. Mas antes de Me esconder, quero dar-te uma gota do Meu Sangue divino; sem ele não poderás viver, nem resistir a tão doloroso martírio.

Tomou Jesus o Seu divino coração; pelo centro saía tão grande labareda, que toda me rodeava, me embebia nela. Por entre o fogo caiu no meu coração a gotinha do sangue do de Jesus. Com o sangue e o fogo o coração crescia, crescia, parecia rebentar-me. Jesus veio logo, pôs termo a tudo, com o Seu cuidado, com as Suas santíssimas mãos. O fogo continuou a abrasar-me; mas o coração deixou de dilatar-se.

― Sem um milagre divino não aguentavas com tal força de amor, nem com o sangue que te corre pelas veias que é o Sangue de Cristo. Vai agora falar das Minhas maravilhas, dos tesouros que em ti estão enterrados; vai dar às almas este amor, a vida que recebes de Mim; vai dar tudo com as tuas muitas virtudes, com as mais altas virtudes. Eu sou Rei, e no trono da Minha rainha deposito tudo o que é Meu. Vai, lírio casto, pomba branca, espalhar pelo mundo o teu perfume, a tua alvura. Vai pedir-lhe, vai lembrar-lhe que Jesus pede oração e penitência, o amor, a pureza da vida. Vai, Minha filha, tem coragem, nada temas, confia em Mim. Vai confiada que é Minha a vitória, é Meu o triunfo. Coragem, coragem!

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

21 de Março de 1947 - Sexta-feira

Temo-me, temo-me; tenho medo de mim mesma; tenho medo de viver no mundo. Eu vejo-o tão cruel para mim. Todos me ferem, todos tentam tirar-me a vida, é uma revolta universal; todos contra um, isto é, todos contra mim, é o que sinto. Os seus maus-tratos, a sua crueldade ferem-me tanto; reduzem o meu corpo a uma massa de sangue. Sinto em mim; não sei dizer, não sei se me exprimo bem, duas naturezas uma viva outra morta. A morta é esta massa de sangue, e foi a crueldade do mundo que a causou. A que vive é imortal, resiste a tudo, é uma vida superior; por mais que o mundo empregue as suas crueldades e maldades, nunca lhe tirará a vida, nunca a fará desaparecer. Mas, ó meu Deus, que luta dentro de mim. Esta vida opõe-se contra tantas maldades, que não aceita esta morte tão cruel do corpo, e prepara-se para a chamar e pedir rigorosas contas. Eu olho para esta morte, para este corpo desfeito em lepra, para esta massa em sangue e revolto-me contra mim mesma, não posso ver-me. Fui eu e só eu a causadora de tanto mal. Jesus, Jesus; sou a Vossa vítima; seja por Vosso amor toda a variedade destes sofrimentos. Vede tudo que em mim se passa, e dai-me a Vossa força.

Vi por duas vezes passar Jesus, à minha frente, como se fosse por um caminho com um grande madeiro aos ombros; ia curvado com o seu peso e tão desfigurado, que mal parecia Jesus. Ele inclinou para mim o Seu Santíssimo rosto mas nada me disse, e eu nada soube dizer-Lhe; não soube provar-Lhe o meu amor nem consolá-Lo. Disse-Lhe: sou a Vossa vítima, mas foi bem pouco para quem tanto sofria. No sentir da minha alma, nada Lhe disse, nada fiz por Ele; sofri e sofro por nada consolar Jesus, a quem só quero amor. Quando sinto os punhais e espadas cortarem-me o coração, queria saber falar a Jesus, dizer-Lhe muitas coisas lindas e não sei; abraço o crucifixo contra o meu peito, renovo a oferta de vítima, digo-Lhe que O amo, que quero sofrer eu, para não sofrer Ele, e fico na dor de não O saber consolar, quando Ele tanto está a sofrer. Poucas vezes, vi descerem sobre mim os raios de amor do Seu divino Coração; quando eles desceram e penetraram em mim, fiquei mais forte e com mais coragem, por algum tempo.

Tive três combates com o demónio, todos a seguir, na mesma noite. Talvez uma hora antes de se travar o primeiro combate, a minha alma viu todo o inferno contra ela, estava aberto para lá receber o meu corpo; eu estava à boca dele, e a cada momento parecia lá cair. Senti grande revolta, juntamente com grande pavor. Apesar disse, não evitei o pecado; queria satisfazer as minhas paixões. Travou-se a luta, três vezes seguidas, quase sem parar. Eu não me esforcei por defender-me, ou sentir não me esforçar. O demónio falava pouco, toda a maldade era minha. Poucas vezes invoquei os nomes de Jesus e da Mãezinha e lhes disse que era a Sua vítima; não me lembrava; o pecado era a minha loucura. Ao terminar fiquei novamente nas garras do demónio, na boca do inferno; não tinha arrependimento, sentia grande revolta, queria matar-me a mim mesma, e não saia da boca infernal, nem do perigo de lá cair. Sentia e ouvia estalos, como lenha verde, e por mim pareciam passarem as labaredas e o fumo negro. Depois disto, queria beijar Jesus crucificado e essa querida Mãezinha e não tinha coragem; a vergonha não me permitia beijá-Los nem abraçá-Los; só com grande esforço o pude conseguir. Depois, fiquei com a alma e o corpo num doloroso martírio.

O dia de S. José passei-o mais aliviada dos sofrimentos da alma; não senti gozo nem alegria, mas sim suavidade. Ao cair da tarde veio de novo a noite escura, as amarguras e agonias da alma. Sofri por não ter sofrido e abraçado Jesus dizia-Lhe: não soube amar-Vos nem ter para Vós carinhos; parece que hoje não vivi; meu Jesus, sinto-me como se hoje não estivesse no mundo; não posso viver sem a dor da alma e do corpo; se ma tirais, não sei viver, não posso estar aqui. Ó Jesus, ó Jesus, junto a Vós abraço a minha cruz com todo o meu sofrer, não me tireis a dor, dai-me conforto; só a dor é a vida e a alegria dos meus dias. Sou Vossa, ó Jesus, sou a Vossa vítima.

Na tarde de ontem, sentia torcer-se e espremer-se a minha alma. Num rápido momento, senti que o meu coração se sentia em dois pedaços; um ficou a ser o Coração de Jesus e outro o da Mãezinha. O de Jesus seguiu para o Horto dentro de mim; o da Mãezinha ficou desfeito em dor e em lágrimas, só o amor foi a acompanhar Jesus. Como eu sofri, ao ver na dor que ficou o da Mãezinha! Caminhando sempre, sempre fiquei unida àquela dor, e, na mesma união de dor, ficou Jesus. No Horto, senti ao meu pescoço grossas cordas que mo apertaram e cortaram; até quase nele ficarem escondidas; por elas foi o meu rosto levado ao chão e nele ferida e pisado. De lá vi, ao longe, uma árvore, na qual estava dependurado Judas; dela o vi cair ao solo, rebentar, e, no mesmo solo, se espalhar o que o corpo dele continha. Foi a venda, a entrada de Jesus, o beijo traiçoeiro que o levou àquele acto, àquele desespero. Tudo senti na minha alma, como senti o amor de Jesus, a enfrentar toda aquela maldade. Que indizível ternura, amor e compaixão! Com tal visão foi tão espremido o Coração divino Jesus, foi tal a Sua amargura, que encheu o cálice; transbordava fora; o Seu sangue divino corria pelo Horto.

Hoje passei todo o caminho do Calvário, sem nele aparecer um raiozinho de luz. Caminhei revestida de toda a maldade humana. De um e outro lado, surgiam rancores, almas sem dó nem piedade de mim; fitavam com ódio e desespero. Era tal a sede de amor por todo o sofrimento, que de amor se formava como que um canal que toda a dor recebia e toda a maldade fazia desaparecer. No alto da cruz, este canal de amor continuou e tudo absorveu para si; parecia ter braços que abraçavam.

As chagas rasgavam-se, os nervos encolhiam-se, e eu morria de cansaço e de dor. O meu brado de agonia mal se ouvia no Calvário; a fortes impulsos do coração eu subia ao Céu. No calvário tudo passava despercebido; o brado moribundo já não passava pelos ouvidos nem penetrava nos corações. Com a violência da dor e o impulso do coração, ele foi subindo, mas o Céu tão fechado e com nuvens tão negras pareceu não o receber, rejeitá-lo também. Eu agonizei e de mim voou a vida que o foi abrir. Pouco tempo depois, caiu sobre mim uma chuva d fogo, a qual me abrasou tanto que não podia resistir. Mas logo acudiu Jesus, deu-me a Sua força divina e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a ti veio o Meu amor, a ti desci com todo o Meu fogo divino, em ti vivo com todo o amor, porque com todo o amor por ti sou amado. Amas-Me, quando choras, quando sorris; amas-Me na dor e na alegria, amas-Me no silêncio ou falando, amas-Me em tudo; dia e noite, sobem ao Céu, em cada momento, os teus sofrimentos, o teu amor. Estou no teu coração como num braseiro do maior fogo, das mais vivas chamas. Amas-Me; amas-Me; confia em Mim. Dou-te as ânsias de amor, faço-te sentir que não Me amas, para que por ti as almas anseiem amar-Me e conheçam que não Me amam. Diz, Minha filha, diz que é um queixume de Jesus, que é muito pequenino o número das almas que Me amam com verdadeiro amor, com amor puro. E tantas que não é por Me ofenderem gravemente, mas estão como insectos sem pernas e sem asas, que, só rolando, mal saem do seu lugar; e assim vivem e assim morrem.

― Ó meu Jesus, a esse número pertenço eu também; tende dó de mim, vede a sede que tenho de Vos amar, vede que quero voar para Vós e só para Vós quero viver. Mas sei Jesus que estas ânsias, estes desejos não me pertenciam, nascem de Vós, em mim só miséria aparece.

― Assim é, Minha filha; mas tu cooperaste com a Minha graça, deixaste-Me trabalhar; acendi em ti o fogo, e foi como por rastilho rapidamente, e aqui estás neste Calvário, como bomba sempre a explodir. Aqui te coloquei para a dor e para o amor. Espalha, espalha, infunde nas almas o Meu amor e dá-Me com alegria a tua dor que é dor de salvação. Estiveste Minha filha, sobre o inferno; foi para te mostrar no perigo que estão os pecadores, o maior número das almas que existem na humanidade; não se arrependem, não deixam o pecado. Eu continuarei a pedir sempre o teu sofrimento; serei como um mendigo, que não cessa de pedir. Quero que digas, Minha filha, que Meu Eterno Pai espera bem pouco tempo pela reconciliação do mundo, pela vida pura de oração e penitência dos homens. Ai dele, pobre mundo, se depressa não vem a Mim e deixa seus crimes. Em breve, muito em breve será castigado. Acode-lhe, acode-lhe, esposa querida; vê que são Meus filhos.

Jesus dizia isto e chorava.

― Meu Jesus, são Vossos filhos e filhos do Vosso sangue divino, mas se o meu sofrimento os pode salvar, aqui me tendes, Jesus; dai-me o que quiserdes e não quero que me peçais. Sou a Vossa vítima, quero a Vossa força e graça. E não choreis.

Jesus deixou de chorar e disse-me:

― Quero que sofras, vítima inocente, mas quero pedir-te o sofrimento; com isso dou lição ao mundo; um Deus pedir a uma criatura Sua para lhe salvar os Seus filhos.

― Meu Jesus; e os meus sofrimentos nada valem, se o mundo for castigado?

― Valem, valem, filha amada; as almas são salvas mas salvas pela tua dor e não pelos seus merecimentos; são salvas à força, não Me dão a glória que deviam dar; mas são salvas, vão amar-Me eternamente, embora em lugar mais baixo, pela falta dos seus merecimentos. Dá-Me dor, dá-Me dor, Minha filha. Para ma dares com mais força e coragem dou-te Eu a ti a vida de que tu vives, a vida da tua dor, uma gota do Meu Sangue divino.

Dito isto, logo em Suas divinas mãos vi o Seu Coração abrasado em labaredas de fogo; por entre elas caiu no meu a gotinha do Seu preciosíssimo Sangue. O meu coração logo se dilatou e ficou ofegante. A força, com que palpitava, fez correr em todas as minhas veias aquele Sangue. Foi o que eu senti, e Jesus o confirmou.

― Minha filha o teu coração está aberto pelos punhais, como o meu foi pela lança sangra sempre e foi por esta chaga que o meu Sangue divino entrou. Ó maravilha no mundo nunca vista; só em ti foi operado tal prodígio! Todo o Céu com os seus Anjos se regozija, se alegra ao ver tal maravilha. São os impulsos de amor que levam a correr por todas as tuas veias o Meu Sangue divino. Vai, esposa querida, vai, e dá esta vida às almas; que é a vida do Céu. Vai para a tua dor, vai para a tua cruz, é este Sangue a tua força, o teu amor no teu martírio. Coragem, coragem! Confia e vai em paz.

― Obrigada, meu Jesus. Não quero que um só momento cesse o meu agradecimento.

28 de Março de 1947 - Sexta-feira

A morte vem, aproxima-se para breve, mas é uma morte que, me deixa viva, só o corpo morre; são os pecados, é o mundo inteiro a matar-me, mas não pode matar tudo. A vida que sinto não morrer é a vida superior, é a vida de triunfo, é a vida que faz viver e governa todas as vidas. Sinto que ela está em todo o mundo como sopro de ar espalhado. Sinto que a esta vida pertence todo o Céu e toda a terra. Sinto imensa necessidade de falar desta vida, de a fazer conhecida e não sei; limito-me apenas a dizer; é a vida de graça, é a vida de amor. Mas oh! Que amor louco, que amor sem igual! Eu queria amar esta loucura de amor, com amor e loucura semelhante. Mas, ó meu Deus, como estou longe! Sinto que se trabalha dentro em mim; toda a mobília da minha casa, isto é, do meu corpo saiu fora. Toda a imundice, todo o pó é limpo, mas não por uma só vez; tem sempre de se voltar atrás e limpar novamente. O meu vazio é tão grande; só o Céu o pode encher, só Jesus com todo o Seu amor o poderá satisfazer. O mundo não me enche, nem milhões deles, se os houvesse. Sinto-me como a querer fugir da terra, a aborrecê-la, a odiá-la; não me pertence, quero desaparecer dela. Ando como se fosse um sopro a vaguear nos ares. Quero ir para Jesus, encher este vazio. Mas Ele está tão longe. Ai, a minha Pátria! Quanto mais a anseio, mais a vejo fugir. Daqui nascem os meus desânimos e desalentos; mas estreitando contra o meu peito o Crucifixo, logo me levanto. Hei-de vencer com Jesus. A cegueira é tanta, não me deixa ver, fico como desatremada nos seus caminhos. Mas a minha confiança, tantas vezes contra toda a esperança obriga-me a crer: sou de Jesus e da Mãezinha. Depois de tanta luta, tanto sofrer, virá o Céu. Sei que o não mereço, mas espero não ser por Jesus, nem pela Mãezinha abandonada.

Haverá alguém que só Neles confie e fique Deles ao abandono? Oh! não! Oh! não; pensar assim, seria ferir Jesus. Quero ter o meu espírito sempre preso, açaimado para não perder a minha união com Deus. Se assim não for serei como animal mais feroz e sem freios; e no meio do mar doloroso martírio de alma e corpo não perder por um só momento que seja a união com o meu Deus. Quero separar-me tanto tempo Dele, como Ele se separa de nós com os Seus olhares divinos, e como a dor se separa do corpo. Não posso viver sem Deus; não posso viver sem a dor. Queria ver toda a humanidade a viver a vida íntima com Nosso Senhor; estou certa que o pecado desapareceria da terra.

O demónio não cessa a sua guerra contra mim; o meu espírito é com dúvidas consumido. Quando assim é, Jesus vem por uns momentos suavizar a minha alma com o Seu amor e a Sua paz; fico mais forte para a luta. Passou o quinto aniversário que Jesus deixou de manifestar em mim a Sua Santa Paixão e deixei de me alimentar. Só quero o que Jesus quer. Mas ó que pena e que saudades. Senti durante três dias como se todo o meu ser tivesse bocas para comer; tudo ansiava. O alimento que eu desejava, que era tudo, sentia que todo o mundo o comia; para mim só me bastava a dor e a saudade. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Os olhos do corpo não choravam, mas os da alma suspiram o lugar; foram lágrimas dolorosas, mas sempre conformes com a vontade do Senhor.

Passei deste martírio ao Horto, para ali me unir a mais padecimentos. Foi o meu rosto escarrado, os olhos vendados, mas tinha outros olhos que viam passarem pela minha frente por escárnio, ajoelhando, fazendo grandes continências. Sobre os meus ombros, tinha uma velha capa, sobre a cabeça uma velha coroa, e eu, no maior abatimento, no meio de tantos algozes. Eu digo eu, mas não era eu, era Jesus revestido em mim. Se fosse eu não sofria, porque tudo mereço. Sou muito humilhada, sinto-me desesperada, e reconheço que sou digna de tudo. Mas ver e sentir Jesus sofrer assim, não tenho coração para aguentar! Tenho por vezes que esforçar meus olhos e os meus sentimentos a retirarem-se de tão grande suplício. Quanto sofreu Jesus, que dor sem igual; e tudo por nosso amor. No solo do Horto levantaram-se como que quatro negras paredes de tal altura, que não lhes via o fim; fiquei entre elas, apertada como numa prensa com a visão de todos os sofrimentos. E então de todo o meu corpo saía suor de sangue; fiquei banhada e como nunca só ferida.

Hoje, logo de manhã tive o sentimento de todo o caminho do Calvário. Continuei a sentir todo o corpo despedaçado e em sangue. As minhas lágrimas eram de sangue e pelos lábios e ouvidos saía sangue também. Já perto do Calvário, a um grande desfalecimento de Jesus vi cair sobre Ele uma grande chuva de açoites e forte rancor, parecia infernal. Esta descarga tormentosa deu-se dentro de mim. Senti bem este rancor, mas senti muito mais ainda a doçura e amor com que Jesus tudo recebia. No alto da cruz, continuava o ódio e o rancor dos mesmos. Jesus pode ver com os Seus Santíssimos olhos quase moribundo a lança que bem depressa viria abrir-Lhe o peito e ferir Seu divino coração; à sua frente estava o que ia cravar e do Seu Coração divino saíam para Ele como que ósculos de amor. Esgotavam-se as forças, fugia-Lhe a vida, mas não se esgotava nem Dele fugiu o Seu divino amor.

Nem com o expirar de Jesus se esgotou; estendeu-se pelo Calvário, e do Calvário, e do Calvário, e do Calvário ao mundo como sopro de ar, como perfume delicioso. Eu expirei com Ele e a Ele ficou preso, por algum tempo, o meu coração. Não foi pronto a falar-me, demorou-se. Quando veio disse-me:

― Minha filha, Minha filha, jóia preciosíssima, jóia do mais alto valor para o Meu divino Coração. O ouro de que é feita esta jóia são todas as tuas virtudes; a pureza, a graça, a obediência, a humildade, a caridade e todas as outras mais. As pedras preciosas que a guarnecem, é o amor e a dor. Como estas pedras brilham no meio de ouro fino de tantas virtudes! Que riqueza, que tesouros encerram esta jóia; tem encantos atraentes, tem luz que guia, tem, laços que prendem! Tem amor que Me ama, tem amor que ama as almas; é o preço delas, é delas a salvação, é delas a salvação. Eis a razão, Minha filha, Minha pomba querida, eia a razão por que este tesouro é perseguido., é assaltado; é durante a vida, e sê-lo-á depois da tua morte. Nas perseguições dos cristãos, são mais perseguidos aqueles, que são cristãos a valer, notados de maior virtude e maior graça. Quando há grandes assaltos de ladrões, não vão eles assaltar as pobres choupanas, onde nada podem encontrar; vão aos palácios ricos e poderosos. As riquezas, que em ti depositei, são inigualáveis. O palácio do teu coração possui toda a riqueza, que o Meu encerra. A missão, que te confiei, é a mais alta e sublime. A guerra a ela será pior que do inferno. Tem coragem! É Minha a causa, é Minha a glória, é Meu o triunfo. Quanta mais perseguição, mais luz. A tua vida será para o mundo um raiar de sol puro, de sol brilhante. A tua vida será, através do tempo, para as almas uma estrela, que as guia e conduz a Mim. Dá-Me a tua dor, dá-Me o teu amor; que é o resgate das almas.

― Meu Jesus, sim eu quero o Vosso amor para com ele Vos amar e fazer com que as almas Vos amem. Dou-Vos a minha dor, sim, de boa vontade; comprai com ela os pecadores, prendei-os para sempre a Vós. As Vossas palavras, meu dulcíssimo Jesus, humilham-me; eu sem ter querer, queria desaparecer, queria desaparecer. O que dizeis de grande é bem, isso me conforta. O que eu quero, Jesus, é estar na verdade, em nada me enganar. Aceitai, aceitai também, Jesus, a dor da minha humilhação.

― Confia, Minha filha, não permito, não consinto que te enganes; é a verdade pura, mais pura que a neve, mais clara que o sol. Eu aceito a dor da tua humilhação, e sabes para quê? Para acudires a certas almas, prestes a caírem no inferno. Vais sofrer muito, vais ter dias de grande penúria.

Vi que Jesus ia a dizer-me quem eram essas almas; acudi logo:

― Jesus, Jesus, não digais quem são, basta sabê-lo Vós. Dou-Vos os meus sofrimentos, para por eles os aplicardes como Vos aprouver. É mais sossego para a minha alma; posso-lhes acudir da mesma forma, não é verdade, Jesus?

― Sim, sim, Minha grande heroína; maior é a prova do teu amor e mais valiosa a tua dor; dares sem desejares saberá a quem. Olha, vem a Minha Mãe Bendita, a Minha Mãe das Dores, mostrar-te quanto Comigo sofre e pedir-te para lhe salvares essas almas, suas filhas também.

Logo ficou a meu lado a Mãezinha das Dores, lacrimosa, com um manto azul e branco e cheio de setas o Seu Santíssimo Coração.

― Minha filha, Minha filha ―  me disse Ela: ― vê quanto eu sofro também; dá a tua dor a Jesus, para Lhe salvares as almas, filhas Dele e filhas minhas.

― Ó Mãezinha, ó Mãezinha, eu não posso consentir que Jesus me peça e Vós me peçais a dor; basta dardes-me os sofrimentos e com eles a Vossa força e amor. Sei que o sofrimento é um grande bem para mim e para as almas; quero sofrer, pois, com toda a generosidade e amor, mas não quero ver ferido o Coração divino do meu Jesus nem ver no Vosso essas setas; passai-as para mim Mãezinha.

Ficaram no mesmo momento no meu coração as setas e a Mãezinha delas libertada: secaram-Lhe as lágrimas, e ficou o Seu Santíssimo rosto, cheio de alegria. Aproximou-se Jesus mais de nós, e disse:

― Vai assistir à Minha Bendita Mãe à passagem do sangue do Meu divino coração para o teu.

Tomou em Suas divinas mãos o Coração todo em chamas, colocou-o sobre o meu; a gotinha de sangue caiu, e logo fiquei com o coração e todo o peito a arder em fogo vivo.

― Jesus, Jesus, morro queimada.

Acudiu a Mãezinha e passou-me sobre o peito as Suas Santíssimas mãos, bafejou-me por algum tempo com os Seus lábios, e disse-me:

― Coragem, filhinha; é o Sangue de Jesus, é o Sangue que correu em Minhas veias, que foi para o teu coração; é a tua vida, é de que tu vives.

Jesus acrescentou:

― Agora és consumida pelo fogo do amor e depois dele apagado ficas a ser consumida pela dor. Foi para isso que te fez ver as setas que feriam a Minha Bendita Mãe. Acode aos pecadores. Ó maravilha, ó maravilha! Leva esta vida que de MIM recebeste, leva o Meu divino Sangue; provo bem claramente que é a tua vida; vai dá-la às almas. Ó prodígio, grande prodígio! Vai corajosa, vai confiada, cheia de amor. Vai dizer ao mundo que, se não foram os teus sofrimentos, já a justiça do Meu Pai o tinha submergido em vulcões de fogo. Que castigos estão sobre ele! Que ameaças o esperam! Ai dele, se não se converte! Vai para a tua cruz, vai com alegria, acode às almas.

― Obrigada, Meu Jesus, obrigada, Mãezinha. Uni o Vosso coração ao de Jesus e ao meu; nesta união vou contente para a minha dor. Sou vítima, sempre vítima, sou a escrava do Senhor. Jesus, Mãezinha, quero força, quero força, seja comigo o Céu.

Abril

4 de Abril de 1947 - Sexta-feira Santa

Venha sobre mim o auxílio do Céu; sem a força divina nada poderei dizer, não posso mover os lábios para falar. A cada movimento, a cada palavra, sinto como se me arrancassem o peito e o coração. Confio; se Jesus quiser, conseguirei dizer alguma coisa do que me vai na alma. O meu corpo desfeito pela dor tem sido um montão de podridão a ferver. Este montão parecia-me a mim ser toda a humanidade estragada, a ferver de apodrecida. A morte correu para mim; sentia vir, senti-me morrer. Senti como se me separassem a alma do corpo; mas esta morte não deu ao corpo as cinzas de um cemitério.

Pouco depois de morto e sepultado, eu vi-o todo formosura, glorioso, a triunfar da morte. Quanto custa ao corpo separar-se do espírito; ele subiu, voou para o alto, e via que bem depressa de novo se unia àquele corpo que deixava frio, mais frio que o gelo, desfigurado, despedaçado, quase sem carne. Que contraste, que coisa que não sei explicar! Ele via que, de novo, se juntava, mas até esse momento até chegar a hora dessa separação, que universo de dor, que mar de martírio! Este corpo que morria e era glorioso, este espírito, que voava, estava em mim, mas não era meu; eu era apenas esse montão de morte apodrecida, nojenta, horrorosa, que causava a morte a este corpo glorioso. Eu não podia enfrentar tais coisas. O espírito puro, que podia voar com o seu corpo glorioso, introduzido, transformado nesta morte imensa, no meu corpo mundial apodrecido! Eu queria separar uma coisa da outra, e não podia; eu queria desviar o puro do imundo, e não conseguia; tive que morrer e ver o corpo e o espírito puro coberto da mais negra podridão. Sinto necessidade de querer dizer muito neste sentido, e não posso, nem sei dizer melhor. Senti que, depois da morte, dessa morte gloriosa, desci como que a um inferno, mas não a um inferno de fogo, de maldições e tormentos mas a um inferno só de tremenda escuridão, onde não entrava luz nem alegria; era um inferno de cegueira e ansiedade. Senti como que Nossa Senhora estivesse em mim, contente de braços abertos, como quem se sustenta no ar entre aquela multidão, como uma pomba batendo asas transmitindo a mesma alegria e fazendo como voasse essa multidão toda. Mas como, meu Deus! Vivo e não vivo, sou eu e não sou, estou no mundo e parti. Senti que desci a esse inferno, mas, de novo, saí, e que, atrás de mim, levava um bando sem número de pombas brancas que voavam atrás de mim, não digo bem, voavam esses seres que eram corpos atrás desse corpo glorioso. Eu senti e vi tudo e fiquei sempre mergulhada na dor, na cegueira e na morte. O que sofreu o meu pobre corpo, nestes dias, só Jesus o sabe. As agonias e torturas da minha alma só Ele as pode compreender. Este martírio de alma e corpo impediu-me de poder orar, de poder meditar na paixão de Jesus. Fitava-O na cruz rapidamente e só dizia: o que sofreu Jesus por meu amor; sofreu tanto que morreu por mim! E terei eu coragem de negar algum sofrimento de alma ou do corpo! Oh! não, meu Jesus; com a Vossa graça eu nada Vos negarei. Sou a Vossa vítima, noite e dia. Ó Mãezinha, pelas Vossas dores, pelo que sofrestes, junto à cruz do Vosso e meu Jesus, permiti que me associe a Vós e dai-me coragem e amor para o meu sofrimento.

No princípio da tarde, de ontem, senti como se a minha alma fosse presa, insultada, maltratada; era um nunca acabar de martírios. Nas outras quintas-feiras tenho sentido um ou outro sofrimento, mas neste senti muitos, se não foram todos. Senti e vi com a maior de todas as maravilhas; Jesus dar-se para nosso alimento, partir e ficar connosco. Que maravilha, que amor tão profundo! Vi o lava-pés e o discípulo amado inclinado sobre Jesus. Sentia e via o desespero de Judas. E vi-o partir à frente dos outros para O ir entregar. No Horto senti e vi beijar e apontar para Jesus para poder ser preso. Mas, antes da prisão, senti e vi a Sua grande aflição, a rolar pela terra, a suar sangue; o Anjo a confortá-Lo, e ele, com o cálice da amargura, a enchê-lo de sangue que lhe saía dos Seus divinos olhos, ouvidos e de todo o corpo. Vi, depois, à saída do Horto que O acompanhavam uma grande multidão de soldados com armas, homens com paus. Meu Deus, como eles maltratavam a Jesus! Como Ele já ia desfigurado e desfalecido! Vi S. Pedro a negá-Lo, mas sentia que aquela negação foi feita só por temor.

O galo cantava uma e outra vez. Ele chorou copiosas lágrimas. Oh! como foi grande o seu arrependimento! Custou-me tanto ver Jesus, de tribunal em tribunal, tão mal tratado, e por fim ter de O deixar sozinho na prisão. Ele já não parecia Jesus; os maus-tratos e a tristeza tinham-Lhe roubado toda a beleza. Deixei-O quase moribundo em tão escura prisão. E assim moribundo O senti hoje a seguir os caminhos do Calvário. Parecia-me que todas as feridas do Seu Santíssimo Corpo estavam no meu e ainda assim era chicoteada e arrastada; não havia compaixão para mim nem para o Nosso Jesus. Os espinhos da Sua Santíssima Cabeça feriam-me a minha e também me feriam o coração. Fui subindo e quantas vezes desfaleci com Ele e com Ele ia a expirar. Jesus ia dentro em mim tão ansioso para a morte como cordeirinho sequioso para a corrente; queria morrer para dar a vida. Na cruz, eu sentia como se o sangue das Chagas de Jesus corresse nos meus braços, pés, peito e cintura, como se tivesse chagas também. Senti, dentro em meu peito, um mundo tão cruel e tão duro que mo abriu, de cima abaixo. Não aceitava o amor de Jesus, não pude aguentar; não bradei como Jesus: meu Pai, porque me abandonaste, mas disse: ai, meu Deus, meu Deus, valei-me. Sei que o disse alto; não tive força para me conter a dizê-lo baixo. Neste transe doloroso, fiquei como se expirasse com Jesus. Passou-se algum tempo num silêncio mortal; Jesus despertou e fez que eu despertasse.

― Minha filha, Minha filha, eu não morri; vem a Mim, vem para o Meu amor, vem para o Meu fogo divino; ele é para ti a vida, é o cadinho, o fogo que te purifica, que dá a pureza, a graça, todo o brilho à tua alma. Mergulha-te nele, namora-te de Mim, enche-te, para poderes encher as almas. Descansa neste fogo, suaviza nele a tua dor, retoma as forças perdidas em tão doloroso martírio.

Jesus calou-se e eu fiquei por um espaço de tempo a arder naquelas chamas; senti-as, vi-as; eu era a caldeira, Jesus o fogo. Conservei-me em silêncio também; não sabia falar a Jesus. Não sentia as dores do corpo e a alma naquelas chamas tornou-se mais forte. Continuou Jesus:

― Minha filha, Minha esposa querida, vais agora receber-Me pelas mãos do Anjo da tua guarda. Vem, ao Seu lado, S. Miguel Arcanjo e o Anjo S. Gabriel; atrás deles seguem-nos uma multidão deles. Prepara-te; descem do Céu.

Só disse: Senhor, eu não sou digna, etc. Vinham os três Anjos, como me disse Jesus, e pararam à minha frente. O do meio com a Sagrada Hóstia nas mãos; os dos lados alumiavam e cobriam o do meio, o que trazia Jesus, com uma umbela rica. A multidão deles não cantavam, mas de mãos levantadas, cabeças inclinadas, num profundo recolhimento, dizia: glória, glória ao nosso Deus, ao nosso Rei, ao nosso Amor. A Ti glória, a Ti glória, ó Jesus, nosso Deus e Senhor. Isto era em tom de quem reza e não de quem canta. Inclinou-se para mim o Anjo; eu estendi-lhe a língua e Ele ao dar-me Jesus não principiou pelas palavras do costume, mas sim: “Viaticum Corpus Domini nostri Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam”.

Desapareceram com a mesma reverência, no mesmo silêncio com que tinham aparecido em volta de mim. E toda a multidão de Anjos batia as suas asinhas brancas e pronunciavam as mesmas palavras. Vi-os seguir, tudo era luz.

Fiquei mergulhada em amor, numa intimidade com Jesus; parecia-me inseparável d’Ele.

― Minha filha, dei-Me a ti em alimento, sou a tua vida. Dei-Me desta forma, para mais e melhor mostrar as minhas maravilhas e para mostrar que estou contente com os Meus representantes na terra, com a doutrina da Minha Igreja. Não podia deixar-te sem o Meu alimento, depois de tantas forças consumidas, de tanto sofreres! Prometi não deixar-te sem a Minha Eucaristia, às sextas-feiras, e não faltei. Recebeste-Me como viático e é verdade que és enferma e sem um milagre divino não terias resistido à dor, eras moribunda. Coragem, Minha filha, Eu continuo a pedir-te sofrimento porque O Meu Eterno Pai continua a exigir grande reparação das Minhas vítimas para a salvação do mundo, para que os pecadores se convertam e venham a Mim. O Meu Divino Coração suspira, anseia por eles; vejo-os a fugirem-Me, a perderem-se, acode-lhes, são meus e teus. És a minha esposa mais querida, a maior vítima que tenho na terra, és a continuadora da Minha paixão, da obra da redenção. É revestida de Mim que continuas a salvar almas, a resgatá-las do pecado e a arrancá-las das garras de Satanás. Vai com o Meu divino amor, com a Minha graça salvá-las. Vai dizer tudo; leva a luz do Divino Espírito Santo. Coragem, coragem, e amor; vai para a cruz, que só deixarás, no momento da morte, quando voares ao Céu.

― Muito obrigada, meu Jesus! Permiti que eu vá firme no Vosso amor divino; conto com a Vossa graça. Aceitai desde já, o meu sacrifício. A minha alma já está a cair em grande amargura. Venha o que vier, eu amo-Vos; sou a Vossa vítima. São passadas três horas em que fui mergulhada no amor de Jesus; o coração ainda me queima, o peito está em brasas. A alma está triturada de dor; tudo em mim é cegueira, tudo são trevas na terra e no Céu. Seja sempre bendito o Senhor.

5 de Abril de 1947 - Primeiro sábado

Morri e não ressuscitei com Jesus; fiquei na mesma morte; fiquei em horroroso sofrimento. Envergonho-me de mim mesma, de só falar da dor; mas ela não me deixa, dia e noite. Só posso bendizer o Senhor por tantos miminhos vindos de Suas mãos divinas. Num demorado abraço no meu crucifixo com grandes gemidos, mas também com grandes ânsias de sofrer por Ele disse-Lhe: meu Jesus, contai sempre comigo para ser a Vossa vítima, não conteis com o meu amor, mas sim com o Vosso, pois é com ele que eu Vos amo; não conteis com a minha generosidade e força, mas sim com a Vossa; é a Vossa generosidade, é a Vossa força que se levanta a aceitar alegremente todo o sofrimento. A minha alma vê os espinhos, como se fossem rosas Formosas; quero sofrer, quero amar-Vos. Com o corpo cheio de agudíssimas dores e a alma em agonia foi que hoje, ao cair da tarde, recebi o meu Jesus. Cessaram os sofrimentos, fiquei como se adormecesse no Senhor. Veio Jesus, pôs em grande movimento o meu coração; incendiou-mo com todo o peito.

― Minha filha, tu que és a minha alegria e consolação vem a Mim tu que és a estrela que guia as almas, vem ao Meu Coração incendiar-te no Meu divino amor. Vive de Mim, recebe para viveres, vive para dares a vida. Eu vou dar-te uma gota do Meu Sangue divino; vai correr em tuas veias, vai suavizar a tua dor, vai dar-te a vida perdida em tão penoso martírio, neste Calvário onde te coloquei.

Jesus uniu logo o Seu divino coração ao meu. Logo que senti sair a gota do Seu divino Sangue, senti força, senti vida, toda a vida do Céu. Com o meu coração unidinho ao de Jesus, fiquei por algum tempo como que a navegar num mar de amor infinito de Jesus.

― Descansa, aqui, Minha filha; descansa e recebe vida; é esta a vida das virgens, é esta a vida das esposas loucas de amor por Mim. Diz, Minha filha, ao teu Paizinho que vou fazer que ele seja levado às alturas, não só no Céu no Meu amor, mas já aqui, na terra, nas Minhas obras e maravilhas; será justificado multiplicadas vezes mais do que foi humilhado. Dá-lhe o Meu divino amor para as almas; diz-lhe que será sempre o grande mestre delas e grande consolador do Meu divino coração. Diz ao teu médico que o amo, diz-lhe que lhe dou toda a Minha serenidade, tranquilidade e paz; diz-lhe que lhe dou o Meu divino Coração, cheio de amor, com a Minha bênção divina e abundância das Minhas graças, para ele distribuir aos que mais ligados estão ao seu coração. É o prémio da sua firmeza e defesa à Minha causa divina. Os teus males são agravados, em proveito das almas, para cuidado e preocupação dele e para todos os que mais de perto te rodeiam. Coragem e confiança; Jesus está com todos. Vem, Minha bendita Mãe, vem juntar aos Meus os teus carinhos, vem dar à Nossa filhinha a força que necessita.

Veio a Mãezinha, logo me tomou em Seus braços; fiquei entre o Seu peito e o de Jesus e unida ao rosto divino dos dois; era uma prensa de fogo.

― Amo-te, Minha filha, porque és de Jesus e és Minha; amo-te, porque és Minha filha e esposa de Jesus; amo-te porque és a Sua vítima; amo-te, porque sofrendo com Ele, acodes aos pecadores; amo-te porque Jesus te ama, amo-te, porque és toda Dele e Minha.

Continuou:

― Leva, Minha filha, este amor terno da tua e Minha Bendita Mãe; leva todo o amor de Jesus e vai dá-lo aos que te são queridos; diz-lhes que são os mimos do Céu, formados por amor divino; são mimos dados por tanto cuidado e amor dispensado à maior vítima, à maior heroína da humanidade, à maior amada do Meu Coração divino.

― Jesus, Mãezinha, em nome de todos Vos agradeço, Vos abraço com doçura.

― Vai, Minha filha; espera-te a tua cruz; tem coragem. O teu cansaço no sofrimento é para que os pecadores sintam cansaço no pecado. Eu não cesso, não cessarei mais de te pedir a dor, porque o mundo maldoso não cessará de Me ofender. Vai, pomba bela, forma para a cruz o teu voo; é da cruz que voas ao Céu; é do Céu que a tua missão dará ao mundo toda a luz. Coragem, Minha filha coragem!

― Obrigada Jesus. Eu vou e quero ficar Convosco, não para gozar, mas sim para Vos amar e de Vós receber força. Sede comigo, Jesus, sede comigo Mãezinha.

11 de Abril de 1947 - Sexta-feira

Sinto o meu corpo golpeado e desfeito pelo sofrimento e o coração cheio de punhais a cortarem-me dia e noite, não podendo ele deixar de sangrar, um só momento. Ó meu Deus, ó meu Jesus, como eu me sinto ferida! Seja tudo por Vosso amor; eu sou, ó Jesus, e quero ser sempre a Vossa vítima. Não posso esquecer as almas, os pobres pecadores. Que pena eu tenho deles! Tenho a certeza de que, se me esquecia destes pobres infelizes, desgostava o meu Jesus. Quero sofrer, quero sofrer para O amar, para O consolar e dar todas as almas. Não sei dizer o que quero: queria a todos no Céu, queria toda a humanidade, a arder de amor, dentro do coração divino de Jesus. Que sede insuportável de O ver amado! As minhas trevas, a cegueira do meu espírito, já vão além da cegueira. Ó meu Deus, não sei exprimir-me. Acima e abaixo de mim são trevas; atrás e à frente de mim, trevas são. Mas essa cegueira da minha frente, essa negra escuridão, pela qual tenho de passar, nunca teve luz, nunca foi nem será luz. É o que sente a minha alma. Que pavor! O que tenho de atravessar! Por vezes é tal o tormento, que a alma ao transformar-se, desfalece. Mas a este desfalecimento, vem de encontro a dor de Jesus. Descem do alto direitos ao meu peito, a penetrarem no coração, raios de fogo, raios de amor. E então eu vivo, e com mais coragem e força abraço o crucifixo, abraço a dor e a cruz, e sem temor digo a Jesus; sou a Vossa vítima. No meio de agudíssimas dores, Jesus tem passado, à minha frente, vagarosamente, com um grande madeiro aos Seus Santíssimos Ombros. A visão da cruz, e ao vê-Lo assim desfigurado, comove-me, leva-me à compaixão, leva-me à sede de mais dar a Jesus, de mais e mais sofrer por Ele. Nas horas em que mais sofri, apareceu-me, duma vez, Jesus, em tamanho natural, cheio de luz, resplandecente de glória, e, noutra hora, a Mãezinha com o Menino Jesus ao colo, todo sorridente para mim, a estender-me os Seus bracinhos, como quem queria abraçar-me. Ao Seu lado uma cruz Formosíssima, luminosa, cheia de coroas de rosas. Que beleza! Aquela cruz, com Jesus e a Mãezinha, já era o Céu. Compreendi e senti na alma que era a cruz do Seu martírio, transformada na cruz celeste. Era minha; e o fim será no Céu. Foi o que eu senti. Esta visão fortaleceu a minha alma; por algum tempo era outra. Quando me sinto mais desfalecida, por vezes, sinto essa cruz gravada dentro de mim; logo retomo forças para resistir à dor. Jesus serve-se de tantos meios para ajudar a mais pobre e miserável das Suas filhinhas! Bendito, bendito Ele seja! Que pena eu tenho de não corresponder ao Seu amor infinito!

Na tarde de ontem, eu senti e vi Jesus numa grande amargura, com a Sua Sacrossanta Cabeça apoiada nas Suas Santíssimas mãos, em profundo silêncio. A seguir levantou os Seus divinos olhos, fitou a cidade representada dentro de mim; chorou, chorou sobre ela. Pouco depois, vi pela segunda vez a figueira reverdecida, e depois já seca sem uma folha ao menos. Essa figueira saía por entre um montinho de pedras. Vi ao mesmo lado que a vi pela primeira vez. Depois da ceia de Jesus com os Seus Apóstolos, vi pela primeira vez benzer o pão que viria a ser a nossa Eucaristia. Que encanto! O Seu Santíssimo Rosto era só luz, parecia que só fogo a rodeava, com os olhos encantadores fitos no Céu e um sorriso doce abençoava o pão, que pouco depois por todos distribuía. Quando Judas O recebeu, tornou-se ainda mais desesperado; já não parecia homem, mas sim um demónio. Jesus falava sempre com a mesma doçura e meigos sorrisos. Ainda foi ao Horto, receber o beijo do infeliz traidor, depois de ter suado sangue e sentir todo o Horto estremecer, sobretudo quando foi preso Jesus. Segui com Ele e com Ele fui espancada.

Hoje, ao seguir o Calvário, caminhava, pelo solo duro, a ser com Jesus açoitada e maltratada, com todo o corpo em chagas e sangue. Caminhava e não sei como. Sobre a terra e os maus-tratos dos homens e sobre mim o Céu com toda a sua justiça. Como essa justiça me esmagava! E eu tão desfalecida e sem luz não podia caminhar. Próxima à montanha ainda; ela caiu sobre mim; tive que romper as lajes. Senti o meu corpo como que um esqueleto tingido de sangue; e neste estado fiquei na cruz. O brado de Jesus não foi só por três vezes que se fez ouvir em todo o Calvário; foi um brado contínuo em toda a Sua agonia, era um brado do Coração que Ele fazia chegar ao Pai e que parecia ser por Ele rejeitado. Pelo Pai bradava e pelo mundo espalhava amor; tudo lhe saia do Seu divino Coração. E a Mãezinha, chorosa, ao pé da cruz, na mesma agonia! E sentia que Ela era com Jesus, que estava em mim, uma só coisa. Juntaram as Suas lágrimas, dores e agonia. A vista da Mãezinha aumentou em Jesus a agonia. Eu na mesma união sofri também. Passou pelo meu corpo como que um sopro gelado que me deixou sem vida; e senti como se o espírito me deixasse. Veio depois Jesus, restituiu-me a vida e disse-me:

― Vem, vem, Minha filha, dar de beber, saciar com a tua dor a sede ardente, a sede devoradora do teu Esposo, do teu Jesus. Quero o teu amor. Ama-Me, ama-Me por ti, ama-Me pelos que não Me amam. Eu tenho fome, Eu tenho sede das almas; não posso viver assim. Tenho sede de amor, e sou por elas ferido; quero-as em Meu Divino Coração, e sou pelos pecadores lanceado. Repara, repara bem como Eu estou. Jesus retirou do peito os Seus vestidos; tinha o lado aberto, o Coração todo em sangue.

Sem poder vê-Lo assim ferido disse:

― O que posso eu fazer Jesus? Amar-Vos, não sei, nada tenho para consolar-Vos. Dai-me o Vosso amor; com ele posso dizer que Vos amo por mim e por todos os que Vos não amam. Dai-me a Vossa força para com ela poder dizer-Vos; dai-me todo o sofrimento, para com ele salvar as almas e não deixar que os pecadores assim firam o Vosso Divino Coração. Quero sofrer, meu Jesus, para ver o Vosso peito cerrado e sem ferida o Vosso Divino Coração; que Ele seja só amor e compaixão para com todos os que Vos ferem, Jesus.

― Já estou curado, Minha heroína; a tua generosidade e amor à dor foram o bálsamo que Me curou. És tu, Minha louquinha, o bálsamo do Meu sofrer, e eu serei sempre o bálsamo, a força, o conforto no teu martírio. Coragem! O mendigo, que todas as sextas-feiras te bate à porta a pedir a esmola, não cessa de te pedir: dá-Me dor, Minha louquinha, dá-Me dor, salva-Me as almas; consola o Meu divino Coração e vai dizer ao mundo: converte-te, vem para Jesus; converte-te e ama-O; converte-te e converte-te depressa, se não queres ver bem depressa cair sobre ti toda a infinita justiça de Seu Eterno Pai.

― Meu Jesus, olhai a minha miséria e compadecei-Vos dela; eu não sei sofrer nem reparar e parece-me que são inúteis os meus sofrimentos.

― Revestidos de mim, têm todo o valor. Confia no que te diz Jesus. Vais ver sair do Purgatório, subir ao Céu trinta e três almas em honra dos anos que vivi na terra e salvas por ti. Vão ser levadas pela Minha Bendita Mãe.

Vi como que um campo de fogo, mas um fogo que atraía e que fazia a alma ansiar e mergulhar-se nele. Por entre essas chamas foram saindo e voando um bando de pombas brancas, brancas como a branca neve; esvoaçavam como andorinhas a poisarem nos seus ninhos; o ninho delas era o manto azul celeste da Mãezinha que ficou guarnecido com todas essas pombas brancas. A Mãezinha, coroada de rainha, foi subindo, subindo, até que desapareceu com todo o bando. Num grande contentamento disse:

― Obrigada, obrigada, meu Jesus; fazei que vão ocupar o lugar delas, para se purificarem todas as almas que partirem do mundo; para que nenhuma se perca sou sempre a Vossa vítima.

― Para que assim seja, filha querida, para que se salvem os pecadores, dás-Me então uma grande reparação, nos dias que vão seguir-se? Terás grandes ataques com o demónio; terás que combater fortemente. Não Me dás uma recusa, não?

― Não, meu Jesus; dai-me a Vossa graça, para não Vos ofender; sede a minha força, para eu poder abraçar todo o martírio. Sede comigo e aceitai o meu coração agradecido.

18 de Abril de 1947 - Sexta-feira

Tenho ânsias, tenho ânsias de me purificar, cada vez mais, e nada consigo! Que hei-de eu fazer, meu Jesus? Causa-me horror ver a minha miséria, porque é só o que eu vejo. Avanço, avanço, e, momento a momento, mais me enrolo, mais me mergulho na cegueira, que me aterra, na cegueira que nunca foi luz nem nunca a luz conheceu. Assusto-me, vejo, sinto que esta cegueira é morte e que nunca poderá ver. Neste temor, fito o Coração divino de Jesus, invoco o Seu Santo Nome, e, por vezes sinto-me como se fosse transportada às nuvens; deixo a terra, mas não chego ao Céu. Nesta viagem às alturas, respiro, sinto-me confortada, fortalecida com uns ares mais puros, com aquela vida que não é o Céu, mas também não é a terra; não é gozo, mas é força, não é a verdadeira vida, mas também não é morte. Baixo novamente à mesma cegueira, só à vista da minha miséria, mas então com mais coragem para abraçar a minha cruz, a pisar os espinhos que tão agudamente me ferem, ansiosa e como que enlouquecida para consolar Jesus, dar-lhe as almas, purificar-me de todos os meus defeitos, ser pura para só viver a vida de Jesus, ser pura e Nele me esconder para sempre, sofrer escondida Nele, amá-Lo sempre Nele escondida, fugir ao mundo, desaparecer dele, desaparecer por completo. Não consigo os meus desejos, não sou pura, nada sofro, nada faço de bom, tudo se apaga sem aparecer. Ai, meu Jesus, vinde em meu auxílio; estou sozinha sem ninguém, meu Jesus, sem ninguém. Foge-me o Céu, estou como se me fugissem todos os amigos da terra.

E o demónio a atormentar-me tão fortemente.

Tenho estado sobre o inferno, não sei o que me livrou de cair nele, nada vi que me segurasse, só me faltou mergulhar-me nos seus horrores, nas suas penas. Esta visão foi essa luta com o maldito. Tive mais três ataques. Nos dois primeiros, senti passar sobre mim as labaredas do inferno, ouvia uivos, ranger de dentes e um demónio muito feio de boca aberta com um grande pedaço da língua de fora, língua em brasa, e estendia ao longe grandes chamas; causava pavor. Já lá vão alguns dias e por vezes sinto no coração como se de novo voltasse a ver toda aquela cena. Convidava-me ao mal e fiquei com grande temor de ter pecado. Nem posso lembrar-me das suas malícias. Que horror! Como se ofende Nosso Senhor! Posso tão pouco invocar o nome de Jesus e da Mãezinha! Penso que é o maldito que não me deixa. Não posso sem me oferecer como vítima e é só para reparar que tais sofrimentos aceito. No último ataque, ele principiou, de longe, a preparar-me para o mal com coisas pequenas, mas cheias de maldades. Foi indo, foi indo, incendiou-se o fogo, envolveu-se a terra com o inferno; eu era o mundo, era o inferno. Ó meu Deus, que pavor! Voltei a repetir a Jesus: se hei-de ofender-Vos, prefiro o inferno; não quero pecar, não quero pecar, sou a Vossa vítima. Jesus, Mãezinha, ai, quanto me custa isto!

Ao cair da tarde de ontem, senti como se no meu coração estivesse gravado Jesus e a Mãezinha, numa tristeza e amargura tão profunda, que causava dó. Jesus beijou e aquele beijo foi de despedida; e deixou no Coração da Mãezinha raios de fogo; foram fios, foram prisões de amor que os deixaram para sempre unidos. Jesus foi para o Horto e ficou com a Mãezinha. A Mãezinha ficou e foi com Jesus. Eu no Horto senti como se em meu corpo nem uma só veia ficasse por abrir. Os Apóstolos dormiam; Judas aproximava-se. À voz de Jesus vieram sobressaltados. Judas deu o seu beijo traidor e todos caíram por terra; a terra foi o meu coração. Feriram-me as armas e os paus. Vi Jesus que em Suas Santíssimas mãos tomou. Ao ver isto, fugiu S. Pedro por entre a multidão; foi à frente de Jesus; não viu os maus-tratos que Lhe deram. Mas via a Mãezinha; velava ao longe. Eu sentia que o Seu Santíssimo Coração adivinhava tudo. Quanto Ela sofria e quanto sofria eu também com os sofrimentos de Jesus e os dela! Na manhã de hoje, caminhei oprimida pela violência da dor; ia como que encerrada num mundo do sofrimentos. Caminhei sem luz, mas cheguei ao Calvário e lá com mais sensibilidade fui cravada na cruz; e então em todo o meu corpo estava Jesus; eu era apenas uma casca frágil que O encobria. Sentia todas as Suas chagas e feridas, os espinhos da Sua Sacrossanta Cabeça, o palpitar do Coração, lágrimas e gotas de sangue, tudo em mim era Jesus. Quando estava a ser cravada na cruz, ainda senti o meu rosto a ser nojosamente escarrado. A frágil casca do meu corpo não impedia os sofrimentos e maus-tratos de Jesus. Fiquei no mesmo brado e agonia com Ele. Quando Jesus expirou, eu senti que o espírito divino voou de verdade ao Pai, e eu fiquei morta. Pouco depois Ele voltou e disse-me:

― Minha filha, o Jardineiro da tua alma está em teu coração; cuido, cultivo as flores que adornam a minha alma. Como são belas! A água que as rega é a água da pureza, água de graça e amor. Confia; o teu Jardineiro é Jesus; habito em teu coração; repara como eu cuido delas. Tu és a pastorinha de Jesus, a pastorinha das almas; apascenta-las no jardim formoso da tua alma. Vi então Jesus feito Jardineiro, no seio de belas flores, de regador na mão a regá-las cuidadosamente; via cair a água com abundância.

― Cuidai, cuidai, meu Jesus, cuidai delas e cuidai de mim; eu sou miséria e nada posso sem vós. Permiti que com a Vossa graça, no jardim do Vosso divino amor, eu posso mergulhar em almas; sustentai-as com o que é Vosso.

― Coragem, coragem, Minha filha; sem dor não há vítima, sem dor não há amor, sem dor não há vida. Tu és a vida de Jesus, és a vida das almas. Se todas as vítimas sofrem, como não hás-de sofrer tu, Minha filha, que és a maior vítima da humanidade. Dá-Me dor, acode ao mundo, vem sobre ele a justiça de Meu Pai e vem depressa. Não há justos na terra, não há almas que Me amem, a ponto de repararem todas e tão graves ofensas. Pobre mundo, vai ser carbonizado; ficará mirrado com o fogo da justiça divina.

Levantei as mãos, cheia de terror, e disse:

― Perdoai, meu Jesus, perdoai, perdoai já, perdoai sempre! Como hei-de acudir ao mundo? Bem me parecem a mim que de nada valem os meus sofrimentos.

― Coragem, Minha filha, coragem, amada Minha; sofre com alegria. A tua imolação continua se o mundo não quiser que seja de remédio para os seus corpos é-o sempre para as suas almas. Pede-lhe, pede-lhe que se converta, que venha a Mim. Dás-me mais lutas, mais ataques com o demónio?

― Dou, meu Jesus, mas sabeis bem que é o que mais me custa. Que medo de Vos ofender!

― É por te custar que, Minha filha, que mais reparação Me dás. Não temas, confia em Mim; não deixo que Me ofendas. Os dois primeiros combates que te pedi foram pelos esposos pais de família. Com que gravidade Me ofendem; o último foi por toda a humanidade. Foi por isso que te envolveste com o inferno. O mundo! o pecado! Vítima a lutar com o inferno. Eras tu, Minha pomba amada, a livrares de lá as almas. Coragem! Vem receber vida para combateres. Recebe uma gota do Meu Divino Sangue; é a tua vida, é a força do teu sofrer.

Jesus com o Seu Divino Coração a arder em labaredas uniu-O ao meu, deixou cair a gota do Seu Sangue divino. O fogo ateou-se; o meu principiou a dilatar-se. Jesus passou logo as Suas Santíssimas mãos sobre o meu peito, acariciou-me e disse:

― Toma, Minha filha, a tua cruz; vai convidar as almas a virem a Mim, vai levar-lhes esta vida. E como prova do valor dos teus sofrimentos e de que és a salvação delas, a cada acto de amor, a cada vez que Me disseres: Jesus, eu amo-Vos, serei amado por mais uma alma. E sempre que abraçada ao crucifixo disseres: Jesus, sou a Vossa vítima mais um pecador será salvo, esquecerei as suas ofensas. Prometo-te, confia, sou O teu Jesus. Diz-Me isto muitas vezes. Vai com coragem! No Céu continuas a mesma missão; ele está perto. Vai com alegria; vai, filha do amor, vai, louquinha do amor, vai chamar a Mim as almas.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, meu Amor, eu vou; vinde Vós comigo. Ao o Céu, meu Jesus, que nunca chega. Faça-se a Vossa vontade divina. Sou a Vossa vítima, vítima até dos meus desejos. Farei, Jesus, que eu morra para mim e para todos, viva só para Voa e para as almas.

25 de Abril de 1947 - Sexta-feira

O meu sofrimento aumenta, a minha cruz pesa-me mais de momento para momento. Sinto-me como se estivessem a terminar os meus dias aqui na terra. O meu pobre corpo é uma massa em sangue, desfeito pela dor. Vivo como se não vivesse. O que será de mim, meu Jesus! Amo a cruz e não tenho forças para a abraçar. Sinto-me arrefecer, estou gelada. Quanto mais sofro, menos sinto amar a Jesus. Quanto mais Lhe ofereço os meus sofrimentos, nas minhas negras e dolorosas trevas, menos sinto que Lhe dou. Não tenho para Ele um sorriso, um acto de amor ou reparação. Sou pobre, mísera pobre; o que Lhe dou, nada me pertence. Sinto-me, por vezes, na divina presença de Jesus, de mãos vazias, olhos baixos, cabeça inclinada, envergonhada de mim mesma. Que contas Vos hei-de dar, meu Deus, a Vós, de quem tudo recebi a quem nada dei e nada tenho para dar. Triste confusão a minha! Poderei viver sem sofrer e sem amar O meu Jesus? Oh! não, não posso sem isso a vida seria para mim já um inferno. Ó Jesus aceitai para Vós o meu sofrimento e mesmo sem sentir amor fazei que Vos ame, deixai-me enlouquecer por Vós. Os espinhos nascem para mim, noite e dia, como noite e dia nascem e crescem as flores dos campos e jardins. Por todos os lados os sinto e vejo a ferirem-me. Eu quero-os e amo-os, mas desfaleço em recebê-los; recebe-os como mimos do Céu, como carícias de Jesus. Pressinto que novos e agudos espinhos alguém prepara para me cravar; parece-me ouvir o rumor de nova tempestade. Levantam-se contra mim novas ondas furiosas. De novo me estendo na cruz; deixo-me crucificar à semelhança do meu Senhor.

Na noite de 14 para 15, veio de encontro ao meu martírio, suavizar a minha dor, uma linda visão da SS. Trindade; era um trono riquíssimo: no cimo o divino Espírito Santo em forma de pomba deixava cair sobre O Pai e sobre O Filho que mais abaixo, ao lado um do outro, estavam sentados, uma chuva de raios doirados. Pouco depois, diante do Eterno Pai, uma alma ficou ajoelhada em sinal de reverência; uniu-se a uma mão dela uma mão de Jesus que o Padre Eterno ligou. Tudo estava iluminado, parecia o Céu, era luz celeste. Desapareceram as três divinas pessoas e a alma ficou por algum tempo na mesma posição, mergulhada no mesmo amor. Confortou-me também a visão, duma vez de S. José, e, doutra, de Nossa Senhora; um e outro com o Menino Jesus ao colo. São eles que me levantam, são eles a força e a coragem do meu tanto sofrer. Não sou eu que sofro, mas sim Jesus, só Jesus que sofre por mim.

O demónio atormenta-me com dúvidas que sem a força do Céu seriam um desespero. Aparece-me em formas feiíssimas e, por vezes, abre-se todo o inferno com todos os seus sofrimentos para me receber. Numerosas feras infernais correm para mim com todo o seu furor. Ó meu Deus, parece-me que todo o mundo é inferno, que todo o mundo é pecado, que todo o mundo tem a malícia e a maldade do demónio. O maldito instrui as almas em grandes crimes.

Na tardinha de ontem, avivou os sofrimentos do meu corpo, que eram enormes, a visão, a visão do Calvário. Dentro de mim, vi Jesus, depois de morto, ser descido da cruz e ser posto nos braços da Mãezinha; vi os Seus olhos agoniosos, senti o Seu coração trespassado; senti e vi o carinho com que Ele O estreitava e limpava o sangue e o pó das Suas feridas. Todo o Calvário se mexia, as pedras estalavam e faziam grandes fendas. Esta agonia e sofrimentos tão dolorosos preparam-me o Horto; e lá fui para ele; lá se me rasgaram as veias, suei sangue e vi o cálice. Jesus foi que o levantou e ofereceu ao Pai, cheio de amargura. O solo estremeceu e com todos os ramos das oliveiras. Debaixo de cruéis maus-tratos, deixei-o para ir para a prisão. E hoje, num canal de sofrimento, como se fosse uma prensa fui subindo as ladeiras do Calvário. Senti as cordas na cintura e no pescoço; cortavam-me, feriam-me. Vi Jesus a ser despido e, neste momento, o Seu rosto divino ficou como que incendiado; levantou ao Céu os Seus olhares e baixou-os, depois, em profunda tristeza e grande vergonha. Vi, junto à cruz, a escada, pela qual Jesus havia de ser descido; vi o lençol onde Ele havia de ser embrulhado. Jesus, antes de expirar, viu a cena comovedora, ao ser depositado nos braços da Mãezinha; viu os Seus carinhos e lágrimas, viu as espadas que A feriam, viu-A em igual dor e agonia. Quando expirou, o Seu espírito voou como pomba de todas as Suas chagas saíram raios de luz como sol por frestas. Quando o Seu espírito divino voou foi-Lhe aberto o coração. Senti a Sua grande prova de amor e que Ele nada mais podia fazer por nós. Pouco depois, de novo vivi com Ele.

― Minha filha, Minha filha, um coração puro, um coração abrasado, com a mistura da dor alcança do Meu divino Coração tudo quanto Lhe pedir em benefício das almas, isto não falando em outras graças. Assim és tu, vítima poderosa, sem seres igualada. Não és igualada na dor e também o não és no poder. Eu tenho em Minhas divinas mãos o teu martírio com todo o teu amor; sou Eu mesmo a colocá-lo como escora firme a sustentar o braço do Meu Eterno Pai, para não cair sobre o mundo culpado a castigá-lo. Podia dizer-te, esposa querida, que ele cai e cai sem remédio, por não virem a mim, seguindo a Minha divina voz. Não quero fazer-te tal afirmação, para não entristecer-te.

― Meu Jesus, meu doce Amor falardes-me assim é dardes-me a certeza do que nos espera; bem sinto eu que nada Vos dou e de nada valem os meus sofrimentos.

― Coragem, coragem, Minha filha, parece que nada Me dás, porque já tudo tenho em Meu poder. Sentes que nada valem os teus sofrimentos, porque, sofrendo Eu, em ti tomo-os como meus; e, para maior sofrimento teu, nada em ti deixo aparecer. Confia em Mim. Todo o teu martírio, em união comigo, forma os selos com os quais selo as almas e as deixo com o sinal da salvação. Confia, vítima amada, se não acudires aos corpos, as almas são sempre de salvação. O que vale a tua dor e o teu amor com o Meu! Coragem, vítima generosa, vítima de dor e amor. Vê, Minha querida, o Mendigo divino a estender para ti o braço, a pedir-te a esmola. A taça, em que a vais deitar, foi feita do ouro do teu martírio. Os espinhos, que a rodeiam, foram feitos das pedras preciosas das tuas virtudes; é a taça das almas, é a taça da salvação. Dá-Me a esmola, dá-Me a esmola. Só uma alma e um coração puro podem combater com Satanás e reparar-Me das maldades e crimes a que ele leva as almas. Como prova do teu amor, da tua generosidade, vou dar-te, em breves dias duas felizes novas que vão ser de alegria para o teu coração e para mais alguns dos que te rodeiam. Se o mundo bem compreendesse as Minhas maravilhas em ti e o valor do teu sofrimento, ter-te-iam suavizado o teu calvário e o daqueles que escolhi para te ajudarem a subi-lo.

― Meu Jesus, meu Jesus, peço-Vos força e amor. Sobre essa taça me coloco, sacrificai-me Jesus, imolai-me como Vos aprouver. Jesus retirou a taça doirada, cercada e adornada de belos espinhos.

― Vou dar-te ainda, Minha filha, a gota do Meu sangue divino; recebe que é vida, a vida do Céu, a vida de que vives. Recebe ara sofreres, recebe que é para viveres e para dares a vida às almas. É o Meu sangue com a tua dor e amor que lhes dás a vida e mais ainda faz com que Eu por muitos seja amado, o que não seria sem ti, Minha esposa querida.

Jesus uniu logo os nossos corações, e, logo que caiu a gota do Seu precioso sangue, desuniu-os e deixou por algum vir do Seu lado aberto para o meu peito fortes chamas de fogo. Com as Suas divinas mãos cerrou a abertura do Seu peito e disse:

― Trabalho em ti como quero, faço do Meu divino coração e do teu o que Me apraz. Vai levar a vida às almas, esta vida que é a verdadeira vida. Vai levar a todos o Meu divino amor, mas mais, muito mais aos que mais te amam, aos que mais de perto te rodeiam. Amar a Minha vítima é amar a Mim; cuidar dela é cuidar de Mim. Coragem! Vai em paz, vai em paz.

― Obrigada, meu Jesus; um eterno obrigado, meu amor! São tantos e tão grandes os meus sofrimentos que mesmo no meio das minhas negras trevas obriga-me a dizer: para ditar tudo o que fica dito, vi aqui só a mão e a força de Jesus com a luz do divino Espírito Santo; sem isto nada teria dito. Ó meu Jesus, ó meu Deus, quanto sofre a mais indigna das Vossas filhas; e só vê nela miséria e nada mais! Dai-me graça, dai-me perdão para as minhas culpas e para as do mundo inteiro.

Maio

2 de Maio de 1947 - Sexta-feira

Eternidade que tão à pressa passas; eternidade que nunca chegas. Passa, voa e eu voo com ela sem nada, de mãos vazias para dar contas a Jesus. Nunca passa, nunca chega a verdadeira eternidade que me vai dar o Céu. Quem poderá viver assim, meu Jesus! Dai-me a Vossa graça sem a qual a vida neste exílio é de desespero; é morte. Quero voar para Jesus, quero amá-Lo e não sou capaz de formar para Ele o voo e de O amar com a ansiedade, que exige o Seu coração. Quero fugir do mundo, esconder-me dele e dele desaparecer, e nunca mais consigo. Um momento é uma eternidade; é um momento que nunca passa, que nunca tem fim. Só o momento de ver Jesus a pedir-me contas, a ver-me e a encontrar-me sem nada, só revestida da maior miséria é rápido, não se lhe dá tempo de Lhe dizer: quem sois Vós, Senhor, e quem sou eu; parai um pouco, e deixai-me cobrir ao menos com agasalho alheio; estou nua, Jesus. Meu Deus, que confusão a minha: não tenho tempo para nada! O que fiz eu da minha vida? Como aproveitei o tempo que me destes? Que horror, ó meu Jesus! Mas Vós sois toda a minha loucura; só por Vós quero sofrer, só por Vós quero amar, só de Vós quero falar e pensar; não quero outra vida, que não seja a Vossa. Sinto-me como se fosse um poço no qual nem um só momento cessam de tirar a água. Que movimento! Esta água, que é tirada, vai para cima, nela bebe quem quer; este poço é inesgotável, não seca mais, tem sempre a mesma água. Está em mim e não é meu; está em meu poder e não me pertence. Contudo estou ansiosíssima por repartir, por dar a beber a todos. Sinto que é água de salvação. Oh! como eu a queria dar! Dar do que me não pertence e não tenho escrúpulo; roubo sem medo de ser pelo dono castigada. Ó meu Deus, ó meu Jesus, queria dar tudo, tudo, toda esta água, queria nela mergulhar todo o mundo. Morre, Jesus; morre com ânsias!

Tive dois combates com o demónio; reduziu-me ao mal, ensinou-me todas as maldades, preparou-me leitos de prazeres. Depois do pecado logo se transformaram em leitos do inferno. Que horror, que desespero! Tantos sofrimentos, ódios e maldições! O prazer fugiu e levou-me com ele a graça de Deus, fiquei mais miserável que os próprios demónios. Abracei-me ao crucifixo e envergonhada só disse: meu Jesus, sou a Vossa vítima.

Na quarta e quinta-feira, quase em todo o dia, vi e senti a cabeça Sacrossanta de Jesus cravada de agudos espinhos, tinha-a apoiado sobre a mão, o que sempre impediu de eu Lhe ver os Seus divinos olhos. Só com a diferença: ontem de tarde, já pela noite dentro, aquela posição de Jesus levou-me ao Horto e ao Calvário, levou-me a ver todo o martírio. Vi Jesus no Horto a tremer e a suar sangue; vi os Seus cabelos colados ao rosto; vi Judas beijá-Lo. Até nos cabelos se distinguiam; uns de inocente, outros de maldição. Vi-O no Calvário, já na cruz e o sangue avançar por cima da cintura. Ali fiquei com Ele; e hoje ao mesmo lugar O fui encontrar. Vi-O crucificar, vi a cruz; não tinha lugar para mais espinhos; todo o Seu divino corpo ferido ali neles era desfeito. Custou-me tanto ver assim Jesus! Depois senti-O a Ele em agonia; e, ao pé da cruz, o Coração da Mãezinha a estalar de dor com mais três corações amigos, associados à dor da Mãezinha, que, cheia de agonia, levantava as mãos para Jesus, chorava e quase de dor expirava. Principiei a ver e a sentir a cabeça de Jesus a pender, a inclinar-se sobre o Seu peito e os Seus Santíssimos braços a despregarem-se da cruz. Jesus estava morto. E eu com aquela visão e sentimento pareceu-me morrer também. Já não ouvia o Seu brado e deixei de sentir a dor da Mãezinha. Senti inclinar-se a minha cabeça, desprenderem-se os meus braços, depois do corpo ter gelado. Não sei a quem foi entregue.

Passou-se algum tempo; veio Jesus, cheio de vida; deu-me a vida, e disse-me:

― Minha filha, minha filha, a vítima não pode sair, no momento, da sua imolação e sacrifício! És a Minha maior vítima, a Minha vítima mais amada; não podes ser libertada do teu martírio, porque o mundo não deixa de pecar. Eu não deixei aquela posição, em que Me viste, os espinhos não desapareceram da Minha Sacrossanta Cabeça, não levantei dos Meus divinos olhos as mãos, a Minha visão era outra; via os crimes de toda a humanidade, via a renovação contínua da Minha santa paixão, foi por isso que te fiz ver todo o Horto e Calvário. Tem coragem, porque Eu não sofri a não ser em ti. Tu sim, Minha querida redentora, Minha nova redentora, tu sim, sofreste; tu continuaste e continuas a Minha obra de salvação. Eu revestido de ti, contigo sofri, mas, sozinho, não. Não posso mais, estou cansado de sustentar o braço do Meu Pai! O mundo com os seus crimes está a acender o fogo, que o vai queimar. Não é fogo do Céu, mas sim da terra; por ele preparado, a reduzir a cinzas. Mas pode tomá-lo, deve tomá-lo como punição de Deus, como castigo divino. Esta guerra, esta revolta, Minha filha, não é do Céu mas sim da terra; é a guerra do pecado, é revolta contra Deus.

Senti como se se abrisse o Céu e travasse luta com a terra. Que guerra, que pavor!

― Meu Jesus, que quereis que eu faça; o que posso eu fazer? Não quero a Vossa dor, mas quero a salvação das almas. O que quereis, meu Jesus? O que quereis, meu Amor? Dizei-me o que quereis que eu faça.

― Eu queria, Minha filha, mas não para ficar oculto: depressa, depressa a revelá-lo ao Santo Padre. Eu sei que da primeira parte, que te vou dizer, nada consigo; é só para mostrar os Meus divinos desejos e o Meu amor às almas. Não são tantos os crimes e tanta a malícia do pecado, que só havendo 10 vítimas em cada nação, o mundo pode ser salvo. Mas vítimas puras; cheias de generosidade e amor. Mas não, não as encontro; não há quem aceite os Meus espinhos, não há quem queira as Minhas chagas, a Minha cruz, o Meu Calvário; não há quem se entregue a Mim pelas almas. Há muitas que querem sofrer e serem imoladas, enquanto que não chegam os sofrimentos e a hora da imolação. Mas ah! O que Eu espero é a segunda parte. Pede ao Santo Padre que lho pede Jesus; que apele para os sacerdotes, sobretudo das ordens religiosas, que, apesar de neles haver muita coisa, há muitos, que Me dão; que redobram de pureza, de fervor e de amor ao Santo Sacrifício da Missa.

Com essa pureza, fervor e amor, unido à Minha vítima, a quem fiz a entrega da humanidade, a quem dei a mais sublime missão, ela pode ser salva, salvar as suas almas. E não é essa, esposa querida, a tua ansiedade, o fim de todo o teu sofrimento?

― Sim, meu Jesus, eu quero salvar as almas, e por isso não me poupeis o meu corpo; eu não Vos recuso nenhum sofrimento, mas se pudesse ser tudo! Se eu pudesse consolar-Vos e amar-Vos, evitar todo o pecado, salvar todas as almas e poupar-lhes, aos corpos, os castigos! Perdoai-nos, perdoai-nos, meu Jesus; sou a Vossa vítima, tende de nós todos compaixão. Que dor no meu coração, que desolação a minha! Seja tudo por Vós, meu Jesus.

― Coragem, Minha filha! Essa dor é para nela ficares; não tenho vítimas generosas. Supre tu toda a generosidade. Confia, confia; a tua dor de alma e corpo é bálsamo de salvação. Para resistires à dor, para viveres e sempre em tuas veias correr o Sangue de Cristo, vou dar-te a gota do Meu Sangue divino. É o Coração do Esposo unido ao da esposa, e do Redentor à Sua redentora.

Jesus uniu os nossos Corações, pelo cimo do Dele deixou cair no meu a gotinha do Seu divino Sangue, e espalhou, ao mesmo tempo, sobre o meu peito uma labareda de fogo que dele saía.

― Vai, esposa amada; vai, leva esta vida e este amor. És o cofre das almas, a depositária de todas as maravilhas do Senhor. Vai em paz; quero em teus lábios sempre o sorriso, em todo o teu sofrer a tranquilidade e a alegria. Coragem! Jesus não te falta.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Conto Convosco, confio em Vós. Fiquei logo mergulhada em dor; sinto-me num mar de amargura, sinto-me num nunca acabar de trevas. Eu te quero, minha amada cruz.

3 de Maio de 1947 - Primeiro sábado

Não saí do mergulho da minha dor nem de mim se apartaram as ânsias de dar tudo e obrigar toda a humanidade a viver num poço, que tenho em mim. Nesta ansiedade, mergulhada só em dor, ferida de alma e coração, preparava-me para receber Jesus, e aproximava-se a hora da Sua chegada.

Minutos antes, recebi a notícia de que um homem, que há três dias me tinha sido recomendado, tinha morrido sem os Sacramentos. Foi um espinho que me feriu profundamente, mas, não sei porquê, não me inquietou a perda da sua alma; fiquei em paz. Veio Jesus. Momentos depois de entrar no meu coração disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a alma desfalecida e ferida pelos espinhos sente-se bem, tem conforto, anima-se com o seu esposo. Vem a Mim descansar; sou o teu Esposo Jesus.

Nosso Senhor inclinou-me sobre Ele; fiquei com a minha cabeça unida ao Seu divino Coração e como que a descansar em Seus braços.

— Recebe, Minha filha, a Minha vida para a tua vida, o Meu conforto para a tua luta, para a tua dor. Sofre contente; como são valiosos os teus sofrimentos unidos aos Meus; quanto podes com O teu Jesus! Não sofras, Minha filha, com o golpe que acabaste de receber; a sua alma foi salva. Fiz isto para exemplo dos outros. Momentos antes de lhe pedir contas, apresentei-Me em sua presença, ao ver-Me, muito confundida, exclamou: não Vos aproximeis de mim, meu Senhor, com tanta pressa; não estou digno de aparecer diante de Vós. Perdoai-me, perdoai-me, Senhor, as minhas culpas. Nada mais foi preciso; salvou-se. Foste vítima dele, nestes dias. Não te sentias tu incapaz de aparecer diante de Mim e para isso parecia-te voar o tempo? Foste vítima. Salvou-se, mas sem merecimento, sem virtudes. Será uma alma a gozar-Me no Céu à custa da tua dor. Mas terá muito, muito, que sofrer no Purgatório. Aqui tens uma das boas novas que te anunciei.

― Meu Jesus, mas eu ainda não sabia nada.

― Sabia Eu, filha querida, tudo o que se ia dar e por tu o não saberes é que tem todo o valor para os homens. A segunda nova, Minha filha, é para dizeres ao teu Paizinho que a alma do paizinho dele subiu ao Céu, logo após 7 dias da sua morte. Foram 7 dias em honra das 7 dores da Minha Bendita Mãe. Subiu ao Céu, depressa, pelas suas muitas virtudes e merecimentos, e pelos muitos sofrimentos do filho, pela sua vida de grande martírio e pelo amor com que por Mim ele é amado. Está a gozar-Me na Pátria Celeste em grande glória e alegria. Principia já, Minha filha, a um conselho dele porque Eu nunca o retirei de teu guia, a fazer a lista das almas que desejas, logo a seguir à sua morte, subam ao Céu. E assim se vão cumprindo as Minhas Divinas Palavras.

― Queria, meu Jesus, perguntar-Vos por uma alma, mas não pergunto, perdoai-me.

― Fá-lo já, Minha filha, e sem demora. Não tens confiança em Mim?

― Bem sabeis que tenho, meu Jesus; mas não quero abusar da Vossa bondade; mas já que me permitis dizei-me: onde está a alma da minha querida Deolinda?

― No Purgatório, mas em vésperas de ir gozar na Minha glória. Logo que sejam celebradas 3 missas pela sua alma, sobe ao Céu. Isto é, juntando às missas todas as orações que até esse momento por ela foram feitas. Era boa sofreu muito e está sofrendo o seu descuido. Diz, Minha filha, ao teu médico que eu o coloquei à tua frente, para cuidar de ti e da Minha divina causa e para ser mensageiro das Minhas palavras, em dias de tanta luta. Diz-lhe que não demore, em acordo com quem sabe, a mandar ao seu destino o que com tanto empenho eu pedi. Dá-lhe a Minha bênção e todo o Meu amor para todos os que lhe são queridos. Vem, minha Mãe Santíssima, com os teus carinhos fortalecer, dar a vida à filhinha.

Veio a Mãezinha, tomou-me em Seus braços, abraçou-me docemente, cobriu-me de carícias e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, sou tua Mãe e Mãe do teu Jesus; és por mim e por Ele amada com todo o amor. Sofro com alegria, continua a salvar as almas. Toma o meu manto, envolve nele a humanidade, salva-a, é filha de Jesus e é minha. Leva o meu amor, leva o amor de Jesus, dá-o aos cuidam de ti, dá-o aos que te são mais queridos. É o amor de Jesus e de Maria num só amor.

Jesus acrescentou:

― Dá-lhes este nosso amor aos que te são mais queridos; dá-o a todos, dá-o na proporção em que to pedirem. Quando te for pedido com instância e com toda a abundância diz-lhe do coração: dou-to todo, como me pedes. Vai, louquinha, vai, que és a vida das almas sem sentires que lha dás; és toda amor sem saberes que amas, és toda vida sentido que és morte. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus, obrigada Mãezinha. Sede comigo nesta luta tão tormentosa da minha vida. Que horror eu tenho em ter que ditar tudo quanto me disseste. Em teu beijo e abraço, minha cruz, só por amor Àquele que me enviou.

9 de Maio de 1947 - Sexta-feira

Não quero o mundo; quero desaparecer dele, morrer para ele; não quero o mundo, nem nada que lhe pertença. Quero as almas, quero as almas todas que nele habitam, porque essas sim, essas só a Jesus pertencem. Deixo-me crucificar e morrer por elas. Não posso pensar na perda das almas; não posso pensar que Jesus é ofendido. Eu não quero o amor das criaturas; quero o amor do meu Jesus. Eu não quero ofendê-Lo nem sabê-Lo ofendido. Que sede de me dar a Ele, de Lhe pertencer, de morrer por Ele! Que sede de ver o mundo, ou melhor, as almas nas mesmas ânsias, nas mesmas pretensões. Queria tudo numa só alma, num só coração, num só amor. O meu coração está cansado de tanta ansiedade, de tanta sede de amor. Eu não sei quem continuamente bebe em mim e bebe sofregamente; a minha alma sente, os meus ouvidos ouvem o saborear, o beber ofegante desta bebida. Continuo a ser o poço inesgotável, apesar de, noite e dia, sem parar, dar água com toda a abundância a quem quer beber. Depois disto não sou nada, não dou nada, em mim nada há. Eu não vivo mas há em mim outra vida que vive e ama, que vive e possui tudo. Queria viver esta vida, amá-la, perder-me nela, enlouquecer por ela. Ó meu Deus, ó meu Deus, eu quero que as minha loucuras sejam só para Jesus e para as almas. Sinto que esta vida é ferida, ultrajada, calcada aos pés de ingratos. Eu não posso consentir em tal, quero remediar este mal e não posso. Sinto o meu corpo ralado, moído, desfeito pela dor. Por vezes digo: meu Deus, como se vive, como se pode resistir a tanto. Meu Jesus, sou a Vossa vítima, aceitai o incenso do meu sofrimento, que ele suba ao Céu constantemente, dia e noite, sem parar, para ser a reparação da bondade de Deus ultrajado. Fito os olhos em Jesus crucificado, compadeço-me dos Seus sofrimentos, quero evitá-los e não posso; sofro amarguradamente com Jesus. Fito novamente a imagem do Seu divino Coração e peço-Lhe: deixai-me entrar, Jesus, no Vosso divino Coração, para me esconder e incendiar. E fazei que eu vá como um sopro, como uma aragem suave, levar a todos os corações a Vossa graça, o fogo do Vosso amor. Digo e não sou eu, falo e não sei falar. Ó meu Deus, e assim me vou mergulhando nesta abismo medonho de cegueira, abismo, cegueira, que não mais terá fim. Sinto-me nela como peixe na água; quanto mais me mergulho em cegueira, mais obrigada me sinto a, profundamente, me mergulhar. E sempre sobre esta cegueira um mar tempestuoso, com fúrias desastrosas. E o coração a sangrar, sempre a sangrar; com que crueldade eu o sinto ser apunhalado! Que finos e dolorosos são os fios que o cortam! Ó minha cruz, eu te amo! Ó Mãezinha, eu sou Vossa; dai-me força e amai por mim a Jesus, amai-O em nome de todas as almas.

Ontem, não sei dizer como foi dolorosa a minha viagem para o Horto. A noite era escuríssima, e eu fui tão ligada aos sofrimentos; não digo a este nem àqueles; foi a todos; era um mundo deles, sentir mesmo que arrastava o mundo, que ele me esmagava. Era tal a minha união à dor, eram tão inquebráveis as prisões que a ele me prendiam, que nem um só momento dela me podia libertar, nem um só membro, nem um mínimo bocadinho de carne podia ser da dor, dos espinhos libertada. Que dureza tinha para mim a humanidade! Senti e vi Jesus a tremer, a chorar e a suar sangue, e até pelos ouvidos o derramava. Senti-O a estender os braços, e a oferecer ao Pai o cálice, amargurado. E dali fui com Ele, de mãos atadas, para a prisão; e, de novo, levei comigo o mesmo mundo e arrastava-me, a esmagar-me.

Esta manhã, não podia respirar; não podia viver estava tomada de pavor; sentia os olhos colados pelo sangue, que brotava do grande capacete de penetrantes espinhos, que me cingiam à cabeça. Assim segui às escuras e estreitas ruas do Calvário, e sempre a cair sobre mim uma chuva de maus-tratos e de ferros cortantes, que me dilaceravam as arnês. Vi tantos pedacinhos com grandes rastos de sangue perdidos por entre as lajes. Oh! como foi dolorosa a viagem! Quanto me custou chegar ao Calvário! E quanto me custou ver feras, medonhas feras, em tão grande número, a beberem o sangue, que de Jesus corria; eram com certeza feras só na aparência, porque Jesus murmurou e deixou gravado na minha alma: melhor era para Mim, não sofria tanto, se o Seu divino sangue fosse, na realidade, bebido pelas feras; são piores do que elas. Senti que em muitos corações aumentava o ódio, o aborrecimento contra Jesus, um desejo de O ver desaparecer dos seus olhares venenosos, fosse como fosse, custasse o que custasse. Jesus, que via e penetrava no íntimo de todos mais sofria, e mais aumentava a Sua agonia; e num brado fortíssimo chamou pelo Pai. Ao ver-se por Ele abandonado, aumentou a amargura e o Seu desfalecimento. Como homem, já não podia viver, era mortal, eu sentia-O em mim, a dar os Seus últimos arrancos. Mas como era suave e doce a agonia do Seu espírito, os últimos momentos de Jesus na terra. Expirei com Ele. Ah! Se com a mesma doçura, a mesma semelhança, eu expirasse na morte verdadeira, na morte que será a vida, que se dará a vida Eterna! Veio Jesus, deu luz a toda a minha alma e disse:

― Minha filha, Minha filha, Minha Alexandrina, Alexandrina das dores, deixa-Me que te dê mais este título de Minha esposa, Alexandrina das dores. Tem coragem! A alma pura posso compará-la à água pura, à água cristalina, em vidro de cristal fino, posta aos raios de sol a ser observada. Quantas coisas aparecem; o que descobrem esses raios de sol! A alma és tu; o sol, observador sou Eu que tudo em ti descubro, e a Meus divinos olhos, tudo aparece. Esse tudo que Eu vejo e faço que tu vejas é o meio de que Me sirvo para purificar a tua alma para poderes passar deste Calvário, deste leito de dores ao Céu. Faço que vejas em ti todas as manchas, para delas te purificares, para te ver tão pura, tão pura, Minha pomba querida, para que esta pureza em ti transpareça e a possas comunicar às almas. São tuas as manchas que ao sol da Minha pureza e grandeza aparecem mas não são tuas, filha querida, atende bem ao que te digo, as maldades, os crimes, esse mundo de horrores, que em ti sentes e descobres. Ó maravilhas, ó maravilhas, tão pouco conhecidas e compreendidas! A alma vítima vê-se coberta e responsável de todos os crimes, e, ao mesmo tempo, possuidora do Seu Deus com todas as Suas grandezas. Quanto ela sofre ter que aguentar e enfrentar o imundo com o que há de mais puro e santo! Confia, filha querida; és vítima, mas não são teus esses crimes. Entreguei-te o mundo, para o salvares, mas não é tua a maldade dele. Acode-lhe, acode-lhe.

― Ó meu Deus, eu não posso acudir-lhe; não sei o que hei-de fazer, não tenho que Vos dar para o salvar. Salvai-o Vós, Jesus, acudi-lhe, são Vossos filhos e Vós sois todo-poderoso e todo amor. Eu sinto que o meu sofrimento nenhum valor tem.

― Minha filha, minha filha, és poderosa, tens comigo todo o poder. Tudo o que faço, tudo o que peço, o Meu apelo urgente é para lhe acudir. Se te for dado ver como Eu sou ofendido, é necessário um milagre para conservar-te a vida. A maldade atingiu o seu auge, não pode aumentar mais, mas pode e aumenta o número dos que Me ofendem. A impureza é veneno, que se alastra. Dá-Me dor, esposa das dores. Repara como sou ferido.

Neste momento vi cair sobre Jesus um nunca acabar de maus-tratos. Jesus era espancado, esbofeteado, escarrado, açoitado, arrastado; era o mundo sobre Ele. Levantei as mãos e gritei:

― Jesus, sou a Vossa vítima.

E, como se fosse possível abrir o peito e dar-lhe entrada em meu coração, disse-Lhe:

― Fugi, Jesus, entrai no meu coração; caia sobre mim essa chuva de sofrimentos, mas livrai-Vos Vós de serdes ferido.

Eu senti com que um impulso de amor me obrigasse eu mesma a rasgar o peito, para dar entrada a Jesus. Ele entrou e escondeu-se, mas, antes de entrar, levantou-me, porque estava caída; desfaleci com a visão dos Seus sofrimentos. Ele deu-me vida ao coração, que de dor me parecia morrer.

― Minha filha, dá-me então tudo, tudo o que te pedir, todo o sofrimento, alegre, para consolares o Meu Divino Coração, para Me desagravares, para Eu não ser ferido; dá-Me tudo, para Eu poder tudo apresentar ao Meu Eterno Pai, para abrandar a Sua justiça. Acode, acode, às almas.

― Meu Jesus, ó meu amor, aceitai o meu sofrimento e o do mundo inteiro, como se eu dele pudesse dispor; uni-os aos sofrimentos e méritos da Vossa santa paixão, uni mais ainda todo o amor do Céu ao Vosso amor e ao da querida Mãezinha; formai de tudo uma escora que sustente toda a justiça divina, para a não deixar cair. Quero acudir às almas, a todas as almas e também ao martírio dos corpos, se puder ser, Meu Jesus. Misericórdia, misericórdia, meu Amor.

― Pede sempre, sofre sempre; a salvação das almas é tudo; és comigo poderosa. Recebe agora a gota do Meu Sangue Divino, que brota do Coração, a arder de amor. Sem ele não podes viver, sem esta vida divina não podes resistir à dor.

A gota do preciosíssimo Sangue de Jesus caiu por entre labaredas de fogo no meu coração, que logo se dilatou; mas Jesus não o deixou dilatar-se por muito tempo; veio logo como médico, cicatrizou a abertura, e disse:

― Vai, esposa, amada; vai sofrer, vai para a cruz, vai para a dor. Sofre mergulhada nestas chamas, sofre abrasada neste amor; vai espalhá-lo, vai atá-lo na humanidade. Vai confiada; não te enganas, Jesus não te deixa enganar. És de Jesus, vais para Jesus; és das almas, vítima das almas. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus. Sofro tudo sem condição, a não ser a do Vosso amor, a da Vossa graça e força; não posso sozinha, tenho medo, meu Jesus.

Que horror eu tenho a ter que ditar tudo o que me diz Jesus! Se não me vem uma graça do Céu, desisto, não o posso fazer. Se me davam uma ordem para não escrever mais nada, que alívio tão grande para a minha alma atribulada; que consolação a minha; até me parece que deixava de sofrer. Mas isso não quero; sou a vítima de Jesus.

16 de Maio de 1947 - Sexta-feira

Quero subir na escada do amor, e não consigo; sinto que desci ao último degrau. Jesus nada pode esperar de mim; não sei amá-Lo, não tenho forças para O amar. Quero abraçar a minha cruz, a cruz que Ele me dá, e não posso; este meu abraço é cair com ela, desfalecida, sem jamais poder levantar-me. Quero fazer tudo o que é bom e santo, e nada faço; pobre de mim! Quero ser só de Jesus, da Mãezinha e das almas, e não sou de ninguém nem para ninguém. Não sou eu, não vivo, não existo; existe, vive em mim o mundo cheio de maldade, cheio de crimes, todo revoltoso contra o Senhor; é uma vergonha de morte. Sinto-o a crucificar Jesus. Em mim vive outra vida a enfrentar este mundo. Com que dó, com que com compaixão o enfrenta, o contempla! É por forçado a castigá-lo e não quer. Esforça-se, faz tudo para não bater, não punir. Eu que não existo, sou, ou estou no meio destas duas vidas; a vida do mundo quero moderá-la, transformá-la para ser outra. E na vida de Deus, nada mais faço; imploro misericórdia, abro os braços, levanto as mãos, curvo-me diante desse poder supremo para receber todos os golpes, para ser esmagada por toda a Sua divina justiça. Meu Deus, não vivo e sou mundo, não vivo e possuo a vida de Deus, não existo e vivo para o mundo e vivo para Jesus, não sou nada e tenho que aguentar sobre mim toda a maldade humana e todo o poder, todo o amor e toda a justiça de Deus. Se eu soubesse dizer este teatro doloroso que ora sinto, ora vejo em minha alma! O amor do Céu não pode enfrentar a maldade da terra.

Apoderou-se de mim tão grande medo do demónio, que é por vezes um grande pavor. Não tenho tido combates com ele, mas sinto-o em trono, no meu coração; é rei absoluto de todo o meu ser; sou toda demónio, sou toda inferno. Repetidas vezes, sinto cheiro ao queimado; parece-me estar a cama, a roupa e eu toda a arder. Que gemidos tão dolorosos e tão horrorosos tormentos deste inferno! Não posso consentir ser eu inferno e ser demónio. E tudo isto às cegas, em trevas tão profundas; e eu sempre a correr a mergulhar-me nelas, a atirar-me, louca, para elas, como se fosse um poço sem fundo. São dolorosas estas trevas; e tremenda esta cegueira; mas não sei pelo quê, eu quero-as, tenho sede delas; quero-lhes tanto, como se elas fossem feitas só de consolação e amor. Tenho sede e não me sacia de beber nelas e sempre nelas me mergulhar. Como pode ser, meu bom Jesus, querê-las e temê-las; sofrer nelas e amá-las. Bendito sejais por tudo, meu Senhor; sou a Vossa vítima.

O dia da Ascensão de Jesus ao Céu foi para mim cheio de noite escura; foi uma morte total de todas as coisas. Até no Céu era noite e reinava a morte. Não pude ansiar pela minha Pátria, nem recordar o que se passava lá. Caminhei para o Horto sempre arrastada pela maldade. O meu coração tornou-se uma bola, um entretenimento dos homens; em tão curta viagem, recebeu todos os maus-tratos. Os caminhos eram ladrilhados de agudos e variados espinhos para o ferirem. Vi ao lado, em visão bem clara, o Calvário, e, no cimo, a cruz. A cruz era a minha, não digo bem, era a de Jesus. Quando assim falo, é dele e só dele, porque é Ele a sofrer em mim, eu só O acompanho. Senti que Ele se queria refugiar, e para uma gruta me refugiei com Ele. O que ali sofreu Jesus! O sangue que Ele soou! O sangue que caiu do Seu Divino Coração duramente espremido, enquanto o cálice da amargura, transbordou fora. Ofereceu-o ao Pai; Este mandou o Anjo, a confortá-Lo. Ela desceu e colocou-se, ao lado de Jesus, como para O levantar. O Calvário com a cruz não desapareceu. O mundo com a sua maldade continuou a agravar os Seus sofrimentos. Depois, o beijo de Jesus e nada mais. Hoje, de manhãzinha, entrei nas ruas do Calvário. Quase no princípio, caiu Jesus, pela primeira vez; caiu sobre a cruz, feriu gravemente o Seu santíssimo rosto e peito. Desfalecida, oprimida por tão grande peso, segui com Ele o caminho do calvário. Caiu, segunda vez, e eu caí também. Senti e ouvi os estalos das pancadas que despedaçavam o Seu santíssimo corpo. Cheguei ao cimo, vi a esponja, que de nada valia para a sede, em que ardia Jesus. No alto da cruz, de todas as feridas dos espinhos saíam raios doirados; formavam um só brilhante. Estes raios, este sol resplendoroso enchiam a terra, mas este levantou sobre eles negras muralhas, para deles se esconder; rejeitou-os. Daqui nasceu o brado e a agonia contínua de Jesus. Sofri com Ele até ao último momento, até que agonizei e deixei o coração mais duro que a dura pedra. Veio, pouco depois Jesus; transformou-o de dureza para luz e bondade.

― Minha filha, escola das maravilhas, de todas as maravilhas de Jesus, rainha do mundo o qual eu quero e é urgente que a esta escola venha todo aprender. És escola de maravilhas, porque em ti há do mais alto e sublime; em ti há tudo o que é do Céu, tudo o que é de Deus. És rainha do mundo, porque to entreguei e confiei para o salvares. Quero que em ti aprenda; e quanto tem que aprender! Em ti aprende a amar, a sofrer, a cumprir em tudo a lei do Senhor; em ti pode admirar as maravilhas, que o mesmo Senhor em ti depositou. Não foi para ti, Minha esposa querida, que assim te fez rica e poderosa; foi para as almas, foi para as almas, foi para as salvar.

― Ó meu Jesus, ó meu Jesus, como eu sou pequenina, como me sinto humilhada, queria desaparecer de diante de Vós. A minha humilhação não é por ouvir-Vos falar assim, porque falais das Vossas coisas, mas sim por me teres escolhido para depositária das Vossas graças, preferindo-me a tantas criaturas. Que vergonha, meu Jesus!

― Criei-te para esta vida, para a salvação das almas, para a missão mais sublime. Eu encontrei em ti, na mais tenra idade, o que não encontro nas outras criaturas. Digo-te, não para elogio, porque sem Mim nada podes, mas sim para tua força e conforto. Tem coragem! Tu serás para o mundo uma nova arca de Noé. Tu serás para toda a humanidade o sol, que a ilumina. Coragem, Minha redentora, Minha crucificada. O teu amor, o teu sofrimento é a arca de salvação. Confia, confia; são tuas as almas. Vou dar-te com a gota do Meu Divino sangue uma efusão do meu amor, sabes para quê? Para o dares, para o distribuíres; e para que em teus olhares e vida transpareça tudo o que é celestial. Desce o Céu a assistir.

Um bando de Anjos mais bastos que a chuva miudinha desceram, a baterem as asas, cheios de luz. Mais atrás, um bando sem número de pombas brancas. Por último desceu a Mãezinha, coroada de rainha, num grande trono; colocou-se à minha frente; senti como se o meu peito fosse aberto, e a Mãezinha colocou no meu coração as Suas Santíssimas mãos. Do coração divino de Jesus saiu para o meu, fogo, muito fogo; e por último a gotinha de sangue. Com este calor ardente e o sangue de Jesus, o coração dilatou-se, fiquei sem poder respirar. A Mãezinha fazia do coração uma bola que ela acariciava; com estas carícias e beijos, que ela me dava, aguentei o amor de Jesus.

― Minha filha, coragem, coragem ― disse-me Ela.

O peito cerrou e a Mãezinha com os Anjos e o bando das pombas brancas principiou a subir. Ao vê-La partir, disse-lhe:

― Muito obrigada, Mãezinha; levai-me convosco para o Céu.

― Espera, Minha filha, mais um pouco; tem coragem! Depressa virás para a tua Pátria.

― Não demora, não demora o teu Céu, Minha filha ― continuou Jesus, que ficou comigo. Viste o bando das pombas brancas? Foram de almas que estão no Céu já salvas por ti. Diz-Me muitos actos de amor; tens por cada um uma alma. É a troca; vê que vale a pena. Mas olha; quem muito dá muito quer receber. Eu tudo te dou; enriqueço-te, mas quero dor, sempre dor, dor sem igual; é com o amor a moeda das almas. Confia em Mim, estrela do mundo, flor mimosa do Paraíso. Vai para o teu posto, vai para a tua cruz; saboreia tudo o que é dor, que é um sorriso contínuo para o teu Jesus.

Fiquei com tantas saudades da Mãezinha e tantas saudades do Céu e tão grande horror e aborrecimento do mundo!

― Quem poderá aqui viver, meu Jesus, só com a Vossa graça, a Vossa vítima. Tende sempre diante de Vós o meu pobre coração agradecido.

23 de Maio de 1947 - Sexta-feira

O que fizeram os santos, porque não o faço eu também? Tem sido esta a interrogação, que neste mês da Mãezinha tenho feito a mim mesma. O que os santos fizeram! Mas eu não sei o que foi. Eles certamente amaram muito a Jesus e tudo sofreram por Ele. Mas eu não sei amá-Lo, desconheço o amor; e nada sofro porque não sou quem sofre, mas sim Jesus em mim. O que hei-de dar então? Ai, pobre de mim! Nada tenho a não ser o mundo horroroso, o mundo vergonhoso das minhas maldades e misérias. Ó meu Deus, meu Deus, como eu me vejo e sinto num mundo de podridão; tenho nojo de mim mesma. Desfaz-se a minha carne na maior imundice. Mas tenho sede, sede abrasadora, sede insaciável de amor a Jesus. Sinto-me como se estivesse mergulhada no mar sempre a beber, sem dele sair, sem nunca me saciar. Estou como o peixinho; quanto mais nada, mais quer nadar; quanto mais me mergulho, mais necessidade tenho de me mergulhar. Morro à sede, sem sair da água, sem deixar de beber. Queria dar-me a Jesus, queria dar-Lhe a as almas, todas, todas as almas. Quando falo de Jesus, do Seu divino amor e das Suas almas, não sei que sinto, sinto-me a desaparecer. Que loucura o amor de Jesus! Que valor têm as nossas almas! Não posso pensar que alguma se perca, que para alguma fosse inútil o Sangue de Jesus derramado. Não tenho coração nem espírito que aguente com estes pensamentos. O amor de Jesus, o amor de Jesus por nós! Sinto um não sei quê, dentro de mim, que me obriga a querer ir a Roma. Não é para ver sua Santidade; não é para ver os lugares santos nem para contemplar tantas maravilhas, se bem que tudo isso seria para mim motivo de grande alegria. A minha necessidade não é essa. Eu queria de sua Santidade um não sei quê, que mais ninguém me pode dar. Eu queria lançar-me a seus pés, beijá-los, regá-los com as minhas lágrimas. Estou convencida que isto o fazia compadecer de mim; estou certa que assim a minha alma recebia o que ela anseia e eu desconheço. Ó meu Jesus, Vós sabeis bem que isto eu não posso fazer; supri Vós, por misericórdia, doutra forma, a minha falta.

Continuo a ter grande medo, grande horror ao demónio. E continuo ainda a senti-lo no meu coração, sentado em trono como rei; tem mesmo na cabeça coroa como de rei e na mão direita um pau ou ferro preto, de meio para cima, com duas grandes galhas. Ele está em grande sossego; sabe que Ele é o Senhor; não teme que o deite fora; está orgulhoso como senhor de si mesmo. Meu Deus, que grande horror! O demónio dentro de mim! E agora, nestes últimos dias, sinto em mim Jesus, mas fora do coração, e a alma vê-O com o peito aberto, de cada lado da abertura, as suas divinas mãos para melhor mostrar a chaga do Seu Divino Coração profundamente aberta e a sangrar. Jesus aponta o Seu Coração divino; com os Seus olhares ternos e meigos, cheios de amor, convida o meu coração a entrar. Ele quer-me inteiramente, esquece o meu passado. Que convite tão enternecedor! Faz-me doer tanto o coração! Jesus, de pé, sempre a chamar-me com doçura a entrar nele. Eu faço-me surda, desvio dele os meus olhos, não faço o mais pequenino esforço por deitar fora o demónio. E Ele nem sequer estremece, no seu grande orgulho, está sossegado. Que quadro doloroso! O demónio dentro e Jesus fora! O amor a enfrentar a maldade. E eu preferir o demónio a Jesus! Que horror, que horror de morte!

Na tarde de ontem, senti que no meu pescoço me foram lançadas grossas cordas, e todas as mãos humanas por elas me arrastaram até me conduzirem ao Horto. Esta mesma força de maldades obrigaram o Céu com toda a justiça divina a descer lá sobre mim a esmagar-me. O peso foi tanto, que me rompeu todas as veias; o sangue regou a terra, a larga distância. Ali vi Jesus com antecipado sofrimento, com o Seu divino coração aberto, a dar de beber às almas. Umas arrumavam-se d’Ele, com aborrecimento; desprezavam tudo, nem no sangue de Jesus queriam tocar; outros bebiam-no friamente, com indiferença, como se nada fosse; vinham outros, que o bebiam com mais amor; iam outros que bebiam com loucura e não queriam deixar de beber; veio outra que passou sobre todas, e, numa sede insaciável, bebeu, bebeu, entrou pela chaga do Coração divino de Jesus, perdeu-se Nele e não apareceu mais. Depois subi ao Horto, ou subiu-o Jesus em mim, atropelada debaixo de uma chuva de empurrões e pontapés. Eu sentia no meu corpo os vestidos colados com o sangue já seco. Na grande sala de Anás, vi a multidão que seguia Jesus, eram homens, só homens com armas e paus. Quando o malvado deu a bofetada em Jesus, foram tantas as gargalhadas e o bater de palmas, como se fosse praticada a mais bela das acções. Como Jesus se fazia pequenino e estava humilhado! O príncipe na sua vaidade, elevou-se às alturas; via-se como que adorado por quantos o rodeavam. Como Jesus foi desfalecido para a prisão! Que tristeza a Sua! E ali sozinho! Que pena eu tive de Jesus! Lembrei-me então d’Ele, preso nos sacrários, pois agora na terra outra prisão não tem. Fiz um sacrifício, fiz alguns actos de amor; pedi à Mãezinha para ir comigo a todos os sacrários e os entregar a Jesus por mim, e lá me deixar para sempre prisioneira com Ele.

Hoje de manhãzinha, sem nisso pensar, senti a alma ir ao cárcere, ao encontro de Jesus; encontrei-O triste, na mesma tristeza que eu senti e sem ter as belezas de Jesus; estava desfiguradíssimo, era já quase um cadáver. Desci com Ele, com Ele fui coroada de espinhos, com Ele fui açoitada, com Ele ouvi as algazarras dos que se regozijavam de O ver sofrer. Com Ele segui o Calvário. Ao cimo dele vi despirem Jesus; não O vi crucificar. Mas pouco depois, o meu corpo era a cruz, onde Ele estava pregado. Os espinhos da Sua sagrada cabeça feriam-me a mim também. Sentia o Seu divino Coração cercado de miudinhos, mas agudos espinhos, que me cingiam e feriam também o meu. Quando Jesus movia os Seus lábios, para bradar ao Pai eu sentia-os e via-os mover. Quando a esponja lhe foi por eles passada, no coração senti como Ele saboreava não por si, mas em sinal de agradecimento, como se lho tivesse feito por amor. Bem intimamente na alma se gravaram também os olhos de Jesus, quando Ele os levantava ao Pai, e via que eram uns olhares mais ternos. Perto de Jesus agonizar, fez-se noite no Calvário, e reinou um profundo silêncio; só se ouviam os Seus suspiros divinos. Quase tudo se retirou, apavorado, e já a tomarem qualquer acontecimento. Era o temor e não o amor a causa desse pavor. Ficou a Mãezinha com a Sua dor e agonia a acompanhar Jesus. Como Ela sofria e Ele com Ela! Indizível é a dor. Sofri tudo e nesta dor expirei. Veio Jesus, chamou-me:

― Minha filha, coração grande, coração ardente, coração de fogo, sacrário da minha habitação; és o meu Céu na terra, paraíso das Minhas delícias. Sim, aqui delicio-me; posso dizer que ainda há corações na terra, mas bem poucos, que Me amam e onde Eu tenho a Minhas delícias. O teu é um desses, permite-Me que te diga; confia em Mim, que sou O teu Jesus: o teu coração é o que Me ama sobre todos, e sobre todos no que mais Me delicio. O teu amor delicioso, Eu o coloco na taça da tua dor; é uma oferta contínua, dia e noite, sem parar um momento, que Eu ofereço a Meu eterno Pai. Esta taça de dor e de amor delicioso é escora que sustenta o braço da Sua justiça pendente a cair sobre a terra. Dá-Me dor, dá-Me amor, dá-Me tudo, Minha filha. O Meu eterno Pai ao aceitar e contemplar a oferta, que Lhe dou, vai esquecendo como sou ofendido. Oferece-Me, filha querida, todo o teu martírio, une-o ao Meu sangue Divino e às dores da Minha Bendita Mãe, e nesta união, na renovação contínuo da Minha paixão, tu receberás do Céu toda a força, todas as graças, todo o poder, para acudires às almas. Salva-mas, salva-mas, que são Minhas. E vê o trato que Me dão.

Quando Jesus levantava para o Seu Eterno Pai uma taça formosíssima, era belo, cheio de luz. Quando me disse para eu ver o mau trato, que Lhe davam as almas, caiu por terra, feito um mendigo, sem formosura, sem luz e sem nada. Caiu de repente com os maus-tratos, que Lhe davam, como uma árvore, que num rápido momento é cortada. Quando vi Jesus caído, lancei-me a Ele, deitei-Lhe as minhas indignas mãos e bradei-Lhe:

― Levantai-Vos, levantai-Vos, meu Jesus: quero cair eu, debaixo desta chuva de maldades, mas não quero ver-Vos sofrer. Dizei-me, Jesus, o que posso dar-Vos, o que posso fazer.

― Dor, dor Minha filha; dor e amor. Pede, pede aos que cuidam da Minha divina causa; diz-lhes que Jesus pede: quero oração, quero penitência, quero vida pura, quero vida nova. Que não cessem de pedir isto aqueles, a quem confiei aquilo que mais caro tenho na terra.

― Meu Jesus, tudo Vos dou sem ter que Vos dar; não sei amar-Vos, não sei sofrer, dou-Vos tudo o que é Vosso; sou a Vossa vítima.

― Amas-me, filha querida; sabes sofrer e comigo tudo vences. Vou pedir-te alguns combates do demónio; dá-mos, confia que não Me ofendes. Eu queria que a tua vida, esposa querida, fosse espalhada, depressa chegasse aos confins do mundo como chuva de Formosas rosas caídas do Céu. Que chuva de maravilhas, bálsamo de salvação para as almas. Recebe a gota do Meu sangue Divino; corre o sangue de Jesus nas tuas veias, é a tua vida, é a vida que espalha, é a vida que infundes nos corações e nas almas. Deixa-Me unir o centro dos dois; não deixo que o teu se dilate.

Jesus uniu os nossos corações, a gotinha do Seu divino sangue caiu no meu e Ele logo os separou; acariciou-me e disse-me:

― É a vida é a força do tua dor. Vai, esposa, vai, amada, vai para a cruz que te espera; leva a graça, leva o sorriso, leva o conforto, beija-a abraça-a, não Me deixes mais. Eu opero milagres sobre a tua vida; sem este milagre não resistirias a tanto sofrer. Quando deixar de o operar, a tua alma voará ao Céu como pomba branca, saída da prisão. Está bem perto, tem coragem! Vai dar-te às almas, vai salvá-las. Vê quanto Eu faço por elas; mesmo assim ofendido, abro-lhes o peito, ofereço-lhes o coração; e elas como demónio em seus corações não Me dão aceitação, recusam a entrada, preferem-na a ele. Não és tu que possuis em ti o demónio; é o mundo, é o mundo; tu és vítima. Coragem, coragem! Leva amor, leva a tua cruz. O mundo é teu; confiei-to; acode-lhe, salva-o com a tua dor, com o teu amor, com o teu calvário.

― Obrigada, meu Jesus

30 de Maio de 1947 - Sexta-feira

Não sei o que é a minha vida; estou na terra e parece-me que não estou; vivo, e, por vezes, passo as horas, como se não vivesse; sofro, e sinto passar-se o tempo, como se não sofresse. Não vivo, nunca vivi; não sofro, nunca sofri; não amo, nunca amei. É o que eu sinto. Meu Deus, meu Deus, como é que eu existo, e a parecer-me não existir? A minha vida é lodo, é lama presa, são maldades vergonhosas. Que trapo desfeito em lepra nojenta. É o que eu sou, é o que eu vejo em mim, é a vida que vive e reina em todo o meu ser. Mas tenho sede, sede de pureza, sede de graça, sede de amor, sede das almas. Tenho tantas ânsias de possuir a Jesus, de enlouquecer por Ele, que, fitando o Seu divino Coração, digo-Lhe: deixai-me, Jesus, entrar nessa chaga divina, nesse Coração de amor; quero esconder-me, desaparecer, derreter nesse fogo, como gelo que derrete com o sol e desaparece escondido na terra. Dai-me amor, Jesus; escondei-me, não quero aparecer no mundo. Toda a terra Vos dá louvor, Jesus; e eu nada Vos dou. Quando chegará o dia que eu Vos possa louvar e amar eternamente e em Vós saciar todos estes desejos e ânsias que me consomem? Sinto-me morrer, meu Jesus, por não Vos amar, por nada ter que Vos dar e por não Vos salvar as almas. Vede até onde chega o meu desfalecimento.

A noite de sábado para domingo do Divino Espírito Santo foi noite de tormento, de penoso martírio para mim. Ainda cedo, cerca das dez horas, vi à minha frente uns grandes arcos guarnecidos de medonhas serpentes; eram elas que formavam esses arcos, pois outra coisa eu não via; eram elas que os guarneciam, pendentes para um lado e para o outro, uma e outra cabeça, uma e outra cauda. As cabeças tinham os olhos vivíssimos, medonhos, cheios de malícia. Até aqui não me assustei. Passado algum tempo, sentia essas serpentes, junto de mim; parecia-me ter a cama cheia. Ouvia o seu rastejar, como se fossem pelo chão, as suas grandes escamas pegavam-me na roupa, como grandes farpas. Queria desviar-me delas, e não podia. Tinha medo, mais que medo, grande pavor. Queria luz, queria chamar a minha irmã, mas não o conseguia. Não sei se sim se não, mas não me recordo de chamar por Jesus nem pela querida Mãezinha. Juntaram-se a estas uns bichos pequenos que eu desconhecia, mas eram assustadores. Não tinha lugar na minha cama que não estivesse ocupado pelas serpentes. Senti no meu corpo uma dor tão aguda, pareceu-me que fui por uma mordida; senti que esta mordedura me envenenou toda; o veneno espalhou-se em todo o meu ser, repentinamente. Disse para mim: vou morrer já, morro envenenada; esperava a morte. De um momento para o outro, senti uma força, uma coragem, tentei esmagar uma que passava ao meu lado; calquei-a; na minha mão direita, tinha como que um ferro agudo, como se fosse uma lança. Esforcei-me por trespassar com esse ferro a cabeça da serpente. Trespassei-a, calquei-a, mas ela ficou com vida; pode retirar-se de mim. Quando esta desapareceu, já todas as outras tinham desaparecido. Eu não morri, mas todo aquele veneno ficou em comigo; e tal veneno é que tudo pode envenenar.

Passaram-se uns dias e noites sem que o demónio viesse com os seus ataques atormentar-me, embora, por vezes, tentasse assaltar-me. Mas sempre veio com três assaltos seguidos. Não sei como ele se fez senhor de todos os meus sentidos; olhos, ouvidos, tacto, sentidos. O meu coração era dele; era dele todo o meu ser. Principiaram os convites para o mal, as maldades, por fim a luta. Pude dizer a Jesus e à Mãezinha que me valessem, que não queria pecar, que era a Sua vítima. Não pude benzer-me, nem pegar, para as mãos no meu crucifixo. Parecia-me que ele conseguia de mim quanto queria e, de um combate para o outro, eu ficava presa a ele, presa pela malícia, presa pela maldade. Compreendi alguma da sua malícia. Por mais esforço que fizesse para não ouvir o que ele me dizia, tinha que ouvir. As bagadas de suor corriam; o coração batia aflitivamente. Não podia libertar-se dele. A voz de Jesus e a um sinal de retirada, ele fugiu. Jesus dizia: aparta-te, maldito, para o lugar que tu escolheste; já basta; deixa-a, que é a minha vítima. Fiquei libertada e pude tomar a minha posição. Mas ele, ainda ao longe, tentava seduzir-me e prender-me novamente a ele. Fiquei na dor e no receio de ter pecado. Só depois de Jesus ter vindo ao meu coração, sosseguei mais. Ele deu-me a Sua doce paz.

Ontem, perto do cair da tarde, vi dois rostos unidos: o de Jesus e o de Judas, que deu o beijo traidor em Jesus. Vi estes rostos, e eles estavam unidos ao meu. Foi tal a amargura que senti com aquela visão. Um rosto tão belo e tão puro e outro tão cruel e parecido com Satanás, que me levou ao Horto, no qual principiei a ver e a sentir Jesus, ora de uma forma, ora de outra. Quando Ele mais precisava dos Apóstolos, os seus amigos, companheiros de tanto tempo, menos os tinha, maior era a sua despreocupação; dormiam sossegados, a bom dormir. Jesus sofria com este afastamento, mas estava contente por eles dormirem. Prostrado por terra, em agonia, banhado em sangue, levanta-se depois. E eu sentia-O na minha alma, gravado bem profundamente, os Seus cabelos ensopados e as gotas do Seu divino sangue a correrem ainda mais, muito mais. Sentia os Seus divinos olhos abertos, levantados ao Céu. E em meu coração sentia os Seus lábios a repetirem, uma e outra vez: Pai, Pai, Pai, afasta-Me este cálice, se é possível; mas faça-se a Tua vontade; Eu quero morrer para dar a vida. Nestes momentos Jesus tinha a formosura de Jesus. A Sua calma estava jubilosa de tanto sofrer. Que alegria a de Jesus, por dar a vida por nós! Veio Judas de encontro ao Horto, ali beijou o rosto inocente, e, logo, todos os soldados caíram por terra. Jesus, entregue aos seus maus-tratos, mais ainda do que até ali, se viu dos seus amigos abandonado; fugiram, deixaram-No sozinho.

Hoje, pela manhã, caminhei para o Calvário. Por mais que eu queria desviar os sofrimentos de Jesus do meu pensamento, não por não querer pensar neles, mas sim para me livrar de ilusões, prende-se a eles o meu coração; desvia-se o espírito, mas o coração cola-se, a alma tudo sente. Caminhei com O meu Jesus; parecia-me caminhar, a passos de gigante. No meu desfalecimento, o Calvário não chegava, mas vinham-me, de encontro ao peito, todos os sofrimentos dele; feriam-me o coração. Quase sem vida cheguei ao cimo. Pregada na cruz, ondas de sofrimentos, vindas de mares e mares sem fim, levantavam-se sobre a cruz. Jesus, numa sede insaciável, bebia incessantemente, e, como num eterno abraço, as estreitava. Com que doçura Ele o fazia, sabia e via muito bem que Sua morte dava a vida; que a Sua dor era um maná, o bálsamo fecundo, a vida das almas. A esta bondade e amor de Jesus, veio levantar-se o mundo em grande revolta e ódio; parecia cair sobre a cruz uma chuva de instrumentos, que dilaceravam os restos das carnes de Jesus. Era o mundo lodacento, apodrecido, a atirar contra o sol mais brilhante a sua podridão, para encobrir seus raios. Eram estes os sentimentos da minha alma. Que sentimentos tão profundos! Jesus, ao ver que o mundo desperdiçava o Seu sangue divino e a tantos não aproveitava a Sua morte, agonizou, e eu com Ele. Depressa voltou novamente a dizer-me:

― Minha filha, esposa querida, coração do Meu coração, luz dos Meus divinos olhos, vem saciar-te, vem ao amor, vem receber vida; recebe para ires espalhá-lo. Consola-Me, acode às almas; as tíbias arrefecem, gelam cada vez mais, os pecadores fogem-Me. Acode-lhes, pede-lhes que escutem a voz de Jesus, que atendam ao Seu chamamento. Tem dó de Mim, vê a Minha agonia. Dá-Me dor, dá-Me dor, a tua dor é de salvação.

― Ó meu Jesus, sofro tanto pelas almas e elas gelam, e os pecadores fogem-Vos? De que vales então os meus sofrimentos? Eu quero sofrer tudo, mas não Vos quero ver sofrer, quero sofrer tudo, mas quero salvá-las; e nada faço, e nada faço, meu Jesus.

― Ai do mundo sem ti, ai do mundo sem o teu martírio! O teu sofrimento vence o coração de Deus; o teu martírio é de redenção. Eu farei que tenhas todo o poder sobre as almas. Que maravilhas, que grandes transformações Eu por ti opero nelas! Que grandes prodígios, depois da tua morte! Tens todo o poder sobre elas, e poderosa és sobre os demónios. A visão que te dei das serpentes, foi para dar luz; estudem-na bem para bem a compreenderem. Escolhi a festa do Divino Espírito Santo; deixem-se iluminar pela sua luz. Os arcos levantados eram as torres maliciosas de Satanás. Ele envenenou tudo, a malícia subiu ao seu auge. As arcadas eram arcadas sedutoras. Tu não foste pela serpente envenenada; ela não te mordeu; foste apenas vítima. Não te disse Eu já há muito tempo que, à semelhança de Minha Bendita Mãe, serias poderosa sobre os demónios. Era um Anjo, à semelhança de outro anjo, a combater a serpente maligna. Uma virgem, à semelhança doutra virgem, Minha Mãe Santíssima, a calcá-la, a aniquilá-la. Ela gemia sobre o teu poder; mas sua vida continua, o veneno continua a envenenar e continuará sempre até ao fim. É o retrato do paraíso; luta e vencerás; combate e nada temas. Coragem, cofre riquíssimo, mar imenso das maravilhas de Jesus.

― Mas Jesus, tenho tanto medo do demónio e receio tanto enganar-me! Sou a Vossa escrava, confio na Vossa misericórdia.

― Não temas o maldito, Minha filha; ele não vence, nada poderá contra ti; tu não Me ofendes. O segundo ataque que te pedi, foi a reparação da família. Que crimes tão grandes se comentem entre os esposos! Confia em Mim; tu não te enganas. O teu sofrimento, mesmo quando estás em colóquios comigo, sou Eu que o permito; são colóquios dolorosos, é maior a reparação que Me dás, e o proveito é para as almas. Para veres que não te enganas, retira-te agora de Mim, deixa-Me ficar sozinho.

― Não posso, Jesus; estou presa a Vós, deixai-me então que eu vá.

― Compreendes então, filha querida, que não te enganas, que estás na verdade, que estás comigo?

― Sim, Jesus; agora compreendo, não tenho dúvidas. Não sei que luz e fogo é este; sinto o meu coração arder.

― É a luz do Divino Espírito Santo, é o fogo do Meu divino amor. Enche-te, toma conforto; e recebe juntamente a tua vida, a gotas do Meu Divino Sangue.

Jesus fez outra vez do Seu Coração uma canequinha, pela qual deixou cair no meu a gotinha do Seu Sangue divino; colocou-a novamente dentro do Seu Santíssimo peito, cerrou-o, cerrou o meu e disse-me:

― A cruz espera-te; vai para ela, abraça-a, beija-a, é a cruz da redenção. A tua dor, o teu amor salva as almas. A tua dor não ma negues. Vai para o mundo com o teu martírio, leva a minha graça, leva o meu divino amor. Semeia, semeia com canseira, semeia com o teu sorriso.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sim, eu vou, mas fico convosco; eu vou, mas vinde comigo, sede a minha força.

 


 

 

 


 

 

 

Junho

6 de Junho de 1947 - Sexta-feira

Não posso estar aqui; não vivo, não sei viver. Tenho medo do mundo; que horror ele me causa; não sei se é ele que me crava tantos punhais; não digo bem, sinto-me a ser o mundo e sou eu própria a cravá-los, a assassinar-me a mim mesma!

Por vezes, a minha alma vê Jesus, feito enfermeiro, a querer entrar a este mundo, que sou eu mesma. Rodeia, rodeia uma e outra vez este monstro mundial, para curar-lhe as chagas de entro e de fora. Jesus anda cheio de amor e doçura, mas não tem estrada. Esta rocha dura não quer ouvir o Seu convite de ternura, não quer deixar-se curar. Que pena eu tenho não consentir que Jesus seja o meu enfermeiro! Ele quer acariciar-me, e eu não deixo, revolto-me contra Ele, obrigo-O a afastar-se de mim. Apesar de ser eu que O não quero, nem quero a Suas bondades, ternuras e carinhos, a alma chora por não O querer, por não lhe dar entrada, por não O amar. Que pena eu tenho de Jesus! Sofro ao mesmo tempo com Ele. Sou o mundo e sou Jesus; peco e quero pecar; amo e quero amar; e este amor é louco, não tem limites, ama e não olha a quem; o que quer é ser aceite. Se este amor fosse eu, e minhas não fossem as maldades! Mas ai pobre de mim! O amor é de Jesus, as maldades são minhas. Abracei-me à minha cegueira com tal afecto, com tal amor, que não mais a largarei; ela só me causa sofrimento, só me mostra que sou lodo e lama, mas eu quero e neste estreito abraço mais me vou mergulhando nela. O que é bom, o que é de Jesus, não aparece nas minhas medonhas trevas. Mas o que posso eu esperar, o que posso eu ver, se nada há em mim de bom, nada tenho de encantador que a mim pertença. Sou miséria, só miséria; ó Jesus, compadecei-Vos de mim! Tenho recebido, nestes dias algumas, algumas graças, alguns mimos do Céu, que eu não mereço. Agradeço-as a Jesus e à querida Mãezinha, mas este meu agradecimento não chega.

Por não chegar o meu agradecimento e por temer ao máximo estes mimos, não chego a gozar da alegria e consolação que eles me possam dar. Bendito seja o Senhor. Tudo para Vós, meu Jesus. Estou a recordar, passo por passo, tudo o que se passou, dias antes da minha partida para a Foz. A coragem que pedia a Jesus e à Mãezinha, a confiança que neles depositei no meio de tanta amargura. Quatro anos são passados; nada esqueci, todos esses sofrimentos parecem ser de hoje. Meu Jesus, sou a Vossa vítima.

Sinto em mim o ódio do demónio; ele quer matar-me, a fogo e a espada. Ele vê-se agora forçado a deixar o trono do meu coração; teima, faz violência para não sair. Ao ver que não tem remédio senão retirar-se, odeia-me, uiva desesperado. Sinto os seus rancores, ouço o seu uivar.

Na tarde de ontem, senti em mim um mundo de bronze, o qual tinha de ser regado com sangue de Jesus. Fui para a ceia com Ele e com os Apóstolos. Vi novamente a bênção do pão e do vinho que veio a ser o Divino Corpo e Sangue de Jesus. Encantou-me o seu Santíssimo Rosto no momento da bênção, a arder de amor, todo inflamado em fogo, de olhos fitos no Céu. Todos comungaram, até mesmo Judas, que logo ficou como um condenado do inferno, tal era o seu desespero. E quase logo saiu com a saca do dinheiro para O ir vender. Vi o discípulo amado, inclinado sobre o peito de Jesus e sentia os seus corações a palpitar de amor, um pelo outro. Se eu soubesse corresponder ao amor de Jesus e amar como aquele discípulo amado. Seguiu-se depois a despedida de Jesus da Bendita Mãezinha; foi a despedida mais dolorosa. Ficaram esmagados de dor os Seus Santíssimos corações. Foi neste esmagamento, nesta amargura que com Jesus segui para o Horto; com Ele fui lá ainda mais esmagada com a montanha do Calvário e a cruz que sobre nós veio cair. Fui espremida, suei sangue e assim segui para a prisão.

Hoje, cedinho ainda, lá me foram buscar. Levaram-me sem piedade, e logo, com furor rancoroso, me açoitaram e coroaram de espinhos. Com o rosto coberto de escarros assim segui ao Calvário; aqui e além caía, aqui e além, parecia morrer. Novas descargas de açoites, em viagem tão penosa, caíram sobre mim. Cheguei ao cimo do Calvário com todo o desfalecimento. Fui crucificada, e, ao ser a cruz voltada para revirar os cravos, foi meu rosto no solo muito ferido, e uma golfada de sangue me veio aos lábios. Custa-me tanto falar assim! Foi Jesus, não fui eu, que assim foi ferido; mas não sei exprimir-me doutra forma. Levantada ao alto da cruz, senti que Jesus estendeu os seus olhares divinos pelo Calvário, por toda a humanidade. Com esta visão tremi e senti o corpo gelar; não eram os meus que viam, eram os de Jesus, mas com Ele em mim tudo vi e senti. A vista de tanta ingratidão fez com que Jesus levantasse para o Pai os Seus olhares divinos, cheios de compaixão e pedir perdão para os que O feriam; não pediu vingança, desculpou-os. Ficou em extrema agonia e eu com Ele. Quando Jesus expirou eu senti morrer o meu corpo e sentia que uma vida estava separada de mim, mas não me pertencia.

Estive um pedaço sem Jesus me falar; demorou a chegar, ou melhor, a fazer que eu O sentisse e ouvisse. Quando Lhe aprouve, disse-me:

― Minha filha, Minha filha, Minha filha, demorei a chegar, venho desfalecido; fui maltratado, quero refugiar-me. Dás-me entrada no teu coração?

Vi que Jesus vinha como se não pudesse segurar-se, banhado em suor, a escorrer sangue e sem nenhuma beleza. Ao vê-Lo assim exclamei:

― Ó meu Jesus, em que estado Vós vindes! Entrai no meu pobre coração; esta morada não digna de Vos receber, mas já que assim o quereis, entrai e descansai.

― Eu sou a Vossa filha mais pobre e miserável, mas quero cuidar de Vós, quero limpar-Vos as lágrimas e os suores e curar-Vos essas feridas; quero curar-Vos e consolar-Vos, e não sei como. Sou a Vossa vítima. Não Vos digo que aceiteis que eu Vos cure com o meu amor, com as minhas ânsias.

E, com Jesus inclinado sobre o meu peito, fiquei como que a curá-Lo, e a limpar-Lhe o suor e as lágrimas, porque soluçava profundamente. Fiquei como que não soubesse o que mais fazer nem dizer a Jesus, tal era a minha compaixão. De repente vi-O curado, alegre e formoso.

― Alegraste-Me, consolaste-Me, minha filha, já não estou ferido, já Me sinto bem. Sabes quem assim Me maltratou? Foram os sacerdotes, foram os sacerdotes. Obrigaram-Me a descer do Céu à terra, às suas indignas mãos para Me crucificarem em seus sujos corações. Juntaram os seus crimes ao de toda a humanidade ingrata. Se não fossem os teus sofrimentos para quantos já se lhes tinha aberto o inferno e já estavam condenados. Coragem, confia em mim. Dá-Me dor, toda a dor, e não digas que os teus sofrimentos nada valem; valem tudo para as suas almas. Dás-Me tudo que te pedir? Dás-Me toda a dor que te exijo?

― Tudo, tudo, meu Jesus; nada Vos nego. Só Vos peço a graça e a força divina.

― São para o mundo, filha querida; o meu divino coração é amor, só amor, quer abrasá-lo, quer queimá-lo, quer salvá-lo. E é por ti que Eu o abraço, que lhe dou esse amor; e é de ti que Eu Me sirvo para o salvar. Pede, pede oração, pede penitência; diz que é Jesus a pedi-la, diz que é Jesus que pede com urgência. Depressa, depressa, a empregarem-se os meios, a aplicar-se a medicina por Mim indicada. Abre o meu Divino Coração; és senhora dele, tens a chave, dá-lhes entrada. Abre-se o meu divino Coração cheio de amor e misericórdia, para o receber. E abre-se a abóbada do firmamento para sobre a terra culpada, descarregar Meu Pai, a Sua justiça divina. Que escolha. Meu Pai não pode ver-Me ofendido. O que espera o mundo! As nações preparam-se falsamente com armamentos e artes venenosas. Estão a enceleirarem-se, à semelhança da formiga. Acode-lhe, acode-lhe, dá-Me a tua dor. E, com mais vida e coragem ma poderes dar, recebe a gota do Meu Divino Sangue, não mais deixarei de ta dar. Recebe-a por um tubo, formado do meu amor, que será para o teu coração fogo divino, uma transfusão de amor.

O tubo era cor de fogo, a gotinha de Sangue de Jesus caiu no meu coração e nele em todo o peito desfez-se aquele tubo como se fosse uma nuvem. Fiquei a arder e mergulhada naquele fogo doirado. Naqueles momentos tinha a minha alma toda a luz, Jesus não deixou o coração dilatar-se, acariciou-me e deu-me no rosto um ósculo divino.

― Vai sorridente para a tua cruz, vai espalhar este amor, vai infundi-lo nos corações. Tu és um portento de graças e maravilhas do Senhor. És e serás sempre a honra e a glória de Portugal, a luz e a salvação de todo o mundo. Confia, confia. Coragem, coragem.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

7 de Junho de 1947 - Primeiro sábado

Estou sempre com medo do demónio; temo ceder às suas malditas seduções e temo ofender Jesus. Ele continua desesperado contra mim; ouço os seus uivos, sinto o seu ódio. Se ele pudesse derrotar-me, onde estaria eu. Queria levar a minha vida a praticar o bem, a fazer bem a todos. A todos queria consolar e confortar; a todos queria amar e levar comigo para o Céu. Não sei o que sinto; não é o meu coração que anseia isto; não é o meu coração que ama e a todos quer salvar. Que ternura eu sinto, ternura que não é minha! Foi nestas ânsias dolorosas de querer amar e não amar, de querer fazer bem e não fazer, de querer salvar e não salvar, que eu recebi o meu Jesus. Ele bem depressa transformou tudo, serenou-me, deu-me luz e acendeu mais fogo em meu coração, avivando o que já tinha.

― Minha filha, minha filha, hei-de abrasar-te, hei-de queimar-te e consumir-te no Meu divino amor. Tu amas-Me, tu amas-Me e dás às almas o Meu amor divino; criei-te para elas, para as salvares. São tantas a ofenderem-Me, mesmo aquelas consagradas a Mim. Custa tanto ser maltratado por aqueles que se dizem Meus amigos! Como está o mundo! Ai dele sem este calvário! Coloquei-te aqui, crucificada nesta cruz, para que, com esta crucifixão contínua, por ti as almas recebessem as Minhas Divinas graças e amor, por ti elas fossem salvas.

― Ó meu Jesus, como eu sou pequenina, como me sinto envergonhada diante da Vossa divina presença. Queria esconder-me, desaparecer de todos. Quem sou eu e quem sois Vós? Que vergonha terdes-me escolhido para as Vossas coisas, para a missão das almas. Não sei o que fazer, não sei o que dizer; sou a Vossa vítima.

― É assim pequenina e no escondimento, sem estares escondida, que Eu te quero. É nesta pequenez e escondimento que se encobrem as Minhas maravilhas. Minha filha, aqui tens o Meu divino coração e O da Minha bendita Mãe; quero uni-los ao teu; são teus. Os vossos corações são o depósito de todas as graças, de todas as riquezas e amor divino; o teu é o canal por onde elas passam às almas. Todo este amor, todas estas graças se irradiam em ti; transmite-as, infunde nos corações este amor, junta a ele a tua dor, salva, salva o mundo. Consola-Me, consola a Minha Bendita Mãe Oh! como Ela está triste!

― Como hei-de eu consolar o meu Jesus, como hei-de consolar a minha querida Mãezinha! Como pode a escrava consolar o seu Senhor! Eu prometo, Jesus, fazer actos de amor e reparação quantos me forem possíveis, para assim ver a alegria em Vossos Santíssimos Corações.

Que confusão a minha quando recebi das mãos de Jesus os Seus Corações a arder de amor e no mesmo instante o meu juntar-se a Eles. Estavam como a avezinhas no ninho, de biquinhos abertos, sequiosas e famintas. Fiquei com os corações na minha mão, dentro duma taça doirada.

― Diz, Minha filha ao teu Paizinho que todo este amor lhe pertence. Para grande mestre das grandes almas, ele terá sempre para tudo toda a luz do Divino Espírito Santo; e em tudo quanto fizer, não erra; será sempre iluminado e guiado por Ele. Dá-lhe o meu Divino Coração e O da Minha Bendita Mãe, cheios de amor, coragem e confiança. Diz-lhe que estou com ele, e não lhe falto e que é assim que Eu trato as almas que escolho inteiramente para Mim. Diz ao teu médico (que o fiz procurador da Minha divina causa. Que continue a desempenhar a sua missão. Estou contente com ele. Eu encaminho as coisas, guio seus passos, para ele em tudo fazer a Minha divina vontade. Dá-lhe todo o Meu amor com o da Minha Mãe Bendita, na certeza que terá sempre a Nossa protecção em todas as coisas, para ele e para todos os que mais ligados estão por laços de amor no seu coração. Diz-lhe que a prova de quanto o amo está em pô-lo à frente de cuidar daquele que tem na terra a mais alta e sublime missão.) O mesmo digo para aqueles que com ele trabalham, te rodeiam, amparam e cuidam de ti: isto é, para todos aqueles a quem tu mais amas e mais intimamente tens em teu coração. O sinal mais certo de que Jesus e Maria muito as amam é tu amá-los também. Vem, Minha Mãe Bendita, consolar com o teu carinho a nossa filhinha e desabafar com ela as tuas mágoas.

Veio a Mãezinha, na mão direita trazia o Seu Santíssimo Coração e na esquerda o manto; entregou-me tudo e disse-me:

― Minha filha, à semelhança do meu divino Filho, entrego-te o Meu Santíssimo Coração com a chave; abre e fecha dentro dele as almas, para que elas do meu passem ao de Jesus. Eu estou triste com os crimes da humanidade. Há tanta imodéstia! O pecado da carne leva tantas almas às portas do inferno! Há tantas infidelidades nos casados! Que desonestidade! E contra mim são proferidas tantas blasfémias! Negam a Minha Virgindade, negam a Minha dignidade de Mãe de Deus. Promete consolar-Me! Pega o meu manto, cobre com ele o mundo, salva-o que é Meu filho.

― Prometo, Mãezinha, com a graça de Jesus fazer tudo para consolar-Vos e reparar tão grandes crimes.

Veio Jesus, e eu fiquei entre os dois. A Mãezinha beijou-me, abraçou-me, acariciou-me com Jesus. Os nossos rostos e lábios estavam unidos, como unidos tinham estado os nossos corações. Recebi força, recebi amor. Jesus acrescentou: tudo isto farei que transpareça em ti.

― Vai, pomba branca; vai alma fiel, vai tesoureira das riquezas divinas; vai distribuir pelo mundo, vai semear as flores do jardim celeste, nascidas e florescentes em ti. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus; obrigada Mãezinha.

13 de Junho de 1947 - Sexta-feira

A minha vida é morte; continuo a viver a vida dos mortos. Que imensa sepultura, em que podridão estou sepultada; causa-me nojo, causa-me horror. Sinto-me a ser comida pelos bichos escondidos nesta podridão; sinto-os a mexer e remexer nesta imundice. E não tenho outra vida a não ser esta, nem outra luz a não serem as trevas do meu espírito. Triste cegueira que não me deixa ver senão horrores nojentos, apodrecidos. E eu tanto a amo, abracei-a tanto e sinto não poder estar neste mundo sem ela. Quanto mais mergulho, mais me quero mergulhar. Quantas mais trevas, mais trevas anseio. Ó amor do meu Jesus, não vivo, não conheço, não vejo; as coisas do Senhor não mas mostram a minha cegueira, as minhas trevas. Não posso pensar que não amo a Jesus e tanto anseio amá-Lo e fazê-Lo amado pelas criaturas. Quero subir para Ele e caio. Não me revisto d’Ele nem das Suas coisas; nada compreendo do que é do Céu. Que pobre e ignorante que eu sou! É por isso que eu sofro e quase me chego a persuadir que a minha vida, de tudo o que diz respeito às coisas do Senhor é uma ilusão minha; não digo intrujice porque não quero enganar ninguém. Como pode Jesus descer do mais alto ao mais baixo? Bendito Ele seja.

O demónio tem lutado para me levar a praticar tantos males; só com a graça de Jesus poderei resistir. Sinto-me como se fosse por ele arrastada para a maldade, para os vícios. Parece-me que estou revestida dele e de tudo o que a ele pertence. Não tive os combates apesar de os esperar, porque a grande tormenta que ele me causava me levava a crer que ele viesse. Mas nem por isso deixei de sofrer, ao sentir-me por ele arrastada, seduzida para tantas coisas fracas e parece-me que estou dele revestida e mergulhada em todos os tormentos do inferno. Se ao menos com os meus sofrimentos evitasse o pecado! Se com tudo isto, eu amasse a Jesus e O visse em todos os corações amado! Tenho vivido, nestes dias, sem procurar viver, a minha vida de há quatro anos na Foz. Como eu recordo todos os sofrimentos, gestos e palavras. Está tudo tão gravado em mim e tão profundamente, que jamais se apagará. Tudo isto por amor do meu Jesus e às almas; e nem mesmo assim O amo e as salvo. Meu Jesus, que pena eu tenho de não Vos pertencer inteiramente. Lembro com profunda dor e vivas saudades o Santo Sacrifício da Missa. Já aos anos que eu a não tenho no meu quartinho! Não voltarei a ter este mimo do Céu? Estou pronta, Jesus, para em tudo ser a Vossa vítima. O meu coração, o meu espírito voa a Roma; acompanha os que já partiram para lá, mas já está junto de Sua Santidade para implorar e receber dele aquilo que não sabe, mas que anseia e sabe que só dele virá. Pobre de mim! Tudo anelo e nada possuo a não ser miséria.

Ontem, logo que caiu a tarde, senti como se me tirassem um vestido mundial, que me tornou o escândalo de toda a gente, tal era a podridão, de que ele era feito. E assim vestida vergonhosamente, segui e cheguei ao Horto. Ali, desceu o Céu, a esmagar-me, e toda a humanidade a rasgarem-me e a arrancarem-me do corpo todos os nervos e veias. O que ali sofreu Jesus, dentro em meu pobre corpo, que tinha o Horto, o Calvário, a cruz e a morte! Ao receber o beijo de Judas vi, não o meu rosto, mas o de Jesus e o dele muito unidos, e fiquei a sentir, por muito tempo, que aquele beijo, ingratidão e traição se iam repetir, através de todos os tempos. Oh! Como transbordou o cálice da amargura, enchido de sangue inocente.

Na manhã de hoje caí desfalecida ao pé da coluna; recebi a chuva de açoites, que sobre mim foi descarregada, e vi Jesus, dentro em mim, no mesmo sofrimento, de olhos fitos no Céu, em sinal de oração a Seu Eterno Pai. Fui coroada de agudíssimos espinhos; tomei a cruz, segui o Calvário; saiu-me ao encontro a Mãezinha. Que dor senti com o seu pranto e dor! As lágrimas que no Seu rosto corriam, corriam-me no coração. Em todo o percurso do Calvário não perdi mais a união com Ela. Eu não arrastava só a cruz, arrastava-A também a Ela, ou melhor, arrastava a Sua dor. Mais adiante veio a Verónica com todo o sentimento de amor limpar o rosto de Jesus gravado no seu. Jesus deixou-Lho imprimido como recompensa, ela apertou-o ao coração como o maior tesouro e na verdade o era. Se eu soubesse amar a Jesus como a Verónica O amou! Se eu assim O abraçasse para não mais O deixar! Ó meu Deus, ó meu Jesus, pobre de mim que nada sou e nada sei! Cheguei ao Calvário; caí ao pé da cruz, antes de nela ser crucificada, nova descarga de pancadas feriu e despedaçou mais o resto das minhas carnes. No alto da cruz não senti outra coisa a não ser Jesus com os Seus olhares divinos a ver todo o mundo, toda a ingratidão e com a vista do corpo fitar o firmamento a orar e a desculpar-nos a Seu Eterno Pai. Agonizou, expirou e eu com Ele. Tão depressa morri que logo vivi; foi Jesus que me deu a vida, chamou-me e disse-me:

― Vem, Minha filha, ao Meu amor, ao Meu divino Coração é o dia dele; vem gozar do Céu, vem receber amor. Eu quero-te pura, sem manchas; quero-te digna de Mim. Esforça-te, corrige-te, de todos os teus defeitos. Dizia-te até agora que precisava das tuas faltas para Me esconder; agora digo-te: não as quero para mais Eu em ti aparecer. Quero que tudo o que é Meu em ti transpareça; quero que os teus olhares tenham a pureza dos Meus; quero que os teus lábios tenham o sorriso, a doçura dos Meus; quero que o teu coração tenha a ternura, a caridade e o amor do Meu; em suma: quero que em tudo Me imites, quero-te semelhante a Mim; quero que todo o teu corpo seja o Corpo de Jesus, um outro Cristo. És a nova redentora. Quero-te pura, pura com a Minha mesma pureza, quero-te digna de Mim, quero-te preparada para voares ao Céu. A dor e o Meu divino amor purifica-te; a dor e o Meu divino amor são de salvação para as almas. Vou ferir-te o coração; vai ser aberto pelo anjo S. Gabriel, para, depois, por essa abertura, por essa chaga trespassarem os raios do sol, os raios do Meu amor, para dele passarem ao mundo, passarem às almas. Antes disso, quero injectar-to de amor, quero preparar-to para receber o golpe. Em todo este tempo gozarás do Céu, gozarás do Paraíso.

Jesus, no mesmo instante, não sei com quê, regou-me o coração com uma chuva miudinha doirada; aquela chuva causticou-me e parecia-me tê-lo separado do corpo[1].

Ao meu lado direito estava a Mãezinha, à frente, Jesus, e, à esquerda, o Anjo com uma lança na mão. Por cima de nós e em nós desceu o Céu com todo o seu azul, guarnecido de Anjos; muito no cimo, um grande trono da Santíssima Trindade. Tudo era luz, gozo, doçura e amor. A vida do Céu! A vida das almas! Vivia-se ali, mergulhada naquele amor de gozo, parecido com uma nuvem ou fumo branco, que por si se sustenta e conserva no ar; era um nadar de doçura. A um sinal de Jesus, o Anjo levantou a lança, cravou-ma no coração; trespassou-mo, dum lado ao outro; não senti dor. No mesmo momento que ele retirou a lança, vieram do Coração de Jesus para o meu muitos raios de amor mais belos que ouro, mais brilhantes e encantadores do que os raios do sol ao nascer. Trespassaram-me todo o coração esses raios, e pareciam reflectir-se no mundo e nele se espalharem. É indizível o gozo e o fogo que eu senti. Disse-me, do lado, a Mãezinha:

― Minha filha, Minha filha, salva o mundo, salva os meus filhos, salva-os comigo, salva-os com Jesus. Coragem, muita coragem, Eu serei contigo! Já reflectiste que faço do teu quarto a Cova de Iria? Já reflectiste que, como em Fátima, aqui desço todos os meses, não falando nas vezes que, como hoje, venho a convite do Meu Filho? É para te dar conforto e encorajar. Recebe as minhas carícias.

Apresentou-me Jesus uma cruz, pôs-me sobre ela; por trás d’Ele estava outra, era a de Jesus.

― Minha filha, a alma, que sofre por amor, goza na cruz. Aqui a tens; é tua no Céu, é tua na terra. Em tudo te assemelhas a Mim. A Minha acompanhou-me do nascimento ao Calvário, e aqui a tenho resplandecente no Céu. Recebe a gota do Meu Divino Sangue. Recebe a vida, leva a vida, dá-a às almas. Não contes, filha querida, acudir-lhes aos corpos; o mundo não se regenera, não há emenda de vida, tem de ser punido, tem de cair sobre ele a justiça de Meu Pai. Mas prometo-te que a tua nobre missão será desempenhada com todo o brilho na terra e no Céu. Confia, confia; as almas por ti são salvas.

Recebi de Jesus o Seu Sangue Divino, que caiu do Seu Coração para o meu. Deixei de ver os Anjos, a Mãezinha, o Céu; ficou só Jesus. Disse-Lhe ainda com o coração a arder:

― Ó meu Jesus, eu não temo a cruz, temo a minha miséria. Com a Vossa graça divina suportarei todo o peso que me esmaga. O que eu não sei, meu Jesus, é como me hei-de tornar digna de Vós. Eu, Jesus, eu, meu amor, eu, a mais pobre e indigna das Vossas filhas temo e tremo.

― Coragem, esposa amada! És pequenina para seres grande; sentes-te horrorosa para seres formosíssima. Essa podridão é do mundo, não é tua. Coopera Comigo, Eu tornar-te-ei digna de Mim, farei que tenhas toda a graça e pureza, que de ti exijo. Vai contente e alegre, vai para a cruz.

― Obrigada, meu bom Jesus; dizei por mim um outro obrigada à querida Mãezinha. Eu vou para a cruz, só por Vosso amor e por amor às almas. Mas vou ainda confiada que hei-de vencer o Vosso Divino Coração e Vós vencereis o Vosso Eterno Pai, para que o mundo seja poupado à Sua justiça Divina.

Ai, meu Deus, o tempo passa, foge e eu sem virtudes, sem amor. Que pobreza a minha! Quando recordo o tempo, que passei neste colóquio, sinto-me mais forte. Oh, como Jesus é bom!

20 de Junho de 1947 - Sexta-feira

As minhas trevas aumentaram tanto, tanto, que sinto, como se me tirassem a luz da eternidade. Se lembro o purgatório, medito no Céu, tudo são trevas, tudo é cegueira. Ó meu Deus, até mesmo a luz do paraíso se apagou. O mesmo se dá com as ânsias de amar a Jesus. São tão fortes! Aumentam tanto! Assim como aumenta o sentimento de O não amar, de não conhecer o Seu divino amor e de O não fazer amado. Derreto-me em desejos, em ardentes ânsias de O conhecer, de O amar, de O possuir, e nada consigo. Ó Jesus, como tudo isto fere profundamente o meu coração e dilacera todo o corpo até o destruírem, como se fossem dentes de ferro! Tudo por Vosso amor, meu Jesus, e pelas almas. Aceitai como se, a cada momento, me oferecesse a Vós como vítima. Tanto queria ter que Vos dar, meu Jesus, e amar-Vos até à loucura! Mas, ai! Pobre de mim, que nada tenho, e tudo o que é Vosso se me apaga. Quanto eu sofro, quanto eu sofro! Por Jesus querer que eu me corrija dos meus defeitos e me torne digna Dele, eu não sou capaz de me emendar, de uma vez para sempre, e nunca, por mim me poderei tornar digna de Jesus. O que hei-de eu fazer, Senhor? O que posso eu esperar, a não ser confiar em Vós, que podeis fazer de mim um instrumento, digno de Vós manejardes. Quero esconder-me, quero fugir para onde nunca mais possa ser vista. Não quero saber do mundo nem de nada, que nele existe. Se houvesse um lugar, onde pudesse esconder-me, para só ter sobre mim os olhares de Jesus, para só Nele pensar, d’Ele falar e para Ele viver! Que medo tenho do mundo e das criaturas! A minha alma sente que de alguma coisa, a meu respeito, se vai tratar, que muito se tem falado e se vai falar. Ela está com isso apavorada. Que ao menos Jesus se sirva de tudo isto, para reparar tantas ofensas, feitas ao Seu Divino Coração e ao Coração Imaculado da querida Mãezinha. São tantos os espinhos que me ferem! Jesus de tudo se serve para me martirizar. Bendito Ele seja.

O demónio tem trabalhado com todo o interesse para levar-me ao mal. Como ele trabalha para a perdição das almas! Com as suas maldosas lições estava sempre a temer os seus assaltos. Passaram-se uns dias e noites só com as ameaças. Veio na madrugada, veio com todo o furor e maldade diabólica. Todo o meu corpo parecia ser demónio. Por serem graves as coisas, que ele me apresentou, entendo não devê-las explicar aqui. Ele vinha com lanças nas mãos; entendi que era para cravar no Coração Divino de Jesus. Ao segundo combate, interveio Jesus, obrigou-o a retirar-se, disse-lhe: afasta-te, maldito, já tenho da Minha vítima a reparação, que desejava. Estava cansada, em suores; o coração batia aflitivo. Por vezes tinha repetido a oferta de vítima, chamando por Jesus e pela Mãezinha, não com o fim de me virem falar, mas sim para me acudirem, para eu não pecar. Ai, como são dolorosos estes combates! O demónio fugiu; a dor ficou com o grande receio de ter pecado.

Na tarde de ontem, vi o Horto com toda a dor. Digo vi, mas foi a alma que sentiu e viu as oliveiras, que iam ser testemunhas de tanta agonia, e o lugar, e o solo que ia ser ensopado com o suor de sangue. Aquela visão deixou-me o coração a sangrar e o espírito em negras trevas. Ao anoitecer, senti o Judas com o seu rosto tão gravado em minha alma, parecia que estava ali retratado com o seu rosto desesperado, com olhares e cabelos aterradores. Ao terminar da ceia, senti como se a Mãezinha beijasse e abraçasse, pela última vez Jesus. Que doçura era a dela! Que triste foi a despedida! Oh! Como falavam um ao outro aqueles corações. Cheguei ao Horto, ali desceu sobre mim a justiça do Eterno Pai, como se fosse um fogo vingador. Tinha nas mãos o cálice, que com tal justiça transbordava fora. Veio um Anjo, em tamanho natural, e pôs-se ao lado de Jesus, que estava em mim, como que ampará-Lo. Fui presa com Jesus, e para esta prisão vieram tantos, tantos homens com paus; com seus escárnios e maus-tratos, nos acompanharam, à presença dos pontífices e à prisão! Quando Jesus estava já lá sozinho, eu sentia a Sua tristeza, enfraquecimentos e suores, que Lhe banhavam o corpo. Lá O deixei até hoje.

De manhãzinha, da prisão vi o Calvário e a cruz; segui para ele com ela. A meio do caminho, foi tão grande a queda e a descarga de açoites que sobre o meu corpo caíram! Foi tal a crueldade e o rancor com que fui arrastada pelas cordas a tão grande distância! E se eu fosse arrastada sozinha! Mas ia Jesus comigo. Que pena a minha! Crucificada na cruz, depois de muitos insultos e blasfémias, senti a esponja passar-me nos lábios e senti, antecipadamente, a lança, que abriu o lado e atravessou o Coração divino do meu Jesus. Ó dor, ó dor indizível! Depois de tudo isto, eu sentia Jesus como que a querer despregar os braços da cruz para abraçar o Calvário, abraçar o mundo, que assim O feria. Que doçura e amor saíam daquele coração divino aberto. As lágrimas da Mãezinha corriam dentro de mim. Nesta dor, neste mar de ingratidão expirei com Jesus. Ele não se apressou em vir ressuscitar-me. Ao dar-me a vida, disse-me:

― Minha filha, a cruz é sinal de predilecção; a cruz é selo dos Meus eleitos. Aqueles a quem mais amo, aqueles que escolhi para Mim, para serem grandes na terra e no Céu, embora deseje vê-los pequeninos a Meus divinos olhos, são os que mais dores, tristezas e amarguras recebem, enviadas por Mim. Assim é, Minha querida filha, porque muito te amo, porque te amo sobre todas as criaturas da terra, muito te faço sofrer. Amas sem igual, sofres sem igual. Todo aquele que quer e ama o sofrimento, quer e ama a Mim. Tu amas-Me; confia. Apago em ti as Minhas coisas, faço-te sentir que não Me amas, para mais Me ansiares, para mais Me possuíres. Se soubesses como Me alegro e consolo com as tuas ânsias de amor! Como prémio desta consolação e desempenho da tua missão sublime, tens o Meu divino amor com toda a abundância, possui-lo com a maior intensidade, que uma criatura humana pode possuí-lo; tens todas as Minhas graças, todas as Minhas riquezas, todas as maravilhas celestes. Dou-te o poder, Minha filha, dou-te esta promessa: podes a todos quantos te pedirem a fé, a graça e a conversão, dar o Meu divino amor; enfim tudo quanto for para a alma, podes, em Meu nome, dizer: tudo receberás; sim, Minha filha, por ti tudo lhes será dado. Criei-te para lhes dares a vida e a saúde das almas e não a dos corpos, não é essa a tua missão, mas isto não impede que Me peças a sua cura. Quantos por ti têm recebido a cura dos corpos e ainda receberão. Mas a das almas, a missão para que te criei, se tu soubesses, Minha querida, a transformação, as curas prodigiosas que neste Calvário, neste quartinho se tem operado! Coragem. A tua cruz dá o brilho às almas, é luz que irradia por esse mundo além. Dá-Me dor, dá-Me dor, Minha filha; se não fosse ela, oh! como Eu hoje já tinha sido ferido! A reparação que te pedi, foi pelos sacerdotes. Pedi-te a reparação para não precipitar alguns no inferno. Dá-Me dor, deixa que a tua cruz raie no mundo como raios de sol dourado. Nela vives, nela morrerás, e no Céu brilhará com todo o resplendor.

― Meu Jesus, sinto-me pequenina, dia a dia me afundo mais. Vede quanto eu sofro, ao ouvir-Vos dizer tantas coisas. Vede quanto eu sofro, por não me recomendar dos meus defeitos, como Vós desejais. E vejo, meu Jesus, que nunca por mim me poderei tornar digna de Vós. O que hei-de eu fazer, meu Senhor, senão pedir-Vos com toda a alma e coração para que ponhais em mim toda a Vossa dignidade e depois dizer-Vos: descei, Jesus, já sou digna de Vós com o que é Vosso. Tende dó de mim ó meu bom Jesus; não sei o que hei-de fazer, não tenho forças para mais.

― Que grande meio Eu consegui, Minha querida filha, para te fazer sofrer. Nada temas, tem coragem! É verdade que te quero pura, pura só para MIM, para Eu mais poder aparecer, mas Eu encarrego-Me de suprir o que te falta; não te deixo resvalar. E tu, nessa ansiedade de em todas as tuas palavras, acções e de em todo o teu viver, seres pura, vais subindo, subindo, mais te aproximas, mais te unes a Mim. Fala, Minha filha, fala da vida interior, da vida íntima comigo, dá-a às almas, ensina-lhes esta vida íntima que tanto Me agrada, de que tu só sabes viver; é a gota do Meu Divino Sangue. Vem, deixa-Me unir o Meu Divino Coração ao teu.

Jesus tomou o Seu divino Coração, colocou-O sobre o meu, a gotinha do Seu preciosíssimo sangue caiu, mas Jesus não levantou do meu o Seu divino Coração; ficaram unidos o Coração de Jesus e o meu, como se fosse um só coração e Jesus continuou:

― Vais ficar por algum tempo nesta união; recebe de Mim toda a vida e conforto, bebe, bebe, saboreia este amor, sacia a tua sede; vai repartir, deixa-a transparecer a todos quantos de ti se aproximam, infunda-a nas almas, reparte, semeia. Fala-lhes da Minha bendita Mãe, do Seu amor, da Sua protecção, do quanto é necessário reparar o Seu Santíssimo Coração. É com ela que tu salvas as almas; sim, só as almas; os corpos já não contes, Minha filha. O mundo, o mundo, que ingrato, que cruel; perde-se, está louco, está louco a ofender-Me. Vai depressa para a tua cruz, para a cruz, que te espera, que é cruz de salvação. Dá-Me dor, dá-Me dor, dá-Me dor para morreres de amor.

― Dou-Vos dor, dou, meu Jesus; dou-Vos tudo quanto Vos aprouver pedir-me. Vou para a minha cruz, e vou contente; vou, mas vou ainda confiada. Quero as almas, quero as almas, mas, se puder ser também os corpos. Ó meu Jesus, sou a Vossa vítima. Sede comigo, e aceitai o meu eterno obrigada. Fiquei por muito tempo a sentir o Coração divino de Jesus, unido ao meu, e sentia-me mais forte.

27 de Junho de 1947 - Sexta-feira

Tenho que fugir, tenho que esconder-me, e não sei onde; não posso estar aqui. Que horror me causa o mundo com as suas coisas, com os seus habitantes! Para onde fugir, meu Jesus? Onde poderei esconde-me, a não ser no Vosso divino Coração? Mas ai, pobre de mim, não tenho força, não sou digna de ser recebida por Vós. Estou cansadíssima, morro com ânsias de amar o meu Jesus. Quanto mais anseio, quanto mais peço, menos compreendo, menos conheço o Seu Divino amor. Sinto-me a morrer faminta e sequiosa; não encontro o que anseio; nem eu mesma sei o que a minha alma deseja. Quero levantar-me e voar, voar ao alto, ir ao encontro da fonte em que anseio beber. As minhas trevas que eu amo e abracei, estão em indizível aumento. Este voo, que eu anelei, vai, de momento a momento, ao Seu encontro. Tudo são trevas debaixo da terra, na terra, no ar, no firmamento. A minha alma ainda continua a alguma coisa querer de Roma. O meu coração está unido, preso por assim dizer ao Santo Padre; espera e confia que dele tem muito que receber.

Foi-me dado o gosto, por pessoa muito querida, de eu ouvir pela rádio a canonização de S. João de Brito. Ouvi Sua Santidade falar; sentia, tanto ao vivo, a presença de Nosso Senhor nele, que me parecia ser a voz do próprio Jesus. Assisti à Santa Missa; ai, nem sei dizer o meu contentamento. Há quase seis anos que não tinha tido essa dita. Pedi tantas coisas a Jesus! Pedi-Lhe tudo o que era d’Ele para os que me são mais queridos, para a minha família, para todos os que às minhas pobres orações se recomendam, e por fim para o mundo inteiro. Ao ouvir o que se passava em Roma, lembrava-me do Céu, sim do Céu que em nada se pode comparar com as coisas da terra. Oh! Como eu acompanhava tudo isto! Com o sorriso nos lábios, satisfeita pelo que ouvia, mas na dor mais profunda que se pode imaginar; o coração estava triturado e alma acompanhava, como que a chorar, o meu sorriso. Não se passou um momento sem ele sentir que ela chorava. As lágrimas da alma, a dor do coração eram imensamente maiores do que o contentamento e o sorriso dos lábios. Este contentamento e sorriso eram como que coisas humanas, que apesar de serem em mim, pareciam não me pertencerem. Por tudo louvei o Senhor e bendisse a minha cruz. Quero deixá-Lo desfazer-me em dor, para consolá-Lo e salvar-Lhe as almas. O que hei-de fazer, meu Jesus? O que daria eu por uma só alma! Sou pobre, dai-me a Vossa riqueza para com ela Vo-las comprar. Estou insatisfeita, sem ter que dar e sem saber falar para Jesus. Estou cheia de medo, sem saber de quem e porquê. Sinto que nova descarga de sofrimentos vem sobre mim; abro os braços para receber novos cravos; fito os olhos em Jesus para Dele receber conforto e para que Ele seja em mim o sinal d aceitação a tudo.

Ontem à tardinha, o meu coração revestiu-se doutro coração; este coração era mundial; estava nojento, negro de podridão; com ele ficou o meu escondido. O coração mundial cravava para dentro do seu muitas setas, muitas lanças. Principiou a minha agonia, sem nada dar a conhecer. Fui para a ceia e da ceia para o Horto. A caminho dele seguiam-me os Apóstolos, cansados pelas grandes maravilhas e coisas que tinham visto e ouvido de Jesus. A viagem foi silenciosa, mas, naquele silêncio, quantas coisas lhes dizia Jesus; como os amava e lhes falava naquele silêncio aquele divino Coração tão oprimido pela dor e também pelo cansaço! Por entre a escuridão das oliveiras, Jesus apressou o passo, foi para a gruta orar. Os apóstolos adormeceram. Sentia a aflição, o suor de Jesus, o palpitar do Seu divino Coração, espremido não sei por quem até dar sangue, que encheu até transbordar o cálice, que em Suas divinas mãos estava. Jesus ia a desfalecer; veio um Anjo amparar-Lhe o braço, que sustentava o cálice. Sentia a grande conformidade e aceitação de Jesus com a vontade do Seu Eterno Pai, e, nesse momento, os Seus divinos olhos estavam fitos no Céu; sentia-os na minha alma como dois sois ao raiar. A justiça divina caía, não sobre o coração podre, mundial, mas sim sobre o que por dentro estava, tão ferido pelo de fora. Fui cheia de maus-tratos para a prisão. Hoje, senti-me sempre com a cruz em todo o caminho do Calvário. Que escuridão; que desfalecimento; como eu ía oprimida pela cruz! Como o meu rosto foi ferido e o corpo pelas lajes arrastado; só perto da montanha me foi tirada a cruz, mas eu sentia-me como se sempre levasse o seu peso. Fui crucificada e levantada ao alto; nova chuva de sangue saiu das feridas dos espinhos, novamente profundas e alargadas. Não era a minha cabeça, era a cabeça sacrossanta de Jesus que eu sentia em mim. Esta dor veio tirar mais a vida do meu coração, já quase moribundo; para melhor me fazer compreender foi o coração divino de Jesus e não o meu. Sentia Jesus beber todo o sofrimento do Calvário tão sofregamente, que não levantou dele Seus divinos lábios; era a fonte de remissão e de salvação; queria bebê-la até ao fim. Que loucura de amor Jesus tem por nós! Com Ele enlouqueci, agonizei e expirei. Ele veio depressa; desceu como que numa nuvem que logo nela me absorveu. Jesus vinha resplandecente de glória, tudo eram raios de luz os quais logo penetraram todo o meu corpo.

― Minha filha, anjo de pureza, venho a ti, cheio de amor. Que grande reparação e consolação tenho tirado do teu sofrimento! Que beleza a tua alma; como ela se tem purificado! Com o teu esforço e desejo de emenda dos teus defeitos, como te tens tornado digna de Mim. Feliz a alma, ditosa a alma, que se deixa guiar, moldar e trabalhar pelo Artista divino. Como está rica! Eu trabalho e tu cooperas com o Meu trabalho. Escuta o que Eu te digo, Minha querida, esposa fiel, mensageira de Jesus. Venho hoje, na última sexta-feira do mês do Meu divino amor, dar-to com toda abundância. Ó maravilha, dou-to e faço o milagre de aguentares com ele. Daqui em diante, ocultarei mais as Minhas divinas palavras; será, como há tempos te prometi, um êxtase mais de amor. Mas, nem gozando deste amor, estarás sem dor. É um meio que Eu uso, filha querida, de esconder para ti as Minhas graças, as Minhas riquezas, as maravilhas prodigiosas, que opero em tua alma. Assim posso evitar qualquer falta da tua fraqueza, por mais leve que ela fosse; assim posso tirar para as almas grande proveito. Promete-lhes, promete-lhes, em Meu nome, a salvação, o perdão das suas culpas, a graça de não Me ofenderem; promete-lhes tudo o que é Meu, àqueles que o quiserem receber. Espalha, transmite, irradia todo esse amor, que hoje te dou. Criei-te para elas, por ti lhes dou tudo.

Quando Jesus disse que me dava todo o Seu divino amor, saíram das Suas divinas chagas e da Sua sacrossanta Cabeça, das feridas dos espinhos raios de fogo como raios de sol. Do Seu sagrado lado, da chaga do divino Coração vieram uns poucos de raios, juntos de encontro ao meu, vieram como setas que me feriram, e, ao mesmo tempo, abrasaram. Embebida naquele amor pareceu-me deixar; ao mesmo tempo que gozava, sofria; o coração ardia, todo o corpo parecia nadar em amor, mas a alma chorava e que dorida que ela estava. Meu Jesus, por que é que eu gozo e choro ao mesmo tempo? Pode mais a dor do que a alegria, por que é, meu Jesus?

― Minha filha, minha filha, quero que sofras no gozo por aqueles que nos prazeres se satisfazem e alegram. É sempre um meio de acudires às almas e de em ti esconder as Minhas maravilhas.

― Meu Jesus, a minha alma chora como chorava ao ouvir o que se passava em Roma. É sempre o mesmo fim que tendes em vista?

― Não, Minha filha, as lágrimas da tua alma serão um dia a alegria, a honra e a glória, não só de Roma, mas sim de todo o mundo e mais ainda de Portugal. Não virá longe esse dia; que grande triunfo no Céu! Dá, esposa Minha, tudo às almas, sofre por elas, salva-as.

― Meu Jesus, não quero fazer-Vos uma pergunta, mas queria dar o conselho que me foi pedido. O que hei-de dizer? Não quero nada contra a Vossa Santíssima vontade.

― Fala, Minha querida, falará contigo o divino Espírito Santo. É chegada a minha hora, os caminhos estão-lhe abertos, já não posso estar mais tempo ferido. Vem receber agora a gota do Meu divino Sangue, o Sangue que é a tua vida, o Sangue que é a vida das almas, o Sangue que corre em tuas veias, o Sangue de Cristo na sua crucificada. Quantas almas há, Minha filha, que se possuíssem este Sangue o guardariam como as mais santas relíquias. Vais recebê-las por um tubo feito do Meu divino amor. Será por este tubo que sempre o receberás.

Jesus tomou um tubo doirado, introduziu-o em meu coração, e sobre ele colocou o Dele. A gotinha do Sangue caiu, o meu ficou a dilatar-se; Jesus logo retirou o Dele, e, no mesmo momento, ficou ao meu lado cravado numa cruz. Ao vê-Lo assim, logo parou a dilatação.

― Minha filha, Minha filha, é sempre na cruz crucificada comigo que Eu te quero; é sempre a dor que te peço; dá-Me dor, salva-Me as almas; vive na cruz, nela morrerás, mas abrasada em amor, Eu to prometo, é Jesus que to afirma. Coragem! Eu estarei sempre contigo. Dá-Me dor; acode ao mundo, perde-se, está em perigo.

― Obrigada, meu Jesus. Sou a Vossa escrava, sou sempre a vítima do Vosso divino amor e das almas. Dai-me graça, dai-me força, não me deixeis um momento sozinha.

Julho

4 de Julho de 1947 - Sexta-feira

O tempo passa, só eu não mudo; um dia dá-me o outro dia, uma semana outra semana, um mês outro mês, um ano outro ano, e eu sempre na mesma, ou antes, pelo contrário cada vez mais cega, mais fria e gelada. Apagou-se por completo a luz da minha esperança; esperava, confiava no passar da vida aumentar em zelo, virtudes e amor, enlouquecer-me por Jesus, dar-Lhe aquilo que Ele anseia que eu seja; mas não, em vez de aumento perdi tudo, tudo em mim morreu. Apagou-se a luz que me iluminava e indicava o caminho; não posso ir para Jesus. Que cegueira a minha! Não tenho ninguém, nem, ao menos, quem me guie. Amo com loucura a minha cegueira de espírito, por ser esta a vontade do meu Senhor. Estou na cruz, não posso desprender-me dela, nem quero desprender-me; amo-a de alma e coração. Jesus assemelhou-me a Ele, bendito Ele seja. Sou a Sua vítima, quero salvar-Lhe as almas. Sinto-me crucificada, e, ao mesmo tempo, todo o corpo moído pela lepra, a desfazer-se em cinzas. E a alma chora, ao vê-lo assim tão miserável, tão criminoso e nojento. Sim, chora, chora continuamente, chora por dentro. Não sei como posso ter o sorriso nos lábios quando o coração e a alma soluçam, suspiram sem cessar. Ó meu Deus, que luta a da minha vida, que mar tempestuoso, que tempestade furiosa, destrói tudo; tudo está em ruínas! Eu caí, fui destruída, quero reviver, quero levantar-me, e não posso. Neste desfalecimento fito a Jesus e à querida Mãezinha, peço-Lhes amor, quero amá-Los, e não sou capaz. Quando Lhe peço profundamente, por momentos, me parece desaparecer do mundo, entrar no lado de Jesus e ir beber à chaga do Seu divino Coração, e fico-me ali a beber, e de lá trago mais vida e conforto. Com este conforto, sinto como se batessem em mim umas asas teimosas a tentarem levantar voo ao alto, para me levarem à verdadeira vida. Mas a dor, as cadeias da dor, prendem-me à terra, tenho que ficar, não posso voar, não posso partir ainda.

O demónio anda raivoso, de olhos esgaçados, aterradores, a tentar assaltar todas as janelas dos meus sentidos; tenta perder-me, quer arrastar-me, quer levar-me com ele. Que medo eu tenho de, por qualquer forma, fraquejar e ferir o meu Jesus! Temo o maldito, temo as criaturas. Não sei o que me espera, de por outra não sei o que espera a causa de Nosso Senhor. Venha o que vier, estou pronta para os golpes, para receber novos espinhos. Jesus e a Mãezinha serão a minha força.

Ontem, logo ao cair da tarde, o Horto foi para mim um leito de espinhos; espinhos no corpo, espinhos no coração e na alma, espinhos em todo o meu espírito. Que tarde de amargura! Ao inclinar-se o dia, ao cair da noite, vi a terra Horto, o lugar que havia de ser regado com o meu sangue. Num impulso de amor, queria beijar e abraçar essa terra. Via os ânimos e cuidados com que se preparava a ceia; apesar de ser preparada como se fossem ordens minhas, eu não saía da minha tristeza e amargura. Via que ia ser a ceia do amor, das maravilhas, como outra jamais seria, mas não saía do meu sofrer. Fui ao Horto, o sangue regou a terra; vi muitos vermezinhos a beberem nele e nele viverem. Vi muitos outros que dele fugiam, sem lhe quererem tocar. A agonia aumentou, o sangue encheu o cálice, transbordou fora. Foi assim que o ofereci ao Pai. Neste momento, um orvalho fecundo, um orvalho de amor orvalhava a terra; ia ser para as almas, no decorrer dos tempos, orvalho de vida e de salvação. Novo sofrimento veio tirar-me o conforto desta visão. Fiquei, entre o Horto e o Calvário, esmagada como dentro de uma prensa, tinha que beber a amargura, até à última gota.

Hoje de manhã, senti-me levada por alguém, que me deu a mão, à varanda de Pilatos. A cabeça ia cheia de espinhos, o rosto coberto de sangue, todo o corpo ferido e despedaçado. Vi e ouvi a grande multidão que, a uma só voz, sem se condoer de mim, bradava a minha crucifixão. Vi a cruz, que, pouco depois, senti a meus ombros para seguir para o Calvário. O Coração divino de Jesus tinha para todos os algozes, que, no caminho da Via dolorosa O maltratavam, afectos de tanto amor; parecia que Jesus em troca de tão maus-tratos beijava, abraçava e levava ao colo todos aqueles que o feriam! Estes loucos de raiva; e Jesus, louco de amor. Que exemplo dá Jesus ao meu duro coração! Nesta loucura de amor fosse aproximando a montanha, que, sendo para mim, ou para Jesus que em mim subia, montanha de morte, ia ser para a humanidade montanha de vida. A dor aumentava em união com o amor. No alto da cruz, sentia no meu peito o de Jesus, que, de aflição, arquejava fortemente; unido ao meu, palpitava o Seu Divino Coração também; palpitava e batia fortemente, que fazia desfalecer o meu, de cansaço. Da Sua Chaga divina, aberta pelo amor, não ainda pela lança, saía um sol brilhante, um monte de raios doirados. Era a vingança de Jesus para o mundo. Quanto mais o corpo de Jesus desfalecia e gelava, mais a Sua Alma Santíssima desejava o momento de expirar. A Mãezinha estava, ao pé da cruz, com os Seus Santíssimos olhos lacrimosos, fitos em Jesus. Oh! como Ela suspirava! Senti, como se Jesus se atirasse para os Seus Santíssimos braços, para receber os Seus carinhos. Bem depressa Ela o iria receber, mas já sem vida. Que agonia a de Jesus ao ver e saber quanto a Sua Mãe Santíssima sofria! Ouvi o Seu brado ao Céu, o Seu último suspiro; expirou. Pouco depois, veio e falou-me:

― Minha filha, Minha filha, quem com Jesus vive, com Jesus morre; quem com Ele morre com Ele ressuscita para a verdadeira vida; vem, vem a Mim, vem gozar do Meu divino amor, vem confortar-te, vem viver.

Senti-me a nadar num mar imenso de amor e em igual mar de dor; não sabia como nadar nestes dois mares, ao mesmo tempo.

― Meu Jesus, gozo e sofro ao mesmo tempo; não se viver; bendito sejas Vós por assim me teres neste sofrimento.

― Minha filha, esposa fidelíssima, és o Meu retrato; Eu estava na cruz, sofria e amava; sofria os maus-tratos, sofria os crimes com que ia ser ofendido e amava os que Me maltratavam, a todos quantos Me feriam. Tu estás na cruz, sofres, à Minha semelhança, e, à Minha semelhança, amas. Amas as almas, amas o Meu Divino Coração; confia em Mim. Eu sofria na cruz, e nem por isso deixei de amar. Goza do Meu divino amor, recebe a Minha vida, o Meu conforto e dá-Me, ao mesmo tempo, a tua dor.

Dito isto Jesus ficou silencioso, e eu fiquei a ser queimada naquele fogo e a nadar naquela dor. Passaram-se alguns momentos e voltou Jesus a falar.

― É o ouro no cadinho, a ser purificado, Minha filha; é a tua alma a ser polida, a abrilhantar-se. Recebe a vida, mais vida, para dares às almas e para viveres.

Voltou Jesus novamente a ficar em silêncio. Depois de algum tempo, mostrou-me o Seu divino Coração aberto, e disse-me:

― Minha filha, o Meu divino amor não é conhecido nem compreendido; é bem pequenino o número dos que o conhecem e compreendem. Até mesmo os sacerdotes, as almas consagradas a Mim, não conhecem o Meu divino amor, não compreendem o que é uma ofensa feita ao Meu Divino Coração. Vê quanto sofro! Consola-Me e desagrava-Me tu ao menos que compreendes a loucura de amor deste Coração e a gravidade duma ofensa feita ao mesmo Divino Coração.

Jesus ficou novamente silencioso. Depois de algum tempo, fui eu, desta vez, que exclamei:

― Jesus, meu doce amor, fazei que todos Vos conheçam e Vos amem. Sois o Senhor, tendes o poder.

― Dou a todos as Minhas divinas graças; rejeitam-nas, desprezam-nas. Faz-Me tu conhecido e amado. Vou dar-te, esposa querida, a gota do Meu Divino Sangue. Vão dois Anjos introduzir no teu coração o tubo do amor.

Vieram dois Anjos, colocaram-se um de cada lado, introduziram no meu coração um tubo doirado. Veio Jesus; no cimo do tubo colocou o centro do Seu Divino Coração. A gotinha do Seu Sangue caiu, enquanto que os anjos com toda a reverência se inclinavam para Jesus e batiam serenamente, cada um por sua vez, as suas asinhas brancas. Jesus continuou a falar-me, enquanto que eles, muito devagarinho, com toda a suavidade, foram subindo até certa altura, da qual, depois num voo rápido, desapareceram. Jesus deu-me o Seu Sangue Divino, e ficou a chorar.

― Sofro tanto com a ingratidão do mundo! Recebe esta vida e vai dá-la às almas para as quais Eu te criei, Minha filha.

― Eu vou, meu Jesus, mas não sem que estanqueis as Vossas lágrimas; passai-as todas para mim, dai-me toda a Vossa dor, ficai na consolação, e, depois, eu vou, meu Jesus.

― Foi para isso, filha querida, para te condoeres de Mim, para ficares na dor, que Eu chorei. Vai, louquinha de amor, vai, encanto de Jesus; vai para a cruz que te espera; abraça-a, e, abraçada a ela, pede ao mundo que não peque, que se converta, que Me ame, que venha a Mim. Coragem, muita coragem; para que Eu não sofra, para que Eu não chore, sentirás sempre na alma as Minhas lágrimas, e em teu coração a Minha dor. Coragem! Eu estou sempre contigo

― Obrigada, meu Jesus. Quero sofrer, quero chorar, para Vos consolar. São as minhas ânsias: consolar-Vos, amar-Vos, salvar-Vos as almas.

5 de Julho de 1947 - Primeiro sábado

Com o coração lanceado, oprimido pela dor e a alma a derramar copiosas lágrimas, foi que eu hoje recebi o meu Jesus. Esperava-O com ansiedade, porque é só Ele a minha força. Baixou ao meu pobre coração; fiquei unida a Ele, a gozar Dele, mas sem O ouvir falar; não teve pressa em fazer-se ouvir. Falou-me, alguns minutos da Sua entrada em mim.

― Minha filha, sacrário onde habito, palácio onde tenho reinado, e no qual prometo reinar sempre, até ao último momento da tua existência na terra. Aqui estou, para confortar-te na tua dor e pedir-te mais, ainda mais. Era do Meu divino desejo ter-te na cruz, sempre na cruz, e sentires sempre, noite e dia, as Minhas divinas Chagas nas tuas mãos, nos pés, no coração, e em tua cabeça sentires as feridas dos meus espinhos e sobre o teu rosto caírem as gotas de Sangue que brotam deles. Quero que sintas todo o teu corpo ferido e despedaçado; quero-te assim constantemente ferida e crucificada; aceitas?

― Já sabeis que sim, meu Jesus; que só quero o que Vós quiserdes, isto é, a Vossa divina vontade, mas por minhas forças não posso; dai-me as Vossas e a Vossa graça, e, depois, fazei deste trapo do meu corpo o que Vos aprouver. O que eu quero é amar-Vos; e as almas, meu Jesus, quero salvá-las.

Jesus calou-se, por algum tempo, deixou-me unida a Ele, mergulhada no Seu divino amor. Interrompeu o silêncio:

― É pelas almas que tudo isto te peço. Dá-Me dor, sempre dor, Minha filha, ó Minha grande heroína. Tu amas-Me sem saberes que Me amas; és Minha, sem sentires que és Minha. Quero-te sem luz, quero-te à semelhança da avezinha, que, sem poder voar, ainda se esforça batendo as suas asinhas para seguir seus pais, abandonar o seu ninho. Coragem! Confia; depressa chegará o dia, em que acabam as tuas ânsias, terás toda a luz e voarás para Mim.

― Meu Jesus, eu não me engano? Tenho tanto medo de mim.

― Como, Minha filha, poderei Eu consentir que se enganasse a Minha esposa mais querida e fiel? Coragem! Confia; não falto às Minhas divinas promessas; tudo se realizará. Diz ao teu paizinho que tenho um canal introduzido em seu coração, pelo qual Eu passo para o dele o Meu conforto, as Minhas graças e a abundância do Meu divino amor. E farei que o Divino Espírito Santo lhe dê toda a luz para o iluminar, em todos os caminhos, não errados, mas sim escolhidos por Mim, caminhos que só escolho para aqueles a quem desejo coroar no Céu com a auréola dos santos. Diz-lhe com firmeza; são palavras de Jesus. Diz ao teu médico que um orvalho fecundo, uma chuva torrencial d graça cai sobre ele e sobre todos os que ao seu coração estão presos com laços de puro amor. É chuva de bênçãos, é orvalho de graças, é a prova de quanto o amo. Se não amasse tanto o seu coração, não o punha à frente da mais alta missão, que tenho na terra. Se o não amasse tanto, não o tinha a cuidar das Minhas coisas e da esposa e vítima, a quem mais quero e amo na terra. Vem, Minha Bendita Mãe, a confortar a Nossa filhinha; vem depressa para depressa te retirares.

Veio logo a Mãezinha, tomou-me no seu regaço, estreitou-me ao Seu Santíssimo coração, beijou-me, acariciou-me e começou a bafejar-me as mãos, os pés, o coração, a cabeça e, depois, todo o corpo.

― É o bálsamo para as tuas chagas, para as tuas feridas, Minha filha. Eu virei de longe a longe, suavizar o teu sofrer. Atende ao pedido de Jesus; deixa-te viver chagada, sofre para O teu e meu Jesus não sofrer, chora para Ele não chorar; vai acudir às almas, vai salvá-las. Conta com o auxílio da tua Mãezinha. Leva a minha graça, carinho e amor aos que te rodeiam, aos que cuidam d ti. Se soubesses como a todos amo também!

Veio Jesus, e acrescentou:

― Une tudo o que é Meu ao que te deu Minha Bendita Mãe; leva aqueles a quem amas, mesmo sem sentires que os amas. Confia que não deixaste de os amar. Amá-los desta forma é o amor mais puro, é amares-Me a Mim, acima de tudo. Vai distribuir, vai semear, vai salvar o mundo. Dá-Me dor sempre mais dor, dá-Me dor sempre na cruz.

― Ó meu querido Jesus, á minha querida Mãezinha muito obrigada, sou a Vossa vítima. Dai-me a graça de Vos ser fiel, dai-me força e amor para tudo sofrer.

11 de Julho de 1947 - Sexta-feira

Não sei se estou ou não estou, se vivo ou não vivo no mundo. É na verdade, isto que a minha alma sente. Por vezes examino-me, interrogo-me a mim mesma: estou no mundo? Vivo nele? Ó meu Deus, parece-me que não vivo. As minhas trevas morreram e eu morri nelas, e nem por isso a ele abraçada. Ali, mais se me abriam as chagas e sobre ele mais as minhas carnes eram despedaçadas, e o sangue mais corria, mas inútil; a pedra não amolecia.

Nos entusiasmos e alegrias da ceia, não deixei de abraçar o Horto; via as grandes maravilhas de Jesus. Senti o amor com que S. João se inclinou ao Seu Santíssimo peito e o amor que, naquele momento, Jesus lhe fez sentir. Vi a luz, senti o amor de Jesus, ao dar-se a nós em alimento, mas o Horto não o pude deixar; segui então para ele. Que suor de sangue tão forte! Que agonia e amargura indizível! Levantei ao Pai o cálice e o sangue que transbordava regava o solo. Ouvi uma voz, que com toda a doçura dizia: amigo meu, a que vens? É com um beijo que entregas o teu Senhor! Que mal te fiz Eu a não ser amar-te? É assim que correspondes? E logo apareceu Judas que beijou Jesus.

No mesmo momento, vi uma lança muito aguda, que veio a espetar-se no Coração Divino de Jesus. Ele foi com ela para a prisão, no meio dos maus-tratos; não lha tiraram mais. O aumento dos maus-tratos aviva-Lhe mais a ferida feita por tão profunda lança. Saí, hoje, da prisão com Jesus; sigo com Ele para o Calvário. Sinto que a lança cá vai no Seu divino Coração e no meu, estão os dois num só, sofrem e sangram ambos, ao mesmo tempo. Sinto e vejo cair e levantar-se, para logo voltar a cair. Que sofrimento tão grande! Todo o Seu Santíssimo Corpo ferido, todas as feridas mais se avivam nas lajes, ao ser tão cruelmente arrastado.

Por vezes, vou eu a querer amparar Jesus, e não sou capaz; e não O posso ver sofrer assim. Que Calvário tão doloroso: Jesus desfalecido e eu também! Se eu O amasse, como Lhe dispensava em tais sofrimentos o meu amor! Sofro por O ver sofrer, sofro por O não amar. Ao aproximar-se o cimo da montanha, caí sem vida. O que lá me esperava ainda! O mundo, o Calvário de toda a ingratidão! No alto da cruz, o rosto de Jesus ainda era escarrado, e contra Ele proferiam muitas blasfémias. Jesus na Sua bondade infinita, como recompensa parecia mostrar-lhes o Seu Divino Coração, aberto pela dor e pelo amor, e convidava-os a entrar dentro. A uma recusa a Sua Santíssima alma chorava, eu sentia as Suas lágrimas. “Meus filhos, por que Me feris, por que procedeis assim?” Eu ouvia este murmúrio do Seu divino Coração. A agonia aumentava, já não era vida humana que fazia viver Jesus, mas sim a vida divina. Momentos antes de expirar, fez-me sentir e compreender que se viu morto, descido da cruz e depositado nos braços de Sua Santíssima Mãe; e, e com a dor Dela unida à Dele, assim expirou. Nesse momento, senti que de Jesus saiu um sopro de luz, um sopro suave, um sopro de vida. Jesus não se apressou a vir. Quando veio, disse-me:

― Minha filha, minha filha, vem ao Meu divino Coração, vem ao fogo, vem ao amor, que tanto anseias; é fornalha acesa, é fogo que não mais se apaga.

Senti-me dentro do Coração divino de Jesus, coberta com as Suas chamas. E Ele, por algum tempo, ficou silencioso.

― Recebe esta vida, Minha filha; é a vida que tu vives e a que Eu quero dês às almas. Recebe-a, espalha-a, semeia-a. Ama-Me, ama-Me por elas. Se sempre Me amares com o amor com que Me tens amado e anseia amar, Eu prometo dar-te muitas bênçãos e graças, não para ti que já de todas te enriqueci, mas por ti as almas as receberem. Eu farei que sejas para elas como raio fulminante; não raio que tira a vida, mas sim que lha dá, fazendo-as viver para a graça.

Jesus voltou a calar-se; desta vez, fui eu a falar.

― Meu Jesus, não Vos amo, não tenho amor, não Vos sei amar e não sou capaz de me tornar digna de Vós.

― Confia que Me tens amor, que Me amas loucamente. Quando te disse para te tornares digna de Mim, Eu vi com a Minha sabedoria infinita o muito que ias sofrer. Foram dois os proveitos: as almas e o maior aperfeiçoamento da tua. Que consolação para Mim ver o esforço da Minha esposa mais querida a corrigir-se das faltas, que Eu mesmo permito, para mais se embelezar e tornar digna de Mim. Faço tudo isto, Minha filha, para acudir às almas.

Depois de mais um pouco de silêncio continuou sempre Jesus.

― Deixa-Me agora, Minha filha, esconder-Me eu em teu coração, deixa-Me fugir do mundo; não vê-lo assim a pecar, a ofender-Me. Está no campo do pecado, do gozo, do prazer, da vaidade, da imodéstia. As praias, Minha filha, os bailes, casinos e cinemas, quantas inocências roubadas, quantas mortes de almas! Foi a reparação que te pedi, foram os combates do demónio. Continua a dar-Me essa reparação. Pede-Me pelas almas; não Me peças, não Me peças, não Me peças pelos corpos, que esses não têm remédio. O mundo, o mundo; o que o espera!

― Meu Jesus, meu Jesus, lembrai-Vos do Vosso amor, da Vossa misericórdia, e, como do alto da cruz, dizei agora ao Vosso Eterno Pai: perdoai-lhes, que não sabem o que fazem. Perdão, meu Jesus, perdão; quero acudir às almas, quero acudir aos corpos, quero sofrer e amar por todos; sou a Vossa vítima, meu Jesus. Estai sempre em meu coração, para ser este ferido e não Vós.

― Tem sempre nele, Minha filha, aceso o fogo do teu amor, da tua caridade de todas as tuas virtudes; quero ser nele abrasado. Deixa, esposa querida, grande heroína, estarem sempre em ti bem gravadas as Minhas divinas chagas e espinhos, que Me ferem. Para viveres e resistires à dor, recebe a gota do Meu divino Sangue; sou Eu mesmo o enfermeiro a introduzir o tubo em teu coração.

Jesus colocou-o, e sobre ele colocou o Seu Coração divino, para a gotinha do sangue cair.

― Vai dar esta vida, vai acudir às almas.

― Não a sei viver, meu Jesus, nem a sei distribuir. Eu só queria esconder-me e não aparecer mais. Não sei se estou a fazer bem ou mal, nem de que forma Vos dou mais glória, sozinha ou recebendo a quem vem? Que medo eu tenho de viver e de me enganar e perder a união Convosco.

― Bem escondida estás, Minha filha, dentro em Meu divino Coração. Nada temas, porque estou contigo. Não te enganas nem perdes a união Comigo. Quero que faças o sacrifício, recebendo quantos vierem, tenho-te aqui por isso. Quantas pessoas receberes, são outras tantas almas que têm o Céu certo. Quantas delas compreendem a tua vida de união, a tua vida íntima Comigo, e, compreendendo-a, aprendem-na, e principiam a vivê-la. Coragem, coragem, mensageira de Jesus, mestra das ciências e maravilhas divinas. Coragem; vai para a cruz que te espera; bem pouco será o tempo que viverás nela. O Céu espera-te, o Céu espera-te, Minha amada filha.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Vou para a cruz e vou contente; vinde comigo para ela, não para sofreres, mas para me dares a Vossa força divina. Vinde, vinde, meu Jesus: sem Vós nada posso. Obrigada, meu Jesus; sempre o meu eterno obrigada.

18 de Julho de 1947 - Sexta-feira

A minha vida morre nas trevas; eu já morri, e o que em mim vai nascendo, nelas vai morrendo sem conhecer a vida; apenas nasce, logo morre. Tenho o meu espírito tão escurecido parece-me que não sei compreender nem dizer o que sofro, o que em mim se passa. Eu sei que sofro dores, tristezas, amarguras, agonias de alma, mas não sei dizê-las, nem compreendê-las, nada ou quase nada. Apesar de ser em mim o sofrimento, sofro tanto à distância, sinto que não é meu o que sofro, e por ser tão longe e não ser meu, nada dele sei falar. Não me preocupa o não me compreenderem nem saber falar da minha dor, mas, sim, não sofrer como Jesus quer, com a perfeição que Ele quer, e não saber o que Ele quer. Causa-me verdadeiro horror o ver-me visitada por tanta gente. Tenho até nojo de mim, e pergunto a mim mesma: o que vem esta gente ver? Coitadinhos! Se vissem o que sou! E falo assim, porque sinto e vejo em mim um mundo de vergonhosa e nojenta podridão, podridão de tudo quanto há de imundo. Pobre gentinha que não vê o que eu sou! Esta repugnância e horror, que agora sinto às visitas, não é igual àquele que até agora sentia; este é mais sofrimento de alma; o que sentia era mais pelo cansaço e desejo de estar sozinha no silêncio, na união com Jesus. Este é mais horroroso, por ver que sou só podridão, que sou a vergonha da humanidade, indigna de aparecer aos divinos olhares de Jesus e ser assim tão visitada sem a pobre gente saber o que visita. O Senhor seja comigo, com a Sua graça, para que eu possa sofrer e ter aquela pureza de alma e corpo que o meu Jesus quer e eu devia ter. Ó meu Deus, ó meu Jesus, não sou digna de Vós. Onde está a minha perfeição? Em nada a encontro.

O demónio veio-me com dois os assaltos; veio de repente sem eu o esperar. Comecei a aborrecer e não querer junto de mim o crucifixo nem a querida Mãezinha, e ele logo me assaltou com gestos e feias palavras. Eu fiquei conhecedora de todas as maldades; nestes momentos, parece-me não haver pecados nem crimes que eu não conheça e não pratique, o que, graças a Deus não acontece fora destes combates. Lutei, lutei; o suor banhou-me o corpo; o coração parecia abafar-me, dentro do peito. Chamei Jesus e a Mãezinha para não pecar. Ser vítima sim, mas pecar não. Fiquei aterrada e cheia de vergonha, sem poder abraçar-me ao crucifixo. Quando pude, abracei, acariciei a Mãezinha, e disse-Lhe: Mãezinha, Mãezinha, o que é a minha vida; tende compaixão de mim.

Passei três dias sem receber o meu Jesus, não posso dizer o meu desfalecimento; tinha fome d’Ele. Senti tanto a Sua falta! Sofria como se tivesse as chagas abertas e a cabeça cercada de espinhos; sentia como se das Suas feridas corresse sangue; e, por vezes, dos olhos, ouvidos e boca sentia-o correr também; o meu corpo era como se fosse uma só ferida. Faltava-me o receber Jesus, que é a força de tanto sofrer.

Chegou a tarde de quinta-feira; começou o meu Horto com o ver chorar Jesus sobre Jerusalém; mas desta vez, as lágrimas de Jesus não eram só para a cidade, eram para o mundo inteiro. A minha alma chorava com Jesus; chorava como há tempos para cá chora, sem parar, mesmo no meio daquilo que me possa dar alegria; não sei pelo quê a alma chora sempre, mas, ao ver as lágrimas de Jesus, chorou mais ainda. A seguir, vi as escadas pelas quais Jesus subiu depois de ser açoitado e nas quais deixou marcados selos do Seu divino Sangue. Custou-me imenso, custou-me profundamente este sentimento e visão. Pouco depois, chegou alguém, que vinha de Roma; recebi presentes; eu sorria e a alma chorava. Falaram-me de várias coisas, que eu, por graça e misericórdia do Senhor já conhecia. Sofria ao ouvir, mas quando me falaram das escadas que Jesus tinha subido e que eu há bem pouco tinha visto e sentido, foi tal a dor, que me pareceu que o coração rebentou e saiu fora do peito; faltou-me a respiração, e, sem querer, dei um profundo gemido. Procurei mudar de assunto. Como a fome de Jesus era muito grande, disse que não tinha comungado. Um santo sacerdote, que estava presente, foi-me buscá-Lo. Recebi-O; incendiou-me de fogo o coração e o peito; curou-me, por algum tempo, as feridas da alma, e, numa união muito íntima, Ele disse-me:

― Venho abrasar-te com o Meu divino amor; quero queimar-Me também no teu, Minha filha. Ama-Me, enche-te de Mim, mata a tua fome. Como Eu te amo! Vê como Eu cuido de ti.

Pouco depois, lá foi de verdade para o Horto. A agonia da alma deu ao coração fortes impulsos que o obrigou o empurrar o sangue para as veias até as rebentar. A terra foi regada com sangue. Vi Jesus oferecer o cálice a Seu Eterno Pai no meio duma sebe de varas espinhosas; cingiam-No de cima abaixo. Com eles cercado foi Jesus preso e levado para a prisão. Oh! como eram grandes e agudos! Hoje, ia já com a cruz, a caminho dom Calvário, caí e fui pela primeira vez arrastada a grande distância, não pelas cordas, mas sim pelo cabelo. Não deixei a cruz, levei-a arrastada, unida a mim. Quase sem vida, cheguei ao cimo do Calvário; caí desfalecida, com o rosto em terra, junto à cova, que já estava aberta para ser levantada a cruz. Vi o sangue que havia de regar a cruz, encher a cova e correr o Calvário. Fiquei nessa cruz crucificada. De longe a longe, ouvia os gemidos e suspiros de Jesus. Que dor de alma! De vez em quando, sentia o palpitar do Seu divino Coração quase moribundo. E, na mesma ocasião, sentia como que os Seus divinos olhos agonizantes estivessem em minha alma, e, momentos antes de expirar, ficassem por um pouco entreabertos, como que a fitar o Calvário, a Humanidade. Gelou-se-me o peito, e expirei com Jesus. Demorou muito a falar-me. Quando chegou, ou quando se fez chegado, ficou como se mergulhasse em meu coração os Seus divinos lábios, e bebia sem parar; eu ouvia-O a beber sofregamente.

― Minha filha, bebo na tua secura, sacio-Me na fonte do teu coração. A tua sede de amor é amor. Quero beber, deixa-Me beber, mata-Me a sede, que tenho de ser amado. Quando, junto de ti, Minha filha, as almas te pedirem para implorares, para de Mim alcançares graças para elas, pede-lhes, pede-lhes sempre que Me amem, que amem Minha Bendita Mãe. Ama-Nos, filha querida; faz que sejam amados os Nossos Corações. Há tão pouco quem Me ame e tanto quem Me ofenda! O mundo, o mundo, oh!, como ele peca! Ama-Me, ama-Me, repara-Me com a tua dor.

Jesus disse isto e ficou silencioso. Passados momentos, apareceu-me com uma enorme cruz aos Seus Santíssimos ombros e as Suas divinas chagas abertas. Condoída dos sofrimentos de Jesus, disse-Lhe com toda a alma:

― Sou a Vossa vítima; dai-me essa cruz, dai-me essas chagas, passai tudo para mim, quero sofrer eu e quero-Vos, meu Jesus, na consolação.

Jesus passou logo para mim a Sua pesada cruz, deu-me a beijar as Suas divinas chagas, a principiar pela mão direita e a acabar pela do coração. Ao beijá-las, vinham-me de encontro ao rosto chamas de fogo. Ao beijar a do coração, pareceu-me ficar ali colocada, não podia separar-me.

― Tira do teu coração, minha filha, o bálsamo do teu amor, cura-Me todas essas feridas, sê tu a minha enfermeira.

Queria curar Jesus, e não sabia como nem com quê. Forçada não sei por quem, principiei a tirar do meu coração o bálsamo de que Jesus falava, principiei a espalhá-lo pelo Seu divino Corpo. Todo o ferimento desapareceu.

― Que confusão a minha, meu Jesus; eu pobre miséria não sou digna de tal ofício! Curo-Vos com o que é Vosso e não com o que é meu.

Tudo isto se passou, e eu sempre unida ao Coração de Jesus.

― É a tua dor e o teu amor, Minha filha, a Minha maior consolação e alegria. É a tua dor e amor o Meu desagravo e reparação; dá-Mo com alegria, dá-Mo sempre na tua cruz. Sem te separares deste Coração louco por ti, recebe do Meu para o teu, pelo mesmo tubo de amor a gota do Meu divino Sangue; recebe que é a tua vida, a vida que dás às almas. E prepara-te para receberes o teu alimento, a Minha divina Carne. Dou, hoje, essa honra ao teu Anjo da guarda; foi ao teu sacrário, ao sacrário da tua igreja buscar-Me para Me receberes.

Fui obrigada a inclinar-me e a recolher-me. Veio o Anjo com a Sagrada Hóstia, numa patena doirada; era patena de amor. O Anjo pronunciou as palavras “Corpus Domini nostri Jesu Christi”. Não vi multidão de Anjos, mas ouvia o zunir de muitas asinhas e o som mavioso das suas vozes.

― Desceu, desceu e baixou a ti o amor, o nosso Rei, o teu Senhor.

O Anjo da minha guarda ficou em sinal de reverência, ao meu lado.

― Vai, Minha filha, bendiz e ama sempre o Teu Senhor, por tão grandes maravilhas. Bendiz, beija e abraça a cruz, que te dou. Dá-Me toda a dor que te pedi; é o remédio das almas, é a sua salvação. Coragem, coragem; confia em Mim.

― Muito obrigada, meu Jesus. Sede comigo, ensinai-me a amar-Vos, ensinai-me a sofrer. Sou a Vossa vítima.

25 de Julho de 1947 - Sexta-feira

Quanto mais corro, mais me foge Jesus, e foge-me com Ele o Seu divino amor. Quero amá-Lo, e não amo; morro por Ele, morro pelas almas. A Ele não O consolo, não O amo; as almas não as conquisto, não consigo trazê-las ao Seu divino Coração. O que hei-de fazer, meu Jesus? A quem hei-de procurar e amar, senão a Vós. É tal o desejo que tenho de dar almas a Jesus, ainda mesmo depois da minha morte, que, não podendo conter-me, escrevi por minha mão o seguinte: levei a minha vida a sofrer, e levarei o meu Céu a amar e a pedir a Jesus por vós, ó pecadores. Convertei-vos, e amai a Jesus, amai a Mãezinha. Vinde vamos todos para o Céu. Se sentísseis, por algum tempo, os martírios, que por vós sofri, estou convencida que não pecáveis mais; e, se conhecêsseis o amor a Jesus, então morreríeis de dor, por O terdes ofendido. Não pequeis, não pequeis, Jesus criou-nos, Jesus é Pai. Isto mesmo eu queria gravado em letras, à volta da minha campa, para comover, para chamar os pecadores a Jesus. Que ânsia tão fortes de Lhe dar almas!

Quanto mais faço, menos sinto fazer, e menos sinto amá-Lo. A minha sede é insaciável. Não cessa de chorar a minha alma; não há luz para o meu espírito; as minhas alegrias são morte. Tenho tanto quem procure aliviar-me, consolar-me! E tudo isso, que eu recebo como mimos do Céu, morrem sem que chegue a saboreá-los. Bendita seja a divina vontade de Jesus!

O demónio serve-se destes mimos, deste conforto que desejam dar-me para atormentar horrorosamente a minha alma. Como pode Deus a uma vida tão falsa, tão cheia de maldades, mimosear assim? É já a recompensa na terra; para outra vida é o inferno, é a perda eterna. Eu ando a cavar, a abrir a minha sepultura. O terreno em que eu a abro, é falso, é nojento, cheio de podridão; é terreno, é sepultura mundial. Que horror! Trabalho sem luz, cavo, e eu própria a desfazer-me na mesma cinza, na mesma terra podre e nojenta. Sinto, como se tivesse alguém dentro de mim, em lágrimas, num só suspiro, numa tristeza sem igual. Ao observar toda esta podridão, vou sentindo sempre o corpo ferido, a cabeça cingida de espinhos, as chagas abertas e a do coração sem nunca lhe tirarem a lança. Veio unir-se a este meu pobre coração o da querida Mãezinha, cheio de setas. Como Ela sofre! Sinto-o bem. O Seu Santíssimo Coração não se separa do meu; tenho assim de sofrer com Ela. Que doloroso martírio o do meu corpo e da minha alma! Quantas vezes desfaleço e sinto não poder resistir a tanta dor.

Ontem, com todo este sofrer e a visão do Horto estava desolada e sem nenhuma vida. Senti e vi com os olhos da alma Jesus em tamanho natural, cravado na cruz e dela desprendeu os Seus Santíssimos braços para me abraçar; ficou preso à cruz só pelos cravos, que Lhe cravavam os pés. Com este abraço de Jesus levantei-me, fiquei com a alma mais forte. Veio a hora da ceia. Vi Jesus sentar-se à mesa com os Seus Apóstolos e ao sentar-se falou para Si o Seu divino Coração. Manjar divino; a ceia do Meu amor. Todo o aposento se iluminou e todos os Apóstolos ficaram embebidos naquele amor, que Jesus irradiava pelos Seus divinos olhos, lábios e todo o Seu ser, porque todo Ele era amor. Só Judas desesperado, com o demónio nele e o fogo infernal, já não recebeu o amor de Jesus. Como Ele amava, sofria e sorria! Como via tudo o que O esperava. Dali fui para o Horto; senti o romper das veias, as lágrimas de sangue, toda a agonia. Quando Jesus foi preso, vi Judas em atitude desesperadora a cravar no Coração divino de Jesus, que estava dentro em meu peito um grande e agudíssimo punhal. Por aquela grande ferida saíam raios doirados. Com o punhal cravado e a espalhar amor, assim foi Jesus para a prisão.

Hoje com o mesmo punhal seguiu comigo as tristes ruas da amargura. Levava no meu a lança e o Coração da Mãezinha com as espadas. Seguimos os três a amargurada e negra viagem. No alto da montanha, ao pé da cruz, fui despida. Sentia todo o corpo chagado e a essa chagas colados os vestidos; saíram com eles pedaços de carne. No cimo da cruz, continuamos os três a mesma dor. Senti que Jesus queria levar o Seu divino Coração, aberto pela lança do amor, a cada alma, que estava no Calvário e em toda a Humanidade, para lhes dar nele entrada. Ele via que não Lhe era aceite a Sua oferta, por isso a agonia aumentou. Cerrou os Seus divinos olhos e dizia: vou morrer, aproveitai-vos do Meu divino Sangue, da minha morte se quereis salvar-vos; morro para dar-vos o Céu. Isto foi dito momentos antes de expirar. E, na maior agonia por ver tanto sofrimento inútil, expirou. Sem O ouvir, sem O sentir, estive morta com Ele. Veio, falou-me, deu-me vida.

― Coragem, Minha filha. Eu venho a ti dar-te a vida do corpo, dar-te a vida da alma, confortar-te, levantar-te e desabafar contigo. Confia em Mim, confia no que te digo, se não queres desgostar-Me. A vida que vives, a vida que sentes, não é tua, á a Minha vida divina, é a vida do mundo. Tu, és Minha filha, a partir de todos os martírios; és a Minha maior vítima, experimentas todos os sofrimentos. O Artista divino não cessa, um momento, de trabalhar em ti. Quando Eu, ontem, despreguei da cruz os Meus divinos braços para te abraçar, não era porque estivesse na cruz; na cruz estavas tu. Eu vim confortar-te e provar-te que se não estives tu, estava Eu crucificado. É assim que deves sofrer e amar. Aceitas, continuas contente a estares sempre na cruz? Responde-Me, quero ouvir-te.

― E Vós, meu Jesus, continuais a auxiliar-me, a sofrer em mim? Se assim continuais, também eu continuo. O que eu quero é fazer a Vossa divina vontade, amar-Vos e dar-Vos as almas, mas temo a minha imensa miséria.

Jesus conservou-se, por um espaço de tempo, calado. Eu fiquei a viver Dele.

― Minha filha, essa vida de miséria é a vida do mundo. A terra que cavas, a sepultura que abres é o mesmo mundo a sepultar-se na sua perda eterna. O que sentes em ti a desfazer-se são as almas desfeitas pela lepra do pecado. Minha filha, Minha filha, as praias, os cinemas, as casas de jogo e de perdição, as vaidades, e imodéstia, as ambições, enfim todos os vícios é essa a podridão que cavas e a que abres a sepultura. Pobre Humanidade a sepultar-se! Pobres vítimas a imolarem-se! Pobres para os olhos do mundo, mas ricas, eternamente ricas para Mim. Depois de outro intervalo de tempo, continuou o meu Jesus. Minha filha, vítima inigualável, continua a dar ao teu Jesus toda a dor, sempre alegre na tua cruz. Que podridão a do mundo! Que ingratidão a da almas! Para mais aumentar o meu sofrimento, juntam-se a tudo isto os crimes dos sacerdotes. Sofre, ora, repara por eles. Meu Eterno Pai quer incendiar com o fogo da Sua divina justiça as praias, cinemas, casas de jogo e de pecado. Sofre, sofre, repara.

― Jesus, Jesus sou a Vossa vítima, imolai-me Convosco no santo sacrifício, nos santos altares. Fazei Vós a oferta ao Vosso Pai para aplacar a Sua justiça divina.

― Recebe, Minha filha, a gota do Meu divino Sangue, a vida do teu corpo, a vida da tua alma, a vida das tuas almas; recebe-a sempre pelo mesmo tubo de amor.

Jesus introduziu o tubo no meu coração, e, e antes de colocar o Dele sobre o tubo, bafejou-me por ele com os Seus divinos lábios, e dizia-me:

― É bálsamo divino, é bálsamo de amor.

Depois colocou em cima o Seu divino Coração, a gotinha do Sangue caiu dentro do meu, fez-mo encher e viver mais fortemente. Jesus voltou, de novo, a acalentar-me, para assim poder resistir a tanta fortaleza do Seu divino amor. Após uns momentos, ficou na cruz. Mesmo assim chagado, a sofrer, todo Ele era amor. De todas as Suas chagas saíam sois brilhantes. O Seu Santíssimo rosto resplandecia de luz. Jesus era todo dor e amor.

― Minha filha, Minha amada filha, a tua cruz já te espera. Imita-Me; sofre e ama ao mesmo tempo. Ama o Meu divino Coração, ama as almas, acode-lhes. Repara, repara as ofensas, que Me são feitas. Fita-Me na cruz, vive à Minha semelhança. Semeia, dá esta vida, a tua sementeira dará frutos brilhantes. Sofres com Jesus, semeias com Jesus, colhes com Jesus. Coragem, filha querida, vai em paz, cheia de confiança. O Senhor é contigo. Não te enganas; és sempre a nova redentora das almas.

― Obrigada, meu terno e doce Jesus; sede comigo, não me deixeis cair no desfalecimento, e deixai-me confiar em Vós. Vou contente para a cruz. Ai de mim, sem a Vossa graça!

Agosto

1 de Agosto de 1947 - Sexta-feira

Invoco os auxílios do Céu; sem eles não poderei ditar. O que tenho sofrido; só o mesmo Céu, só Jesus é conhecedor! Que mar de dor! E sinto que de nada me tem aproveitado tanto sofrer. Quanto mais sofro, menos tenho que dar. Quando sentia que os meus sofrimentos não chegavam, junto de Jesus, e com o meu muito sofrer não lhos oferecia como devia, dizia-Lhe: vede, Jesus, vede, no meu coração, por quem eu sofro, nele vede a quem eu amo, ou melhor, meu Jesus, a quem desejo amar; assim fico certa de que não tento enganar-Vos e de que sabeis a verdade, que sempre quero ter em meus lábios. Tudo me foge, tudo se apaga. Os dias passam, os sofrimentos aumentam, e eu cada vez me sinto mais indigna de Jesus. E Ele a querer-me cada vez mais pura, mais digna de O possuir. Tenho medo de falar de mim, dos meus sofrimentos, de toda a minha vida. Tenho medo de todos, tenho medo das minhas trevas, de tão medonha cegueira; morri nelas, e esta morte a elas se colou, e não se descola mais. Não sei dizer o meu martírio. Se eu falasse de Vós, do Vosso amor; mas falar de mim e de quanto sofro, quanto me custa, ó amor da minha alma! Bendita seja a cruz que me dais.

Tinha o meu corpo em dores agudíssimas, a febre a grande altura, e mesmo assim não fui poupada pelo demónio; assustou-me, por duas vezes, com um pequeno intervalo, de um ao outro. Vestiu-me e revestiu-me de todas as maldades, e colocou-me num mundo das mesmas maldades. Tudo era desprezo e aborrecimento ao bem, prazer e loucura pelo mundo. travou-se a luta com as suas vergonhosas lições. Gritei por Jesus e pela Mãezinha: não posso nem sou nada sem Vós; acudi-me; não quero pecar, prefiro o inferno; se hei-de ofender-Vos, dai-mo já, meu Jesus; sou a Vossa vítima.

Não ouvi nem vi quem me defendesse, mas cessou a luta. Ficaram os espinhos muitos penetrantes, provocados pela lembrança, se teria pecado, mas, tempo depois também desapareceram. Jesus não deixou de velar por quem só a Ele quer pertencer. Tive alegrias, que logo morreram e espinhos, que sempre me ficaram a ferir. Tudo recebi como mimos de Jesus, tudo Lhe ofereci e agradeci do meu coração. Muito obrigada, meu Jesus; fazem tão bem à alma as humilhações! Para mim o Vosso divino amor, e para Vós toda a glória, meu Jesus. Continuo a sentir a chagas, a coroa de espinhos e a lança.

Ontem, logo de manhã, encostada ao meu coração, quase em forma de cruz, principiei a sentir e a ver a esponja. A minha sede aumentou, dizia para Jesus: é de Vós que eu tudo recebo, são as almas que eu quero dar-Vos. Era já quase noite e eu a arder nesta sede; e vi Jesus, de mãos atadas, cordas ao pescoço e à cinta, rodeado de malvados. Trouxeram-Lhe uma cruz, que Lhe colocaram, aos Seus ombros divinos. Ele inclinou-se, inclinou-se com tanto peso, quase chegava com o Seu Santíssimo rosto à terra. Isto não era em mim, e veio para mim. Que pena e dor eu senti; levou-me à agonia do Horto. Quando lá sofria em tanta amargura, sem nenhuma vida sem nenhum conforto, transformou-se o Horto num formoso jardim, todo rodeado de loiro trigo, aos molhos. Que grande e formosa seara! No meio do jardim estava ao alto uma cruz; no centro dela um coração; não sei com que estava preso. Vinham do alto raios de fogo, que passavam por dentro desse coração, aberto dum lado ao outro, e iluminavam tudo. Do pé da cruz, saíam fortes pés de açucenas que cresceram e abriram formosas quase até aos braços da cruz. Isto foi visão; não se passou em mim, mas senti-me ferida por aquele fogo, senti-me outra abrasada nele; com a alma muito confortada, fiquei com mais vida.

Algum tempo depois, vi-me num grande bosque, rodeada de feras, grandes, pequenas, mas todas feias, aterradoras. Pensei ir ter com o demónio algum combate, por já ter assim acontecido. Mas não; pouco depois, vi todas aquelas feras a correrem à minha frente, e não sei quem atrás delas com grandes chicotes a chicoteá-las. Eu fiquei num campo grande, libertada; tinha tudo por minha conta.

Hoje de manhã, vi Jesus a ser despido até à cinta, e, depois, preso à coluna. Jesus era maltratado, estava muito triste; com que modos bruscos O despojavam dos Seus vestidos! Até aqui foi só com Ele; e, depois, os açoites foram sobre o meu corpo. Que chuva deles eu senti caírem! Do caminho do Calvário nada mais sei dizer, nem da maior parte do tempo da montanha. Era um mundo de sofrimentos indizível, não sei dizê-los; a cegueira do meu espírito não me deixou compreendê-los. Pouco tempo antes de Jesus agonizar, vi uma alma subir por uma escada que estava posta à cruz; vi que ela subia com muito custo. Subiu, subiu e foi meter-se na chaga do Coração de divino Jesus e desapareceu. Vinham sempre do alto uns raios de fogo que trespassavam o mesmo Divino Coração. Logo fiquei a sentir Jesus, em mim crucificado, e eu crucificada com Ele, a sentir o Seu Coração transformado no meu, e aquele fogo transformou-se numa lança, que nos atingia os dois; era lança só de amor. Logo fiquei a sentir o mesmo sofrimento indizível e então todas as chagas abertas, a coroa de espinhos, o correr do sangue, o fim da vida; e assim expirei a sentir que voou de mim uma vida como um sorriso para Deus. Nesta morte passou-se um bom pedaço, sem que Jesus viesse.

― Minha filha, Minha filha, é doloroso o teu martírio, é difícil o teu Calvário; já quase não podes, oprimida, com tão pesada cruz. Tem coragem! É martírio da salvação, é Calvário de vida, é cruz de amor. Pedi-te muito, porque muito sou ofendido. Sofre assim, para não veres o Meu divino Coração ferido. Sofre contente. Ai do mundo, sem o martírio das Minhas vítimas! Pobre mundo, sem a imolação da Minha maior crucificada! Não posso, filha querida, tirar o braço do Meu Eterno Pai a escora que o sustenta. Deixa-te crucificar, alegre, sempre alegre.

― O braço cai, o braço cai. O mundo perde-se, as almas condenam-se. Ó meu Jesus, ó meu Jesus, quero sofrer, e não sei sofrer; quero a alegria, e não sei ser alegre; quero tudo por Vós para acudir às almas, e não sou capaz de nada, tende dó, tende compaixão, e, momento a momento, menos digna de Vós.

― Se tens confiança em Mim, Minha filha, confia no que te digo. Sabes sofrer, sabes sofrer e muito tens para Me dares. Amas-Me, amas-Me. O teu esforço, para te tornares digna de Mim, é amor, e depressa te vais corrigindo dos teus defeitos. Quanto mais queres vir para Mim, mais para Mim voas. Tem coragem, tem confiança.

Houve um intervalo de silêncio, e, depois, continuou Jesus.

― A tua vida vai-se tornando dia a dia, Minha filha, cheia de luz, não só para aqueles que a têm estudado e estudam, mas também ainda venham a estudá-la. A mesma luz vai servir de confusão, de remorsos a alguns daqueles que a não estudaram como deviam. É a vida de Cristo. A visão, que tiveste ontem, sou Eu em ti a salvar as almas. As flores, que rodeavam a cruz, são aquelas almas, que por ti vêm a Mim, puras e abrasadas de amor. A seara do trigo loiro são os teus sofrimentos, tudo quanto semeias é a colheita dos pecadores. Feriu-os o amor do Meu divino Coração; é o amor que numa só união fere o teu. É revestido de Mim, com os Meus méritos, que salvas as almas. Os teus sofrimentos em Mim são os sofrimentos de Cristo. Têm um valor infinito.

― Ó meu Jesus, queria aqui, neste ponto, desabafar, mas não é Convosco que eu desabafo; será com a querida Mãezinha, se voltar a ter a dita de falar com Ela; se não dizei-Lhe Vós as mágoas do meu coração, o que me julgo diante d’Ela e quanto A desejo amar.

― Volta a falar contigo. Filha querida; desabafa com Ela; nada temas; confia em Mim. O teu Calvário de hoje é já uma realização das Minhas divinas promessas. Não te disse Eu que não chegavas a não saber explicar o que sentias e sofrias? Vês como se realiza o que diz Jesus? Recebe agora a gota do Meu divino Sangue para reparares as forças perdidas pela dor e receberes vida para a contínua imolação e amor. O teu martírio é amor, só amor. Vou unir os nossos corações.

Jesus tomou o Seu divino Coração; no centro trazia o tubo do amor que infundiu no meu; passou a gotinha de sangue, e, por alguns momentos, passou amor. Senti como se me caíssem os braços e eu caísse desfalecida. Jesus veio como que acudir-me, bafejou-me, acariciou-me, e disse-me:

― A tua vida é um milagre divino, e o mesmo milagre tenho que operar para aguentares com a força deste amor. Coragem! Tu vives para as almas; vai salvar as almas. És fonte de vida, és fonte inexaurível de salvação. A tua vida é a Minha. A alma, que hoje viste subir à cruz e perder-se em Mim, foste tu mesma. Feriu-te o amor, perdeste-te para Eu aparecer, deste a vida para dares vidas. E foi Comigo e em Mim que te perdeste; é por isso que és a Minha vida Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus; ensinai-me a amar-Vos, ensinai-me a sofrer.

2 de Agosto de 1947 - Primeiro sábado

Que choro na minha alma! Fiquei logo assim, ontem, depois do colóquio com Jesus. É tão grande e de tal forma o sofrimento que sinto, que, hoje, de manhãzinha, sem querer, sem saber como, falei comigo mesma, e disse: “Não me obriguem a dizer os sofrimentos da minha alma, que eu não sei, não os conheço, tenho medo”. Só depois é que reflecti que era o meu coração que falava.

Num mundo de variáveis amarguras, esperei a chegada do meu Jesus, e preparei-me para O receber bem, o melhor que pude. Recebi-O, e não demorou muito tempo que Ele transformasse o estado da minha alma, mudando as amarguras em suavidade e doçura.

― Minha filha, sofrer é amar, viver na cruz é amor, amar o sofrimento, é amar Jesus e as almas, é subir ao mais alto grau de amor. A tua cruz é resplendorosa, é cruz de redenção. Ó Minha filha, se soubesses quanto necessito dos teus sofrimentos para reparar-Me! Deixa-Me desabafar. Olha como me tratam alguns sacerdotes.

Quando Jesus disse isto, vi abrir-Lhe o peito com um instrumento cortante; parecia uma espada. Depois de um grande golpe, de cima abaixo, começaram a cravarem-Lhe em Seu divino Coração punhais e mais punhais. Como Jesus sangrava! Acudi logo:

― Isso não, meu Jesus; deixar-Vos sofrer assim, não é para o meu coração de filha.

― Ó filha amada, ó filha amada, deixa-Me então crucificar-te.

Colocou-me Jesus sobre a cruz, e foi Ele mesmo a bater nos cravos; crucificou-me com doçura. Os sofrimentos de Jesus desapareceram, e eu fiquei na cruz, bem crucificadinha. Ele continuou:

― Vive assim, filha amada, para não caírem no inferno os sacerdotes, que tão mal Me tratam; os Meus amigos ou que deviam sê-lo. Eles não só renovam a Minha divina paixão, mas consentem que outros a renovem, recebendo-Me sacrilegamente. Dá-Me por eles, durante este mês, 5 horas por dia do teu sofrimento. Oferece-Mo tu, para que não caiam já no inferno. Eles não têm dó de Mim, não vêem o mundo com toda a sua luxúria e desonestidade; não vêem as almas a cometerem contra Mim os mais horrorosos crimes. E elas, e eles que deviam ser Meus amigos. Dá-Me o teu sofrimento por eles.

― Aceitai-O, desde já, Jesus, fazei de mim o que quiserdes; poupai-os ao inferno.

― Minha filha, diz ao teu Paizinho que por ti lhe dou o Meu divino Coração com todo o meu amor, com todas as minhas graças. Que tome para ele o que quiser, e que tire para cada alma tudo o que quiser. Não lhe posso dar maior prova de amor e do Meu contentamento para com ele. Criei-o para Mim, criei-o para as almas, e dou-lhe o que quero que ele dê às almas. Coragem, coragem, coragem e confiança. Diz ao teu médico que a fidelidade dele ao Meu chamamento a este Calvário para cuidar da Minha divina causa e cuidar de ti, atraiu para ele e para todos os que lhe são caros e com ele trabalham todo o Meu divino amor, todas as Minhas graças. Dei-lhe a maior honra, a maior glória que lhe podia dar na terra. Diz-lhe que o esperar humilhado e confiado é ter a vitória certa. Minha Mãe Bendita, vem consolar já a Nossa filhinha crucificada.

Veio a Mãezinha, tomou-me em Seus braços e comigo a cruz. Principiou a acalentar-me, acariciar-me e beijar-me as chagas.

― Ó Mãezinha, não faças isso; suavizai-me o meu sofrimento, mas não façais coisas que me humilhem e o que o mundo lhe possa dar outro sentido. Suavizai-me a dor, mas sem isso. Vós sois a Mãe de Jesus; a filha do Padre Eterno, a Esposa do Espírito Santo, a Rainha do Céu e da terra, e eu uma criatura Vossa, filha do Vosso Jesus. Quem sois Vós e quem sou eu, para me tratardes assim? Vós bem sabeis, querida Mãezinha, quanto me sinto pequenina, na Vossa Santíssima presença.

Quantas vezes Vos tenho dito que não sou digna de beijar, não só os Vossos Santíssimos pés, mas também o chão, não onde eles se pousassem, mas onde eles fizessem sombra. Jesus o vê e Vós também como me sinto pequenina, diante de tanta grandeza. E também vedes quanto sofro, por saber que dizem que quero ser tão grande como Vós e que contra Vós proferi heresias. Ó Mãezinha, ó Mãezinha, perdoai-me; se o fiz, não o compreendi, não soube que Vos ofendi.

Acudiu Jesus e com a Mãezinha; acariciaram-me mais doce e fortemente.

― Não Me ofendeste, não, Minha filha, digo deles o que disse Jesus na cruz: não sabem o que fazem; pobres que nada compreendem!

Voltou a acalentar-me e a bafejar-me com toda a doçura, e disse-me:

― Leva o Meu amor e o de Jesus, leva toda a Minha ternura aos que amas, te amparam e rodeiam. Dá-o ao Meu Padre Humberto, ansioso dos Meus mimos. Leva para todos as ternuras, o amor do Meu Santíssimo Coração e do Meu Jesus. Diz-lhes que junto vai toda abundância das Nossas graças.

Disse Jesus:

― Coragem, Minha filha; deixa falar os homens. És redentora, porque em ti tens O Redentor; tens com Ele poder infinito. És poderosa com Minha Bendita Mãe; fiz-te poderosa com Ela, porque, à semelhança Dela, o mundo te entreguei. És a Nossa vítima, pequenina violeta, és tudo com Jesus, és tudo com Maria. O Céu é dos humildes. Coragem, coragem!

― Obrigada, querida Mãezinha; dai-me o Vossa amor, dai-me a Vossa paz, tranquilizai-me o coração para que nessa paz e amor possa subir até Vós. Ó Jesus, ó Mãezinha! Ó Jesus, ó Mãezinha! Assim Os deixei fugir e fiquei na minha cruz.

8 de Agosto de 1947 - Sexta-feira

Cavo a minha sepultura, cavo a sepultura mundial. E sinto-me tão ferida com esta nojenta escavação! O coração sangra; as chagas, as feridas dos espinhos, todo o meu ser é feridas e sangue. Sinto em mim um olhar, que não pode ver esta sepultura tão podre. Não posso vê-la, meu Jesus, não posso vê-la nem estar assim ferida e em sangue. Ó meu Deus, não posso e quero estar a sangrar, a dar o meu sangue, gota a gota. Morrer para dar a vida a esta terra podre, e esta massa nojenta. Jesus, que fome eu tenho, e esta fome é de Vós; enchei-me, saciai-me; este vazio que eu sinto, só Vós o podeis encher.

Ninguém me satisfaz; nas criaturas não encontro alegria nem conforto; Vós, só Vós, vinde, Jesus, encher-me e confortar-me; Vós, só Vós sois a minha alegria e a minha paz. Chamo-Te, Jesus, procuro-Te, não Te encontro, não me falas, ó Jesus, ó Jesus, onde estás Tu? O meu peito é rasgado, golpe sobre golpe; sinto como se em minhas mãos tivesse o coração como uma bola de sangue a mostrá-lo a quem o feriu; mostro-o sem obter resultado; não têm de mim compaixão. Fala, de dentro dele, uma voz dorida: “não há dor igual à minha dor”.

Vem um espinho e outro espinho, uma dor e outra dor, e, por vezes, sinto a revolta da natureza, um rápido momento, de querer fugir à cruz. Mas não quero; tudo isto me serve para mais sofrer; quero ser perfeita e não sou, não quero magoar o meu Jesus e estou sempre a magoá-Lo. Que miséria, que fragilidade a minha! Quero esconder a minha vida, e não posso. Não queria que soubessem o que Jesus na Sua bondade infinita faz em minha alma, e não me deixa ocultar. Que horror! Oh! quanto sofro! Queria perder mundos e mundos, se os possuísse, e nada se saber. Ó minha cruz bendita tu sejas, e bendita seja a vontade do meu Jesus. Morra o meu querer e a minha vontade, se alguma coisa existe. Perdoai-me, ó meu Jesus, se Vos ofendi. Quanto mais profundos são os golpes, quanto mais no íntimo do coração e da alma me calam os espinhos, mais atracção eu sinto para O meu Jesus. Quantas vezes O quero beijar e abraçar com toda a Santíssima Trindade e a Mãezinha querida, mesmo quando as contrariedades aumentam, e as humilhações me esmagam e oprimem; quando os sofrimentos e a falta de forças não me permitem realizar os meus desejos, satisfazer as minhas ânsias, só com o pensamento digo: Jesus, a Vós me entrego; abraça-Vos e beija-Vos o meu coração e a minha alma; são estes que Vos dizem e fazem tudo; eu não posso. E assim, entregue a Jesus, fico no meu sofrer, fico como que adormecida ou morta na dor, mas a sentir e a viver a dor. Tudo isto é por amor, sem sentir que amo.

A justiça divina, a ira do Senhor vem tantas vezes, a cair sobre mim, vem mesmo a esmagar-me, e, não sei porquê, volta a subir sem me deixar ferida. Eu estou cansada de ver tal justiça, mas outro cansaço maior sinto ainda, por ver que essa justiça tem que ser aplicada. A minha cruz, a minha cruz, que tanto pesa, quanto me custa levá-la, e não quero nem posso caminhar sem ela; amo-a, amo-a mesmo sem amor.

Ontem, logo de manhã, gravaram-se na minha alma Jesus com os Seus Apóstolos. Jesus via aproximar-se a morte, e, quase sem poder com aquela separação, dizia: é chegada a minha hora, vou morrer; parto, mas fico convosco. E o Coração divino de Jesus ardia de amor. Passavam-se as horas, o horror dos sofrimentos aumentava e o amor crescia também. Eu sentia, como se o meu peito fosse uma fornalha, o coração uma caldeira sempre a ferver sobre essa fornalha; quanto mais fervia mais deitava fora, quanto mais transbordava mais enchia. Jesus fitava a Mãezinha, voltava a fitar os Apóstolos, e, numa dor muita profunda, murmurava: tenho que deixar-Vos, não posso separar-Me de Vós; Eu vou, mas fico; prende-Me a Vós o Meu amor. E os laços do amor de Jesus enleavam-se, mais e mais, no Coração Santíssimo da Mãezinha e dos Apóstolos. Fui para a ceia, todas as palavras e sorrisos de Jesus eram amor. Se eu soubesse falar deste amor! Todo Ele era amor, amor, só amor, amor a enfrentar maldade e ingratidão. Judas, já não era Judas, já se via nele um verdadeiro demónio. Fui para o Horto, a minha alma sobre ele chorava amargamente, chorava com o rosto em terra, e, com o rosto em terra, senti abrir-se-me o coração e regar o solo com todo o meu sangue; quase me senti agonizar em tanta dor e amargura.

Hoje, não fui eu que senti o Calvário, foi Jesus que o seguiu dentro do meu peito e do meu coração que se representaram as ruas da amargura. Como eu sentia Jesus! Quanto me custou Ele caminhar tão desfalecido, cair tantas vezes banhado em suor e sangue, coberto de feridas e cercado de pungentes espinhos em Sua Sacrossanta Cabeça. Maldito seja o pecado; em que estado ele pôs Jesus! Falha-me o coração, por não saber compreender nem dizer os sofrimentos de tão penosa viagem. No cimo da montanha, então já era eu que sofria com Jesus; era Ele em mim, era eu Nele; todas as Suas chagas eram minhas, e minha foi a Sua crucifixão; era meu e Dele o sangue que no alto da cruz derramamos; era Dele e meu o amor que a toda a humanidade se estendia. Mas oh! que amor tão mal correspondido!

Com Jesus tudo me foi presente; vi o passado, o presente e o futuro. Que mundo de tanta maldade! Que Calvário de tanta agonia! Ver tanto sangue derramado, inútil para tantas almas. Assim agonizei, e Jesus comigo. Senti sair de mim a Sua vida; fiquei como morta à Sua espera. Ele demorou, mas principiou logo a enlear, a prender o meu coração a um mundo de corações; incendiou-me o peito num fogo abrasador, e disse-me:

― Minha filha, é com as cadeias do Meu divino amor que Eu te prendo aos corações e às almas. Coragem! Quer no Calvário quer na cruz, és o amor, és a vida, és a salvação dos pecadores. Eu estou contigo, e assim és e serás sempre uma cruz de redenção. A tua vida é de maravilhas e encantos divinos. O teu sofrimento é uma salvação contínua. Ensinas às almas a resignação, a caridade e o amor; és escola de virtudes; é por isso que Eu quero que muitas almas, que o mundo aqui venha aprender.

― Ó meu Jesus, ó meu Jesus, estou cheia de defeitos. As almas aprendem em mim as impaciências, os maus modos e tantas coisas, que lhes dou mau exemplo, e Vos desgostam a Vós. Perdoai-me, vede como estou triste pela minha má edificação, por não ser perfeita e aceitar tudo com alegria. Desgostei-Vos, Jesus? Estais triste comigo?

Jesus sorriu-se com a doçura, e, depois de um intervalo de silêncio, disse-me:

― Não estou triste, não Minha filha, compreendo-te bem. Queres escondimento. Mas olha; para ser mais perfeito, entrega-te a Mim, e obedece em tudo, na certeza que em tudo fazes sempre a minha divina vontade. Não te preocupes com os teus defeitos; quanto mais perto está o sol, mais perto está a luz. Quanto mais te aproximas de Mim, mais vês a poeira das tuas faltas, com os raios do Meu sol divino. Eu vou pedir-te, Minha vítima amada, combates com o demónio; preciso de grande reparação; aceitas?

― Ó meu bom Jesus, e se Vos ofendo? Eu só os temo com receio de Vos ofender.

― São dolorosos, são, Minha filha, mas mais dolorosos ainda, são os espinhos que vêm ferir-Me. Que crimes horrorosos. Horrorosos têm que ser os combates. Mas não Me ofendes; Eu não o permito. Previno-te, desde já; o maldito vai atormentar-te, que estou revoltado contra ti, que fui Eu que te castiguei, mas não fui. Foi ele que veio dizer-Me que conseguia a tua desesperação, a tua revolta contra Mim, se Eu o deixasse espancar-te e com a cruz. Como Eu via a consolação que Me ias dar e que nada de culpa havia em ti, consenti. Arrancou-te dos braços, mas sem te tocar, a cruz, com a Minha imagem crucificada e atirou-te com ela fortemente. Disse-lhe: “Basta”; e ele fugiu. Se soubesses, Minha esposa amada, quando de novo, Me abraçaste e repetiste muitas vezes: meu Jesus, por Vosso amor; a consolação que deste ao Meu Divino Coração, que alegria e gozo seria o teu! Que furor e raiva a do maldito! Se Eu o deixava assaltar-te, num momento, tirava-te a vida. Vem agora ao teu alimento, à vida que dás às almas, a gota do Meu divino Sangue.

Jesus colocou, no meu coração, o mesmo tubo dourado; depois, uniu o Seu divino Coração, caiu a gotinha de Sangue, e ficou, por algum tempo, a infundir-me amor.

― Enche-te, enche-te, Minha filha, e dá às almas este amor, esta doçura e carinho.

― Aceitai, Jesus, tudo o que eu Vos possa dar, que Vos console, e tudo que Vos possam dar os que me são queridos.

― Espalha por todos este amor, porque a todos amo loucamente. Filha querida, filha querida, repara bem, fita a cruz, vai para ela, vai com o teu sorriso, ama-a, olha as almas, acode-lhes; olha os pecadores, salva-os. Vai, vai com amor. Vou contente, meu Jesus; acompanhai-me sempre.

― Muito obrigada, muito obrigada, meu doce amor; sou a Vossa vítima.

15 de Agosto de 1947 - Sexta-feira

Estou cansada de tanto dizer da minha vida. Não poderei, Jesus meu, ocultá-la e escondê-la para todos, todos, para que ninguém saiba de mim e do que em mim se passa? Deitai-me a Vossa divina mão, meu doce Jesus; eu não posso levantar-me; que tristeza tão profunda me invadiu o coração! Ai, Jesus, saber-se a minha vida e eu sem ter querer nem vontade, sentir a necessidade de desaparecer! Se pudesse apagar-se toda a minha vida sem prejuízo da glória de Jesus e bem das almas! Ai tantos espinhos na minha cabeça e no meu coração! Que chuva de sangue eu sinto e vejo cair das feridas por eles causadas! As chagas estão abertas; sinto que elas se têm aberto e alastrado tanto; parece-me que o coração, as mãos e os pés já não têm lugar para maiores aberturas. O que eu sofro! O que sente a minha alma! É tal o medo e cansaço que sinto por ter de dizer as coisas da minha vida, que me sinto morrer, e tenho que morrer. E eu que não tenho querer, nem posso ter querer, não queria morrer desta forma.

Meu Jesus, não sei dizer melhor; estou tão ceguinha, nada vejo e nada sei dizer. Ó minha cruz, minha amada cruz, quanto eu te quero! O que vejo eu na minha cruz? Vejo amor, mas amor sem limites, um amor sem igual; e vejo a dor, mas uma dor que encerra todas as dores; é um conjunto de dores. E eu abracei a minha amada cruz, e este abraço foi eterno. Sinto, como se ela uma vez ou outra me escapulisse dos ombros, mas é por me parecer não poder mais; sinto deixá-la cair por vontade. Isto é o meu desfalecimento. Eu quero-a, eu amo-a o meu abraço eterno está dado. Sinto o coração tão preso a ela que não pode separar-se; é cruz e coração, é coração e cruz, é uma só coisa; amor, dor e cruz, é minha, quero-a por Jesus e pelas almas. Jesus quero desabafar; é neste papel que eu desabafo; vou à procura do que não encontro, procuro e não acho, quero alívio, anseio por ele sem conseguir encontrá-lo, fico na minha dor, é a minha cruz. Ela está tão gravada no meu corpo, sinto que todo ele é cruz, chagas, espinhos e sangue.

No domingo, dia 10, logo que recebi o meu Jesus, por um bom espaço de tempo, senti-me como se adormecesse Nele e Ele em mim; não ouvi a divina voz de Jesus, mas oh! que sono tão doce! Depois de acordada, fiquei com a alma confortada, mais forte para a dor, que horas depois, caiu sobre mim, a pontos de eu não a poder encobrir. Pobre de mim, sem conforto!

Tive 6 combates seguidos com o demónio. Que martírio! Tinha o inferno em mim, ou por outra, estava presa ao pecado e presa ao inferno; nem depois da luta eu saía das garras infernais. Era dos braços do demónio que eu me entregava ao pecado, ao prazer. Os gestos e palavras do maldito causavam horror. Clamei, clamei, invoquei o nome de Jesus e da Mãezinha, muitas e muitas vezes, e, mesmo na luta, fixei Neles os meus olhares, parecia-me não ter vergonha de estar na presença de Jesus e de ser vista pela Mãezinha. Com que coragem eu Lhes dizia que não queria pecar!

No último combate, que me pareceu não chegar a tanta gravidade, senti como se me cortassem uma cadeia, e eu fiquei livre do, inferno e do pecado; parecia-me ver para mim abertas as portas do Céu. A minha alma ficou em paz; por muito tempo passou de mim o receio, se sim ou não tinha pecado. Como é bom o meu Jesus, como Ele me ampara e vela por mim!

Na tarde de quinta-feira, senti como se me pusessem no coração uma montanha mundial; foi esta montanha que tive que transportar, atravessar, transformar. Oprimida, esmagada por ela, passei pela sala da ceia, pela sala do amor; derretia-me em amor, mas sempre na dor. Da sala passei ao Horto, a ser esmagada e sempre a transportar a mesma montanha. No Horto, senti todos os sofrimentos em conjunto; suei sangue, agonizei.

Hoje, de manhãzinha, toda ferida, com a cruz aos ombros, caminhei para o Calvário com um sofrimento inexplicável, que a minha cegueira não sabe ver. Sobre mim, sobre a minha cruz foi a mesma montanha de quinta-feira. Não podia respirar; desfalecida. Atraíram-me ao cimo da montanha ânsias de amor, ânsias de dar a vida. Fui crucificada, e, no alto da cruz, um brado incessante subia ao Céu, subia e não entrava, parecia-me o Eterno Pai não ter de mim compaixão. O sangue corria de todas as minhas chagas, a regar o solo do Calvário. O meu brado doloroso e moribundo ecoava ao fundo da montanha. O brado de Jesus quase a expirar ecoou, fez-se sentir em meu coração. Nesta dor expirei com Ele. Jesus não demorou, falou-me depressa, depressa, de novo, deu vida à minha alma. Senti, como se o azul do firmamento pousasse sobre o meu peito e o Céu se abrisse.

― Minha filha, desce a ti o Céu, vem a ti Jesus, o Jesus que em ti habita, o Jesus que fez do teu coração o Sacrário, do teu peito o palácio da Sua habitação. Desce a ti o Céu, vem receber a fragrância dos teus sofrimentos, do teu martírio; vem receber a reparação que tens dado ao Meu divino Coração. Repara; está curado, já não tem chaga; foi a tua dor o bálsamo que a curou.

O Coração divino de Jesus estava sem espinhos, sem sangue; todo ele era fogo, só amor. Jesus ficou em silêncio e eu também, a nadar naquele amor. Sentia que todo o Céu estava em festa, entoava hinos e nadava no mesmo amor, na mesma paz e doçura. De repente, vi grande multidão de Anjos que formavam alas. De cima formavam-se quase unidos, e, em baixo, separavam-se a mais larga distância. Por entre elas descia a Mãezinha sentada num trono, coroada Rainha, vestida de branco e manto azul. Pousou junto de mim. Tomou-me em Seus braços, uniu a mim o Seu rosto, os Seus Santíssimos lábios, abraçou-me, beijou-me e dos Seus lábios ficou, por algum tempo, a passar para os meus um alimento, que me satisfazia; encheu-me.

― Minha filha, tem coragem, não negues nada ao Meu Jesus, dá-Lhe toda a dor, que Ele te pede. O mundo é ingrato; repara, repara; Ele é tão ofendido! Goza do Céu; enche-te da Minha graça, pureza e amor. Dá tudo isto, que de Mim recebes às almas a quem amas. Eu amo-as também, é um prémio Meu. Goza do Céu, toma coragem para a tua cruz. Prometo assistir-te à tua morte; prometo em breve, muito em breve vir buscar-te para o Céu; prometo alcançar-te do Meu divino Filho a graça de vires ao encontro de todas as almas que te são queridas para as conduzires ao Paraíso, quando partirem da terra para lá. Coragem, coragem.

A Mãezinha subiu, desapareceram os Anjos e eu fiquei ainda a nadar na mesma felicidade, no mesmo Céu. Veio Jesus; introduziu o tubo do Seu amor em meu coração; do d’Ele saiu para o meu a gota do Seu divino Sangue, e, por o mesmo tubinho, ficou, por algum tempo a passar-se amor.

― Vai, Minha filha, leva a tua vida, leva a vida divina; é com ela que és redentora, é com ela que salvas os pecadores, é com ela que és poderosa, e, em união com Minha Bendita Mãe, salvas a humanidade. Coragem! Dá-Me dor, sem dor. O mundo peca, o mundo perde-se; acode-lhe, salva-o. Coragem! Vai para a tua cruz; é cruz brilhante, é resplendorosa, é cruz de redenção. Confia em Mim; não te enganas; a tua vida é real, é a vida de Cristo. Diz Minha filha, ao Meu sacerdote que lhe dou o Meu divino Coração com todos os Seus tesouros, para que com eles seja o que até aqui tem sido e para os distribuir às almas.

― Obrigada, meu Jesus; dizei um obrigado por mim à Mãezinha. Digo-Vos por todos os que me são queridos: obrigada, Jesus; obrigada, Mãezinha, por todas as graças e benefícios recebidos.

Passei a tarde com mais suavidade nos meus sofrimentos, tanto de alma como de corpo. Ao chegar a noite, vieram todos, recebi-os, é a minha cruz, é o amor do meu Jesus.

22 de Agosto de 1947 - Sexta-feira

De vez em quando, sem eu pensar nem querer, está a minha alma a bradar ao Céu, a clamar pelo Eterno Pai. Mas, ó meu Deus, para mim sinto já não haver Céu; as suas portas fecharam-se, o meu brado não é aceite, nem O Eterno Pai ouve a minha voz.

Um mundo de negras trevas separou-me da minha Pátria; não há Céu, não há vida para mim. Parece-me mostrar ao mundo as minhas chagas abertas, o coração todo em sangue e a cabeça cercada de espinhos e dizer-lhe: vê como eu te amo, vê o que sofro por ti; vem, o meu coração quer receber-te. Mas o mundo está cego, não vê o meu ferimento, está surdo, não ouve a minha voz. E pisa, calca, sem dó nem piedade, o meu pobre coração; é ele, chagado e em sangue, um trapo para a humanidade inteira, é o pó, é a lama que ela calca; é o mundo a ferir-me, é ele a causa da minha dor. Mas há em mim um amor que ama e esquece, um coração que busca e anseia, um coração, que é louco e quer dar a vida a toda a humanidade, e que está morto. Que grande agonia a da minha alma! Como é doloroso o meu sofrer! Em tudo vejo a cruz mas vejo-a com o coração sempre a arder, sempre em ânsias de amar; é como uma caldeira sempre a ferver sobre a fornalha de brasas vivas. Esta fornalha, esta caldeira, este amor não é meu; tomou posse do meu corpo, mas não me pertence. Não sei amar com este amor, não sei aceitar nem ver a cruz como este amor. Ó meu Deus, pobre de mim, como é sensível e visível a minha miséria! Que nojo tenho de mim! É por isso que eu brado ao Céu, e brado, noite e dia: Jesus dá ou permite outros darem um corte em todas as minhas alegrias; não chego a saboreá-las; nas mais pequeninas coisas, em que eu poderia, alegrar-me, um fino golpe, vindo daqui ou dalém, lhe tira toda a doença. É a minha cruz, logo murmura o meu coração. Meu Jesus, por Vosso amor. Vós, Vós, só Vós, cortai-me tudo, tirai-me tudo, todo o afecto, toda a alegria, todo o amor, que não seja o Vosso.

É impossível, por vezes, resistir a tanta ânsia, a tantos desejos de me dar a Jesus, de ser só Dele, de toda Lhe pertencer, de O amar e em tudo ver o Seu divino amor. Busco Jesus, quero abraçá-Lo. Ele mais se ausenta, mais se separa de mim. E eu, sem poder encontrá-Lo, abraço a minha cruz numa confiança ilimitada de que nela está o meu Jesus, de que é Ele e de que todo o sofrimento é cruz vem Dele? Se é esta a vontade do Senhor, não quero viver senão na dor. Não é possível arrancar do meu coração os sentimentos da sua dor; que martírio triunfante! Sofre sem alívio, sofre sem saber sofrer, sofre sem saber amar. As minhas dores, as minhas chagas, os meus martírios, oh! como eu lhes quero!

As dúvidas sugeridas por Satanás, são, em algumas horas, espinhos penetrantes; chuva queimadora que penetra todo o meu ser. Sem saber falar para Jesus, peço-Lhe para ler em mim, para ler em meu coração, e, escondida na divina chaga Dele e, à sombra do manto da querida Mãezinha, deixo passar a tempestade; não posso ter perigo com tal protecção.

Ontem, ainda muito cedo, o meu coração voava para o Horto beber na fonte de toda a dor, levava consigo outra fonte superior ainda; era a do amor. Este obrigava a beber na outra. E todas as horas do dia, pensasse, dissesse, ou sofresse fosse o que fosse, do Horto vinham constantemente punhais agudos a retalharem-me o coração. Que triste era o horto e doloroso o Calvário que a ele se unia! Terminada a ceia, ao sair da sala, foi a despedida de Jesus e da Mãezinha; uniram-se os Seus divinos Corações e rostos, uniram-se os Seus amores para não mais se separarem; choravam as Suas almas. Era o Horto; ia ser o Calvário de Jesus e da Mãezinha. Caminhei para lá com Jesus, com Ele bebi até à última gota a cálice da amargura. Sobre os meus vestidos ou sobre os vestidos de Jesus, formaram-se outros vestidos, vestidos de sangue coalhado. Ó dolorosa e tremenda agonia! Ó amor de Jesus, que não és conhecido nem compreendido!

Hoje, de manhãzinha, senti que o meu peito principiou a ser o caminho da amargura, pelo qual seguiu Jesus ao Calvário. O meu peito era e sangue; espinhos postos pelo mundo, sangue que Jesus derramava. A minha alma via-O caminhar, desfiguradíssimo, sem nada se parecer com Jesus, levando aos ombros o pesado madeiro. Senti-o cair, muitas vezes, quase moribundo. Não podia respirar com estes dolorosos sentimentos. O meu caminho é espinhos e sangue; e Jesus, todo ferido, era, cruz, dor e amor.

Quando a Verónica limpou o rosto de Jesus, eu senti, como se o meu rosto e o amor do meu coração, que não era o meu amor, ficassem no pano imprimidos. No alto da cruz, eu morria por morrer, morria por dar a vida. Sentia no meu coração o Coração divino de Jesus a arder, a ferver; sentia Ele regar com o Seu divino Sangue e romper por entre uma montanha de sofrimentos. Era formada de pedra dura, mas o sangue divino de Jesus transformava-a. Só sangue de um Deus podia obter tal transformação; só uma força divina podia resistir a tanta dor. Eu sentia os Seus olhos divinos entreabrirem-se, para, na maior agonia, bradar ao Pai.

A Mãezinha rodeava a cruz. Não posso dizer, não sei dizer o que a Mãezinha sofria. Com que dor Ela fitava Jesus. O Seu amado Filho via e sofria tudo. Foi, pela segunda vez, que eu senti e vi a escada pela qual foi descido Jesus e posto nos braços da Mãezinha. Vi as suas lágrimas e setas; senti a Sua dor. Jesus viu tudo antes de expirar. Quanto devo a Jesus em ter-me associado aos Seus sofrimentos, aos da Mãezinha e em agonizar com Ele. Veio Jesus ressuscitar-me. Demorou-se um pouco; veio, deu-me vida, mas não me deu luz; falava-me, estava em paz, mas em grandes trevas.

― Minha filha, Minha filha, esposa Minha, esposa de dor, esposa de amor. Toma lá, aceita o Meu divino Coração; tens chave. Vê se consegues fechar nele a pobre Humanidade. As almas, as almas, afoga-as no Meu divino Sangue, incendeia-as neste amor. O mundo, o mundo, com ele peca; que maus-tratos Me dá; como Eu estou ferido!

Jesus dizia isto e chorava copiosas lágrimas, via-O chorar, ouvia os Seus soluços, não tinha nenhuma beleza, que triste mendigo Ele era; as Suas carnes Santíssimas estavam despedaçadas; que grandes feridas; o sangue escorria!

― Sabeis, meu Jesus, que não posso ver-Vos chorar, nem assim ferido; dizei-me, dizei-me, pela Vossa Paixão, pelo Vosso divino Sangue, pelas dores da Mãezinha o que posso fazer por Vós, para não sofrerdes, para Vos consolar.

― A tua dor, Minha filha, o teu amor são o bálsamo do Meu sofrer. Quero-te na cruz; não te posso ter, um momento, fora dela, porque nem um só momento estou sem ser ofendido. O mundo, o pobre mundo, o que será dele, o que o espera; bem depressa se ouvirá nele a voz do canhão, bem depressa gemerá entre o fogo aceso da justiça do Meu Pai! Pede, brada, diz, Minha filha, que não será muitas vezes que Jesus o chama, que Jesus o convida à penitência, à oração. Brada, brada depressa; está a ser tarde para a reconciliação. Coragem, coragem, alegre na cruz, alegre na dor. Como é grande, como é sem igual a reparação que Me dás. Grande, muito grande, com grandeza inigualável é o amor. Espalha-o, incendeia-o nas almas; acode-lhes, salva-as para não Me veres sofrer. Vou dar-te o Meu divino Sangue, a vida do teu corpo, a vida da tua alma, a vida das almas.

Introduziu Jesus o tubo no meu coração; era doirado; introduziu-o bem fundo, bem no fundo foi cair a gota do Seu Sangue divino. Não desligou o Seu Santíssimo Coração; deixou-O, por algum tempo, a infundir-me amor. Ao receber o Sangue e o amor de Jesus, toda a minha alma se iluminou; desapareceu toda a treva.

― Meu Jesus, meu dulcíssimo amor, sei que sois Vós; é a Vossa luz que eu vejo. Porque me tivestes, até agora, em tantas trevas?

― Para Me reparares, filha amada; para mesmo comigo estares na cruz. As trevas, que vias, eram as trevas do pecado; eram os crimes, as maldades que assim Me tinha ferido. Já vês que sou Eu. Velo por ti. Não Me ausentei, sem te dar a Minha luz. Toma coragem e vai espalhar o Meu amor. Diz às almas que Eu as quero, que Eu as amo; trá-las todas a Mim. Coragem! Não te deixei sem o Meu conforto; supro os homens, ocupo o lugar daqueles que te deviam amparar e não os deixam amparar-te. Pobres daqueles, que se opões à Minha divina vontade! Eu venço. Bem depressa se cumprem as Minhas divinas palavras. Coragem! Leva a Minha alegria, o Meu sorriso, o Meu amor, a Minha paz.

― Obrigada, meu Jesus. Fazei que eu seja toda para Vós e para as almas e em tudo faça a Vossa divina vontade.

Deixei Jesus, mas já não O deixei a chorar; deixei-O formoso, cheio de luz. Vim logo para os meus sofrimentos, para a minha cruz; só o coração tem fogo. Já lá vão umas horas; ele ainda queima; todo o peito está em fogo. Que amargura já tenho na minha alma! Mas ai! Quem me dera com esta amargura levar às almas o meu amor de Jesus!

29 de Agosto de 1947 - Sexta-feira

Apagou-se por completo a luz de todas as minhas esperanças. Foram as minhas trevas a causa de todo este mal. Poderei viver assim, meu Jesus, arrastada só pela cadeia da confiança em Vós? Mas ai, quantas vezes até essa me parece perder. Mas eu confio, meu Jesus, confia mesmo contra tudo, contra toda a morte das minhas esperanças. Espero em Vós, Senhor, e não serei confundida.

Há espinhos que me ferem, e vão ferir-me até à morte. Quando sinto e penso na dor, que me causam, fito os meus olhos em Jesus, e digo: para que estou eu a pensar no que me fere a mim. Se eu pensasse, meu Jesus, nos espinhos que ferem o Vosso divino Coração, na dor que Vos causam os crimes da humanidade, esquecia a minha dor. Perdoai, meu Jesus, a minha ingratidão, aceitai as minhas lágrimas; sofro tudo por Vosso amor, sou a Vossa vítima, sou vítima das almas.

Neste momento cubro Jesus crucificado de carícias; abraço-O, e assim me vou esquecendo do que sofro. Não sei o que tenho em mim; o meu rosto é uma caveira gravada no meu coração; não é uma caveira perfeita; está deformada, apodrecida. Que horror ela me causa à minha alma! Os espinhos, que me cingem a cabeça, transformaram-na só em sangue e os olhos da mesma forma; não só lágrimas de sangue, mas os olhos inteiramente se transformaram em duas fontes de sangue. As chagas das mãos, dos pés, do coração abriram tanto, tanto, que sinto, como se me desaparecesse a carne e os ossos e se gravassem as chagas em sangue coalhado; todo o meu ser é uma massa de sangue. Meu Deus, meu Deus, quanto custa este martírio, quanto me custa a minha dor. Sinto-me como se estivesse neste leito de dor a servir de palhaço, sorrio para todos, enquanto que a alma chora; parece-me que a todos engano, em todo o sentido; mostro-me feliz e alegre, e a minha felicidade e alegria está só no sofrimento e no cumprimento da vontade do Senhor.

Não quero viver mais para mim nem para as criaturas; quero viver só para Jesus; quero que o meu viver seja o sentir da minha alma. Sinto que da terra, das criaturas nenhum conforto possa receber; mesmo os que me são mais queridos, sinto-os frios e gelados para mim. Jesus, Jesus, só Jesus, é Ele que eu quero, é só a Ele que eu pertenço. Não importa parecer-me estar sozinha; o que importa é vencer, é sofrer como quer Jesus.

O demónio rodeia-me, assusta-me, em forma de serpentes e outros bichos mais. Apareceu em forma humana com quatro olhos no rosto; tinha olhares aterradores. Atormenta-me a imaginação com dúvidas e coisas sem jeito. Em todas as minhas coisas, ele põe o maior veneno. Reapareceu-me na alma aquela ansiedade de, debulhada em lágrimas, me prostrar aos pés de Suas Santidade. Sinto-me como se dele recebesse alguma coisa, que dele ansiava. Queria agora humildemente beijar as Suas mãos como sinal do meu agradecimento. Meu Jesus, o que recebi eu? Parece-me que um peso saiu de sobre mim. Vós o sabeis, meu Jesus, e isso basta.

Ontem de tarde, vi o Horto; vi-o em duas partes; numa, tudo gera podridão, ruína e morte, trovões, tempestades e a ira do Senhor sobre ela; na outra, dor de toda a qualidade, dor sem fim. Levou-me para a última parte do amor; mergulhada ali naquela dor, transformou-se o meu coração num mar de sangue, que dava corrente para todas as nascentes; era a água de todas as fontes, era a vida de toas as vidas. Veio a primeira parte, e mergulhou-se neste mar de sangue, e aí a escondeu o amor de Jesus. Como eu a sentia e via ele incendiar-se! Como Ele amava, enquanto recebia dor, dor, sem fim.

Hoje, nas ruas da amargura, só vi trevas, só senti dor nestas trevas mergulhada. A minha alma despedaçava-se com o peso da dor; rasgavam-se-me as carnes, escorria o sangue. Sem poder com a cruz, caí no desfalecimento, e vi coberto de suor, sangue e pó o rosto de Jesus. Não O pude ver sofrer; desfaleci e caí com Ele com todo o Seu Santíssimo Corpo, gravado em meu peito. Aproximava-se o fim da montanha. Como Ele via com os Seus olhos divinos o que nela O esperava. Que tristeza mortal; derretia-se em dor a alma. No cimo da montanha, no alto da cruz, depois dos maus-tratos, blasfémias e calúnias, fiquei a sentir o silêncio do Calvário; ouvia os suspiros de Jesus, e, no meu peito, sentia o arquejar do seu. Feriam-me o coração os Seus suspiros. Com os olhos da alma via bem ao vivo a Mãezinha com olhares angustiosos a ver tudo que em Jesus se passava. Como Ela sofria! Juntavam-se as espadas do Seu Santíssimo Coração ao de Jesus todo ferido. Ele expirou e eu senti expirar com Ele; morta senti-me ficar por algum tempo.

Veio Jesus como ressuscitado, e ressuscitou-me também. Gozava Dele, da Sua paz, da Sua vida, mas sem a Sua luz.

― Minha filha, minha amada filha, são para Mim as tuas ânsias, o teu coração com todas as palpitações e amor; és Minha, tudo é para Mim, és o Meu sacrário. Vem gozar do Meu amor; sem ele não vives, sem ele não dás a vida às almas.

Veio ao meu encontro o Coração divino de Jesus; pelo centro saíam labaredas de fogo que penetraram em mim como raios de sol brilhante. Tudo em mim eram trevas; só o Coração de Jesus era luz e fogo. Fiquei a nadar naquele amor por um grande espaça de tempo em silêncio, sem falar, sem ouvir Jesus. Voltou de novo.

― Minha filha, esposa Minha, vou deixar dentro do teu coração o Meu todo cercado de espinhos; quando esses espinhos te atingirem, quando sentires por eles o teu coração ferido, diz-me muitas coisas, faz-me contínuos actos de amor. É o sinal que te dou de quando estou a ser mais ferido. Isto não quer dizer que estou assim a sofrer com aqueles espinhos, porque os passo todos para ti, Minha vítima amada. Aceitas ficar assim? Dá-me já uma resposta.

― Sim, meu Jesus, eu aceito; dai-me os espinhos, dai-me a dor, dai-me tudo o que Vos aprouver; consolai-Vos Vós, e feri e amargurai o meu coração, o meu corpo e todo o meu ser. Dai-me a Vossa graça, dai-me a Vossa força sem a qual eu sou nada e nada posso.

― Repara, repara, Minha filha, são grandes os crimes da Humanidade. Ai dela sem a reparação, ai dele sem o amor das vítimas. A caveira que sentes em ti é a caveira da Humanidade. Está deformada e apodrecida; está, Minha filha. Que horror, que horror, que malícia a dos homens, que onda, que incêndio de crimes. Acode, acode às almas. Encontrei na tua generosidade o sinal da mais alta reparação, o maior amor. Eis por que assim te faço sofrer e te dei a mais sublime missão, a missão das almas. Salva-as, salva-as.

Ficou Jesus novamente em silêncio e eu também a gozar a mesma paz, mas já mais um bocadinho de luz. Veio, de novo, Jesus a dizer-me:

― Vou dar-te novamente o Meu divino Sangue. É necessário reparar as forças perdidas. Não quero que deixe de correr em tuas veias o Sangue de Cristo Redentor; és Comigo redentora; é Comigo que abres o Céu às almas.

Jesus a dizer isto, e rapidamente introduziu o tubo no coração; foi como que uma injecção de vida e de luz. A gotinha de sangue caiu, logo fiquei mais forte e com a alma toda iluminada e presa fortemente a Jesus. Senti-me estar toda cingida a Ele com fortes cadeias.

― Minha filha, sou o Médico divino, sei a tua fortaleza, sem um milagre da Minha parte não aguentavas, por um só momento, com o Meu amor e o Meu divino Sangue. Vai, desprende-te de Mim; a cruz está à tua espera; sorri-lhe, vai para ela.

― Não posso meu Jesus. Sei que sois Vós pela luz que me dais, mas não sei o que me prende; não posso separar-me.

― É para que vejas que sou Eu e não tu, Minha filha; não vives de ilusões, não te enganas; é a Minha vida divina nas almas. Não te dou logo a luz, quando te falo, para mais sofreres. São êxtases dolorosos. Vai, vai espalhar o bem: vai salvar as almas.

― Meu Jesus, sabeis quem me pediu para Vos dizer que se quer salvar, que quer o Céu?

― Sei, Minha filha; e Eu prometo-lhe a salvação, prometo-lhe o Céu com toda a Minha glória; cantará em união contigo os Meus louvores eternamente. Depressa, depressa, vai já, vai para a cruz; coragem, coragem.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Eu vou, vinde também comigo; sem Vós não resisto, não venço a dor.

Deixei Jesus, fiquei na cruz logo a sofrer. Passaram-se horas e eu a sentir no coração os espinhos. Penetraram-me tão fundo! Fiz acto de amor a Jesus, mas nada me satisfaz do que eu digo. Que dor a minha!

Setembro

5 de Setembro de 1947 - Sexta-feira

Dói-me, dói-me, meu Jesus, o coração, que espinhos agudos o trespassam dum lado ao outro. Não estão quietos, avivam-me as feridas, estão sempre a sangrar. Lembro-me do Vosso divino amor, e por Vós tudo sofro; lembro-me das almas, Jesus, sou vítima delas, dai-lhes o Céu. Tudo recordo; mas sem alívio; os espinhos ferem-me, é uma roda-viva deles à volta deste pobre coração. Como Ele sofre e verte sangue! Ó meu Jesus, meu Jesus, por mais que eu queira lembrar-me de que nada sofro, para só me lembrar do que sofrestes e sofreis ainda por mim, não sou capaz; os sofrimentos tão agudos e contínuos, esta dor tão penetrante, não me deixa convencer disso.

Sofro, sofro, meu Jesus, e é por Vós. Sofro, sofro, meu Jesus, e apesar de tanto sofrer, nada tenho para Vos dar; sofro e não sei da minha dor. Ó minha cegueira, ó cegueira da minha vida, que fazes tu que tudo me encobres e roubas. Eu te quero e abraço sempre por Jesus. A minha vida, os meus caminhos são secos, tristes e espinhosos; nenhum deles me dá alegria, a não ser esta que é tudo: a vontade do Senhor. Todos eles me trazem amarguras e espinhos agudíssimos. Oh! bendita cruz! Aceitai, meu Jesus, todas as minhas lágrimas; bem sabeis que foram oferecidas a Vós. Perdoai-me os meus desânimos e desfalecimentos; é mais um meio para muitas vezes me humilhar diante de Vós e de Vos pedir perdão de tantas faltas que cometo. Perdoai-me, Jesus, perdoai-me sempre, e alcançai-me a graça de Vos não, ofender.

Eu não posso, por vezes, resistir a ânsias tão fortes e tão loucas de amor a Jesus; parece-me morrer. Quanto mais quero a vida de Jesus e o Seu amor divino, mais despida e fria me sinto de tudo. Tudo é miséria, toda eu sou misérias.

O demónio aproveita-se de todo este estado de alma para deitar tudo por terra, para mais atormentar o meu espírito já tão atribulado. Ai de mim, se falta à minha alma a paz e a força do meu Deus.

Sofri um corte, mas um corte, que abalou tudo, de todos os que me são mais queridos. Como estou só, tão só, sem ninguém! Ter-Vos-hei a Vós, meu Jesus, e a Vossa graça? Se Vos possuo, nada mais quero; estou segura. Que medo, mas ó que medo eu tenho de falar dos meus sofrimentos; é uma nova cruz; não posso dizer que sofro! Nada posso dizer da minha dor e das coisas de Jesus sem grande martírio para a minha alma. Que horror! Ó santa obediência, como tu és poderosa!

A caveira grande e deformada continua dentro em mim; não posso vê-la; e para meu maior martírio tenho que vê-la e senti-la. Que nojo! Ter que fitá-la a desfazer de podridão!

Vi, a noite passada, muitos malvados a açoitar Jesus. Que pena! Nem posso pensar! Tantos algozes contra um inocente! Meu doce Jesus, pertenceria eu também ao número dos que tão mal Vos tratavam!

Na tarde de ontem, principiou o meu coração a arder, sobre este fogo abrasador caiu um mundo de misérias, e trazia com ele toda a maldade e furor infernal. Sobre este mundo veio o Céu. Travou-se uma luta, uma grande guerra; o Céu contra a terra, a grandeza contra o nada, a pureza contra a lama. Nesta luta, nesta guerra, fui para o Horto. Uma electricidade divina parecia faiscar e despedaçar tudo. E eu, debaixo de toda a podridão do mundo e da justiça divina, tinha que lhe satisfazer por tantas maldades. E logo senti a terra a banhar-se de Sangue, saído das veias e suores de Jesus. Vi-O a fitar o Céu e a levantar para ele as Suas mãos divinas com o cálice a transbordar de amargura. A satisfação não estava completa, tinha que seguir o Calvário.

Hoje de manhãzinha veio-me uma grande cruz, de encontro ao peito; acendeu-me no coração o desejo de a beijar e abraçar; logo a senti aos ombros e segui os dolorosos caminhos do Calvário. Senti em meu corpo os vestidos colados de sangue, sangue que vinha das feridas dos espinhos, que, ao eu cair por terra, mais se abriam e aprofundavam. Que chuva de sangue da minha cabeça, ou para melhor dizer, da cabeça Sacrossanta de Jesus! Foi Ele que caminhou e sofreu. Que desfalecimento, ao ver-me já sem vida e ainda tão longe da montanha! Já no alto dela, caí com Jesus, pela última vez; foi perto do lugar, onde ia ser crucificada; bati com o peito no solo duro; nova golfada de sangue me subiu aos lábios.

A dureza de tão penoso Calvário ficou bem gravada em mim. Que doloroso, que indizível Calvário! Que dolorosa e indizível agonia! O Sangue de Jesus não amoleceu aquele rochedo duro. Não sei dizer o que sofri, não sei dizer o que senti, ao ver Jesus fitar no Céu Seus olhos já moribundos e quando ao Pai entregou o Seu espírito. Ele expirou, e eu com Ele dei a vida sem morrer; senti-me morta para depressa ressuscitar. Veio Jesus, e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a alma que anseia amar-Me, ama-Me, quando as suas ânsias são puras e desinteressadas; ama-Me, quando os seus desejos são do coração e da alma, sem outro fim, a não ser possuir-Me a Mim mesmo, viver a Minha vida, a vida do Meu amor, cumprir a Minha divina vontade. Sim, Minha filha, a alma, que se renuncia a si própria, calca a seus pés tudo o que é seu, tudo o que lhe dá prazer e alegria, para Me seguir e abraçar a Minha cruz; essa sim, essa ama-Me, essa busca só a Minha glória e tudo o que é Meu. Mas são tão poucas essas que com tanta pureza podem ser a luz do mundo, a vida das almas aqui na terra! Tu amas-Me. Alegra-te. Goza de Mim.

Aqui ficou Jesus silencioso, e deixou-me a nadar na Sua paz.

― Se pudesses ver, Minha filha, como Eu trabalho em tua alma! Se pudesse ser vista a arte deste Artista divino, quantos a invejariam! Trabalho, porque Me deixas trabalhar; embelezei-te, porque te deixaste adornar por Mim. Minha filha, Minha esposa querida, aqui tens o Meu divino Coração, cheio de amor; é teu, dou-to, porque te amo; dou-to, porque Me amas, distribui pelas almas, dá-o, dá-o, ficas para ti sempre com o mesmo amor. Dou-to, cheio de amor, dou-to para mo guardares dentro do teu; não deixes o mundo feri-lo. É um caso de amor.

Jesus entregou-me um centro com um centro de flores, e por entre elas sobressaíam altas labaredas de fogo. O meu divino Jesus fez-me compreender  e ver a Sua divina luz que era aquele o Seu coração, que aquele fogo era o Seu amor.

― Meu Jesus, pela minha tão grande miséria, não sou digna de ser depositária do mais alto e mais rico tesouro. Se o desses a uma alma que Vos amasse e pudesse guardá-lo para não ser ferido pelos pecadores! Pobre de mim, pobre de mim, não sei amar-Vos, e sou eu própria a ofender-Vos.

― Amas-Me, Minha louquinha, e a prova de que Me amas foi a visão que te dei. Quando viste a imagem do Meu divino Coração, dentro de um pequenino trono, sendo Eu tão grande, era o trono do teu coração; as flores, que Me adornavam, eram as flores das tuas virtudes; a luz, que tudo iluminava, era a luz do teu amor. Confia que Me amas; confia que Eu te amo.

― Que confusão a minha, Jesus; pusestes de parte os meus pecados. Se os juntásseis às minhas pequeninas virtudes, toda a beleza desapareceria. Como sois bom e misericordioso! Eu nada disse, meu bom Jesus, da Vossa linda imagem naquele tão lindo trono, porque receei ser um sonho ou uma ilusão minha. Como sois bom e cheio de misericórdia para comigo!

― Como Eu Me encanto e enlouqueço pelas almas humildes e pequeninas; como Me atraem a si as almas generosas! Dás-Me, Minha filha, em vez do tormento do teu espírito alguns combates do demónio? Quero ser reparado. Oh! Como sou ofendido!

― Ó meu querido Jesus, sabendo Vós que eu tudo quero sofrer, que nada Vos posso negar e que não tenho licença para ceder a esse pedido, para que mo fazeis? Ó meu Jesus, que hei-de eu fazer, que há-de ser de mim.

― Sossega, sossega, filha querida. Eu quero que obedeças e quero ser reparado. Pede, pede, para Me poderes dar essa reparação. Até que ela venha, vou tirando proveito da dor, que vais sentir, por não cederes aos Meus desejos. Vou dar-te o Meu divino Sangue, vou ligar a ti o tubo do amor; ficam unidos os nossos corações e unidos também os nossos rostos. Eu para receber de ti consolação, e tu para receberes de Mim conforto. Recebe vida, recebe vida; recebe amor, recebe amor, recebe amor.

Passaram-se uns momentos nesta estreita união. Ao receber o Sangue de Jesus, fiquei com mais luz; o coração palpitou-me com mais força, senti um novo viver em todo o meu ser.

― Vai em paz, Minha filha; vai para as almas, que necessitam de ti, vai para a cruz, que te espera; vai com confiança. Leva amor, leva amor, leva a vida de Jesus; é a força na tua cruz, é a luz nas tuas trevas.

― Obrigada, meu Jesus.

6 de Setembro de 1947 - Primeiro sábado

Esta noite foi para o meu corpo um doloroso Calvário. Que tormento estar sempre a queixar-me. Eu não digo isto por queixume, digo-o por obediência. Como outra coisa não tenho, a não ser a dor, é desta sempre que eu falo. Jesus aceita o meu sacrifício. Sofri, sofri dores triturantes, mas quase me esquecia que sofria para me unir a Nosso Senhor, para maior consolação Ele poder receber.

Esperei o meu Jesus com tanta ansiedade; nunca mais chegava a hora de O receber; veio enfim, baixou ao meu pobre e indigno coração, fez-me logo sentir que era Ele. Encheu-me, o meu coração fez-se tão grande, parecia não me caber no peito; estava como se tivesse em mim toda a abóbada do Céu. Disse-me Jesus:

― Minha filha, os tesouros do meu divino Coração são inesgotáveis para o mundo; por ti os faço descer a todos os corações, a todas as almas. Pobres daqueles que os não querem receber! Que riqueza! Como tu és grande! És tão grande como o Céu. Tens o coração e a riqueza do próprio Deus que enche o Céu e enche a terra. O mundo é cruel. O mundo é ingrato. Ofende-Me tanto! Eu não posso fitar as suas maldades. Ofereço-Me constantemente ao Meu Pai para aplacar a Sua justiça divina; ofereço-Me com as minhas vítimas, mas são tão poucas! Tu és, filha querida, a primogénita de todas as vítimas, és a que rematas a cruz, estás no lugar mais alto. Brilha no alto dela sobre a tua cabeça o diadema da pureza e do amor, o diadema da vitória.

― Ó meu Jesus, quanto mais dizeis mais me humilhais; bendito sejais por me humilhardes assim na Vossa divina presença. Tendes razão; cheia como estou das Vossas riquezas, são elas que os Vossos divinos olhos vêem; é delas que podeis falar. Eu vejo a minha miséria; graças infindas Vos rendo por tão grande graça.

Jesus deixou-me por algum tempo a gozar da Sua grandeza, e ficou em silêncio. Depois, continuou:

― Minha filha, dás-Me, durante três noites, das 10 às 11, das 11 à meia-noite, umas horas de reparação? Oferece-Me tudo e não cesses de Me repetir constantemente actos de amor, ora com os lábios, ora com o coração. Vou ser nessas horas muito ofendido, ó minha esposa querida, e pelos sacerdotes. Já não falo nos crimes dos outros pecadores, falo destes que se dizem Meus amigos, e ofendem-Me tanto. Se disser que não, alguns conhece-los, a outros não.

― Não quero saber o nome de nenhum, meu Jesus; fico mais sossegada assim, e a reparação é a mesma, não é, meu Amor?

― É maior ainda, esposa amada; sofreres, dares, sem saberes a quem, maior é a consolação que por ti recebo. Sofre, sofre e ama, para mais Eu poder esquecer o que eles Me ofendem. Diz, Minha filha, ao teu Paizinho que sempre foi e será o teu director, escolhido pela Santidade e Sabedoria divina. Diz-lhe que Eu farei que ele seja para as almas um viveiro de luz e amor. Farei que venham ao Meu divino Coração, cheias de mim como formigas em bando, cheias de alimento para o seu celeiro. Diz-lhe que o Meu divino amor para com ele Me leva a fazê-lo subir ao mais alto grau de perfeição. Ele cantará eternamente o hino dos predestinados. Diz ao teu médico que o Meu divino Coração anseia por o cobrir e encher a ele e a todos os seus de novas graças e bênçãos. Diz-lhe que em tudo o prometo amparar e proteger. É sempre o Meu divino amor sobre ele, quando o consolo ou faço sofrer. Amo-o e prendia para sempre a Mim. Diz-lhe que os raios de luz, os raios brilhantes de sol se vão espalhando cada vez mais, mas não chegarão ao seu fim sem que novas nuvens tentem encobri-la. A sua fortaleza e o seu brilho rompe tudo, e tudo iluminará. A vitória é certa; sempre firme no seu posto. Que dita a ele e de todos os que com ele trabalham serem defensores da causa mais rica, da causa do Senhor. Vem, Minha Bendita Mãe, vem em auxílio da Nossa filhinha, junta ao Meu o Teu conforto, necessita dele para tanta dor.

Veio a Mãezinha coroada e trazia manto de rainha, bordado a oiro:

― Sofre com alegria, desagrava o Coração divino de Jesus e o Meu. Que onda, que incêndio de crimes nos ferem. Tanta inocência perdida! As praias e cinemas, que inferno desencadeado! São piores que demónios; muitas almas com as suas vaidades e desonestidades provocadoras excitam tanto e tantas outras ao mal. Olha como tratam o Meu Santíssimo Coração.

De Rainha transformou-se a Mãezinha na Virgem das Dores: olhar angustioso, o rosto tristíssimo e o Coração cheio de setas.

― Ó Mãezinha, querida Mãezinha, passai para mim a Vossa dor, as Vossas setas; quero sofrer todos os sofrimentos, os de Jesus e os Vossos, dai-me força, dai-me graça.

― Deixa-te então imolar, deixa que os espinhos dirigidos ao Coração do Meu Jesus te firam constantemente o teu. Sofre para Ele não sofrer; aceita as minhas setas para eu não sofrer também.

Ficou a Mãezinha libertada do sofrimento; todo se passou para mim. Aproximou-se de Jesus; Ele, dum lado, e a Mãezinha, do outro, acariciaram-me, uniram aos Seus Santíssimos rostos ao meu, cobriram-me de amor. Disse a Mãezinha:

― Leva, Minha filha, estes amores, e vai dá-los em Meu nome àqueles a quem amas. Quanto mais o teu coração se atrair para eles, tem a certeza de que Jesus e Eu os amamos loucamente. E pede-lhes então para Nos amarem, amarem apaixonadamente e para repararem com grande reparação os Nossos dois Corações unidos na mesma dor, no mesmo amor.

Acrescentou Jesus:

― Vai, filhinha, vai pomba branca, forma o teu voo para a cruz, fixa em Nós os teus olhares. Coragem, coragem.

― Obrigada, Jesus, obrigada, Mãezinha. Não me abandoneis na minha luta.

12 de Setembro de 1947 - Sexta-feira

Meu bom Jesus, sinto-me a não ter fé, nem amor, nem confiança. Que negra cegueira, que penosa vida! O demónio tenta-me, quer convencer-me de que não existe Deus, nem Céu, de que a religião é falsa e falsa é a minha vida. Tenho medo, Jesus, medo de mim, da minha vida e medo de Vós. Tudo se esconde, tudo se apaga, não tenho nada bom; o meu coração é um rochedo, está num mundo de gelo; piso em nojenta e peguenha lama, não posso desprender-me e sair dela. Que luta, que combate dentro de mim. Mas Vós existis, meu Jesus; sim, meu amor, em tenho confiança em Vós. Não sei dos actos de amor nem da reparação, que Vos dou; não é o meu coração nem os meus lábios que falam, não é o meu corpo que sofre e repara; é um outro, que não sou eu, a sofrer e a amar. Eu sou um nada nas mãos de Jesus. Eu não vivo, mas vive alguém; eu não sofro, mas alguém sofre; eu não amo, mas alguém ama em meu lugar. Se nada faço, ó meu Deus, que estou aqui a fazer? A Vossa divina vontade Senhor. Que os Vossos braços Santíssimos sejam as doces cadeias, que me prendem, para não ser arrastada por tão tremenda tempestade.

Nas horas da noite, que Jesus me pediu, para reparar e fazer-Lhe actos de amor, fiz todo o esforço para sofrer com perfeição e com amor para consolar Jesus, para Ele esquecer os crimes com que era ofendido. Tudo o que dizia eu fazia, morria, mas, apesar disso, era um verdadeiro inferno contra mim.

Os demónios queriam assaltar-me, mostravam-me os crimes e queriam levar-me a praticá-los. Que ódio contra mim e contra Jesus! Quanto mais eu O acariciava mais aumentava o furor do maldito. O inferno estava aberto, toda a raiva caía sobre mim. Sentia como se estivesse Jesus entre o inferno e os culpados. Nada mais sei dizer, digo apenas o que sei e sinto.

O pobre do meu corpo continua a ser, ora numas horas, ora nas outras, um esqueleto, caveira, chagas, espinhos, setas, dor e sangue. O que é a minha dor, só Jesus a compreende. E isso basta. Que Ele ma aceite para reparação Sua.

Tive a visão de Jesus na coluna, a ser açoitado num enorme madeiro, crucificado. Nunca O vi em cruz tão grande. Quase da altura Dele, cruzada uma sobre a outra estava a lança e a esponja; cruzavam contra o seu santíssimo peito. Tanto do alto da cruz como da coluna a ser açoitado, das suas feridas, das suas divinas carnes despedaçadas saíam raios mais brilhantes do que o sol. Eram tanto sóis quantas as feridas de Jesus. Tudo em mim e à volta de mim era escuridão. Só a luz, só o sol de Jesus brilhava. Meu Jesus, seja o meu corpo açoitado, seja eu, sempre eu pregada na cruz. Gozai na vossa glória, aceitai todo o louvor que Vos pode dar a aterra e o Céu. Sou a vossa vítima.

A visão de tais sofrimentos levou-me ao Horto. O céu parecia faiscar e combatia com a terra; o solo tremia com suas árvores e folhas. No meio da noite negra e silenciosa, Jesus ali agonizava. Vi-O beber, beber o cálix da amargura até à última gota. Passaram-se já tantas horas e eu ainda sinto aquela dor e como se Ele ainda estivesse a beber na mesma amargura. Assim segui hoje o Calvário, curvada com Ele sob o madeiro da cruz, ardia no mesmo fogo, sofria a mesma sede de dar a vida. Que angústias as do coração e da alma! As carnes e o sangue ficavam nas ruas da amargura. Que desfalecimento! A vida fugia, o Calvário não chegava. Do Céu não vinha uma luz nem um conforto; só a raiva humana com mais crueldade descarregava sobre Nós nova chuva de açoites. Os suores corriam pelo rosto de Jesus, assim como corria o sangue das feridas dos espinhos. Não posso pensar no esforço que fazia o meu amado Senhor para Se manter de pé, junto ao lugar onde ia ser crucificado. Vi a sua sacrossanta cabeça com o rosto moribundo inclinar-se para a terra. Fomos os dois crucificados, mas não sei como, não era o meu sangue que corria das chagas, era o de Jesus, e corria dentro de mim. Senti abrir-se-me o lado e ir a lança lá dentro atravessar-me o coração; foi como uma espada finíssima aquele corte, ficou sempre vivíssimo em todo o tempo da agonia assim como o amargor do fel. No coração senti todo o ferimento de Jesus e o abrir dos seus divinos olhos ao entregar a alma ao seu Eterno Pai.

Ele expirou, e eu com Ele me senti expirar. Reinou por algum tempo o silêncio da morte. Houve nova vida, viveu Jesus e fez-me viver a mim e disse-me:

― Minha filha, meu sacrário, palácio onde habito e reino; reino em ti e por ti vou reinar a muitos corações.

Ficou silencioso. Algum tempo depois, disse-me assim:

― Sim, minha filha, é por ti que nas almas Eu reino. Se soubesses quantas transformações, quantas conversões com sincera emenda de vida aqui junto de ti neste teu quartinho, neste Calvário onde te coloquei, calvário de dor e amor! Quantas almas há que entraram aqui com Satanás no coração e daqui saíram levando-Me a Mim, com uma dor profunda e firme propósito de emenda! Expulsaram o demónio e Eu tomei lugar em seus corações. Coragem, coragem, minha vítima amada! A tua dor, o teu martírio não cessam um momento, porque nem um só momento as almas deixam de precisar de ti. Que maldades, que maldades; que ondas, que incêndio de crimes! Diz, minha filha, que Jesus o diz: “Sou ofendido como nunca o fui. Se não fosse a Santa Missa, se não fossem as minhas vítimas, se não fosse a minha vítima primogénita com minha Mãe santíssima, já o mundo teria sido destruído pela justiça divina, pela justiça de meu Pai”.

Sofre, sofre com alegria, fala do meu divino amor às almas, fala-lhes da minha misericórdia, pede-lhes que se convertam, diz-lhes que venham a Mim. Coragem! Com os teus sofrimentos tens salvo, continuas a salvar milhares, milhares e milhões de almas. Eu não posso sofrer nem fazer mais por elas, faço-o através de ti, és comigo outro Cristo, és comigo redentora, é por isso que a minha redenção continua.

― Ó meu Jesus, confundo-me, envergonho-me à vista da minha miséria. A quem escolhestes Vós para convosco salvar almas? Eu queria, meu bom Jesus, poder salvar a todas. Eu não quero ver-Vos ofendido; eu quero a vosso consolação e alegria e por mim não posso, nada tenho, nada valho.

― Não podes sem Mim, é certo, mas Eu ao entregar-te a mais sublime missão enriqueci-te, tens todos os meus tesouros; é comigo que tu amas, é comigo que salvas as almas. Tu não vives, é Cristo que vive em ti, é com Cristo e por Cristo que te imolas; é por Cristo e com Cristo que as almas são salvas. Alegro-me nos pequeninos, é nos humildes que Me consolo. Pede, minha filha, a lista das almas do Purgatório que queres livrar.

— A tua missão na terra é bem curta, bem depressa virei buscar-te; é breve, breve, não o digo só para te dar conforto. Anima-te. Quantas mais trevas, mais luz; quanta mais morte, mais vida; o fim do dia traz a escuridão; a vida termina com a morte, mas só aqui na terra. Como a tua vida é só minha, já é a vida do Céu. São trevas de luz, é a morte das vidas. As almas, as almas, minha filha, são tuas as almas. Vamos à vida que te dá vida. Vou dar-te a gota do meu divino sangue.

Jesus introduziu o tubo, uniu os corações; o meu, com a gotinha do preciosíssimo sangue de Jesus principiou a dilatar-se. Jesus com o seu carinho fez parara a dilatação, mas não retirou logo o seu divino Coração.

― É amor, amor divino que te dou, filha querida. Vai distribuí-lo e espalhá-lo. Vai, jardineira do Jardineiro divino; confia em Jesus, que te ama; confia, Deus não muda, não falta ao que promete. Vai para a tua cruz, quero a tua dor.

Tu serás para os sábios que possuem a Minha luz, maior luz; serás para aqueles a quem a quis dar e não a aceitaram, grande confusão, maiores trevas. Passou para muitos, no sentido da Minha divina causa, a hora da graça. Coragem! Vai contigo toda a luz do Divino Espírito Santo, vai Ele falar em teu coração.

― Meu Jesus, muito obrigada. Queria todos os corações do mundo, para oferecer-Vos, cheios de amor e todos os lábios para agradecer-Vos todos os benefícios.

A minha cruz, a minha dor! Fiquei logo nela, depois do colóquio com Jesus. Passaram-se umas horas; como eu sinto a minha alma chorar! Viva Jesus: salvem-se as almas.

(Beata Alexandrina: Sentimentos da alma, 12 de Setembro de 1947 - Sexta-feira)

20 de Setembro de 1947 - Sexta-feira

Não acredito em mim mesma, não posso confiar nos bons sentimentos de minha alma, nas ânsias sinceras do meu coração. Pensar que Jesus tudo vê e conhece, não me dá alegria, nem por isso deixo de sentir que posso pôr bons sentimentos e bons desejos com grande amor na alma e no coração, quando eles nada disso têm; posso ser impostora para mim, para todos e para o meu querido Jesus. Que miséria, que miséria, meu Deus! Mas nem por isso, ó meu Jesus, eu quero, noite e dia, a cada momento, deixar de repetir: amo-Vos, sou a Vossa vítima. Tenho que lutar, tenho que vencer-me, para poder oferecer ao meu Jesus aquilo que não sou, aquilo que não tenho. Jesus está no primeiro andar e outros com mais complicações. Encobrem tudo o que Ele podia ver e ler. Hei-de vencer; é esta a minha confiança, com Jesus tudo venço. Confio contra tudo. Venha o mundo, venha todo o inferno a dizer-me que não Lhe pertenço, que eu responderei sempre: sou Dele e só Dele, na terra e no Céu, eternamente Dele.

São negras e arrepiantes as minhas trevas; são assustadoras as dúvidas de toda a minha vida e do meu amor a Jesus. É horrorosa a luta da minha alma com o demónio. Ele pôs em mim sentimentos vergonhosos; parece-me que quero, que anseio pelos combates com ele, para gozar os prazeres mundanos. Que horror, que horror, meu Jesus! Eu quero amar-Vos e reparar-Vos de todas as ofensas, e nada mais; ajudai-me a vencer e a convencer-me que só Vós reinais em mim e só Vós sois a única verdade.

De noite, tive uma visão; vi-me dentro dum templo, de joelhos, junto ao altar, onde estava o sacrário. À portinha dele, muito unidinho, como que para entrar para dentro estava Jesus Menino; era Formosíssimo; não tinha mais de dois ou três anos. Fitou-me com os Seus olhos encantadores; os Seus olhares divinos foram para mim olhares de convite para entrar também. Não cheguei a fazê-lo; de repente desapareceu Jesus, o Sacrário e o templo, fiquei sozinha, mas mais forte e corajosa e com mais ânsias de me unir para sempre a Jesus na Eucaristia. Estes mimos do meu Jesus são para mim injecções vindas do Céu; com elas que eu aguento com esta caveira mundial, com as chagas, espinhos e as setas da Mãezinha. Com elas vou resistindo a tão grande sofrimento e ânsias de amor. Como Jesus é bom, como Ele me auxilia a levar a minha cruz!

Na tarde de ontem, ainda mesmo por ter que responder a muitas perguntas que me foram feitas sobre as coisas de Jesus, sofria a minha alma e via, ao mesmo tempo, uma cegueira mundial, pior que a minha cegueira, mais dolorosa que as minhas trevas, pois era cegueira de maldades e crimes; eu rompia por entre elas com o coração a arder, ou melhor, rompia Jesus e o fogo era d’Ele. Num rápido momento, vi-O abraçar a cruz, oferecida por aquela cegueira maldosa que eu via. Depois desse abraço, tomou-a para Ele e caminhava com ela, de braços abertos, mas sempre com um braço do Seu divino Coração; aquele abraço abraçava todo o sofrimento. Assim cheguei com Jesus ao Horto; sofri ali com Ele o cálice amargurado, com Ele senti esmagar-se-me o coração, romperem-se-me as veias e o sangue correr. Não sei se sim se não, mas pareceu-me adormecer. Ao despertar, fui ainda encontrar Jesus na mesma agonia do Horto. Pensei a noite já a ir alta, mas não ia, era cedo ainda. Fui com Ele para a prisão, lá O deixei quase moribundo.

Hoje, mais moribundo ainda, segui com Ele as ruas do Calvário. Sentia pisar só espinhos pelos caminhos árduos e duros.. Jesus desfalecia cada vez mais. O meu coração sentia todo o Seu esforço. Pobre Jesus, queria caminhar e não podia; era arrastado pela maldade e pelo amor; foi ele, só ele que o conduziu ao Calvário. A cruz fui eu, Ele foi em mim crucificado. Eu sentia tanto ao vivo as Suas chagas divinas! O meu corpo parecia ser só o de Jesus. Custou tanto ao meu coração sentir os martelos a baterem sobre os cravos. As pancadas não iam só para as chagas vinham também para o coração. Pelo Coração divino de Jesus eu via as setas  no Coração da Mãezinha, via as suas lágrimas e olhares angustiosos e as ânsias do Seu Santíssimo Coração de querer subir à cruz a limpar o rosto Santíssimo de Jesus, apanhar em seu manto as lágrimas de sangue e curar-Lhe todas as Suas feridas. O Calvário mantinha-se duro e toda a montanha que era o mundo se levantava contra Jesus com ondas de sofrimento piores, muito piores que as ondas mais furiosas do mar. O inocentíssimo Jesus estava num gemido contínuo. Eu sentia em mim abrirem-se os Seus divinos olhos ao bradar ao Seu Eterno Pai. Quando Jesus disse: Pai; nas Tuas mãos entrego o Meu espírito, falou o Seu divino Coração: é chegada a hora do amor, morro por Vós, não posso fazer mais, e expirou. Tempo depois, já com toda a vida fez-me viver também e disse-me:

― Minha filha, fonte de vida, abismo sem fim, abismo inesgotável dos tesouros e maravilhas do Senhor. Enriqueci-te, enriqueci-te, com tudo o que era meu; não te enriqueci para ti, enriqueci-te para o mundo, para as almas. Fiz tudo, empreguei todos os meios para lhes acudir, para as salvar. E a recompensa? O que me fazem elas? Olha para Mim, repara bem, Minha filha.

Estava Jesus em seu tamanho natural, sem manto da cintura para cima,, mas só do lado esquerdo; tinha o peito aberto e da chaga do Seu divino Coração corria o sangue em bica.

― Basta, basta, meu Jesus; não derrameis mais sangue, quero vertê-lo eu, não Vos quero com tão grande sofrimento.

― Ó esposa, ó esposa querida, aceitas que grave em teu coração esta chaga? O sangue que dela vai correr será o sangue da tua dor. É grande o teu martírio, é grande o teu amor como grande é a missão que te dei. Que sublime que ela é! Tu és, Minha filha, o pára-raios que está mais alto, mais próximo do Meu Eterno Pai, para receberes os raios da Sua justiça divina; sobre ti descarrega tudo à Minha semelhança.

Cerrou-se a chaga e o lado de Jesus, e logo em meu coração principiei a sentir correr a mesma bica de sangue.

― Custa-me muito sofrer, meu Jesus, mas custa-me imensamente mais ver-Vos sofrer a Vós. Aceito todo o sofrimento só para Vos reparar e dar-Vos consolação. Aceitaria, Jesus, aceitaria, que é Vossa e não minha; sois Vós que reparais, sois Vós que consolais, sois Vós que amais em mim, sois Vós, só Vós que sofreis. Eu sou um instrumento Vosso, sou nada, sou miséria.

― Tu és a estrela do mundo, a louquinha de Jesus, a lâmpada dos sacrários, a sentinela Eucarística. Tomo à letra tudo quanto Me dizes e como prova de que é assim mostrei-te em Mim o teu retrato, junto da Eucaristia. Não Me repetiste há tanto tempo, tantas vezes: eu quero ser a sentinela dos Vossos Sacrários? Aceitei; foi por isso que te Me fiz ver à portinha como sentinela. A minha cabeça inclinada sobre o Sacrário e o Meu olhar de convite para ti foi para te mostrar que assim estás unida a Mim na Sagrada Hóstia. Se soubesses a alegria que de ti recebo nesta união! Se soubesses como com a tua guarda de sentinela tens evitado que Eu ali seja maltratado, recebido sacrilegamente, que alegria seria a tua! Viste-Me pequenino junto ao Sacrário, porque pequenina te vejo em todas as coisas, à semelhança de Mim. És pequenina para seres grande para as almas e para o Céu.

― Meu Jesus, a quem escolhestes Vós. Causa-me horror ver-Vos utilizar deste trapo de misérias.

― Não pode o Rei escolher para Si a esposa mais pobrezinha e vesti-la e adorná-la com as vestes mais ricas e as pedras mais preciosas? Eu sou Rei, escolhi-te para Mim, adornei-te, enriqueci-te, não olhei à tua miséria. Coragem! Conta com Minha graça; com ela te tornarás sempre digna de Mim. Vou agora dar-te a gota do Meu divino Sangue; é esta vida para ti, sem ela não viverás. Recebe vida e dá vida.

De repente, introduziu Jesus o grande tubo de oiro em meu coração, a gotinha do Sangue precioso caiu; o coração ficou logo grande, grande; não podia tê-lo em meu peito. Jesus acudiu logo, espalhou sobre mim a Sua chuva de amor, foi um orvalho fecundo que tudo suavizou.

― Vai para a cruz, filha amada, não duvides de Mim, confia no Meu amor, nas Minhas divinas promessas. Pede-Me o que quiseres, nada te negarei nem na terra nem no Céu. Só não alcançarás de Mim o que for de prejuízo para as almas. Nada posso negar a esposa tão amante e fiel, nada posso negar à grande heroína que nada Me nega. Vai em paz, vai plantar nas almas as tuas flores de virtudes. Toma a cruz, sempre alegre no teu Calvário, no teu inigualável Calvário.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Dai-me a Vossa santa alegria para eu com ela poder sorrir a todos os sofrimentos que me dais; quero em todos ver-Vos a Vós, só a Vós e só para Vós sorrir.

Logo que Jesus se ausentou, fiquei sobre a cruz a derramar o sangue das chagas e dos espinhos. Caiu sobre mim uma tristeza profunda. Quanto tenho que vencer-me para poder sorrir-me. Ó cruz, ó cruz eu, amo-te.

26 de Setembro de 1947 - Sexta-feira

Passo o dia, vem a noite, e eu vazia, sem nada ter dado a Jesus e sem nada ter para Lhe oferecer. Não posso examinar a minha consciência. Um dia, um mês, um ano e outro ano, sempre a sofrer, e sem ter que dar e sem amar o meu querido Jesus. Que pobreza, que miséria! De cada vez mais vazia, de cada vez mais defeitos. Ó meu Deus, poderei eu dar-Vos menos do que Vos tenho dado? Oh! Não; sei que não, e não tenho mais, não sei mais nem melhor. Ai, pobre de mim, a minha cegueira só me mostra miséria e maldade; e para melhor eu ver esta maldade, sinto-me, por vezes, tão sábia, capaz de enganar toda a gente com a minha sabedoria. Sinto-me até vaidosa por saber e poder enganar toda a gente. Que horror, ó meu Jesus, que horror! Se eu quiser enganar! Se eu pensasse em enganar! Mas nem ao menos isso. É pela graça de Deus que não o penso nem faço. Mas oh! que doloroso martírio, ver e sentir tudo isto em minha alma! Poderei vencer? Poderei passar assim os meus dias, ó meu Jesus? O que seria ou será de mim sem a graça e a protecção do Céu! Sou tão miserável e cheia de defeitos, sou um nada capaz de todas as maldades, sou um nada incapaz de fazer algum bem.

A minha alma chora e o coração anseia, quer só pertencer a Jesus, quer dar-se a Ele, perder-se Nele.

Passei quatro dias sem O receber. Que fome indizível! Que ânsias insuportáveis! Quantas vezes voava em espírito para junto da Eucaristia e Lhe dizia: Jesus, meu Amor, vinde a mim, estou a morrer de fome, desfalece-me a alma e o corpo; vinde, vinde, enchei-me e operai em mim tantas graças como se Vos recebesse Sacramentado. Nestes momentos, ficava a nadar num mar de paz, mas sempre com as mesmas ânsias e fome devoradora. Não sei; sinto que só no Céu posso ser saciada de Jesus; aqui, na terra, por mais que corra e voe para Ele, mais vazia me sinto e mais Ele me foge. Eu já não vivo, de mim ficou a dor, essa é a que eu sinto, mas nem essa agora me pertence. Ah! Se eu amasse ao menos O meu Jesus, e se nunca O ofendesse! Eu não sei, mas sinto que Jesus deve estar muito desgostoso comigo; não Lhe dei, com certeza provas de toda a minha confiança Nele.

No dia 21, passou o aniversário do meu médico. Veio visitar-me com a esposa e 7 filhinhos entre os quais vinham todos os meus afilhados. Não digo que senti alegria, porque essa Jesus não me permite senti-la, mas, sim, uma grande estima junto com um grande conforto. Retiraram-se ao ser noite. Passados uns momentos, principiei a sentir em mim uma grande preocupação; cheguei a perguntar se o carro teria luz. Não pude orar, para que tivesse boa viagem, porque estava acompanhada, mas nem por isso o meu coração deixava de Lha desejar. Passava já de uma hora solar, quando nos parou à porta um carro; bateram; minha irmã, sobressaltada, foi ver o que se passava. Era o filho mais velho do meu querido médico, que vinha à procura do Pai, da Mãe e dos irmãos. Não sei dizer o que senti, pareceu-me que fiquei louca; não pude conter as lágrimas, chorava em grande aflição; vi tudo pelo pior. Ao ver esse querido filhinho com sinais de profunda dor, sem pensar o que dizia, exclamei: eu sou uma desgraçada e a desgraça de toda a gente. Ao acabar de pronunciar a última palavra e a reflectir no que dizia, veio-me logo o arrependimento, e, ao mesmo tempo, o remorso pelo mau exemplo que acabava de dar. Meu Jesus, perdoai-me, já não tem cura; é desta forma que eu Vos amo, tende compaixão de mim.

Travou-se um combate, dos mais aterradores da minha vida. Estava Jesus, o demónio e eu. Eu vi-os todos em estilhaços e em sangue, sem vida, onde só depois de dia se podiam encontrar. Nove pessoas! Ai tanta criancinha, exclamava eu, e por minha causa; se não fosse eu, eles não vinham aqui. Nesta dor indizível, Jesus, no íntimo do coração, dizia-me:

― Sossega, Minha filha; não houve desastre, não há o mais pequenino ferimento. Eu não permitia isso àquele a quem tanto amo e tão firme e fielmente tem cuidado e velado pela Minha divina causa. Sossega, confia em Mim. Estou para ver a tua coragem. Permiti isto para grande reparação; repara. Sou, nesta noite, tão ofendido.

Jesus segredava-me isto docemente, e o demónio, forte e bruscamente, dizia-me:

― Só assim a tua vida será descoberta. Que grande castigo! Já todos estão no inferno, até mesmo dois dos teus afilhados. Olha que horror; foram as tuas maldades! Eles eram inocentes, mas foi por ti que foram condenados. Este já não chega a casa.

Referia-se ao que tinha vindo procurá-los.

― À procura deste vêm os que estão em casa; acabam, nesta noite, todos os descendentes daquele a quem tanto odeio. Só assim me satisfaço do mal que ele me tem feito e podia vir a fazer. Que castigo, que vergonha!

Jesus, no íntimo, repetia-me sempre o mesmo, e o maldito, muito satisfeito, maltratava-me de insultos. Eu orava, orava, e chorava, não podia estancar as lágrimas. Ardiam duas velas a Jesus e à Mãezinha; pedia-Lhes sossego, pedia-Lhes conforto. Oferecia a Jesus todo o sofrimento para reparar o Seu divino Coração e O da Mãezinha e por várias intenções. Mas eu não podia mais, o meu espírito já não resistia. O demónio tentava vencer-me e calar a Jesus. Eu temia vacilar. Senti que Jesus veio expulsar, para longe, o demónio. Fiquei mais calma por um pouco; deixei de chorar e continuei a orar. Oferecia a Jesus o cântico dos galos, que duma e doutra parte, se ouviam e as festas de um gatinho que junto de mim estava. Aceitai todo este louvor, já que eu não vo-lo sei dar. Queria pedir para me porem no chão duro, para fazer penitência, com uma firme confiança de que, ainda que todos estivessem mortos, Jesus a todos podia ressuscitar. Porque, nesta altura, já o demónio tinha voltado com as suas falsas manhas e mentiras. Eu então vi-os a todos conduzidos ao hospital, em mísero estado. E um caderno e uma carta que o senhor doutor levava, visto e lido por quem queria; já tudo se sabia. Jesus ia bradando:

― Confia no teu Jesus, não há ferimento nenhum. Prova-Me a tua confiança em Mim. Foi o meu divino amor, que assim vos quis associar.

Chegou a hora em que eu tinha dito ao filhinho do senhor doutor, se não aparecesse ninguém que ficava sossegada, que tudo estava bem; mas não foi para mim, não consegui sossegar. Era já dia; eu não pedia para mandarem saber o que se tinha passado, para mostrar a Jesus que confiava Nele e não dar alegria ao demónio. Depois de insistirem, aceitei. Ao ser informada pelo senhor doutor do que se tinha passado e de que, na verdade, não havia ferimento algum, chorava, agradecia e louvava ao Senhor; oferecia-Lhe os meus suspiros e continuei a oferecê-los, por espaço de alguns dias, porque, sem querer, tinha que suspirar e respirar fundo. Não sei dizer o mal que esta aflição deixou em mim. Por tudo bendigo Nosso senhor, mas a dor das palavras que, sem querer, pronunciei, continua ainda. Tenho confiança que Jesus me perdoou.

Ontem, logo de manhã senti, além dos espinhos, que diariamente me cingem a cabeça, nova coroa deles por cima; parecia-me que eles me chegavam ao coração. Sentia os meus vestidos ensopados em sangue, colados ao corpo. Sentia isto em mim, e via ao mesmo tempo, em mim Jesus, com esses espinhos, com esses vestidos em sangue no Seu Santíssimo Corpo. Isto repetiu-se, durante o dia. Ao cair da tarde, quando se repetiu este sentimento e visão senti uns arrepios de frio, que me fizeram tremer; e vi Jesus muito triste a tremer também.

Não vi Jesus, ao sair da sala da ceia, despedir-se da Mãezinha, mas via a Ela, no cimo das escadas, a seguir os passos de Jesus para o Horto. Por Jesus vi os Seus olhares dolorosos, já sem O ver, e quanto ao Seu Santíssimo Coração O seguia e adivinhava o que Ele ia padecer. Que união de dor e amor era o daqueles dois Corações! Jesus caminhava, à frente dos Apóstolos não se preocupavam nem sofriam pelo que iria acontecer; iam cheios de cansaço, e, já no Horto, adormeceram. Jesus orou, suou sangue, viu-se desfalecido a caminho com a cruz, prestes a dar a vida; bebeu o cálice até à última gota. Que amargura que produzia trevas e fazia tremer a terra!

De madrugada, fui encontrá-Lo na prisão. Tremia de frio. Tinha perdido tanto sangue! Ó que desfalecimento era o Seu! Associei-me à Sua dor e tristeza, e como Ele fiquei desfalecida. Saí da prisão, nesta santa união; acompanhei-O, segui os mesmos passos. Depois, de açoitada e ferida com os mesmos espinhos de ontem, tomei a cruz, segui o Calvário, com a lança atravessada no coração. Sentia nos meus joelhos e no meu rosto as feridas, e parecia que em mim batiam as duas lajes: ou antes que eu com Jesus batia nelas. Como eu sentia todo o meu corpo ficar sem vida e sem sangue! Junto a Jesus, caminhavam os dois ladrões com as suas cruzes; ao lado de Jesus, foram crucificados. Eu sentia que os sofrimentos, as cruzes deles sobrecarregavam sobre mim, sobre a cruz de Jesus, que em mim estava. Sentia sair do Coração divino de Jesus o mesmo amor; as mesmas graças. Eu aceitava-as, o outro repelia-as. Jesus sofria, agonizava.

Hoje, no Calvário, e, ontem, no Horto, eu sentia que quanto maior era o sofrimento, a agonia de Jesus, mais o peito arquejava e coração batia! Sentia no meu as palpitações do Dele! Quando Jesus fazia romper o Seu brado  ao Eterno Pai, eu sentia, como se o mundo viesse abafar-lho, ao sair dos Seus divinos lábios; ficava como se não subisse ao Céu; sumia-o a maldade do mundo. Neste abafamento angustioso Jesus expirou. Senti-me também morrer e a minha alma deixar. Passou-se algum tempo em silêncio e noite morta.

Veio Jesus, e disse-me:

― Minha filha, tabernáculo de delícias, coração de fogo, coração de amor. Aqui, como em nenhum outro coração, Eu Me delicio e sou amado; aqui, como em nenhuma outra vítima, Eu recebo reparação. Repara, repara; a dor é cruz, a cruz é amor. A dor e o amor dá aos ingratos, dá aos pecadores o Céu. Se não fosse a dor e o amor abrir-lhes as portas, não havia Céu para eles apesar de existir. Continua comigo a obra da redenção; acode ao mundo, acode ao mundo. Tu és alma pura, trigo loiro joeirado, seara florescente das almas. Coragem, Minha filha! Salva-Me os pecadores. O número dos criminosos aumenta e o das almas vítimas diminui; atemorizam-se ao sentirem os sofrimentos; ao verem a cruz fogem, fogem, fogem; tornam-se tíbias e ingratas para o Meu divino Coração.

― Ó meu Jesus, ao número desses infelizes pertenço eu também. Eu fui ingrata para Vós, não soube sofrer, não aceitei também a cruz que de novo me enviastes. Que confusão a minha, ao ouvir-Vos dizer que Vos deliciais em mim, depois de eu ter sido tão má! Perdoai-me, meu Jesus, perdoai-me; dei mau exemplo, tende misericórdia de mim.

Jesus sorriu, cheio de bondade, e disse:

― Não Me ofendeste, não, Minha filha. Eu sorri, ao ouvir-te falar assim em tão grande aflição. Permiti que assim falasses, para tirar da tua dor a reparação, que desejava. Não Me ofendeste, não; confia em Mim. É no meio da luta, no combate mais renhido que a alma fiel, a alma forte mostra o seu amor a Jesus. Se o combate só fosse um não custava nada vencer. Consola-Me tanto ver-te na Minha divina presença humilhada! Tem coragem! Sê forte na cruz. Sê forte na dor. É com essa fortaleza, é com esse conjunto de dor e amor que acodes às almas, que acodes ao mundo, que te confiei, e que é tão ingrato para Comigo. Vê no estado em que Me põem os pecadores. Sou por eles ferido com as suas horrendas maldades, como o caminhante que é assaltado por ladrões, que procuram todos os meios para lhe tirarem a vida. Não morro, porque não posso morrer, mas repara bem no estado em que Me puseram.

Vi Jesus, caído à borda de uma estrada; era um mendigo chagado, esfarrapado, a tiritar de frio; parecia estar nos últimos momentos de vida. Acudi logo:

― Meu Jesus, quero levantar-Vos e não posso, quero curar-Vos as Vossas chagas e não sei quero consolar-Vos e não tenho com quê. Sou a Vossa vítima. Quero perder eu a vida, e assim chagada como Vós estais a tiritar, não de frio, mas de dor. Alegrai-Vos, Jesus, com a alegria, consolai-Vos com a Vossa divina consolação; aceitai-a, como se fosse minha, tomai a Vossa formosura e deixai-me sofrer a mim.

Jesus ficou formoso, ficou o mesmo Jesus, e disse-me:

― Ó Minha esposa querida, ó grande heroína do Calvário, em ti encontrei tudo, a ti tudo entreguei: o mundo e todos os Meus divinos tesouros; utiliza-te deles e brada incessantemente a toda a humanidade: convertei-vos, vinde a Jesus, orai e fazei penitência, se quereis salvar-vos. Deixa agora, Minha filha, que te dê o Meu divino Sangue; sem ele não tens vida,  sem ele não podes dar a vida às almas.

Foi um momento para Jesus introduzir o tubo doirado no meu coração e deixar cair no meu a gotinha do Seu Sangue. Senti-me grande, tão grande, sem poder com tanta grandeza. Jesus colocou sobre o meu peito Sua divina mão, como para cicatrizar a abertura que o tubo fez. Deixei de sentir aquela grandeza; pude resistir.

― Vai, luz brilhante; vai, relâmpago faiscante; vai, farol, que guias os errantes para o Meu divino Coração, para o Meu Coração de Pai. Leva o Meu amor, leva a Minha paz, abraça a cruz que te espera e vem já ao teu encontro.

― Obrigada, meu Jesus. Vou para a cruz, vou contente; vinde comigo, sem a vossa graça não tento abraçá-la.

Outubro

3 de Outubro de 1947 - Sexta-feira

Nem vida para viver, nem coração para amar.

Não vivo, não vivo, não; de mim, do meu pobre corpo ficou a dor, a dor que me tritura, a dor que, dia e noite, me consome; consome-me, e não é no meu corpo que ela vive; sim, não é em mim que ela existe, ela trespassa em todo o meu ser, como vento que em todo o lugar penetra. Onde estou eu? Onde é que eu vivo? Ó Jesus, ó Jesus, eu sou como uma aragem, que passa nos ares, nos ares vive e em todo o lugar existe, tudo observa, vê penetra. Sou eu e não sou, vivo eu e não vivo, penetro tudo e nada sei. Mas, ó meu Deus, se eu não vivo nem tenho coração para amar, como posso ter ânsias de amor, mas de um amor que se perde e enlouquece, e sentir que um coração dentro de mim é tão mal tratado, tão ofendido e calcado aos pés; é todo um mundo contra ele. Pobre coração, penetrado de espinhos tão penetrantes! Se eu pudesse mostrar, se pudesse copiar todos os ferimentos deste coração para ver se conseguia evitá-los, para, em vez de sofrimentos e ingratidões, fazê-lo receber consolação e amor! Ai de mim, meu Deus; eu pertenço ao número destes ingratos e para vergonha e confusão minha sou a pior de todas, sou a que mais mal trato este terno e doce coração. Meu Deus, como os dias passam e a vida foge e eu sem nada para Vos dar, pobre de tudo, sem amor e pureza para me apresentar diante de Vós. Valei-me, valei-me meu Jesus; ouvi o meu brado aflitivo e contínuo. Vede que o meu espírito anda como a abelhinha de flor em flor à procura de néctar que a satisfaça. Ele voa, voa, poisa aqui, poisa ali, e, mais das vezes, não tem onde poisar, não encontra satisfação, não encontra onde possa descansar. Estou cansada, meu Jesus, de Vos procurar sem Vos encontrar; parece que errei o caminho. Morro sem Vos ver, sem Vos possuir. Vinde socorrer-me; apressai-Vos, eu Jesus. Oh! que desalento e trevas as minhas! Tenho medo, tenho medo! Eu quero luz, meu Jesus; dai-me alguém que me ilumine, dai-me quem me ajude a formar o meu voo para o Céu, para Vós, só para Vós. O mundo, oh como eu aborreço o mundo com o que é dele; aborreço-o e dele tenho compaixão; aborreço as suas maldades, mas amo-o a ele; abracei-o e quero-o todo dentro do Coração do divino Jesus.

Ontem, logo de manhã, vi Jesus pregado na cruz e pregado na cruz do meu corpo; gravou-se em mim. Como fiquei a senti-Lo tanto ao vivo! Como na cruz, Ele inclinou para o meu peito a Sua Santíssima Cabeça; senti todo o Seu Santíssimo Corpo gelar e expirar.

Esta visão com o sentimento preparou-me um Horto dolorosíssimo; tinha-o sempre diante de mim, sentia a dor angustiosa de Jesus. A minha alma via-O caminhar para um lado e para o outro, a olhar o mundo, a chorar; na sua angústia levantava os olhos para o Céu e o Seu divino rosto cobria-se de suor. Eu tinha o rosto de Jesus e o Seu suor no meu coração e na minha alma. Estive bem unida aos sofrimentos do meu Jesus. Passei pelas cerimónias da ceia, o adeus à Mãezinha e por fim o Horto real com todas as cenas; o suor de sangue, a prisão.

Era noite, a este martírio do Horto juntou-se o sofrimento do meu primeiro Horto de há 9 anos.

Como eu recordei tudo, passo por passo. Lembrei todas as minhas dores de alma e corpo. Oh! como foi grande a minha agonia!

Hoje, data da minha primeira paixão, senti como se fosse a data mais triste da minha vida. Tive presente todo o sofrimento destes 9 anos. O que me trouxe a paixão! Bendito seja o Senhor! Se eu soubesse aproveitar-me de todo este martírio, quanta glória para Jesus, bem para mim e proveito para as almas. Na hora em que estou a ditar, lembro sem querer da mesma hora de há 9 anos. Que cenas tristes se podiam observar dentro destas pobres paredes. Que tristezas, que saudades, que horrores ao mesmo tempo. A estes grandes sofrimentos juntaram-se grandes e penetrantes espinhos. Chorei, chorei, ofereci a Jesus as minhas lágrimas. Quando chorava, com o coração repetia a jaculatória: Jesus manso e humilde de Coração e pedia luz ao divino Espírito Santo para proceder conforme a vontade de Jesus.

Sem querer fui encontrá-Lo na prisão desfalecido e gelado; juntei ao Seu o meu grande desfalecimento e com Ele rompi por entre todos os sofrimentos que acima ficam ditos. Com Ele senti na cabeça grande coroa de espinhos, o corpo açoitado e o grande peso da cruz. Senti no coração a perda do sangue e da vida, que, bem próximo, na montanha, se ia dar. Vi abrir-se a chaga do seu divino Coração e dela saiu uma fortíssima labareda de fogo e uns fios doirados  que eram prisões que prendias Jesus à cruz e à morte. Custou-me a suportar as ânsias que Jesus tinha por dar a vida apesar da visão de todo o martírio Lhe causar horror de morte. A montanha levantou-se dentro em meu peito; vi a cruz, vi Jesus quase no cimo. Eu ia com Ele e com Ele quase morri. Junto à cova, preparada para a cruz, vi Jesus a ser crucificado; vi a pressa, senti o rancor com que O crucificaram. A pressa dos malfeitores era o receio de Jesus morrer antes deles satisfazerem as suas maldades. Junto aos vestidos de Jesus foram pedaços da Sua carne Santíssima. Quase ninguém se compadecia da dor de Jesus; só a Mãezinha queria acariciá-Lo e limpá-Lo no alto da cruz; como não podia fazê-lo sofria a mais não poder sofrer. Sem querer aumentava, mais e mais, a agonia e a dor de Jesus. Sofria a Mãe por não poder suavizar a dor do filho e O filho por não poder consolar a Mãe. Eu via tudo; via a Mãezinha por Jesus, por Ele via e sentia toda a doe Dela.

Levantou-se dentro em meu peito a montanha dura e cruel do Calvário; cresceu, cresceu, quase chegava ao Céu a atrair para Ela a justiça do Senhor. No cimo, ia a cruz, tocou-lhe, o Céu abriu-se, quando Jesus expirou. Já todos, do Calvário podíamos passar ao Céu. Que bondade, que amor o de Jesus! O Seu divino Coração ardia de amor por nós.

Eu morri com Ele e, à Sua voz divina, voltei a viver.

― Minha filha, Minha filha, vem ao teu Jesus que te ama, que te quer e tu és Dele; vem ao teu Jesus que quer confortar-te; e tu necessitas do Seu conforto. Tem coragem. Tu aumentaste no amor ao Meu divino Coração, à medida que em ti aumentou a dor. Amas-Me e amas as almas. É pelo Calvário, é pela cruz que elas são salvas. Coloquei-te no Calvário, dei-te um Calvário e com ele a cruz que abraçaste. Confia em Mim. Ai do mundo sem o sofrimento destes dolorosos anos! Eu pedi o teu corpo para crucificar e tu aceitaste, entregaste-Mo; não querias que te crucificasse e se cumprissem as Minhas divinas palavras?

― Ó meu Jesus, eu queria e quero tudo, mas eu nunca pensei que a crucifixão fosse desta forma; eu pensava ser só as dores que sentia em todo o meu corpo.

― Sorri e consolei-me na inocência do teu pensar. Era preciso, Minha filha, que houvesse alguém que se deixasse crucificar com esta crucifixão tão real. Nesta como em nenhuma outra, eu provo quanto sofri; tantos, tantos sofrimentos até agora desconhecidos. Escolhi-te, esposa amada, para por ti serem mostrados ao mundo. Ai dele, se por ele não te deixavas imolar. Ai dele, ai das almas, ai de Portugal, sem este Calvário vitorioso, sem esta cruz de salvação. Descansa em Mim, Minha filha, de mim recebe todo o amor, toda a luz, todo o conforto. Por ser hoje o aniversário, em que, pela primeira vez, por Mim te deixaste crucificar, faço-te gozar do Meu amor e veres com toda a luz divina para bem compreenderes e te convenceres que não te enganas, que estás na verdade, que fui Eu e só Eu que te crucifiquei. Goza, hoje, de tudo isto, porque os outros colóquios serão dolorosos, voltarás às trevas.

Senti-me como se caísse no regaço de Jesus e nele adormecesse com o meu rosto inclinado sobre o Seu rosto divino. Passara-se uns momentos, e eu despertei a ser bafejada por Jesus, a nadar em amor, toda embebida em luz. Toda a treva, todo o sofrimento de alma e corpo tinha desaparecido. Não tinha dúvidas, era na verdade Jesus o Autor de toda a minha vida. Que gozo, que felicidade.

― Repara, Minha filha, escuta agora quem te fala. É mais um prémio da tua dor.

Veio Santa Teresinha, vestida de luz, com um diadema formosíssimo. Como Ela era linda e bondosa! Abraçou-me, beijou-me muito e num abraço prolongado disse-me:

― Minha irmã, minha querida irmã, esposa do Meu esposo e filha do meu Senhor. Tem coragem! Que grande glória te espera no Céu! Que formosa coroa formada do teu martírio. Sofre com alegria, conta com a Minha protecção, aqui na terra, e virei ao teu encontro, na passagem para a eternidade.

― Santa Teresinha, minha querida Santa Teresinha, confio em ti, conto com a tua protecção, ama por mim a Jesus e à Mãezinha e a toda a SS. Trindade. Apresenta-Lhe todos os meus pedidos, alcança para todos os que me são queridos e toda a minha família as bênçãos e graças do Céu; lembra-te de todos a que a mim se recomendam, lembra-te do mundo inteiro.

Com a promessa de sim, de nada esquecer, desapareceu. Ficou Jesus que logo introduziu no meu coração o tubo do amor.

— Vou dar-te a gota do Meu divino Sangue. Recebe-a e vive, vive e dá a vida. Vai contente, abraça já a cruz que te espera, vai com ela acudir às almas. Se não fosse o teu sofrimento, quantos milhares delas já estavam no inferno! A dor é vida. O azeite para haver de ser luz por quanto tem de passar; mas chega a ser luz e luz que Me alumia. Tu és a luz do mundo, és a luz das almas; sem o martírio não poderias ser luz. Eu farei que sejas luz e faças luz; farei que sejas amor e dês amor. Tudo será dado pelos teus olhares, pelos teus sorrisos, pelo teu coração. Coragem, vai em paz.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

4 de Outubro de 1947 - Primeiro sábado

Falo tão pouco do amor de Jesus e da Sua infinita misericórdia para nós pobres pecadores. Bendito seja o Senhor! Só sei falar de mi, do que sinto, do quanto sofro. A dor é para mim uma ligação de conversação contínua. Que horror, que horror meu Jesus; mas Vós bem sabeis que o faço por obediência!

Sofri muito durante a noite, ferida por espinhos novos, que se me cravaram. Tive mais lágrimas para oferecer a Jesus e sem querer recordava as que chorei e vi chorar os meus, porque em mim se passava nas primeiras crucifixões de há 9 anos. O que seria, se em vez do presente, víssemos o futuro que nos esperava. Bendito seja Deus, louvado Ele seja por tudo o que nos dá. É de noite, mais ainda do que de dia, que me ofereço a Ele como vítima, que Lhe peço o Seu divino amor e cumprimento fiel da Sua divina vontade. Com estas disposições mas a sangrar de dor preparei-me para O receber e esperei a hora de Ele baixar a mim. Pouco depois da Sua entrada no meu pobre coração, Ele suavizou toda a minha dor, e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, alma forte, coração de fogo; forte com a Minha fortaleza, fogo do Meu Coração, calor do Meu divino amor. Transmite esta fortaleza, irradia este fogo. Quero que sejas luz, quero que faças luz. Dá amor aos que Me amam, faz luz aos que não Me conhecem ou conhecendo-Me Me desprezam, para que por essa luz venham a Mim. Repara-Me, repara-Me, Minha filha; sem a tua reparação sangra sempre o Meu divino Coração e o da Minha Bendita Mãe. Repara-Me a Mim, repara a Ela. Como está o mundo, como está o mundo, como subiu a labareda dos crimes. Estou cansada de suster a justiça de Meu Pai. Haja um mundo novo, haja um mundo de pureza, haja um mundo de amor. Escuta, Minha filha, escuta para que o mundo não saiba, para não se escandalizar mais. É um desabafo de Esposo, é um desabafo de Pai.

— Esse mundo novo, esse mundo de pureza e amor devia principiar pelos sacerdotes. Que crimes eles praticam em Portugal e fora de Portugal. Que escândalo eles dão! Escandalizam-se os crentes, escandalizam-se os descrentes. Como eles afastam as almas de Mim! Dás-Me por eles alguns combates do demónio? Eu recebo desses combates tão grande reparação!

― Ó meu amantíssimo Jesus, ó meu querido Amor, apesar do horror que eles Me causam e do receio que eu tenho de pecar, queria dizer-Vos, que sim e não posso; não tenho licença, bem o sabeis, meu Jesus.

― Pede, pede, pede, Minha filha, diz que Eu quero esta reparação por mais algum tempo; consolo-Me nela, esqueço os crimes. Pede para Ma dares; prometo não te deixar pecar.

― Meu Jesus, quero a Vossa divina vontade e quero obedecer, resolvei Vós tudo, que eu tudo aceito. Mas não fiqueis triste, meu Jesus, aceitai toda a consolação e tudo o que eu Vos queria dar.

― Sossega, sossega, Minha filha, é grande o teu amor, é encantadora toda a tua vida. Diz, Minha filha, ao teu Paizinho que o amo, amo, amo. E que sobre a direcção das almas, depois duns momentos de reflexão faça ou diga o que no momento lhe for inspirado. Tem sempre com ele toda a luz do Espírito Santo e Eu sempre falarei em seus lábios. É mestre de almas, de grandes almas; fui Eu que o escolhi. O mestre destas almas tem que dar lições nas humilhações, nas perseguições e em tudo. Ele assim o tem feito. É mestre de almas, mestre de amor à cruz. Diz-lhe que depressa virei cumprir as Minhas promessas, satisfazer todos os Meus desejos. Não demoro, venho depressa. Diz ao teu médico que o tenho e a todos os que lhe são queridos presos ao Meu divino Coração, presos por amor como Eu estou preso na Eucaristia, nas prisões de amor. Cuidar de ti, cuidar do teu corpo e da tua alma, é cuidar de Mim. Diz-lhe que pode dizer, que quero que diga a quem é Autoridade, que estou triste, muito triste, que hei-de pedir contas por não se fazer luz, por não estarem as coisas como Eu gostaria que estivessem para bem das almas. Tens com a Minha graça feito bem a tantas, mas não a todas que podias fazer; isto sem culpa tua. Isto é uma ordem dada àquele que escolhi para amparo firme da missão mais sublime. Vem, Minha Bendita Mãe, dar à Nossa filhinha o conforto que ela necessita, sem o qual não resiste à dor, não pode levar a cruz.

Veio a Mãezinha, tomou-me para o Seu regaço, cobriu-me de carícias, queria abraçar-me e não podia por causa das espadas que tinha cravadas em Seu Santíssimo Coração.

― Quero estreitar-te a Mim, Minha filha, mas estas espadas mais ferem o Meu doloroso Coração.

― Fazei, querida Mãezinha ― disse eu e abracei-me a Ela ―, que essas espadas passem para mim e penetrem no mais íntimo do meu coração e da alma; não, não, querida Mãezinha, não Vos quero a sofrer assim.

Senti que logo se passaram para o meu coração e o penetraram bem fundo.

― Minha filha, alma heróica, já não sofro Eu, és tu a reparar o Meu Coração. Repara também sempre O do teu e meu querido Jesus. Pede a todos que amas para Me repararem também e fazer que seja reparado o Coração divino de Jesus. Leva-Lhe os meus carinhos, diz-lhes que os amo muito, diz-lhes que Jesus está triste com o mundo, diz-lhes que não cessem de implorarem do Eterno Pai o perdão; diz-lhes que nos consolem e façam que sejamos consolados. Leva-lhes a Minha graça, leva-lhes o Meu amor.

Veio Jesus, fez com a Mãezinha uma prensa de amor na qual me apertaram. Jesus continuou:

― A cruz, que te espera, Minha filha, abraça-a; não te entristeças; está à tua frente, beija-a por Meu amor. Dá-te às almas, cultiva as flores das tuas virtudes; os Anjos levam-nas, em braçadas, para o Céu, continuamente. O seu aroma fica espalhado pelo mundo.

― Obrigada, Jesus, obrigada, Mãezinha.

10 de Outubro de 1947 - Sexta-feira

Quantas graças, quantos benefícios, quantos mimos de Jesus eu tenho recebido, e não sei agradecê-los, não sei provar ao Senhor com a minha vida de humildade e amor à cruz o quanto estou grata a Jesus, por tantas provas do Seu divino amor.

Obrigada, meu Jesus; obrigada, amor meu. Não posso, meu querido Jesus, dizer-Vos o que me vai no coração. Que conforto, meu amado, Vós permitiste, que me fosse dado. Vede meu Jesus, o meu reconhecimento para Convosco; aceitai mais um Magnificat de acção de graças.

Não sei se é para bem que Jesus me mimoseou assim. Quanto outro bem não tenha, tenho ao menos eu um amparo, um apoio em pessoa de grande autoridade.

No meio da minha cruz, nesta luta de tão grande martírio, coberta de humilhações, veio Nosso Senhor por intermédio de uma alta e querida pessoa, a quem muito estimo, deitar-me a mão. Levantei-me, na minha dor e cegueira sempre, mas com a alma mais forte, com os olhos mais fitos em Jesus e na Pátria que me espera. Não é por mim para grandeza e glória minha, que eu estimei e agradeço ao Senhor este grande apoio; é por Jesus, é pelas almas, é pelos que me são queridos. Tudo isto principia e acaba por Jesus. É a Ele, só a Ele que quero amar, glorificar e dar almas. É por Ele, só por Ele que eu me curvo debaixo da minha cruz, é ainda só por Ele que eu quero ser pequenina, tão pequenina até desaparecer. Quero viver e não viver, isto é, viver só a vida de Jesus, estar aqui, como se não estivesse, viver aqui como se não vivesse e nunca aqui existisse. Jesus, só Jesus, para mim é tudo.

Não sei o que sinto, um Céu escuro, um Céu de tremenda justiça poisou sobre mim; poisou e ficou a faiscar. Que estrondo nele! Rebenta como bombas, abre-se em fogo e incendeia a terra. Entre a terra e este Céu de justiça, esmagada por ela, as chagas abrem-se mais e com mais abundância sangram, os espinhos do coração e da cabeça penetram mais fundo, as espadas e as lanças não deixam de o ferir.

Passam os dias, passam as noites e eu num martírio de alma e corpo, mas sem aumento de graça e amor, sem dar um passo por Jesus, cheio das maiores misérias. Não posso ver-me; que nojo ao ver-me assim! A eternidade aproxima-se, corre para mim, em marcha apressada, vem colher-me a morte e só colhe maldades, não encontra nada que satisfaça a Jesus. Meu Deus, que horror!

Na tarde de ontem, senti mais o esmagamento e a justiça do Céu; não podia aguentá-la. Debaixo deste esmagamento, senti os olhos vendados e o rosto esbofeteado; o que sentia o rosto sentia o coração. A seguir, ficou ao alto, junto de mim, uma cruz; senti-me de pé, abraçada a ela; nunca mais a deixei. Via os caminhos, que atravessava, ficaram marcados com o sangue que do coração me saía. Este sangue luz, levava amor, mas não era meu, era de Jesus. Era uma grande atracção e convite que Ele fazia para todos O seguirmos com a cruz até ao Calvário. Caminhei para o Horto; lá cheguei, de lá vi a querida Mãezinha em cuidados, em amargura, em ânsias. Onde estava o Seu Jesus? Que sofria Ele àquelas horas? Estava a suar sangue; de todas as Suas veias ele corria a ensopar a terra. Senti que todo o solo estremecia e toda a terra se movia para mais se ensopar no sangue inocente de Jesus. Toda a justiça divina desceu, a todo o descer; envolveu-se o divino com o humano, o amor com a ingratidão. Eu fiquei ali naquele esmagamento, entre a terra e o Céu, a dar o meu sangue, a beber o cálice amargo, até à última gota. Jesus é que a bebia, é que derramava o Seu divino sangue, é que era esmagado, mas utilizou-se do meu corpo. Se eu soubesse acompanhá-Lo em toda a Sua Paixão! Mas oh! pobre de mim, nada sei.

Hoje, de manhãzinha, muito cansada, quase sem vida, muito ferida, tomei a cruz; caminhei pelas ruas estreitas que davam para o Calvário. Oh! que tristeza, que escuridão! Sentia que Jesus com os olhos colados pelo sangue não via para caminhar. Os Seus olhos divinos estavam nos meus e neles senti como que o sangue de Jesus a coalhar. Cheguei ao Calvário, ali passei pelos demais sofrimentos.

Uma onda mundial, toda criminosa, levantou-se contra mim e contra o Céu; era uma revolta, uma tremenda batalha. Jesus, todo misericordioso, com todos os meios lançou-se a essa onda para a acalmar; queria o mundo que Lhe pertencia; deu-lhe todos os meios de salvação. Logo a seguir a isto, senti, dentro de mim, um suspiro de Jesus e do alto da cruz, de dentro do Seu peito Santíssimo, como se fosse uma pomba branca a esvoaçar, pareceu-me voar o Seu divino Coração; voava, voava, mas sem se poder poisar. Queria abraçar, não só os que com graça e amor rodeavam a cruz, mas sim todos os que com crueldade e ingratidão Lhe formavam o Calvário; sim, nesses é que Ele queria poisar, é que Ele queria abraçar. Repelido, sem poder consegui-lo, suspirava e a Sua agonia chegou ao auge. Senti dois abandonos, um, como sempre de costume o tenho, que me pertencia a mim e outro que pertencia a outro; eu, que não era eu, parecia sê-lo, mas era Jesus. E neste abandono completo, Ele expirou e eu também, ou pareceu-me que expirei. Depois de um bom espaço de tempo, veio Jesus, veio sem luz, deu-me vida, mas em dor.

― Minha filha, Minha filha, coração de oiro, palácio da minha habitação, sacrário das minhas delícias; nele depositei o meu amor, todos os Meus divinos tesouros e riquezas sem fim. Estas riquezas são para as almas, são para o mundo. Repara, vê que centro de maravilhas é o teu coração; é levantado ao Céu pelos Anjos e por Minhas divinas mãos oferecido a Meu Eterno Pai para aplacar a Sua justiça, para O fazer esquecer as maldades humanas!

Vi que três Anjos sustentavam em suas mãos um centro riquíssimo, parecia uma piscina toda iluminada e adornada com o amor de Jesus. Vi que Ele a levantava ao Céu em Suas divinas mãos. Não saí da minha dor. Fiquei tão pequenina, parecia-me estar de rasto, junto aos pés de Jesus. Não soube dizer-Lhe uma palavra. Ele tomou-me para o Seu regaço, inclinou-me para o Seu peito Santíssimo o meu rosto e pôs-me a beber na chaga do Seu divino Coração e ali ficamos por algum tempo em silêncio. Jesus interrompeu e disse:

― Bebe, bebe, minha filha, levanta o teu desfalecimento, resiste à tua dor, sacia-te; é o meu divino amor. Eu quero-te na dor, quero-te na treva para Me consolares, para acudires ao mundo ingrato, ao mundo que Me foge. O teu coração é um palácio com portas de virtudes pelas quais entram e passam para Mim os pobres pecadores. Aceitas o ficar em grande dor e agonia, afim de reparares o Meu divino Coração e acudires às almas, até que possas dar-te a alguns combates do demónio? Estou à espera deles, pede, minha filha, para mos poderes dar.

― Ó meu Jesus, aceito a maior dor, aceito a maior agonia, aceito tudo, se sois comigo e tudo Vos dou, se me deixarem. Tudo Vos dou sem ter que Vos dar; sinto que nada estou aqui a fazer.

― Tudo aceitas, minha filha! Que grande alegria para mim! Não poderei deixar de te exaltar e dar-te os títulos de maior honra e maior louvor. Não posso Eu exaltar-te e dizer-te: minha bela, és toda minha? Que grande bem estás tu aqui a fazer às almas! Este Calvário é para elas o amor que as abrasa, fonte que as lava e purifica, luz que as alumia e trai a Mim. A tua dor, a tua dor, minha filha, é dor de salvação; sobe ao Céu incessantemente, dia e noite, e depois de Me reparar é pelos Anjos atirada às almas e nelas vai penetrar como raio fulminante. Confia, confia, a tua dor é de conquista, é de salvação. Parecia-me que o Céu estava aberto e muitos Anjos espalhavam para a terra, ora para um lado, ora para outro, não sei o quê; estavam canseirosos, não sei o que semeavam. Não te demores, filha querida; faz a lista das almas que queres que passem da terra ao Céu; fazendo isso, consolas-Me e sempre continuas a amar-Me.

― Sim, meu Jesus, faço-o logo que me mandem; eu quero consolar-Vos, quero amar-Vos. Aceitai-a já, como se ela neste momento fosse feita. Nela ponho a todos que agora me estão presentes, a todos que querem que eu ponha e todas aquelas que é do Vosso divino desejo.

― Vou, agora, dar-te a gota do Meu Sangue. Pela chaga bebeste amor e pelo tubo de oiro rompe das veias, do Meu Coração, para o teu a gotinha do Meu divino Sangue. É o sangue que te dá vida, é a vida do que to vives, é a vida que dás às almas, é o sangue que gera as virgens. Com toda a razão Eu posso dizer: minha esposa, virgem louca, Eu sou o Esposo das virgens. Oh! como Eu as amo, sobretudo como Eu te amo!

Quando o sangue de Jesus passou para mim, o coração cresceu, cresceu, levantou-me o peito, fiquei sem poder respirar; sem poder aguentar, parecia-me morrer. Jesus inclinou-me para Ele e acariciou-me.

― Coragem, minha esposa amada; toda a tua vida, toda a tua força dá-ta Jesus, vem-te do Céu. Confia, vives de Jesus e para Jesus, vives de Jesus e para as almas. Vai para a dor e para a cruz, sorri-lhe sempre, abraça-a sem temor. Coragem, coragem! É teu o mundo, são tuas almas, salva-as. Combate, minha heroína, combate e vencerás.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

Vim para a cruz e não sei o que sinto. Vejo que todo o mundo é noite, que todo o mundo é revolto. Quero acudir-lhe, quero salvá-lo e não posso. Como é grande a minha dor! Quero levá-la com alegria. Jesus, vinde e vencei em mim.

17 de Outubro de 1947 - Sexta-feira

Os meus olhos parece não verem sequer a luz do dia, resultado da cegueira da minha alma. Nada sinto, nada vejo, a não ser a dor da cegueira. Que tormento, que tormento, ó meu Deus! Oro e apagam-se as minhas orações, sofro e foge-me a minha dor; se, por graça do Senhor, algum bem pratico, tudo desaparece.

O tempo passa, vem a Eternidade e eu de mãos vazias. Que luta dolorosa dentro de mim! Como passo o meu tempo? Como passo os dias que Jesus me dá de vida? A dor desaparece e nada tenho que entregar a Jesus. Não sei como enfrentar este viver. Não posso convencer-me deste nada que sou, desta miséria que só Jesus conhece e que a mim causa horror, e ter que viver assim; não posso, não posso. Ver que nada tenho, saber que Jesus me espera e me encontra assim vazia de todo, só cheia de maldades. Se eu me horrorizo e me envergonho de mim mesma, como se não há-de horrorizar e envergonhar Jesus de me ver na Sua divina presença. Ó meu Jesus, ó meu Jesus, eu confio em Vós, não me deixeis cair no desespero, não deixeis o demónio convencer-me de que a minha vida é inútil, que todas as maldades são minhas.

Todos estes dias tenho vivido, esmagada pelo peso da justiça divina; fez-me lembrar a serpente debaixo dos pés imaculados da querida Mãezinha. O peso da justiça divina esmaga-me e eu tento levantar a cabeça e revoltar-me contra a mesma divina justiça. É debaixo deste peso que eu sinto envenenar toda a humanidade; sinto o veneno a cair-me dos olhos, ouvidos, da língua, do tacto; sou só veneno até mesmo no pensamento. Este veneno corre, não tem freio, espalha-se, vai envenenar tudo. Todo o meu ser, toda a terra é veneno. E é sobre este veneno que pesa a justiça divina. Eu não quero aceitá-la, revolto-me e sinto querer envenená-la também. Ó meu Deus, não pode ser envenenar-se aquilo que é divino, aquilo que é Vosso. Sou pior que a serpente, sou veneno mais perigoso.

Que horror eu senti toda a humanidade a beber, a envenenar-se, a mergulhar-se em mim. O coração rasga-se-me de dor, ando como o ladrão fugitivo; quero esconder-me, tenho medo de tudo, tenho medo do Céu, tenho medo de Jesus. Ouço em meus ouvidos, sinto em minha alma o som da trombeta que me chama; Ele vem a pedir-me contas. Que será de mim, meu Deus, como poderei aparecer diante de Vos!

Na tarde de ontem, senti Jesus debruçado sobre a cidade, que representava o mundo e chorava. Estas lágrimas causavam suores, trevas, agonias de alma. A seguir sentia nos meus olhos lágrimas de sangue e dos ouvidos saíam-me gotas dele também. Na cabeça senti os espinhos, via esponja, senti no coração a lança.

Era ainda cedo e eu prostrada no Horto, naquele solo duro que tanto me feria. Rolava nele com aflição. Apresentou-se-me ali o Calvário; estava coberta de iniquidades que atraíram sobre mim a justiça do Eterno Pai; com o peso suei sangue; a aflição era indizível, sentir-me assim esmagada e ver-me, cheia das maiores iniquidades. Veio Jesus, beijou Jesus, deu-se a prisão. Eu caminhei com Ele, com Ele senti o frio, parecia gelar, e o desfalecimento.

Na manhãzinha de hoje, sem pensar encontrá-Lo, lá O fui encontrar quase moribundo. Tomei a cruz, depois dos açoites e todos os maus-tratos com os quais perdi muito sangue. Senti o caminho do Calvário, mas logo no princípio senti que o sangue de Jesus fervia em Seu divino Coração como panela que ferve sobre chamas. Ele atirava-se de braços abertos para os sofrimentos, como quem se atira às ondas para nadar. Em todo o caminho da amargura, e no Calvário, e já no alto da cruz, Jesus levantou por muitas vezes os Seus divinos olhos como que a pedir auxílio; sentia-os na minha alma como que abrirem-se e a fecharem-se. Cravaram-se-me no coração todas as feridas do corpo Santíssimo de Jesus e bem gravadas ficaram e todos manchados de sangue os caminhos que percorremos. Já lá vai muito tempo e ainda os sinto em mim, como se fosse agora! Não foram só os caminhos dolorosos que me fizeram sofrer, surgiram espinhos postos por mãos humanas a ferirem-me também; levaram-me a fitar a cruz com Jesus, a pedir-Lhe forças para os suportar. Quanto custa este viver!

Quando estava assim no Calvário, a cruz e Jesus levantaram-se em meu peito, a montanha foi subindo, subindo, levou a cruz e nela Jesus, desapareceu tudo, sumiu-se o Céu. Eu fiquei sozinha ligada ao princípio dessa montanha. Levantou-se um mar de crimes, das maiores iniquidades, e as ondas desse mar batiam em mim, membro dessa montanha, como batem as ondas num cais. Quanto mais batiam, mais cegueira eu tinha, mais ó me sentia. Sem luz, sem auxílio para aguentar tão0 grande mar de crimes, pior imensamente pior do que a fúria da mais tremenda tempestade, senti-me morre, mas sem Jesus a acompanhar-me. Não O senti a Ele a expirar. Assim fiquei por um bom espaço de tempo, morta sem morrer, nas trevas sem ser noite. Veio, depois, Jesus; não me trouxe logo a luz, trouxe-me a vida e um fogo que me incendiou o coração; pegou o fogo e disse-me:

― Minha filha, minha filha, tu não estás só; eu estou contigo. E sabes quem Eu sou? Sou aquele Jesus a quem escolheste e preferiste para Esposo. Como Eu te quero e amo! Anima-te, anima-te; tem coragem. Tu não és trevas, és luz; as trevas são para ti, para viveres nelas e a luz, a luz, que tu és, é para as almas. Criei-te para elas, não és do mundo e vives para o mundo, não estás no Céu e vives do Céu. Desde o primeiro instante da tua existência, desde que te criei vi sempre em ti a missão que te confiei, a missão mais bela, a missão mais nobre, a missão das missões, a missão das almas; criei-te para elas, delas és vítima. E à Minha semelhança, vítima do Calvário, vítima do Gólgota. Como prova de que o és, foi por isso que te uni ao princípio da montanha e sobre ti fiz bater o mar das iniquidades.

A montanha subiu, a cruz desapareceu, e eu com ela fui para o Céu. Mas os crimes continuaram, e eu continuei a dar a prova do Meu amor e a derramar sobre o mundo as Minhas graças. Foi aquela chuva de oiro, que do alto da cruz viste das Minhas chagas, de todas as Minhas feridas brotar. E a prova desse amor foi fazer continuar a obra da redenção. O Calvário, o Meu divino Sangue foi desprezado; desprezadas foram as Minhas graças, o Céu fechou-se para a maior parte da humanidade, perdeu-se para ela o sofrimento da cruz. Foi preciso continuar essa obra, através das Minhas vítimas. És a maior vítima, és a maior depositária das riquezas de Jesus. Acode ao mundo. Eu continuo a dizer que ele está em perigo, grave perigo, urgente perigo. A maldade desafia a justiça do Eterno Pai. Escuta o mendigo que bate, dá a esmola a Jesus que te pede; aceita a cruz, leva-a com alegria, dá-Me a dor, dá-Me o fruto do teu Calvário; quero-o para as almas; dá-Me o combate do demónio. Que grande reparação eles Me dão! Dá-Me as almas, acode-lhes. Faz tua a Minha dor, faz teus os Meus suspiros, faz teu o Meu amor e as ânsias do Meu divino Coração.

— Quero almas, fala ao mundo, diz-lhe que Eu o chamo, que Eu o quero; pede-lhe que se converta.

― Ó meu Jesus, eu não sei falar, nada sei dizer, falai Vós por mim; incendiai nas almas o fogo que Vos consome, aceitai a minha dor, aceitai o fruto do meu martírio que é Vosso e não meu, meu Jesus; distribuí como Vos aprouver. Eu quero dar-Vos tudo, mas não posso ouvir-Vos a pedir-me, a falar-me como um mendigo. Mandai-me o que Vos aprouver, já sabeis que tudo aceito e tudo Vos dou, sem ser preciso pedir nada, nada, meu Jesus. Não sois Vós o meu Criador, o meu Rei, o meu tudo? O que Vos dou eu, a não ser o que é Vosso? Não tendes Vós licença de pegar e distribuir? Sou a Vossa vítima, imolai-me, imolai-me, Jesus.

― Como é bela a prece dos humildes! Como atrai a si as graças e a loucura do amor de Jesus. Como é consolador para mim a oração daquela, que, sendo grande com a Minha grandeza, se humilha e faz pequenina! Que graças, que graças, atrais para o mundo, ó Minha filha, ó bela com as belezas divinas!

Com o meu coração a arder, fiquei a gozar de Jesus; gozava-O no silêncio; nem eu nem Ele falava. De repente introduziu o tubo de oiro no meu coração e no centro poisou o dele.

― Vai já correr em todas as tuas veias a nova gota do sangue do teu Esposo Jesus; é o sangue divino que te dá a vida, é a vida que te faz viver e fazer viver as almas.

Senti a gota do sangue de Jesus a correr em todas as veias, quero dizer em todo o meu corpo; senti a força daquela vida. Jesus acariciou-me, uniu aos meus os Seus divinos lábios, cheios de doçura, e disse-me:

― É ósculo de amor, não de traição como foi para Mim o de Judas. Leva a vida, este amor que agora em ti fundi e vai infundi-lo nas almas. Atrai a Mim com este amor as que ferem e atraiçoam o Meu divino Coração. Vai para a cruz, leva a cruz, fica nas trevas, dá luz. Coragem, Minha filha, coragem na dor, Espalha, espalha no mundo o perfume, o aroma delicioso, fruto do teu martírio; cultiva as flores de tão formoso jardim. Eu delicio-Me entre elas a contemplá-las. Coragem, coragem!

― Obrigada, obrigada, meu Jesus; eu vou mas vou confundida. O que sou eu e quem sois Vós? Ó amor, ó grandeza, vinde comigo.

As graças de que Jesus falou, esqueci-me de dizer que as vi cair de todas as chagas e feridas de Jesus, enquanto que O vi no Calvário. Que chuva lindíssima caía do alto da cruz! E eu sentia-me a voltar-lhe as costas e a desprezá-lo.

Jesus me aceita o grande sacrifício, que fiz em ditar tudo isto. Não foi só o horror que me causa o ter de ditar, foi também a grande falta de forças, o grande sofrimento de todo o meu corpo. Tenho a certeza de que Jesus me auxiliou; sem Ele não poderia dizer palavra. Bendito seja o Seu divino amor, e bendita seja toda a cruz, que Ele me dá!

24 de Outubro de 1947 - Sexta-feira

Oh! quanto sofre o meu corpo, e que dor e luta interior na minha alma! Como pode ser isto?

Sofrendo eu tanto, não só me parece que os sofrimentos não são meus, mas para mais doloroso ainda, sinto que nada sofro; sinto que não sofro e sinto a dor, e sofro, sofro, sofro tanto. O meu corpo, desfeito pela dor, é menos que o pó que o vento espalha. E na minha alma, ó meu Deus, que grande horror! Sinto que tenho duas almas, uma que sofre e a outra que não pode sofrer. A que não sofre não é minha, e a que sofre não são meus os sofrimentos. A que não sofre é puríssima parece que tudo vê e em toda a parte habita e que nada se lhe pode ocultar; é dela a terra, é dela o Céu. A que sofre está em trevas, não é pura, está manchada. Mas não sei como; são duas almas e uma só alma. A que é pura está ligada à culpada; dá-lhe vida, ampara-a, encaminha-a. Mas eu não posso aguentar em mim esta pureza, unida a tanta miséria, que eu sou; é um sol, é um brilho que eu não posso enfrentar, faz-me conhecer mais os meus defeitos e horrorizar-me deles. Se eu tivesse força para corrigir-me e emendar-me para sempre! Vejo os defeitos em mim, e não sou capaz, não tenho forças para não cair. Tantas vezes invoco o nome de Jesus, tantas vezes chamo pela Mãezinha e Lhe peço que me faça pura, obediente e humilde, que me encha de tudo o que é Dela, para que Jesus em mim só a Ela veja!

E sou sempre a mesma, cheia de maldade, coberta de crimes, a desfazer de podridão, e sempre a ser esmagada pelo Céu e sempre debaixo desse esmagamento a espirrar, a espalhar veneno por todos os meus sentidos, por todo o meu corpo. Que horror, que horror, ó meu Deus, que veneno me sai dos olhos e de todo o meu ser, como ele envenena o mundo e tenta atirar contra o Céu esse mesmo veneno!

Sinto Jesus crucificado em todo o meu corpo; sempre as chagas d’Ele em minhas mãos, pés e coração; sempre o corpo ferido e a cabeça cercada de espinhos. Não sou eu, é Jesus que está em mim, é Ele que assim sofre; é o Seu divino Coração que tem espinhos, lança, espadas, punhais e setas.

É Ele que sofre com a Mãezinha e vêm os dois sofrer em mim. É por Jesus que eu vejo quanto Ele sofre, toda a dor d’Ela. E a tudo isto se vieram juntar mais dores, mais torturas de almas. Como, Jesus é bom; é Ele que tudo manda, tudo permite.

Com estes sofrimentos não sofro por mim, sofro por saber sofrerem os que me são tão queridos e não lhes poder acudir. Por pessoa, que grande lugar ocupa em meu coração, foi-me recomendada a saúde de um enfermo. Meu Deus, o que eu sofri, me sacrifiquei e orei por ele; ofereci-me como vítima a Jesus; disse-Lhe que, durante um mês, descarregasse sobre o meu corpo e alma todos os sofrimentos, que Lhe aprouvesse, em cima dos que eu já tinha, contanto que Ele e Mãezinha fossem comigo, para eu poder sofrer, mas que me dessem a vida daquele enfermo, sem prejuízo da sua salvação e da glória de Deus!

Era grande, muito grande a dor e a angústia da minha alma, quando assim falava a Jesus. Na minha grande aflição, repetia-Lhe muitas vezes sem pensar obter uma resposta Sua: dais-Lhe a saúde, dais, meu Amor? E Jesus, na Sua bondade infinita, muito doce e suavemente, disse:

― Quero-o para Mim, quero coroá-lo do Meu divino amor, da Minha glória.

Sempre na minha dor, sem atender ao que Jesus dizia, insisti no meu pedido. Jesus, por três vezes, repetiu-me sempre o mesmo.

Passaram-se quase dois dias; a mesma pessoa de toda estima, de novo, me recomendou o doente, já quase em agonia. Que punhaladas na meu pobre coração! Que dor, que posso dizê-lo, quase irresistível! Em vez de oferta de vítima por um mês, fiz uma de três meses.

Chorei, chorei, fiz penitência, pedi para ser posta no chão, por algum tempo, para maior sofrimento, o que me não foi concedido. Mas, esta vez, Jesus não falou, fez-se surdo; em todas as minhas súplicas de tantas horas, não tive um raiozinho de luz, tudo se me apagava e desaparecia neste mundo; nem ao menos no memento da Sagrada Comunhão eu senti outra vida. Confiava que Jesus podia fazer o milagre, mas esta confiança não tinha lugar, ficava na superfície, tudo o mais é que era realidade.

Senti no meu íntimo a noite e o silêncio da morte. Eu queria o milagre, mas já orava pela boa morte do moribundo. Que medo aterrador pela vida de sofrimento se entranhou em todo o meu ser; foi um martírio, que se veio juntar ao martírio do Horto e do Calvário. Só depois de mais de 24 horas é que eu soube que o doente tinha partido para o Céu, se bem que já assim o pensava pelo meu colóquio com Jesus.

Tenho tido tanto medo do demónio! Receei tanto os seus assaltos! Há dois dias e noites que ele andava furioso, à volta de mim: uivava raivosamente, queria assaltar-me; atormentava-me com várias coisas o meu espírito. Apesar de todo o meu receio, Jesus não permitiu que ele viesse com os seus ataques. Que conjunto de sofrimentos, meu Jesus; contudo eu sou e serei sempre a Vossa vítima!

Na tarde de ontem, principiou o meu Horto. Primeiro que tudo, veio um sol do Céu que parecia iluminar todo o mundo; veio e envolveu em si toda a terra. O Calvário, o Horto juntou-se àquele sol, formou-se tudo numa massa. Desapareceu todo o brilho; toda a maldade, todo o erro lho encobriu. Jesus, dentro de mim, fitava tudo aquilo, e, curvado sobre aquela massa mundial, chorava; choravam os olhos do Seu corpo, chorava a Sua alma Santíssima.

Logo depois, vi a cruz e Jesus nela crucificado, a derramar sangue, muito sangue que Lhe atravessava a cintura. Ao senti-Lo e vê-Lo assim, passei-me com Ele para o Horto, ali veio representar-se todo o Calvário. Que aflição! Rolávamos pelo solo duro, o qual tremia e nos fazia tremer. Falo assim porque Jesus ia comigo; sofríamos os dois. Ali mesmo, Jesus suou sangue e falava a Seu Eterno Pai e Lhe oferecia o cálice tão amargo; amargo para Jesus e amargo para mim. Foram dois Hortos. Sofria com Ele, sofria por Ele e sofria por mim. Como eu desabafei com Jesus e Lhe pedi para as consolar! Ó noite, tremenda noite! Que todo este meu sofrer seja para honra e glória do Senhor e bem das almas. Não sei, não sei traduzir a minha dor.

Veio a prisão e eu segui Jesus, sempre a ser com Ele maltratada; e, hoje, logo de manhãzinha eu, à prisão O fui encontrar, sempre acompanhada do mesmo sofrimento que era um martírio triturante. Voltei a ver a cruz de Jesus e com Ele andei a caminhar entre o alarido e grande algazarra do povo. Os sofrimentos de Jesus eram para todos grande festejo. Não se comoveram ao vê-Lo chagado, ferido. Caminhamos para o Calvário, suportei a Sua amargura e a minha. Custou tanto a chegar ao cimo! O meu peito serviu de montanha e o meu coração de cova da cruz onde Jesus estava crucificado. Ele regou com o Seu divino Sangue o solo duro, que eu representava. Com ser eu o Calvário sento-me abraçada a ele, abraçada à cruz. Queria sofrer, queria morrer. O sangue de Jesus caía, os corações dos que O rodeavam com rancor não se comoviam. Um grande número tinham em suas mãos chicotes e finas varas com os quais, mesmo na cruz, tentavam satisfazer mais seus gostos, ferirem a Jesus. Quantos escarros Lhe queriam ainda lançar em rosto. O meu coração via tudo aquilo. Oh! como Ele sofria! O meu brado unia-se ao de Jesus, a pedir socorro ao Pai. Quando Jesus expirou, com que amor, bondade e doçura Ele Lhe disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito; é para ti o Meu último suspiro. Tudo se calou, tudo ficou por algum tempo em silêncio. Jesus tinha morrido, mas veio depressa; ressuscitou, deu-me a Sua vida e falou-me:

― Coragem, coragem, minha filha! Oh! como são belos e prodigiosos os caminhos dos escolhidos do Senhor. Oh! como é bela, luminosa e atraente a vida da esposa mais fiel, a vítima mais generosa que Jesus escolheu para Si. Coragem, coragem, minha filha. Não é só pedir-te a dor para ouvir dos teus lábios um sim cheio de amor e generosidade; peço-te a dor e quero a dor, peço-te a dor e busco todos os meios para te fazer sofrer. Ó dor, ó dor, ó dor salvadora! O fogo das paixões incendiou-se no mundo, não há quem o apague; em vez de água a apagá-lo, dentando-lhe a lenha das maldades, crimes hediondos, as maiores iniquidades a incendiá-lo; subiram ao seu auge as labaredas criminosas. Dá-me a tua dor, filha querida, e diz tu ao mundo que Jesus o ama e quer; diz-lhe que se converta depressa, depressa. Se assim não for, quanto ele terá que chorar e gemer. O fogo já corre pelos rastilhos, a bomba divina não demora a explodir.

Jesus dizia isto com lágrimas, suspirava em profunda tristeza. Não pude vê-Lo assim.

― Meu Jesus, meu Jesus, não consinto nas Vossas lágrimas. Para que sofro eu? Para que quereis Vós a minha dor, a minha tão pobre e sofrida dor! Ponde-lhe os Vossos méritos, ponde-lhe o Vosso amor e consolai-Vos nela e dela fazei o que bem Vos aprouver. Quero eu chorar, sofrer e estar triste, contente só por fazer a Vossa divina vontade.

As lágrimas de Jesus cessaram logo, e continuou.

― Já estou contente, filha amada, mas tens tanta reparação a dar-me! Tens que dar tão grande lição ao mundo! Repara-Me, mas com alegria; fita na cruz os teus olhos, que eles vêm para Mim a poisarem em Meus braços como pombas brancas para descansarem. Fita em Mim os teus olhares e em Mim toma conforto; dá-Me grande reparação, o veneno corre. Os esposos não dão vidas; matam vidas. Oh! que crimes! A imodéstia alastra-se. As almas vítimas fogem, temem o sofrimento, temem a cruz. E tantas de quem Eu esperava tudo, pecam horrivelmente. Dás-Me por tudo isto o que te vou pedir? Dás-Me os combates com o demónio? É deles que Eu tiro para esta matéria a maior reparação.

Jesus dizia isto e chorava novamente.

― Não choreis, meu Jesus; que eu Vos dou tudo, bem o sabeis, pois já tenho licença para tudo Vos dar; dou-vo-los na confiança de que me não deixeis ofender-Vos. Mas não quero ver mais em Vossos divinos olhos as lágrimas. Dou-Vos, mas também Vos peço, sabeis bem o que é. Fazei-me o que Vos peço, mostrai o Vosso poder. Pela Vossa graça nunca Vos neguei nada, não me negueis também; não é por mim, é por vós, é por aqueles que tão profundamente colocaste em meu coração.

Jesus sorriu docemente com modos e gestos de quem quer dizer mais, muito mais, e disse-me:

― Pede-Me com confiança, nunca são em vão os teus pedidos. Os desígnios de Deus são imperscrutáveis; os Meus olhos divinos vêem tudo, tudo Me é presente. A criatura humana só pode ver e compreender à luz da eternidade. Coragem, coragem, Eu vou dar-te o Meu divino Sangue; recebe-o que é força, recebe-o que é vida. A dor que te espera, só a força divina a pode vencer; nada temas, Eu estou contigo.

Jesus introduziu o tubozinho brilhante como oiro, e no cimo trazia o Seu divino Coração. Caiu a gotinha de sangue, Jesus tirou-o rapidamente, fez que eu pudesse aguentar, e logo deixou a abertura cicatrizada.

― Minha filha, pomba querida, vai, não deixes de, na dor, teres o sorriso; não deixes de beijar e abraçar a cruz; ela espera-te, corre para ela, leva a vida, tu és a vida das almas, tenho-te no mundo para elas. Vai em paz, e leva a Minha paz, leva a Minha luz, és a luz, vai guiá-las, vai salvá-las. Fica nas trevas, vive nas trevas, são trevas da maior luz. Milagre, milagre, milagres, milagres por ti os opero nas almas, aos milhares, aos milhares. Vai contente, semeia as Minhas graças, semeia o Meu amor. Obrigada, obrigada, meu Jesus. Ai! Como eu temo os sofrimentos, as oh! como eu quero a cruz que me dais; recebo-a, recebo-a só por amor. Meu Deus, como são já tão grandes e assustadoras as trevas em que me encontro! Poderei vencê-las? Venha o Céu, venha o Céu todo por mim.

31 de Outubro de 1947 - Sexta-feira

Sinto em mim as chagas de tal modo abertas, que, apesar de serem em mim, parece-me, por dentro delas, passar de um lado para o outro. Mas não sou só eu, é o mundo inteiro que por elas atravessa, por elas passa, ora por uma, ora por outra; são portas francas, pelas quais todos podem passar, sem pedirem autorização.

Todas estas chagas dão passagem para um só caminho, que vai ter à chaga do coração e da chaga dele passam a outro Coração, que unido ao meu está. Oh! e com que ansiedade esse Coração recebe a todos quantos para Ele querem ir. Parece que tem braços para abraçar, olhos para fitar e atrair, lábios para sorrir e beijar. Que coração, que coração que é amor, só amor! O meu é tão pequenino e mesquinho, nada, mesmo tão nada ao pé deste; não sei até como, sendo assim tão pequenino, pode ter em si chaga tão grande, parece uma chaga mundial. Custa-me tanto a aguentá-la! É tão grande, é mesmo imensa a dor que me causa. Sofro tanto, e não sou capaz de, com os meus sofrimentos, remediar tanto mal. Eu quero, não sei o que quero; quero tudo em poucas coisas se resumem. Consolar e amar Jesus, fazer só a Sua divina vontade e salvar-Lhe as almas. Quero as almas, quero o mundo, quero-o para Jesus. Não sou eu o anseio é Ele. Ai como eu O sinto, de braços abertos, para o receber e abraçar.

Não sou capaz, não me é possível, por mais que eu sofra, dar alegria, dar alegria ao meu Jesus, amá-Lo com a maior loucura. Ai de mim, e eu quero amá-Lo! Não resisto a estes desejos de amar a Ele, só a Ele; e temo não resistir, não vencer atravessar as trevas, que, de cada vez, se tornam mais distantes, mais profundas, mais minhas, minhas para por elas caminhar, minhas para nelas sofrer, minhas sem serem minhas; sou feitora deste terreno de negra escuridão. Temo-as tanto e quero-as, não as posso deixar.

O demónio tem-se regalado de atormentar-me; tentou levar-me ao desespero, persuadir-me de que não sou ouvida por Deus, que nada adiantam as minhas orações.

Depois desta tentativa, veio atormentar-me com os seus ataques. Foram oito assaltos, e sempre de noite. Em duas noites foram três, a seguirem-se uns aos outros, e, noutra, foram dois. Não sei, parece-me que nunca teria a coragem de dizer as coisas horrorosas que ele dizia contra Jesus e os gestos maliciosos que ele fazia. Horrorizava-me, por dois motivos; um pelo receio de pecar, outro por tais coisas ter que ouvir de Jesus e temer que, na mesma ocasião, Ele me castigasse. Que horror e que, horrorosos são os crimes com que Ele é ofendido! O meu coração pareceu-me saltar para fora do peito; a batida que ele fazia com tanta força, não parecia de um coração, mas sim duma fábrica. Eu estava toda revestida de malícia, todo o meu ser era inferno, tinha toda a maldade do demónio.

Tinha uns pequenos intervalos de um combate ao outro, mas ficava sempre a ele presa pela loucura das paixões. Compreendia toda a malícia e sabia o que ele me representava ou fazia sentir. Não deixava por isso com toda a alma e coração chamar por Jesus e pela Mãezinha, dizer-Lhes que não queria pecar, que antes queria o inferno, que era a Sua vítima. Tudo isto me parecia que já era tarde, que só recorria ao Céu, depois de ter pecado.

Apenas terminava o último combate, parecia-me ter vindo não sei de onde, dum mundo para o outro, dum mundo maldoso e criminoso para um mundo inocente; e logo deixava de compreender tais maldades, mas com o coração a sangrar de dor, por muito tempo. Que triste vida, Jesus; que triste vida, Mãezinha; sou sempre a Vossa vítima para Vos consolar e amar, desejosa sempre de em tudo cumprir a vontade do Senhor.

Na tardinha de ontem, vi atrás de Jesus a Mãezinha, junto à cruz, quase a desmaiar de dor; vi, no mesmo momento que não foram mãos humanas que A ampararam, mas sim o amor de Jesus, que em raios doirados, A cercaram e sustentaram firme sem cair. Depois disto, caiu sobre mim a montanha do Calvário; o peso era esmagador; que aniquilamento! Senti que Jesus caminhava comigo, curvado com o peso da mesma montanha. O Seu Santíssimo corpo banhava-se em suor, da cabeça aos pés, a Sua tristeza era a mais profunda, a escuridão era a da noite mais tremenda.

Passamos para a ceia. Vi o rosto de Jesus, afogueado de amor; iluminava toda a mesa e aposento. Era lindo vê-Lo com os olhos feitos no Céu; era lindo ver e sentir a doçura com que Ele deixou inclinar sobre o Seu Santíssimo peito o discípulo amado. Foi doloroso e arrepiante ler no coração de Judas os maus intentos, a falsidade que tinha para com Jesus e ser por seus olhares venenosos contemplado. Judas fitava Jesus com maldade, e, sem querer fazê-lo, fazia para disfarçar. Jesus fazia-o com doçura e bondade para o convidar a Si. Sem sair dali, vi todo o Horto, cheio de agonia. E pelo meu coração passaram as lágrimas da Mãezinha, ao saber de Jesus preso e tudo o que Lhe faziam.

Hoje tomei com Ele a cruz com o corpo todo chagado e a cabeça cheia de espinhos; seguimos o Calvário. Em todo o trajecto, caímos por tantas vezes desfalecidos; eu sentia o rosto de Jesus, poisado na terra dura; respirava contra ela e os Seus lábios divinos pareciam beijá-la, ao mesmo tempo que nova chuva de pancadas caíam sobre o Seu Santíssimo corpo. No Calvário senti e vi que, ao despir Jesus, o fizeram com toda a crueldade. O Seu divino corpo, coberto de sangue e feridas, não comoveu os seus duros corações. Aumentaram com isto a amargura de Jesus. Foi nesta amargura que Ele ficou todo o tempo da agonia até expirar. Custou-me tanto a aguentar este sofrimento de Jesus! Custou-me tanto suportar as palpitações fortíssimas do Seu divino Coração! Palpitava de amor pelo mundo endurecido e culpado, e palpitava de dor, quando o Pai pedia compaixão.

Era noite, noite tremenda. Senti o meu peito rasgar-se como fino pano; foi talvez no momento que Jesus expirou, não porque eu sentisse Ele expirar, mas pelo silêncio, noite e morte que em mim passava. Que sofrimento, que noite tão assustadora! De repente, iluminou-se toda a minha alma com uma luz que iluminava o mundo. Ouvi como quem bate palmas e ao mesmo tempo a voz terníssima de Jesus disse-me:

― Minha filha, minha filha, quem bate, quem te chama é Jesus. Repara; é a minha luz divina que te ilumina, para que saibas que sou Eu, para que compreendas a luz celeste e saibas distingui-la das trevas que Eu permito. Sou Eu, está atenta para bem sentires e gozares da Minha paz, a paz que te dou, a paz que vem de Mim, a paz que conforta e dá vida para sofreres. Coragem, um pouco mais. A tua vida, aqui neste desterro, é brevíssima; confia, vem o Céu, a tua Pátria, a eternidade de gozo. Ao terminar o teu exílio, a tua dor, principia, Eu to prometo, Eu to prometo, como recompensa, a cair para a terra uma chuva de graças constantes que vão penetrar nas almas. Não acaba a tua missão, a tua bela e sublimíssima missão. Enquanto que no mundo houver almas para salvar, não cessará de chover essa chuva de graças e maravilhas prodigiosas. É o prémio da tua dor.

― Meu Jesus, dizei que é o prémio da Vossa dor, que é a chuva das Vossas maravilhas e prodígios. Quem sofre não sou eu, quem sofre no meu corpo sois Vós. Muito obrigada pela promessa que me dais; alegro-me com ela, porque me alegro na salvação das almas. Sou Vossa, Jesus, para Vos amar, sou Vossa para com o que é Vosso as salvar.

― Minha filha, minha amada filha, se soubesses quanto Me consolo em ti e a grande reparação que Me dás! Continua a consolar-Me, continua a reparar o Meu divino Coração. A tua vida de martírio é a escora que sustenta o braço do Meu Eterno Pai. Os crimes, as grandes iniquidades da humanidade feriram o Céu, abriram-lhe fendas como finas lanças. A tua dor, o teu sofrer são molas seguríssimas para não deixar sair tão depressa a grande justiça divina. É a tua dor, que faz esperar o Meu Eterno Pai. Convida o mundo, convida-o tu, chama-o, chama-o depressa para Mim. Dá-Me a dor, dá-Me mais dor, dá-Me a reparação pelos combates do demónio, para poupares as almas ao inferno. Por esta reparação espero-os alguns anos, na vida do pecado, sem os precipitar no inferno. Dá-Me a reparação por este meio, se a muitos infelizes queres salvar.

― Meu Jesus, o horror que me causam tais sofrimentos, só Vós o sabeis; o meu receio é só de pecar. Que vida cheia de temor; temo ofender-Vos, temo e horrorizo-me em ditar tudo o que me dizeis. Que há-de ser de mim, meu Jesus? Sem ter querer, gostava de nada dizer e desconhecer todas as maldades infernais.

― Tem coragem, filha querida: aceita tudo. Tu não Me ofendes, Eu por ti velo, em ti estou. Escreve, dita tudo que é pouco tempo mais. Tu não conheces, não sentes, não sabes; confia no que te digo: a tua vida escrita nos teus cadernos saio linhas escritas com o oiro mais fino, guarnecidas com as pedras mais preciosas. Não é para ti esta riqueza, mas sim para as almas. Vai agora para o teu coração o Meu divino Sangue. É um momento que leva esta separação. Vai já correr em tuas veias o Sangue, que te faz viver, o Sangue que te faz dar vidas.

Jesus, junto ao tubo, já trazia ligado o Seu Coração divino; introduziu-o no meu, passou a gotinha de sangue, foi num abrir e fechar de olhos. No mesmo momento, que fez a abertura, a cicatrizou.

― Que grande prova de amor, Minha filha, como Eu velo por ti, como Eu te amo! Como Eu amo as almas! Vai, diz-lhes que Eu as quero. Vai para a cruz, que é o teu leito de dor; vai para a cruz, que é a cruz do amor. Sofre, sofre na alegria; ama, ama na dor. Coragem, coragem; vai em paz.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Tomai o meu coração, modelai-o, para que ele ame e sofra como Vos agrada.


[1] Compare-se esta narrativa com aquela que fez Santa Teresa de Ávila, beneficiada com a mesma visão e ferida da mesma maneira:

« Via um anjo ao pé de mim, para o lado esquerdo, em forma corporal, se o que não costumo ver senão por maravilha. Ainda que muitas vezes se me representam anjos, é sem os ver, senão como na visão passada, que disse antes. Nesta visão quis o Senhor que o visse assim: não era grande mas pequeno, formoso em extremo, o rosto tão incendido, que parecia dos anjos mais sublimes que parecem todos se abrasam. Devem ser os que chamam Querubins, que os nomes não mos dizem, mas bem vejo que no Céu há tanta diferença duns anjos a outros e destes outros a outros, que não o saberia dizer. Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixa de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto ». (Livro da Vida, cap. 29-13)