Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

SETEMBRO 1945

1º de Setembro de 1945 – Primeiro sábado

De nada me serviram os sofrimentos desta noite da alma e do corpo, a união com o meu Jesus, para reparação da Sua vinda ao meu coração, esta manhã. Sofri tanto, tanto me uni a Ele, para me sentir vazia no momento em que Ele baixou a mim. Não tinha um coração de amor para O receber, não tinha peito para O hospedar. Tudo eram trevas, de trevas era todo o meu corpo. Os meus esforços para me preparar bem foram baldados. Isto era o que eu sentia. Chegou Jesus e encontrou entrada, mas senti que Ele trouxe com Ele céu de trevas, que mais me infundiam nos mundos delas. Sem O ouvir, sem O sentir, mergulhada apenas naquela negra escuridão, presa até ela por fortes cadeias, negras também, passaram-se alguns minutos. Não Lhe pedi que me falasse nem que me consolasse; entreguei-me a Ele e d’Ele era o meu querer, a minha vontade. Dum momento para o outro, abriram-se àquela multidão de trevas, àquela escuridão tão assustadora, para aparecerem uns raiozinhos de luz, não clara e brilhante como noutros tempos, mas sim o bastante para eu conhecer a grande transformação da minha alma. E logo Jesus principiou a falar-me assim:

— Que alegria, que consolação para mim poder dizer: desci do céu, deixei a companhia dos anjos, para vir viver no meu anjo em carne. Estou no teu coração, minha filha, no palácio da minha realeza. Minha esposa, minha esposa, minha rainha, vives de mim, a tua via é a minha, estou transformado em ti. Eis porque a tua vida é divina. Todos aqueles que tocarem teu corpo, contemplarem teus olhares, teus sorrisos, de ti receberão a minha vida divina em toda a abundância. No teu corpo está Cristo, nos teus olhares, nos teus sorrisos Cristo está. Todos os que te tocarem e contemplarem, recebem riquezas divinas para as suas almas. Os sequiosos de mim abrasam-se no meu amor; os pecadores lavam e purificam as almas. Tu és a fonte, e eu a água que corre nela, que lava e purifica.

Enquanto Jesus dizia isto, senti como se Ele tirasse todas as veias do Seu corpo e as colocasse no meu. Todo o meu ser era outro. Sentia correr em mim um sangue que não me pertencia, uma vida que não era minha. E Ele continuou:

— Minha filha, lírio casto, flor angélica, tudo o que opero em ti é por loucura, é por amor às almas. Vê o que faço para as possuir, para as salvar. Minha filha, minha filha, vai brilhar a luz, vão quebrar-se as prisões que prendem o teu Paizinho de vir junto de ti. Quebraram-se umas, e enleiam-se outras mais fortes que só com a tua morte serão quebradas. São cadeias duras, que te prendem às maiores dores, às maiores trevas. Ele virá confortar-te. Diz-lhe, repete-lhe muitas vezes no pouco tempo que te resta de vida; diz-lhe que é Jesus quem lho afirma: que o amo, amo loucamente, que o criei para as almas, que o criei para honra e consolação do meu Divino Coração; que o seu prolongado martírio tem sido um maná celeste a cair sobre as mesmas almas. Diz, minha filha, ao teu médico, à prenda amadíssima do meu Divino Coração que ampare fortemente a tua alma, assim como ampara com cuidado o teu corpo. Vives milagrosamente. Vigilância, muita vigilância. Criei-o para sustentar esta causa, esta causa bendita. Como recompensa do seu cuidado, trabalho e canseira, ninguém como ele receberá de ti a minha vida divina, para que ele a possa dar, infundir fortemente a quem lhe querido e ao bando amado que lhe confiei. Dá esta vida divina aos que te são mais queridos e mais cuidam de ti e de mim. Vem, minha Mãe, vem agora, dá o nosso conforto e a nossa vida, unida a esta filhinha.

Veio a Mãezinha, tomou-me em seus braços, abraçou-me, acalentou-me com amor, bafejou-me fortemente por espaço de alguns momentos e disse-me:

— Minha filha e filha do meu Jesus, recebes por mim a vida d’Ele e por Ele a minha vida e assim vives de Jesus e de Maria. Que encantos tem a tua vida, que rica que ela é! Ele é tão ofendido! Quando ferem o Seu Divino Coração, ferem-me também o meu.

— A Mãezinha principiou a chorar e mostrou-me o Seus Santíssimo Coração atravessado por uma forte lança. Condoí-me tanto! Parece que estremeci.

— Mãezinha, Mãezinha, cessai lá as Vossas lágrimas, estai alegre, não dolorosa, e deixai-me tirar do Vosso Santíssimo Coração essa lança.

Tirei-lha com amor, tirei-lha serenamente. O coração ficou sem ferida, em vez de sangue ficou luz, ficaram flores; e as lágrimas cessaram em Seus olhos santíssimos. A Mãezinha chamou por Jesus. Ele aproximou-se.

— Estou pronta para sofrer, Jesus. Estou pronta para sofrer, Mãezinha. Consolai-Vos, consolai-Vos.

— Minha filha, pomba adorada, para não estarem feridos os nossos corações, dá-me a reparação que te pediu minha Bendita Mãe. Dá-ma pelos sacerdotes, dá-ma pelos conhecidos que te tenho recomendado, dá-ma pelos desconhecidos. É tão grande, tão grande o número que me ofende!

— Jesus, Mãezinha, está aceite. Dai-me coragem, dai-me amor, dai-me confiança.

Fui acariciada por Jesus e pela Mãezinha, enquanto um bando de anjos descia sobre nós. Jesus acrescentou:

— Vêm os anjos do céu adorar na terra o seu Rei, a sua Rainha e com Eles o seu anjo em carne. Vai, filhinha, toma a tua cruz. Vai, filhinha, submete-te às trevas, vai confiante. A causa triunfa, os humilhados serão exaltados.

— Aceitai, Jesus e Mãezinha, um nunca terminar dos meus agradecimentos.

             Estou num martírio, estou presa, fortemente presa às minhas trevas, à minha cruz. Foi o amor, são essas as paixões, mesmo sem o sentir, mesmo sem o gozar. Prendeu-me Jesus, prenderam-me as almas, e eu aceitei e quero.

6 de Setembro de 1945

O que sou eu? O insecto mais vil, o trapo mais imundo, sem proveito para nada. Perdi-me, perdi-me, a minha vida é inferno, a minha cama é inferno, a minha morte é inferno, a minha eternidade é inferno. Inferno, inferno, sinto-me nele a arder, sinto-me nele atormentada em todos os sentidos pelos demónios. Que cabanas tão feias e atormentadoras! Que cheiros imundos, que atormentam mesmo a alma. E a perda do meu Deus! Nunca mais ver aquela formosura que encanta o céu e a terra! E perdido para sempre! Só o Seu poder, só a Sua justiça, ainda mesmo no inferno, esmaga-me, aniquila-me. E a minha revolta contra esta injustiça é desesperadora. Não sei palavras que me satisfaçam, para poder amaldiçoar tudo. Tudo é maldito: inferno, céu e o próprio Jesus. E a própria Mãezinha também ouve a sua revolta de maldição. O inferno, ai o que é o inferno, o que se lá sofre! Sinto, e tão frequentemente, que é ferido, apunhalado, um coração que está dentro do meu. Sei que é coração do meu Jesus. Atormenta-me tanto! Como pode ser ter hóspede mais querido hospedado dentro de mim e ter coragem de O tratar assim desta maneira, de O encher de espinhos, e O pôr todo em sangue! Estas punhaladas, estes espinhos vão de fora para dentro e saem de dentro para fora. Vêm do Coração Divino de Jesus cravarem-se no meu, feri-lo, transformá-lo numa massa de sangue. E assim está este ferimento, esta dor, num só coração unidos. E o céu desce e junto de mim abre-se como um vulcão de fogo; desce como bomba destruidora que tudo incendeia. É a justiça do Pai Eterno que não pode ver Seu Filho assim ferido. Tenho medo, porque estou sozinha. Deixaram-me, abandonaram-me. Odeiam-me os inimigos, abandonaram-me os amigos.

— Ó dor, ó sofrimento indizível! Que medo, meu Jesus! Vacilarei? Fazei que eu confie, obrigai-me a confiar.

Cresce a minha cegueira, aumentam as minhas trevas. Não vejo, escureceu-se o mundo, parece que Deus não criou a luz. Submergi-me nos mundos imensos das minhas trevas. Que tristes são os sentimentos da minha alma!

— Meu Jesus, não me dais o meu santo director para meu guia? Sou a Vossa vítima, vença sempre o Vosso amor.

Jesus pediu-me e não faltou, na noite em que me pediu, buscar a reparação que desejava. Foi do sábado para o domingo, das duas horas às três da manhã. Lutei com os demónios, que vieram em forma de cães. Foi violento e assustador o ataque. Fiquei em grande desfalecimento e mais triste que a noite. Murmurava baixinho:

— Que tristeza, meu Jesus, que tristeza! Que receio de Vos ofender.

Ouvi só estas palavras.

— Minha filha, minha filha, e como não há-de ser triste para mim! Vê que não tarda a hora em que os meus discípulos me obrigam a descer do céu à terra, às suas indignas mãos, depois de me terem ofendido assim. Repara e confia que não pecaste.

Nestes dias que passam foram frequentes os ataques do demónio, de dia e de noite, conforme Jesus o tem exigido. Só Ele conhece o meu duro e triste penar. Vieram em forma de cavalos, leões, cães e homens. Não sei como podem inventar tanta malícia e saberem tantas maldades e tantas palavras feias. Ontem ao terminar do ataque, atormentada com o susto de ter pecado, dizia a Jesus:

— Que triste vida! Tende compaixão de mim, tende compaixão de mim!

No mesmo momento, Jesus respondeu-me:

— Tem tu, minha filha, compaixão de mim! Não posso tanto, sou ferido, sou ferido. Que grande maldade! Rasgam o meu Divino Coração. Repara-me, repara-me por tanta imodéstia. A impureza! Que gravidade o pecado da impureza! Confia, não pecaste, consolaste o meu Divino Coração. Nas minhas exigências divinas quero que te vença sempre o amor ao meu amor, o amor às almas. Vai com a minha força divina, toma a tua posição.

Fiquei nas minhas almofadas a ser por um pouco acariciada por Jesus. Mas as trevas encobriam essas carícias, e a dor, a dor imensa continuou. Fiquei triste e desfalecida a esforçar por resistir às dúvidas de ter pecado. De repente, apareceu à minha frente Jesus, pregado numa cruz luminosa. No meio das trevas, Jesus brilhou com a cruz. Esta visão foi duradoira, fortaleceu-me, deu vida à minha alma, pude vencer a vergonha que tinha de Jesus e fitar o Seu Divino Coração e a querida Mãezinha. Hoje, ao terminar outro ataque, bradei com toda a força:

— O inferno, o inferno, e já neste momento, Jesus, se com isto Vos ofendo. Não quero pecar, não, não quero.

Pareceu-me que desafiei a Jesus. Mas Ele bem sabe que não. Serviu-me esta frase para sobrecarregar-me mais de sofrimentos. Não tenho coração para resistir a tanta dor. Que pavor tremendo ser quinta-feira! Sinto que os sofrimentos da paixão, que me esperam, surgem de todos os lados como leões, e a engolirem a sua presa. Estou no meio deles e sinto que o meu sangue por aquela fúria vai ser derramado. E o cálice da minha amargura na noite silenciosa do horto vai sendo oferecido ao Eterno Pai, enquanto, despreocupados, dormem os amados do meu coração. Sofro eu, sofre Jesus. Rasgam-se as minhas veias, o sangue corre, e o pavor aumenta.

— Ó paixão, ó dor e amor de Jesus, que não sois conhecidos! A dor não cabe em mim. O peito abre-se, o corpo desfaz-se. Que será de mim, meu Deus? Tenho medo e tenho sede, medo de tudo e sede de todos. quero dar-Vos todas as almas.

7 de Setembro de 1945

Que medo de Jesus, que pena de Jesus, que saudade de Jesus! Medo, porque sinto aproximar-se a morte e temo dar-lhe as minhas contas. Pena de O ofender e ver ofendido. Saudades de O ver e gozar eternamente. Ai a minha dor, os sofrimentos da minha alma! Sofro sofrendo e sofro sorrindo. Os desesperos continuam, os desesperos do inferno e a perda de Jesus, e não posso conformar-me com O perder para sempre. Estou sempre acompanhada com a cruz. Nesta manhã, quando redobrava de esforços para me preparar para bem receber a Jesus, senti que dentro de mim Ele era açoitado cruelmente e continuou a sê-lo durante a acção de graças depois de O ter recebido.

— Meu Jesus, ó meu Deus, sou eu que maltrato assim o Vosso Corpo Santíssimo? São os meus pecados?

Que grande tristeza! Continuei a vê-Lo a caminhar com a cruz aos ombros. Com que dó O contemplei! Ele tinha saído tão triste da prisão, prisão onde tinha estado sozinho. E logo Lhe preparavam a cruz, que, depois de ser açoitado, levava a custo, desfalecido. De poucos em poucos passos Jesus caía, mas então já caía dentro de mim, porque o caminho do calvário era eu mesma. Ao ser limpo o Seu Santíssimo Rosto, Ele deixou-o impresso vivamente, e eu sentia que aquele Rosto Santíssimo, aquele retrato sem igual havia de ser visto, enquanto o mundo existir. Se o meu coração tivesse a generosidade como o daquela mulher que se aproximou de Jesus… Que grande foi a recompensa que ela d’Ele recebeu! Estava no calvário, na agonia da cruz e sentia-me também no inferno, os demónios e as labaredas sobre mim. Subiam as labaredas consumidoras, mas não consumiam nem destruíam a cruz em que eu estava pregada; não faziam desaparecer os sofrimentos da paixão. A cruz brilhava com eles. Uma montanha de trevas levantou-se da terra ao céu, e eu, mergulhada nos mundos delas, e ainda sobre mim estava essa montanha. Podia bradar e bradar sempre, e essa montanha impedia que os meus brados fossem ouvidos pelo Eterno Pai. E eu sozinha, abandonada, sem ninguém! Tive um forte assalto dos demónios. Vieram como cães raivosos e diziam-me:

— Não te vale a pena sofrer tantos sofrimentos nem teres tantas visões, porque afinal estás condenada. De nada te aproveita. Ofende a Deus, anda para o prazer, goza ao menos aqui.

Sempre que podia, jurava não querer pecar e implorava o auxílio do céu. Ao terminar da luta, sempre disse a Jesus:

— Perdoai-me, meu Amor, mas custa-me a crer consolar-Vos desta maneira. Que medo eu tenho de Vos ofender!

Continuei na cruz e num abandono irresistível. Os olhos do meu corpo não viam ninguém à volta de mim, mas dentro de mim estavam bem unidos dois corações feridos pela mesma lança, pelos mesmos espinhos. Compartilhavam da mesma dor: era o de Jesus e o da Mãezinha. Que alegria seria a minha, se eu soubesse fazer compreender quanto estes dois corações sofreram e a grandeza do meu abandono e da minha agonia. Morria, morria sozinha sem o auxílio do céu. E, neste momento, desceu Jesus pela montanha das trevas e veio ao meu encontro. Veio com os Seus santíssimos braços e o Coração abertos.

— Venho, minha filha, de braços abertos, para te abraçar, e Coração aberto, para nele te receber. Significa a tua entrada no céu. Os braços abertos para te abraçarem e levarem, o Coração, a Pátria que vais habitar. Virei depressa, pomba querida, a conduzir-te ao paraíso. Venho com sede, deixa-me beber no teu coração, nessa fonte cristalina, que é minha. É água celeste, é fonte divina.

Jesus bebia com canseira, parecia não se saciar mais.

— Deixa-me beber, esposa amada, beber em teu coração, porque no mundo não posso beber. Ando pedindo entrada de coração em coração, como andei no ventre da minha Mãe, na cidade de Belém. À semelhança dela, quase nenhuns corações me querem beber. Em ti sacio a minha sede, e o supérfluo aplico-o para as almas, é supérfluo de salvação. Com ele esqueço as minhas dores, com ele deixo de sentir os espinhos que me ferem. Vou dar-te agora, minha filha, o meu divino sangue. Vou fortalecer-te para a tua cruz; vou encorajar-te e levantar-te do teu desfalecimento; sou o teu médico divino. Aplico com tanto cuidado a minha ciência, como o médico da terra tem cuidado com o teu corpo. Dou-te o meu divino sangue e amor por gotas, não podes resistir a mais. Aplico-te sete gotas em honra das dores da minha Mãe Santíssima.

Tomou Jesus em Suas mãos o Coração, fez dele como que um vaso formosíssimo, do qual deixou cair para o meu coração as gotas do Seu preciosíssimo sangue e outros tantos raios doirados do Seu amor. Principiei a sentir-me grande e forte. Jesus cuidadosamente levantou a Sua divina mão como sinal de paragem e logo deixei de sentir aquela fortaleza e grandeza com a qual não aguentava.

— Minha filha, és a luz do mundo, tens em ti toda a luz do Espírito Santo, és a salvação das almas, tens todo o poder sobre os pecadores. Esta luz vai-lhes penetrar e perscrutar nos corações. A graça, a luz, o amor brilham em ti, irradiam em ti e à volta de ti e por ti hão-de brilhar e irradiar dum pólo ao outro do mundo. Por ti vou entrar nos  corações mais endurecidos, por ti vou afervorar os tíbios, por ti vou incendiar mais e mais todos os que estão sequiosos de mim. Minha filha, flor mimosa do jardim divino, canteiro do paraíso celeste, continua a dar-me e a dar-me com alegria e amor os combates que vou pedir-te, a reparação pelas almas. Coragem, coragem, se as queres salvar. Coragem, coragem, se não me queres ver ferido.

— Sim, meu Jesus, não posso consentir uma ofensa feita a Vós. Mas como podeis tirar da minha miséria alguma doçura e consolação? Custa-me tanto reparar-Vos desta forma.

— Ó pura, ó bela, só da tua pureza posso tirar pureza, só do teu coração posso tirar amor. Não sabes tu que só das flores se tira o néctar? Em ti recebo tudo, e por ti todos os corações receberão. Deixa-me mais uma vez transformar-te em mim, envolver-te no sangue de Cristo, no amor de Cristo, para que a tua vida seja só e sempre a vida de Cristo.

Tomou Jesus o meu corpo, uniu-o ao d’Ele, fez dois uma massa de carne, sangue e amor. Jesus continuou.

— Todo o teu ser é de Cristo, vida, corpo, olhares, sorrisos e amor. Dá-te às almas por amor de mim. Coragem! Sempre que eu venho depressa, venho breve dar-te a recompensa.

— Jesus, vindes de certeza? Queria perguntar-Vos, mas perdoai-me a minha curiosidade, não Vos, não Vos digo mais nada.

— Pergunta, pergunta, minha filha, tem confiança em mim. Já sei tudo, mas diz-me lá.

— Vindes depressa levar-me para o céu ou continuais sempre com os Vossos breves?

Um sorriso de Jesus à minha pergunta, e respondeu-me:

— E são sempre apressados os meus breves por muito que eles demorem. Mas não, lírio casto, não, pomba adorada, não trato mais contigo desses breves demorados. Virei buscar-te. E o que vais tu fazer no céu?

— Vou amar-Vos e bendizer-Vos eternamente.

— E as almas? Que fazes por elas?

— Imploro junto de Vós. Não posso eu no céu junto de Vós salvá-las da mesma forma?

— Sim, minha filha. Digo isto, para experimentar-te. Não é para mim, mas para o mundo ver e compreender a alma louca pelo seu Deus e pelas almas, a alma que vive a vida de Cristo, seu Senhor. Vai agora, toma a tua cruz, segue-me sorrindo, segue-me com amor.

Tomei a cruz, coberta de dores e amarguras, mas encobrindo-as o mais possível; sorri alegremente, sorri e fiz sorrir os que me rodeavam. E ao mesmo tempo ia dando tudo a Jesus e às almas. Só pelo céu podia ser compreendido o meu sacrifício.

11 de Setembro de 1945

No dia da Mãezinha, quanto me esforcei para A consolar e provar-Lhe o meu amor! E nada consegui. Escrevi por minhas mãos tudo quanto ia no coração e na alma, tudo o que Lhe queria dizer, e sem nada saber dizer. Fui colocar-me a Seus pés com um vaso de flores, mostrava-me alegre e com grande entusiasmo, mas dentro de mim tudo era morte, parecia enganar e mentir a mim mesma. Ao recomendar-Lhe de novo o que na carta dizia, sentia como que ela o rejeitasse e não fosse aceite. E desde então fiquei como se a minha alma vagueasse entre o céu e a terra. Não sou do mundo nem sou do céu. Estou como se não habitasse nem um nem outro lugar, mas a dor e as tremendas trevas acompanham-me sempre essa vida vagueante. Não sei como hei-de vencer e resistir! Continua a minha crueldade a dar punhaladas no Coração Divino de Jesus, que possuo dentro de mim. E depois de assim O maltratar, sinto uma sede insaciável de O possuir, amar e consolar. Sinto desejos indizíveis de só a Ele pertencer. Mas tudo isto é morte, e tudo em mim é podridão. Não posso aguentar estes sentimentos ao mesmo tempo. Ferir e depois dar-me cegamente Àquele que feri! Que atrevimento o meu! Mas Ele tem sede das almas, e eu quero dar-Lhas! Ele quer possuir o mundo, e eu quero entregar-Lho inteiramente, mas a vergonha apoderou-se de mim. A minha vida nada condiz com estas ânsias e desejos. As minhas trevas por vezes não deixam ver com os olhos do corpo a Jesus, e a vergonha que sinto obriga-me a querer desaparecer diante da Sua divina presença. Não quero que Jesus me veja, temo a morte, não sei como comparecer diante d’Ele para ser julgada! As saudades do céu derretem-me o coração, mas temo ter de passar pela morte. Aterroriza-me e entristece-me. A alma continua a sentir os horrores do inferno e os horrores da vida que me levou a ele. A revolta contra Jesus, a perda d’Ele. Que horror e que triste é o meu viver. E sinto que não tenho uma única pessoa na terra a quem hei-de recorrer. Não há quem possa dar-me uma palavra de conforto. Pedi a todos, e todos me abandonaram. De cada vez sinto mais necessidade dum guia, do meu Pai espiritual. Meu Deus, foge o tempo, e ele não vem. Tenho tantas saudades de voltar a ter no meu quarto o santo sacrifício da Missa. Não terei essa dita. Fugiram de mim todas as ditas e todas as consolações. Há dois dias que não recebo o meu Jesus, o meu coração morre de saudades. Nuns momentos de grande ansiedade de o possuir para saciar a minha fome, pensava: se estivesse junto do sacrário, pedia tanto a Jesus para vir ao meu coração, que tenho a certeza que Ele deixava o sacrário e vinha para mim, ao ver a minha ansiedade. Em pensamento posso fazer o mesmo aqui, para Ele não há distâncias. Receosa que houvesse uma confusão da minha parte, desviei de mim este pensamento. Jesus sabe os meus desejos e há-de enriquecer-me e como Ele quiser e Lhe aprouver. O demónio atormentou-me por duas vezes, forte e desesperadamente, porque senti, porque senti em mim a primeira reparação: foi por todos em geral, por todos os que ofendem a Jesus, contra a castidade. A segunda, que foi hoje mesmo, foi pelas famílias, pelos esposos ingratos para Jesus. Digo isto, pelas cenas tristes que observei, as quais só pelas famílias me têm sido pedidas. Que coisas tão horrorosas, que maldade a dos demónios! Lutei por tanto tempo! Só pensava perder a vida. O coração parecia estalar, e o corpo banhou-se em suores. Invoquei tanto e tão repetidas vezes o nome de Jesus e o da Mãezinha. Pedi-Lhes tanto que me acudissem, porque não queria pecar. O demónio raivoso dizia-me que pecava e queria satisfazer meus gostos. Parece que fiquei doida e perdida, em região diferente. E, na incerteza de ter pecado, que tristeza se apoderou de mim! Veio o meu Jesus, estreitei o meu ao Seu peito, e disse-me:

— Minha filha, minha estrela luminosa, não pecaste, lírio casto, açucena pura.

A tristeza e a dúvida de pecar desapareceram por um pouco. Apesar de este abraço de Jesus não ser como costumava ser, desapareceu aquele calor, aquela união de amor que Jesus usava para com a minha alma. Mas só com estas palavras fiquei mais forte. Vou rompendo por entre as minhas trevas, sobrecarregada, mas abraçada por amor à minha cruz. Sorri, porque Jesus o quer, amo-a por Ele, amo-a pelas almas. Sinto que não tenho nada a receber do céu, mas confio que é de lá que tudo hei-de receber.

13 de Setembro de 1945

Trevas em mim e à volta de mim. Trevas no corpo, no coração e na alma. Vejo, sinto que é impossível atravessá-las sem um guia, sem uma luz. Esse guia, essa luz não aparecem.

— Deverei morrer sozinha, sem ninguém? Sozinha vivo, sozinha, sem ninguém. Deus, meu Deus, morro sem chegar ao fim destes mundos, tão negros, tão aterradores! A minha vida tornou-se-me quase insuportável. Quanto mais sofro mais despida me sinto, mais pobre e miserável me vejo diante de Jesus, mais indigna do céu, do céu que perdi pela vida que não soube aproveitar; não segui os caminhos de Jesus, não O amei, não soube viver. Que horrores! Que revoltas e desesperos em minha alma! Tudo quero amaldiçoar, quando os meus ouvidos ouvem os uivos e ruídos infernais, quando a alma sente os horrores do inferno. Que tremendos tormentos! São insuportáveis com a perda de Jesus. E, depois destes sofrimentos, continuo a sentir que não vivo, só os sofrimentos vivem; não estou na terra nem no céu.

— Meu Jesus, ai que vida esta!

Muitas vezes, quando estou caída e por mais esforço que faça, não posso levantar-me, a minha alma tem a visão da cruz; e quem a leva é Jesus, Jesus de poucos anos ainda. Tão pequenino e tão curvado debaixo do seu peso! O meu coração enche-se de compaixão. Jesus pequenino e inocente vai por amor de mim tão sobrecarregado. Não hei-de eu caminhar, pequenina ou mesmo nada de virtudes, mas grande de misérias, de pecados. Por amor d’Ele submeto-me a levar a cruz com todo o peso.

— Meu Jesus, quero seguir-Vos, à Vossa semelhança quero caminhar. Não sois Vós que me animais, não é a Vossa formosura, pois a minha alma não sente nisso consolação, mas sim a Vossa inocência, o Vosso amor ao sofrimento animam-me e levam-me à compaixão.

Quando assim vejo Jesus, não me alegro, mas sinto-me viver. Ele leva a cruz dentro de mim, e eu, unida a Ele, levanto-me, estreito de novo ao meu coração a cruz e caminho. Veio hoje o demónio com um ataque aterrador. Tudo à minha volta eram cães, todos me queriam saltar raivosamente; todos me convidavam ao mal, todos praticavam as mais feias acções. Lutei com eles. No meu rosto e no meu corpo sentia a maldade do homem e do inferno; todo o meu corpo era maldade, todos os meus gestos e olhares eram maliciosos. Queria chamar por Jesus e pela Mãezinha, e o maldito não me deixava. Só desde que me parecia ter pecado e ele me afirmava que sim é que se quebravam as cadeias que me prendiam a língua. Chamei por Jesus e pela Mãezinha. Fiquei libertada, mas abismada num mar de dores, tristezas e receios, sem haver nada no mundo que alegre a minha alma. É a minha cruz. Nova visão apareceu aos olhos da minha alma. A cruz de amanhã. E então Jesus, já homem, para a levar. É para Ele e é para mim, pois Ele sofre em todos os membros do meu corpo. Vejo o que me espera. Sinto como se estivesse na mais alta montanha, e todo o mundo contra mim a inventar à porfia novos meios par atormentar meu corpo. Sou escândalo no meio da multidão. A alma chora, o corpo estremece, as veias tendem a rasgarem-se; já vejo o horto onde o sangue vai ensopar a terra. Ao meu coração ligou-se o Coração da Mãezinha. Que triste adeus ao terminar da ceifa! Sinto que vou para a morte, e a Mãezinha sente que vou; está já de dor o Seu Santíssimo Coração. Ele encobre ainda Sua dor, o Seu pranto.

14 de Setembro de 1945

Não há na terra quem possa alegrar-se. Parece-me que todo o mundo tem tanta luz como eu tenho, tantas trevas como tem a minha alma. A alma nada vê, e sinto que o mundo está na mesma cegueira. Caminhei para o calvário, desfalecida, caindo repetidas vezes e repetidas vezes por cordas arrastada. Tive quem me ajudasse a levar a cruz, mas esse auxílio não era voluntário, não recebi dele consolação. A sede ardente, que no coração levava, era a força do meu caminhar. O meu corpo foi todo salpicado por bolas  de chumbo; as carnes e o sangue ficavam espalhados no caminho da montanha. Um número de curiosos contemplava essa carne e esse sangue; contemplava por escárnio e não por amor. A sede continuava, uma sede eu o meu corpo humano não podia aguentar. Já estava na cruz e em grande abandono e agonia. Dum lado e do outro e uns atrás dos outros vieram sobre mim furiosos cavalos; relinchavam furiosamente. Eram demónios a convidarem-me ao mal. Obrigavam-me a dizer que queria pecar e satisfazer as minhas paixões. Não sei se sim ou não o disse, mas creio que não. Terminou a luta só depois de me parecer ofender a Jesus gravemente. E eu pude exclamar:

— Jesus, é a minha cruz. Valei-me, valei-me, ai de mim!

Não pensava nem pedia a Jesus a visão da cruz, mas Ele apareceu à minha frente, cravado nela, luminoso, cercado de flores. Com esta visão fugiram todos os cavalos, relinchando novamente, muito alegres por terem satisfeito seus gostos. E Jesus pronunciou estas palavras:

— Aceita, aceita, minha filha, se te queres assemelhar a mim e seres a minha crucificada sem igual.

E desapareceu da cruz. Fiquei mais forte, é verdade, mas a parecer-me que estava no inferno, pena merecida por tão grande pecado. E continuou o abandono e a agonia da cruz e a mesma sede ardente do caminho do calvário, com a diferença: no caminho do calvário, a sede era de Jesus, sede de possuir as almas; na cruz, era minha, era sede de Lhas dar. Sentia Jesus em todo o meu corpo a sofrer comigo. Eu era o encaixe no qual Ele se revestia. Sentia-O todo inteiramente; até na minha cabeça sentia a d’Ele com os Seus cabelos ensopados em sangue.

— Ó meu Deus, ó meu Deus – eu exclamava – oh quanto se sofre, e o mundo não conhece! Aceitai o meu abandono e agonia; aceitai os meus medos, a minha dor.

Que pavor eu não poder resistir mais! Esperava a vinda de Jesus, mas Ele demorou tanto! Quando veio, disse-me:

— Para longe de ti, minha filha, as tuas trevas, dúvidas e temor, para que saibas que sou o teu Esposo, o teu Jesus. Venho beber, venho saciar, na tua fonte, a minha sede; venho retocá-la, abrilhantá-la, enriquecê-la, para que toda a água dela se aproveite, água que é tirada, transformada do sangue das minhas veias. O meu sangue é sangue que gera as virgens, germina, dá a vida. Eu sou a tu vida, e é por ti que as almas recebem a minha vida divina. Deixa-me enriquecer essa fonte, a fonte do teu coração; deixa-me despejar nela o cofre do meu amor e das minhas riquezas: são as minhas últimas maravilhas em ti.

Jesus abriu o Seu Divino Coração e abriu também o meu; despejou tudo o que o d’Ele continha, deu-se todo ao meu, selando depois o meu coração.

— Minha filha, minha pomba, meu encanto, isto é a minha vida, a minha força; são riquezas para dares às almas. É o meu poder divino para levares a tua cruz. Quero-te pequenina para seres grande; pequenina, mas comigo caminhas sem vacilar. É por isso que pequenino me apresento a ti, levando a cruz. Sou pequenino, sou inocente, e tu, pequenina e inocente, leva-la por amor de mim, ó nova redentora das almas. Não receies a cruz, não temas o seu peso, venha o que vier, fira-te o que te ferir. Vencerás comigo; seguirá a barquinha, firme no mar, mesmo que a tempestade, por todos os lados, a cerque. Vence a minha divina causa; triunfa, triunfa.

Sentia que eu era a barquinha, que caminhava por entre as ondas, cercada até às alturas de horrorosas tempestades. Não estremecia a barquinha, não mergulhava nas águas, não temia, porque dentro dela ia Jesus.

— Minha filha, vou diminuindo os meus colóquios e diminuindo o tempo deles para glória minha, proveito das almas. O meu amor e a minha divina luz em ti serão como sol que rompe as nuvens e mal chega a alumiar e a aquecer. Tudo vai a caminho do seu fim, até mesmo as minhas maravilhas e o sentires o meu amor. Tem coragem! Mais do que nunca me amas, mais que nunca estou em ti. Vou dar-me agora a ti na Eucaristia. Como prova de que és a minha verdadeira crucificada, prometo-te, minha filha, não deixar-te sexta-feira nenhuma sem me dar a ti, sacramentado, ou pelas mãos dos meus discípulos ou pelos meus anjos ou eu mesmo, como agora vou fazer.

Tomou Jesus em Suas santíssimas mãos uma hóstia e disse:

— Corpus Domini Jesu Christi. Sou eu mesmo sacramentado, sou a tua vida, o teu alimento. Pede-me agora o que quiseres, confias que sou eu?

— Confio, porque confio na Vossa palavra; não por me parecerdes aquele Jesus, cheio de luz e amor.

Contudo, aqueceu Jesus o meu coração e fez-me gozar uma grande paz.

— Jesus, peço-Vos para ser santa, como Vós o quereis, se o quereis. Peço-Vos para amar-Vos tanto como o Vosso Divino Coração deseja; peço-Vos para não Vos  ofenderem gravemente todos os que me são queridos e me pertencem; peço-Vos para não Vos ofender; deixai-me entrar com todos no Vosso Santíssimo Coração e lá viver e morrer. Deixai-me entrar com o mundo inteiro, para que ele seja salvo.

Enquanto eu dizia isto a Jesus, estavam anjos em tamanho natural de joelhos e inclinados diante de Jesus. Não cantavam, mas eu ouvia um toque harmoniosíssimo, que arrebatava. Jesus disse-me:

Entra, entra no meu Coração, na tua morada, entra com quem desejas; fecha-te lá dentro. Os anjos vão colher as flores do teu amor e das tuas virtudes, vão levá-las para junto do trono divino; o seu aroma é para as almas, é o bálsamo que vai curar-lhes a lepra.

Vi os anjos com posta de flores levantarem voo e desaparecerem. E desapareceu também Jesus a dizer-me:

— A tua missão são as almas. Salva-mas, salva-mas. É pela dor, é pelo amor, é pela cruz.

Fiquei forte, sim, mais forte, mas a sentir horrorosas dores no meu corpo e a lutar, a combater os mundos das minhas trevas, ceguinha da alma e do corpo.

16 de Setembro de 1945

Não vejo, não sei onde estou, não há céu nem terra para mim. Não vivo e vivo, não sinto e sofro. Temo viver, temo morrer. Quero Jesus, perdi a Jesus e tenho medo de morrer e de comparecer na Sua divina presença. A minha vida é vergonhosa. Ai de mim, mas não quero perdê-Lo, não quero condenar-me.

— Ó inferno, ó inferno, que tremendo és!

Ai quantas vezes sinto lá arder o meu corpo, o meu espírito, e todo o meu ser é atormentado pelos demónios. E não tenho quem me guie, não tenho quem acuda à minha pobre alma. Não há luz que a ilumine; todo o céu, todo o mar e terra são trevas. Em cima de mim e debaixo de mim. E de dia e de noite este tremendo martírio. Que abandono e incertezas, que vida tão duvidosa! De alma e coração feridos, preparei-me para a vinda de Jesus a esta pobre morada; preparava-me com tristeza; esperava-O com dor e ansiedade. Logo que Ele entrou no meu peito, disse-Lhe as minhas mágoas. Sem grandes efeitos do Seu amor, ouvi que Ele me dizia:

— São puros os teus caminhos, minha filha, são caminhos verdadeiros, caminhos reais, escolhidos por mim. É grande o teu amor, é grande a tua reparação. Sou eu o teu conforto, o teu alimento, a tua vida. Amo-te tanto, tanto, amo-te a mais não poder amar-te; por isso te escolhi os caminhos mais espinhosos, difíceis e delicados, e te escolhi a maior missão, a mais bela e sublime. Dá-me tudo com santa alegria, com alegria de alma, isso me basta. Não penses, minha filha, que me entristeces por dares a conhecer a tua dor. Não disse eu: “a minha alma está triste até à morte?!” A tua tristeza mostra a tua dor e amargura e a sensibilidade do teu coração, mas não quer dizer que deixas de viver alegre no teu martírio. Tu dás-me o maior amor, a maior reparação, a maior alegria. Confia em mim. As tuas trevas dão luz ao mundo.

Fiquei umas horas mais forte. Após este alívio, voltei ao mesmo penar, a sentir a alma dilacerada de dor, com os tormentos mais aterradores. Queria conhecer Jesus, amá-Lo, fazer tudo por Ele e nada fazia. Que vida de perdição!

— Meu Deus, que arrancos tão desesperadores!

Sentia-me em tudo perdida e condenada. Por vezes apertava as minhas mãos como para segurar-me e ficava quase sem saber o lugar onde estava. Que trevas, que cegueira a do meu espírito!

— Valei-me, Jesus, é Vosso o meu coração, é Vossa a minha vida, tende dó.

20 de Setembro de 1945

O que será de mim sem Jesus e sem ninguém?

— Não comungo, ó meu Deus, que falta me faz. Sinto-me desfalecer e morrer de fome. Perdi todos os que me são queridos, não tenho ninguém por mim.

Perdi a Jesus para sempre e sinto grande revolta na alma com esta perda. É perda desesperadora. Quantas vezes sinto todo o meu corpo a arder no inferno. Sinto e vejo aquelas feias cabanas, os urros e maus tratos dos demónios, as suas cenas maliciosas atormentando-me por aqueles pecados que me levaram à perdição. Todos os meus sentidos sofrem. De que me serviu a vida tão leviana, cheia de loucuras e prazeres, para depois condenar-me! Que pecaminosa e horrorosa vida, que tremenda e assustadora eternidade! Reconheço que mereci o inferno, mas isso não basta, tenho que, desesperada, amaldiçoar tudo. Nesse abismo eterno, sinto que os demónios maltratam tanto a minha alma e atormentam todos os meus sentidos, a parecerem cães que põem pano em tiras, destruindo tudo, fio a fio.

— Ó meu Deus, se o mundo conhecesse o que se sofre no inferno e o que é uma ofensa ao seu Deus! Não sei dizer o que vai dentro de mim. Meu Deus, que pena tenho! Queria saber dizer mais, queria poder mostrar a região onde habito, a região das trevas. Ando a vaguear entre elas. Que escuridão a da minha alma! Que cegueira a do meu espírito! Não vejo, não vejo nada, não sei onde estou. Toda a minha vida deixou o corpo, para viver das trevas. Pobre espírito, que não sossega, batalha com elas. Não habita o céu nem habita a terra; perdeu-se, perdeu-se. Parece-me estar cravada na cruz, e a violência da dor separa-me dela, deixando assim de serem úteis todos os meus sofrimentos. É para melhor sentir que nada vale a minha existência aqui. Que vida de tanto penar! Se eu pudesse convencer-me que consolava Jesus e salvava as almas!

— Jesus, Jesus, quero confiar, obrigai-me a confiar. Ai de mim sem a graça do céu.

Os demónios assaltam-me, caem sobre mim, sobre o meu leito, desesperados, como para estrancinharem o meu corpo. Que feras tão feias, e que eu desconheço! Parece lançarem-se aos meus ombros, fazem-me estremecer. Maldito ele seja! Perdeu-se e quer perder-me a mim também. Veio mais que uma vez em forma de homem, para obrigar-me a pecar e ensinar-me a blasfemar contra Deus. Quer que eu diga que quero pecar, que quero o prazer. Não quer que eu pronuncie o nome de Jesus. Para isso parece apertar-me a garganta e cerrar meus lábios. Eu, antes de chegar ao auge da luta e aflição, disse:

— Já sabeis, meu Jesus. Se Vos hei-de ofender, dai-me já o inferno.

Que mundo de dúvidas e incertezas. Pobre de mim, em que dor eu fico. Que medo de ter pecado. Que vergonha que não me deixa levantar os olhos para Jesus. O coração consome-se. A sede redobra. Quero amar a Jesus, tritura-me ver que O não amo. Cai sobre mim a chuva dos sofrimentos. Já me sinto no horto. O coração é espremido para o cálice da amargura e em mim a oferecê-lo ao Eterno Pai. Sinto e vejo que deste cálice sai fogo e grande fragrância. O Eterno Pai satisfaz-se nesse fogo e fragrância no cálice de tanta dor. Apesar de Se satisfazer, não vem consolar-me, deixa-me ao abandono, esmaga-me com a Sua justiça. O Seu peso divino rasga-me as veias, obriga-me a dar o meu sangue. Sinto-me com os lábios em terra, a falar com o peso esmagador.

— Ó horto, ó triste horto. Ó Jesus, aceitai-me tudo e salvai as almas.

21 de Setembro de 1945 – Sexta-feira

Passei triste a noite, mas em união com Jesus. Saí da prisão, prisão que eram trevas, e as ruas, que passeava, trevas eram. O meu espírito não via, mas pôde ver através das trevas uma grande multidão de judeus que sobre o meu corpo descarregavam fortes açoites e varadas. E o coração segredava-lhes ao receber estes sofrimentos:

— Tenho sede das vossas almas, quero possuí-las.

E sentia dentro de mim Jesus a romper por entre a multidão, louca de amor, só em ânsias de lhes dar o céu. Só o amor de um Deus podia vencer tão grande martírio. Ele caminhava dentro do meu corpo, e eu a senti-Lo cair por terra, e os olhos da minha alma a verem o Seu rosto santíssimo pisado, ferido, com olhar de compaixão e profunda tristeza. Que olhares que tão docemente convidam e atraem as almas. Eu não podia suportar em mim aquele convite de Jesus; não podia sentir aquela dor, tinha que desfalecer. Vi-O em visão bem clara com a cruz aos ombros, com um joelho em terra e o outro no ar a fazer grande esforço para se levantar. Atrás d’Ele caminhava uma mulher; não lhe vi o rosto, vi-lhe uma farta cabeleira estendida. Um pouco à frente de Jesus e suspenso no ar, estava um coração com uma grande chaga; essa chaga estava em sangue. O coração, era o Coração Divino de Jesus, senti-o bem. Quando cheguei ao calvário e fui despida, foram as carnes coladas; foram tais as dores dos nervos, ou não sei de quê, que foram bater-me ao coração, que me deixaram sufocada e quase sem vida. A minha língua, retalhada de tanto que inchou, parecia não caber-me dentro da boca. E o meu rosto não era rosto; sentia que não tinha forma humana. O meu brado era contínuo, brado que ecoava em todo o calvário; só ao céu é que não chegava, não era ouvido pelo Eterno Pai. Que doloroso e tremendo abandono! Sentia o coração falhar-me, ia a perder a vida. Queria dizer ao Eterno Pai que Lhe entregava o meu espírito e não podia. A um brado fortíssimo, entreguei-Lho e expirei no abandono. E neste abandono esperei tanto tempo por Jesus! Veio e disse-me:

— Minha filha, vaso sagrado, onde habita o Rei do Céu e da terra. É o teu coração esse vaso; o Rei sou eu, o teu esposo, o teu Jesus. O teu amor é a lâmpada que me dá luz e luz tão forte; se eu assim o quisera, iluminava o mundo. As tuas virtudes são as flores que adornam esse vaso no teu coração; o seu perfume enche-me, consola-me. Vais agora receber-me pelo teu Anjo da Guarda.

Não vi o meu anjo, vi só a sagrada hóstia, bastante grande e branca, muito branca. Por três vezes ouvi dizer as palavras ecce agnus Dei. E depois todas as palavras que dizem os sacerdotes. Não via os anjos, mas ouvia o bater das asas e o zunir como que a cortar o ar. E ouvia-os cantar:

Veio do Seu trono, prisão de amor,
dar-se em alimento o nosso Rei e Senhor.

Veio do Seu sacrário o bom Jesus
Dar a vida e suavizar tão pesada cruz.

Veio à Sua esposa, veio o nosso Rei,
Reverentes O adoramos como em Seu trono,
como em Seu seio.

Glória, glória a Ti, nosso Deus,
A Ti, Rei do Amor.

Sem os ver, deixei de os ouvir, para continuar a ouvir Jesus.

— Minha filha, sou a tua vida, força e amor. Prometi e não faltei, vim a ti. Não venho mais vezes para saborear as tuas ânsias, a tua sede de mim na Eucaristia. Dou-me a ti para te dares às almas. Encho-te o teu coração com as riquezas do meu para por ele elas serem distribuídas. És a vida das almas mortas, és a vida das vidas, és o amor dos corações. Levanta-te, levanta-te do teu desfalecimento. Vou pedir-te muita reparação daquela que me dás com o maior dos sacrifícios. Não ma negues, não queiras ver o meu Divino coração ferido. Dá-me todos os sofrimentos, para serem salvas as almas.

Principiei a ver tantas, tantas, era uma chuva delas, era impossível contá-las. Estavam tão luminosas, já me parecia o céu. Jesus disse-me:

— Vê, minha filha, foram todas salvas por ti. Se soubesses por cada dia do teu sofrimento o número de almas que salvas! O que será a vida toda do teu martírio! E toda a vida do céu a desempenhares a tua missão, enquanto o mundo for mundo! Alegra-te, no céu o verás. Todas estas almas te esperam lá e para breve. Olha o valor o sofrimento. Tem coragem. Eu sou o guia nas tuas trevas; sou a força no teu calvário; confia em mim; desagrava-me com as tuas dores, desagrava-me com o abandono e a cegueira do teu espírito. O fim está perto. Pede-me o que quiseres agora que me tens sacramentado em teu coração.

— Meu Jesus, meu doce Amor, vinde ao meu corpo e à minha alma buscar tudo quanto Vos agrada e consola. Estou pronta para continuar a ser a Vossa vítima. Já que prometeis dar-me tudo o que Vos peço, dai-me força e graça para sofrer e amor para Vos amar. Libertai, libertai, meu Jesus, o meu Paizinho. Não Vos demoreis mais. Dai, meu Jesus, ao meu extremoso médico, hoje, no dia do seu aniversário, tudo quanto para ele Vos pedi e não soube pedir. Enchei de bens todos os que me são queridos e salvai todo o mundo, que é Vosso.

— É teu, porque to confiei, ó luz atraente dos meus olhos. Salva-o e confia que tudo recompense por ti. Vai em paz. Vou abreviar o meu colóquio, vou esconder-me. Os mundos das tuas trevas são mundos de luz, são mundos de amor, para as almas e para os corações.

Bem depressa a minha alma esqueceu o conforto, a luz e o amor que Jesus me deu no momento em que O recebi. Bem depressa os meus ouvidos perderam a suave música dos anjos. Esqueci tudo o que era alívio e luz, para viver só na cegueira do meu espírito, na dor angustiosa do corpo e da alma. Ai de mim! Temo o meu viver. Que o Senhor seja comigo!

24 de Setembro de 1945

Voltei a receber o meu Jesus. E onde baixou Ele? À cegueira do meu espírito, às trevas horrorosas, ao mar imenso e pavoroso de podridão. Não posso pensar nem consentir que Jesus desça a esta imundície vergonhosa e nojenta. Este mar de podridão sinto-o em mim e ao mesmo tempo separado de mim. Causa-me horror e não me pertence. Não posso deixar Jesus descer a ele e não sei como. Ele deixa-se levar e vai ferir-se neste lodo tão envenenado. É imundície que tem espinhos que ferem sempre e sempre fazem sangrar. Queria com as minhas mãos amparar Jesus, para Ele não pousar neles, e não consigo. Estou louca de vergonha e louca de amor. De vergonha, ao sentir-me assim; de amor, procurando todos os meios possíveis, para sustentar Jesus sem O deixar poisar no que tanto O fere. Mas esta loucura de amor envolve-se na noite tenebrosa do meu espírito, nas trevas que me envolveram toda a alma. O pobre espírito, sem ser aceite no céu e na terra, anda vagueando na região que nunca viu luz. Anda como a avezinha sem pousar, que bate as asas dia e noite sem conseguir repousar. Se sobe ao ar, não encontra saída; se desce e mergulha, não a encontra também. Não há caminhos por onde eu possa sair das trevas. O coração e a alma tremem e choram apavorados. Que horror, que horror, ó meu Deus! Que desesperos dentro em mim! Mas são desesperos que me fazem estar calma e serena.

— É a Vossa vontade divina, meu Jesus, eu aceito.

Quantas vezes sinto e ouço beber, mas beber sofregamente dentro do meu coração. Ó que beber com tanta canseira! Quem bebe bebe com tanta doçura, saboreia tanto, mas nunca está saciado. Eu também não me sacio, nada há que me satisfaça e console. Por mais que eu sofra, nada sofro e nada tenho para oferecer e consolar Jesus. E as minhas almas morrem de fome, e eu quero salvá-las, não as posso ver morrer. Os ataques dos demónios têm sido frequentes e tormentosos. Têm vindo em forma de homens. Um pelo menos durou cerca de uma hora. O meu corpo foi todo banhado em suores, e o coração batia como uma fábrica apressada. Quando já lutava com eles, de repente vi à minha frente o Menino Jesus dos seus cinco para seis anos, com o coração aberto no centro do peito. Fitou-me como quem convidava a entrar nele. Retirou-se. Era formoso, formosíssimo, e o coração estava todo cercado e iluminado por raios doirados. A luta continuou e bem triste e dolorosa. Depois de muitos convites e palavras feias segredava-me uma voz:

— Já que te entregas aos prazeres, já que tanto feres o meu coração, retiro de ti as minhas luzes, as minhas graças. És condenada eternamente.

Sentia em mim uns grandes desejos de pecar e, ao terminar da luta, tinha uma pena de morte, por não ter satisfeito os meus gostos.

— Meu Deus, sentia tudo isto, mas nada disto queria.

Aquela visão de Jesus levou-me quase a acreditar que era Ele quem me falava, quando me dizia que retirava de mim as suas luzes e graças e que era condenada. Oh! como eu fiquei triste! E o demónio, contente, ou mostrava-se contente. Parece-me que era ele que assim me falava, para me levar ao desespero. Nos outros combates tem usado sempre as mesmas manhas. Que tremendos horrores! Muitas partes do meu corpo são instrumentos do pecado. Todos os sentidos do meu corpo são instrumentos de ofensa para o Senhor. Mas tudo se refere ao pecado da impureza. Que malditos conselhos, malditas acções, malditos pecados! Hoje, num assalto aterrador, em que me parecia que o meu corpo era instrumento para pecar com muitos demónios, o coração batia-me com tanta força que parecia rebentar e morrer.

— Meu Jesus – disse com o pensamento – a cada pancada do meu coração quero arrancar uma alma das garras do demónio e tantos actos de amor para os Vossos Sacrários, como de areias tem o mar. Parecia-me não ser mais livre dos demónios, e eu não podia mais resistir às suas maldades. Veio Jesus e disse:

— Pára e aparta-te, maldito, vai, príncipe infernal, e leva contigo todos os demónios. Aquele que teve poder para te precipitar nos abismos obriga-te a retirar. Aparta-te, aparta-te, deixa a minha vítima. Minha filha, sossega, que não pecaste. Inclina-te no meu Coração para descansares. Ai dos impuros sem esta reparação!

Eu estava numa tristeza e numa desconsolação doida.

— Aceitai, Jesus, esta tristeza e desconsolação. Consolai-Vos e alegrai-Vos.

— Coragem, filhinha, é minha essa tristeza, pertence-me essa desconsolação, sofre-a por amor, para que eu a não sofra. Anima-te no meu amor.

Dito isto, acariciou-me e escondeu-se, mas já os demónios tinham fugido. Eu não sei dizer as amarguras da minha alma e as trevas em que estou. Parece-me que tudo em mim é pecado e é inferno. Parece-me que não poderei mais ver o céu nem ver Jesus.

27 de Setembro de 1945

Bendito seja Deu! Adormeci nas minhas trevas, para não mais acordar; morri na cegueira do meu espírito, para nunca, nunca mais viver; tremo com pavor, quero respirar e não posso. Tenho medo, estou sozinha, não há quem me acompanhe nesta cegueira. Perdi o céu, só o inferno me resta. Perdi Jesus, sou o entretimento dos demónios. Esta vida, esta vida não é minha, não é uma vida que se viva, não a compreendo. E quantas vezes não posso suportá-la. O demónio enreda-me, atormenta-me. Põe à minha frente homens, mulheres com feias acções, a pecarem gravemente. E depois vem ele pecar comigo e obriga-me a dizer que assim o quero. Quer que eu diga que não quero a Deus; que quero satisfazer meus gostos. E, como o pecado nunca satisfaz a alma, ele deixa em mim e, por espaço de tempo, uns desejos ardentes de pecar e com grande satisfação. Sinto-me nas mãos dele, com as malícias dele revestida.

— Que horror, meu Jesus! Custa-me a convencer que não Vos ofendo. Não sei como acreditar, tende dó de mim.

No último combate, que foi de noite, eu lutava com ele, e sob mim mesma estava o inferno. Que feio e horroroso ele era! Que moinha de almas em seus tormentos! Que tremenda aflição a do meu coração! Que afecto e loucura eu sentia pelo pecado! Não podia pensar que era vítima de Jesus e que repetidas vezes a Ele me oferecia. Que vergonha! Depois disto, acompanhou-me uma pena irresistível das ofensas a Jesus e um desejo ardentíssimo de O amar e ver todo o mundo incendiado no Seu amor divino. Pode lá ser eu amar a Jesus assim tão cheia de misérias! Pode lá ser Ele aceitar-me para Sua vítima! Que vida de tanta incerteza! É quinta-feira, e dentro da minha alma passam-se os maiores horrores. Que medo ao sofrimento! O horto aproxima-se, sinto-me prostrada nele. Sinto em mim o ensopo do sangue. A justiça divina esmaga-me; as veias rasgam-se. Não vi ninguém, mas senti que do céu desce alguém que viesse fortificar a minha alma, levantar-me da terra nua, aliviar-me da minha agonia, para depressa continuar. Quem me aliviou a minha alma! Senti que foi um enviado do Eterno Pai. Mas o Seu abandono continuou, e a Sua justiça pesou sempre sobre mim. A terra treme à vista de tanta dor. Chegou o momento da prisão, sobre o meu corpo caiu uma chuva de pontapés. O amor venceu; fui para a prisão. A tristeza e o medo bastavam para dar-me a morte.

28 de Setembro de 1945 – Sexta-feira

Seja feita a vontade do Senhor. A minha alma chora. Quero bradar por socorro e não posso. São irresistíveis os tormentos que ela sofre. O calvário! Que penoso! Quantas golfadas de sangue pela minha boca e quanto sangue vertido pelas feridas dos espinhos da cabeça, olhos e ouvidos! Que caminhos tão manchados! Caminho com a cruz, nadando num mar de dores e de sangue. Que ingratidão a do mundo fazer-me sofrer assim! Ou antes. Que ingratidão a do mundo ferir de tal modo a Jesus!

— Ó céu, ó céu, sê, e depressa, o meu conforto.

Cheguei ao calvário. Ao serem-me tirados os vestidos, foram tirados com tanta pressa que chegaram a rasgarem-se. Que dores violentas ao irem com eles pedaços de carne! Senti a Jesus no alto da Cruz, na cruz que era eu, e em mim era Ele também como que a esforçar-se para arrancar do madeiro os braços, para levantá-los ao Eterno Pai. Era precisa uma escora, era necessário um conforto. Os braços não saíram da Cruz, e, em vez dessa escora e conforto, senti como se o céu baixasse com todo o peso da justiça a esmagar-me fortemente no grande madeiro da cruz. A agonia aumentou, e com ela o abandono. O Eterno Pai não queria dar conforto, só exigia a reparação. Era o Juiz a pedir-me contas de todos os males da humanidade.

— Meu Pai, meu Pai, dei-Te tudo, já perdi todo o meu sangue.

O Eterno Pai não se dava ainda por satisfeito. E o fim aproximava-se cada vez com mais agonia. Dentro do meu peito estava a montanha do calvário. Sentia que ela estremecia, e por ela descia apavorado um grande número dos que me tinham feito sofrer. Iam uns atrás dos outros a esconderem-se como formigas no seu celeiro, ficando junto à cruz uns corações que eram todos amor e um que em tudo compartilhava da mesma dor de Jesus. Era o da Mãezinha, que no meu coração se apresentava como Mãezinha das Dores. As Suas lágrimas pareciam correr em meu peito. E Ela, ao ver que Jesus ia expirar, levantava os Seus braços santíssimos para Ele como para O receber. Toda a montanha estava escurecida, mas aquela escuridão em nada se comparava com a escuridão do meu espírito. E, nesta angústia, veio o meu Jesus.

— Venho, minha filha, com um raio da minha luz, para te iluminar, e com as cadeias do meu divino amor, para mais e mais te prender. É com esta luz que iluminas as almas, é com estas cadeias que as vais prender a mim. Não vês, com esta luz não sentes este amor, porque não podes, meu lírio casto, açucena pura, sem um milagre da minha parte. Eu não o quero fazer, quero mostrar que chegaste ao auge da tua dor nesta cegueira e à maior altura de amor nesta frieza. Amas-me, amas-me, minha filha, e a cegueira do teu espírito ilumina o mundo. A tua frieza encadeia nos corações o meu fogo divino. És a rainha do amor, a rainha dos poderes. Possuis o amor de Jesus e de Maria e tens os poderes e as riquezas dos nossos corações. Já sabes, pomba querida, que é alta, alta, sublime, sublimíssima a tua missão. Já sabes, já te prometi, começa já aqui na terra: quando quiseres que algum pecador seja salvo, diz-me com confiança: “Meu Jesus, quero que esta alma Vos pertença, quero que ela seja salva.” E isso basta, nada te negarei. O mesmo farás no céu junto do meu trono divino. Pede, pede, ó rainha dos poderes. Pede, pede, rainha da dor e do amor.

— Ó meu Jesus, mas eu quero que todo o mundo se salve. Posso então pedir-Vos por todos os pecadores que nele habitam?

— Pede, filhinha. Mas, para ser realizada a minha divina promessa, é preciso que eles a ti se recomendem, ou outros o façam por eles. Tu és um mundo de maravilhas, um mundo transformado num jardim de flores. São flores de virtudes. Repara: vê as almas neste jardim a colherem as flores da graça, da pureza e do amor e todas as mais virtudes. Cada uma colhe a seu gosto. Só assim serão salvas.

Eu estava transformada num formoso jardim. As flores eram cultivadas por uma massa luminosa.

— Coragem, minha filha, pertencem-te as almas. Só serão salvas por este martírio incomparável, martírio que não dei em todos os séculos nem voltarei a dar. Só o pode suportar uma alma forte. Sou sempre contigo.

Principiei a ver despirem a Jesus, a açoitá-Lo, a coroá-Lo de espinhos. Não pude resistir.

— Meu Jesus, sofrer assim não. Não sou eu a Vossa vítima?

— Dá-me, alegre, toda a reparação, minha filha. Se assim não sofreras, era eu continuamente maltratado assim. Dá-me às almas, dá amor às que querem o meu amor. Dá luz às que estão nas trevas; rouba a Satanás as que estão nas suas garras, as que estão em pecado. Vai confiada para a tua cruz. Por ti encho de mim todos os que te amparam, rodeiam e cuidam da minha divina causa. E por ti sou o remédio e a salvação dos pecadores. Coragem! O teu fim aproxima-se, o céu é chegado, e tudo em ti se realiza. Canta, canta com amor, minha filha.

 

Coração puro, coração de amor,
Vem ao teu Jesus, vem ao teu Senhor.

Coração de amor, corpo de pureza,
É da salvação terem a certeza.

 

Depois destes momentos ditosos com Jesus, não pela grande consolação que sentia, mas pelo conforto que deu à minha alma, voltei mais forte para a cruz. Recebi uns mimos de Jesus. Tenho a certeza que foram por Ele enviados. E, logo após eles, um desânimo tão grande que me levou às lágrimas. Venci-me, pedi perdão a Jesus pela minha falta e eis-me de novo deveras abraçada à minha cruz.