Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

JULHO 1945

5 de Julho de 1945

Jesus me dê forças para eu poder obedecer, ditando o mais possível do muito que me vai na alma. Só com a Sua força divina poderei. Se for do Seu agrado, conseguirei alguma coisa. Que Ele aceite e abençoe o meu sacrifício. Com isto duas coisas tenho em vista: é a consolação de Jesus e a salvação das almas. Não sei comungar, não tenho lugar para receber Jesus, não tenho língua para O louvar nem coração para O amar. Perdi tudo, perdi a vida. Só a miséria aparece por entre as trevas, trevas que tudo esconderam e tudo abafaram. Parece que não posso acreditar no que em mim se passa. Em mim, digo eu, em mim que não sou eu, em mim que não existo. Em tudo aparece a miséria, em tudo vejo trevas. As grandezas de Jesus não são minhas. Se ao menos fosse meu o martírio, a dor que sinto para a dar a Jesus. Se eu O amasse pelos que não O amam, que dita a minha! O edifício está de pé. Eu sou a escada, mas vejo-a e sinto cair de podridão. Causa-me até nojo. Que confusão! Ofereço-me tantas vezes a Jesus, repito-Lhe que sou Sua vítima, mas parece-me que não posso ser aceite por Jesus. Só quero o que Ele quiser e sinto que nada quero e que nada aceito como Ele quer. Perdi o gosto das pessoas mais queridas, mais íntimas e perdi-o para sempre. Parece-me que não as amo nem nunca as amei. O mesmo se dá com Jesus. Digo-Lhe que quero deixar de O amar, quando Ele deixar de ser Jesus e que O quero amar incessantemente como incessantemente correm as águas dos rios para o mar. Pobre de mim! Não sei falar com Jesus, não sei dar-me a Ele e às almas. Mesmo assim não largo a minha cruz nem a largarei jamais: foi Jesus que ma deu, quero possuir uma coisa Sua. Vi hoje dentro de mim o calvário, a cruz: Jesus nela e a Mãezinha ao lado, de pé, de mãos cruzadas sobre o peito. Estava mais alguém, mas só Ela e Jesus me prenderam. A Mãezinha era bela, mas oh! como Ela sofria a acompanhar Jesus na Sua agonia, no Seu martírio na cruz. Vejo levantar-se ao alto os açoites que amanhã hão-de cair sobre o meu corpo; vejo as cordas que hão-de arrastar-me, e as minhas veias já se rasgam com a agonia do horto. Bendito seja o Senhor! O demónio teima, consome-me, tenta levar-me ao pecado, à perdição. Palavras feias, feias cenas e quase sempre em forma de cão. E, quando é mais que um, fazem grande barulho uns com os outros raivosamente. Por vezes parece revestir-se do meu corpo: tudo em mim é malícia – braços, pés, coração, inteligência; todo o meu ser é um espelho de maldades. Por duas vezes combati com ele aflitivamente. Tudo eram à minha volta cães maliciosos, com eles ofendia a Jesus, assim me afirmava o maldito. Ao terminar da primeira luta, logo veio Jesus.

— Pára, pára, maldito, com as tuas artes maliciosas; cessa, cessa a tua tempestade infernal.

Tomei a minha posição sem saber como, enquanto Jesus continuava:

— A minha vítima não me ofendeu, não é um mundo de malícia, é um mundo de graça, de pureza e de amor. Minha filha, minha filha, coragem sempre. É assim que consolas este coração ferido; é com esta reparação que acodes às almas, às minhas almas. Nada temas, tem confiança no teu Jesus.

Repeti-Lhe frequentes vezes:

— Meu Amor, meu Amor! O inferno, o inferno, antes o quero do que manchar a minha alma e ferir o Vosso Divino Coração. Espero em Vós.

No último ataque, que foi hoje, e dos mais violentos que tenho tido, sentia que o chão se abria, e o inferno aparecia para eu ser sepultada. Que horror! E os malditos, como cães, despedaçavam-se de raiva uns aos outros; todos queriam pecar, e eu sentia que queria pecar também. Mas repeti sempre a Jesus que não; sofrer tudo, mas não ofendê-Lo.

— Tudo aceito por amor, ó meu Jesus, sou a Vossa vítima.

O meu coração já não podia bater mais. Jesus veio, passou no meu rosto as Suas divinas mãos em sinal de carinho.

— Minha filha, amo-te, amo-te, minha pomba; sossega, confia, não pecaste. Tem coragem! O inferno não se abre para ti, mas oh! se não fosse a tua reparação, devia abrir-se para muitos, e serem já sepultados. E nesta hora, minha filha, quantos mereciam ser precipitados no inferno no mesmo momento do seu pecado.

Fiquei confiada em Jesus que não O tinha ofendido, mas oh! que vergonha a minha! Não podia lembrar-me da Sua divina presença, sentia infundir-me na terra como o mais pequenino e vil insecto. Jesus ainda me acariciou e acrescentou:

— Dá-me, minha amada, a tua confusão e vergonha por aqueles que as não têm.

Com os olhos fitos em Jesus, fiquei a repetir que queria consolá-Lo, mas envergonhada, triste, sem poder falar. Mas a minha tristeza não significa receber de má vontade a minha cruz. Quantos mais espinhos recebo mais me prendo à dor, mais a quero e desejo. Se ela fosse minha, como Jesus era consolado por mim, e como ficaria consolada eu também. Ficam para o céu as minhas consolações, sou de Jesus.

6 de Julho de 1945– Sexta-feira

Não estou na terra nem estou no céu; não sei onde habitam estes mundos de trevas em que estou envolvida. Não sei que vida é esta nem a quem pertence. Não sei o nome desta habitação. O céu está fechado para mim. E eu estou como se me deitassem fora das muralhas deste mundo e me fechassem as portas. A minha vida são trevas, mas, ó meu Deus, mundos e mundos de trevas.

— Jesus, ó Jesus, dai-me amor para Vos amar. O meu coração não Vos sente, os meus olhos não Vos vêem, os meus ouvidos não Vos ouvem. Tende dó de mim, Jesus, sou Vossa e Vossas quero fazer todas as almas.

            Foram lançadas ao meu pescoço grossas cordas; o meu corpo foi despedaçado por bolas de ferro ou coisa semelhante. Caminho para o calvário por ruas sombrias e estreitas. O sangue corre. As dores nos joelhos e na cabeça, causadas pelos espinhos, são insuportáveis; as dos ouvidos trespassam-me dum lado ao outro. E os meus lábios parecem colados, não podem abrir-se para pronunciar palavra. O coração vai sequioso, quer formar voo até ao calvário; anseia por dar ao mundo uma nova vida; e, para isso, corre, mete-se louco e cego entre os sofrimentos. No calvário, ao ser cravada na cruz, vi o soldado que com grande crueldade dava as marteladas; era destemido, de olhar cruel e aterrador. Foi tal a dor que senti que o coração ficou sufocado, pareceu-me perder a vida. E em toda a agonia da cruz não voltou a recuperá-la. Que horas tristes, em tanto abandono e dor, em tantas trevas e morte! Veio Jesus e disse-me:

— Atravesso os mundos das tuas trevas, desço aos mundos das tuas dores, venho de encontro ao teu martírio, minha filha. Não desci, não atravessei, não vim; tudo vi, tudo me era presente, em ti estou, faço-me apenas sentir. Quero convencer-te que em ti habito, que nem um só momento te desamparo. Coragem, coragem, sempre! As tuas trevas dão luz, o teu martírio, os mundos das tuas trevas, da tua morte, dão vidas. É pelo teu sofrimento que as almas ressuscitam; é com as tuas trevas que elas recebem a graça e possuem a minha luz divina. Tirei-te ao mundo, minha pomba bela, para te dar ao mundo. Aceita, minha querida, o meu Divino Coração; serás cada vez mais poderosa; redobra o teu poder sobre os pecadores. Já que te criei e escolhi para desempenho da mais alta missão, dou-te todos os meios de salvação. Aceita o Coração do teu Jesus, estreita-o contra o teu. Não é para receberes sangue, mas para receberes vida. Não recebes sangue, porque não pode o teu recebê-lo já; tão enfraquecido, não tem força para mais. Faço o milagre de conservar-te a vida e não o faço de te dar força para o poderes receber já. Mostro assim mais o meu poder, conservando-te a vida nesse estado assim. Toma, filhinha, em tuas mãos o meu Divino Coração, tens a chave para abrir e fechar; é chave de graça, pureza e amor. O Coração é meu, a chave és tu; abre-o e fecha dentro dele as almas que quiseres. O céu assiste alegre a esta entrega do meu Divino Coração a ti. Que grande maravilha! Une esta graça no conjunto de muitas outras que de mim já recebeste.

Tomei nas minhas mãos o Coração Divino do meu Jesus. No fundo estava aberto por uma profunda chaga; irradiava à volta uma luz brilhantíssima, que iluminava tudo. Apertei-o junto ao meu, que logo retomou conforto e vida. Eu não parava em mim, não podia com as ânsias de possuir uma luz que alumiasse o Coração Divino de Jesus e flores ricas que o adornassem. Queria guardá-lo e não sabia onde. Disse a Jesus os meus desejos. Ele respondeu-me:

— Não preciso doutra luz, basta-me a luz do teu amor. Não quero outras flores, chegam-me as flores das tuas virtudes: são belas, são ricas, são pedras preciosas. Guarda o meu Divino Coração dentro do teu, fica bem guardado. O teu coração é o Coração de Jesus; o teu corpo é o corpo de Cristo; a tua vida é a vida de Cristo.

Fiquei confundida e não sabia o que dizer a Jesus ao ouvir d’Ele tantas coisas e ao ver-me depositária de tão enorme riqueza.

— Meu Jesus, queria guardar o mundo inteiro neste cofre divino que me entregais; queria fechar nele todas as almas que me são queridas e todos os pecadores.

— Tem-lo ao teu dispor, é teu, é tesoiro de salvação. Abrasa no fogo deste amor divino os corações que sinceramente são meus e deveras me querem amar. Mas é tão pequenino o número! Fecha nele todos quantos quiseres; a todos quantos fechares serão salvos, se deveras se quiserem salvar.

— Ó Jesus, uma vez que eu os feche aí, poderão ainda fugir-Vos?

— Sim, filhinha amada. Os pecadores obstinados são como ladrões que possuem todas as espécies de chaves, que abrem todas as portas, chegando a causar a morte. Os pecadores são esses ladrões, as chaves são os seus vícios e crimes, matam-se a eles mesmos, matam-se eternamente. Esses com as suas maldades abrem o meu Divino Coração, voltam-me s costas, perdem-se para sempre. Filhinha, filhinha, o mundo está em muito perigo. Depressa, depressa, a preveni-lo disso. É a voz de Jesus por meio da sua vítima; é Jesus que o chama e quer salvar; é Jesus que os convida e dá à sua esposa querida todos os meios de salvação.

— Como, meu Jesus? O que hei-de eu fazer? Sabeis que nada posso.

— Filhinha, filhinha, di-lo aos meus amigos, basta que eles o saibam, para tudo comunicarem. Depressa, depressa, o mundo está em perigo, os seus crimes desafiam a justiça divina. Jesus o convida, Jesus o quer, Jesus deu-lhe a sua vítima para de novo o salvar. É Jesus com ela a prevenir os pecadores; é Jesus a prevenir os caluniadores e perseguidores da sua divina causa, a causa mais poderosa e rica. Não posso, minha pomba bela, deixar ocultos por mais tempo os meios de salvação e todas as maravilhas que em ti depositei. Grande crueldade, grande responsabilidade, que prejuízo para as almas!

— Não estejais triste, Jesus, farei todo o possível para Vos consolar e para os salvar. Tende dó de todos os que Vos ofendem e a todos dai o amor do Vosso Divino Coração.

— Vai, filhinha, consola-me tu ao menos, não deixes que eu seja mais ferido. Fecha neste coração amoroso o maior número de corações que te seja possível. Guarda-o, é teu para sempre. És senhora dele na terra e no céu por todo o sempre.

Fiquei com vida, com luz e alegria de alma por algumas horas a estreitar em meu peito o Coração riquíssimo do meu Jesus. Percorridas elas, tudo foi desaparecendo, tudo se foi apagando como luz que nunca mais pode voltar a acender-se.

— O que será o fim da minha vida? O que poderei dar a Jesus? O que poderei fazer pelo mundo? Quero a todo o custo salvá-lo, quero incendiá-lo no amor de Jesus.

7 de Julho de 1945– Primeiro sÉbado

Nesta noite, à meia-noite, tudo era noite, tristeza e morte. Senti-me num grande bosque rodeada de lobos, e cães todos a uivar e todos me queriam saltar: eram os demónios em forma deles. Observei deles cenas tristes e vergonhosas que desconhecia. Lutei com violência e por muito tempo. Esforcei-me por não ouvir as palavras deles e lições malditas e maliciosas. Chamava por Jesus e pela Mãezinha, pedia o Seu pronto socorro e auxílio. Sempre que podia, dizia-Lhes não querer pecar, mas dentro de mim sentia querer e com toda a malícia. Terminou a luta e Jesus não veio. Fiquei tão triste! Como permitiu Ele que eu conhecesse o que desconhecia? Entregue ao Seu Divino Coração, procurei confiar e convencer-me de não ter pecado. Veio a hora de O receber. Fiz a preparação com o coração a sangrar de dor. Momentos depois de comungar, falou-me Jesus ao mesmo tempo que me estreitava a Si.

— Minha filha, permito a tua dor, permito a tua reparação. As tuas trevas, enviadas do céu, trevas inocentes, dão luz às trevas criminosas, vindas do inferno. És a vida das almas, és a salvação delas. Alegra-te, tem coragem. O lírio da tua pureza virginal não se mancha, está guardado em minhas mãos, é a flor do meu Divino Coração. Que adorno belo ela me dá! Que consolação para mim! Sabes, ó pomba bela, porque exigi de ti a reparação desta noite? Era urgente que naquela hora me reparasses. Foi reparação pelas famílias, foi a reparação dos lares. Quero filhos, matam-me os meus filhos. Sou mais Pai do que eles são. Vê quanto eu sofro! E sou ofendido da mesma forma por um grande número que não são casados.

E nomeou-me a condição (eram sacerdotes), ao mesmo tempo que, muito triste, Se inclinou contra o meu peito em grandes suspiros.

— Estou ferido, estou ferido, cercado de espinhos. Ó minha esposa querida, sofre comigo.

— Não choreis, meu Jesus, não tenho coração para Vos ver chorar. Eu não quero sofrer conVosco, quero sofrer sozinha; quero a Vossa força para resistir à minha dor, mas não quero a dor do Vosso puro e Divino Coração. Não posso ver sofrer o meu Jesus que me ama tanto.

— Ó bela, ó pura, ó heroína amada, bálsamo das minhas chagas, medicina das almas. Tens-me todo em ti e para ti. No teu coração está o meu, na tua inteligência está a minha, nos teus lábios, nas tuas palavras estão as minhas. Todo o teu ser é Cristo, tens a vida de Cristo. Quem convive contigo convive com Jesus, quem trata de ti trata de Jesus. Dá-te ao mundo, dá-te às almas. Minha Mãe, minha Bendita Mãe, vem dar à nossa filhinha conforto e vida que quase a não tem.

Veio a Mãezinha, tomou-me em Seus braços, colocou-me em Seu regaço, estreitou-me, acariciou-me, fiquei entre Ela e Jesus. Ao dar-me a vida que possuía era tão devagarinho, com tanto cuidado como quem cura uma grande ferida. A respiração faltava-me, não tinha força para de repente receber aquela vida. A pouco e pouco fui vivendo mais, levantei as minhas forças.

— Sempre alegre, sempre contente, esposa querida do meu Jesus – disse-me a Mãezinha. Possuis-me toda a mim, possui-Lo toda a Ele. Serás sempre vitoriosa no teu martírio, dá tudo ao teu Jesus, dá-Lhe Seus filhos, dá-mos, que também são meus.

Ainda em Seu regaço, Jesus continuou:

— Diz, minha filha, ao teu paizinho que não quero que ele tenha um momento de dúvidas, que confie sempre em meu Divino Coração. A vida que lhe dei é a vida das almas. Quero que ele a continue a dar às mesmas almas. A dor dele tem salvo grande número delas. Que grande glória para mim! A chuva do meu divino amor cai sempre sobre ele. A luz do Espírito Santo sempre o ilumina. É com o meu amor e com essa luz que ele virá depressa junto de ti a terminar a tua missão. Diz ao teu médico que o escolhi para lutar por mim, para cuidar de ti e da minha divina causa. Depois de se informar dos meus desejos, quero que ele com os amigos da mesma causa os dêem a conhecer ao mundo. O perigo é grande. Diz-lhe que não faço tudo conforme ele deseja, porque tiro de ti mais glória. Maior é o milagre que opero. Quero fazer-te viver no enfraquecimento, sentindo toda a dor humana. Não quero que ele ponha de parte os seus meios a não serem aqueles a que possam atribuir, dar vida. Que esteja sempre atento ao que em ti se passa, que relate tudo. Como recompensa de cuidar de ti a sério, por ti lhe dou o meu amor, a ele e a todos os que lhe são queridos, com a certeza de todos serem meus e a promessa do céu. Por ti dou aos que te amam e amam a minha causa o meu amor, o amor de Maria e as nossas riquezas do céu. Por ti ficam postos à sombra do Seu manto celeste e ao abrigo do meu Divino Coração.

Recebi novas carícias, e retirou-se Jesus e a Mãezinha com um grande obrigada meu. Passaram já algumas horas, o meu coração sente ainda conforto, estou deveras confiada, mas é indizível a minha dor. Não posso recordar-me do que observei, não posso lembrar-me da dor de Jesus. O que Ele sofre quero sofrer eu; não quero gozar, quero dó a cruz.

9 de Julho de 1945

São tantos, tantos os espinhos que me ferem, além do coração e da alma; cobrem-me todo o corpo, parecem brasas vivas que queimam as carnes e vão penetrar até ao interior dos ossos. Estou como um vidro de cristal no qual não se pode tocar.

— Ó meu Deus, será culpa minha ou daqueles que me ferem? Oh que grande martírio! Se ele fosse meu para Jesus de mim o receber para se consolar e alegrar na minha dor!...

Quando penso nas minhas misérias, quando sinto que outra coisa não tenho, tremo, sofro, envergonho-me diante de Jesus. E Ele muito do íntimo da alma segreda-me baixinho, muito baixinho:

— Dá-me as tuas misérias; alegro-me, consolo-me com elas.

Sinto que o meu coração é uma fonte inesgotável que dia e noite corre sem parar. E eu anseio com as ânsias mais fortes que todos venham beber a ela. Queria ver todas as criaturas sempre com os lábios nela, sem dela se retirar. Ó que sede a minha para que todos bebam! Sinto também que o meu coração é continuamente ferido; dia e noite é cruelmente apunhalado. Esta chaga é dolorosíssima, dela corre sempre sangue. Mas o coração está preso com as mais fortes cadeias; tem de sujeitar-se à dor, não pode fugir daqueles que o ferem. É um amor louco, é um amor sem igual que o prende. Queria poder mostrar a grandeza deste amor. É amor que obriga a esquecer a dor. Não sei dizer, não há dor que iguale esta dor, nem amor que iguale este amor. Ai o que se passa em mim! Por mais que eu queira esquecer quanto Jesus sofre com o mundo, não sou capaz. Sofro com Ele. Oh o que as famílias O ofendem! E tantos, tantos que não deviam ofendê-Lo! Oh se os homens vissem as cenas horrorosas e repugnantes e a loucura ao prazer, que se dão em toda a parte, e que eu vi com os olhos da minha alma, tinham nojo e envergonhavam-se de si mesmos!

— Ó Jesus, se Vos desagravo, fazei que eu sofra sempre.

Sobre este ponto o demónio atormenta-me muito. Quantas vezes parece vir com os seus assaltos, mas fica só com gestos e palavras feias. Hoje assaltou-me com toda a violência, usando sempre as suas artes e manhas, mas em forma de cão. Quando pressenti que o assalto era a sério, evoquei a Mãezinha das Dores e por elas Lhe pedi que não queria pecar. Lutei e muito em grande perigo. Jesus compadeceu-se de mim. Só Ele sabe quanto me custa esta reparação. Tudo me custava imensamente, mas esta da família custa-me ainda mais. Ó que tristeza! Jesus veio, ouvi-O dizer:

— Pára, pára, pára, maldito. A minha vítima não peca, a minha esposa não se mancha. A glória é minha, é minha a reparação, a consolação e o amor. Minha filha, coragem. Vês quanto eu sofro? Não podias desagravar-me, não podias condoer-te da minha dor nem conhecer a maldade deste crime. Não temas, a flor do teu jardim, da tua pureza não é queimada pelo fogo abrasador das paixões. Nem a mais pequenina mancha. Quanto mais balanceia com a fúria dos ventos, quanto mais por ela passa o sol venenoso, que a queima e mata, mais ela brilha, mais me encanto, mais me atraio para ela.

Jesus falou-me assim, o demónio disse-me:

— Já vens tarde. Depois de pecares é que dizes não querer pecar. Diz-me que me dás o teu coração, que queres pecar comigo, se queres ter toda a felicidade já aqui na terra. Dou-te tudo, não faço como Deus que tudo te promete e nada te dá a não ser fazer-te sofrer.

— Meu Jesus, quero tudo o que me dais de dor, não quero os gozos nem felicidades do demónio. As minhas trevas são aterradoras, mas não importa, o que eu quero é a Vossa paz, o Vosso divino amor e a promessa de que não me deixais ofender-Vos. Confio, Jesus, confio.

12 de Julho de 1945

— Ó céu, ó Jesus, ó Mãezinha, valei-me; se não vindes em meu auxílio, caio e nunca mais me levanto. Poderei resistir a tanta dor? Por mim não posso. Sinto-me algemada de pés e mãos, e todo o meu corpo enleado com negras cadeias de ferro. Meu Deus, pareço um condenado do inferno.

Os pecados são as cadeias negras, foi o demónio que me algemou, que me prendeu. Quantas horas, quantos momentos me parece não resistir. De mãos cruzadas sobre o meu peito, no meio da maior agonia, fito os meus olhos no Coração Divino de Jesus e na Mãezinha querida. O meu brado é contínuo.

— Triste vida a minha! Ó Jesus, ó Mãezinha, não resisto, sede comigo.

Dos meus olhos brotaram lágrimas em muita abundância. Chorei, chorei amargamente. O meu coração pareceu-me desfalecer, ia a morrer.

Jesus, não tenho coração para resistir ao amor nem para resistir à dor. Não permitais, meu Jesus, que as minhas lágrimas sejam de desespero, quero que sejam só de amor; aceitai-mas todas como actos de amor para os Vossos sacrários.

Dizia a Jesus que as minhas lágrimas não fossem de desespero, mas não era por me sentir desesperada. Ó Deus louvado, a minha alma estava em paz; era o temor de mim mesma, eram as minhas agonias, era a vista das minhas misérias, que não podiam ser mais, não podiam resistir ao meu nada, às minhas maldades. Era a vista e o sentir dos espinhos que dum e do outro lado vinham cravar no meu pobre corpo, desfeito pela dor. Sim, tudo isto e o que não sei exprimir eram causa de temer o desespero.

— O que será de mim, se um momento só perco a minha confiança em Jesus e na Mãezinha? O que será de mim, se as almas boas deixam de elevar ao céu preces em meu favor?

Recebi a absolvição para os meus pecados, mas pobre de mim, parece-me que a não recebi. Se era grande a minha agonia, redobrou ainda. Se as trevas eram aterradoras, mais aterradoras se tornaram. Infundi-me nelas friamente, mais rápida do que se fosse um voo. Meu Deus, são trevas de morte! Não sei o que é, não sei quem no meio deste mundo de sofrimentos indizíveis, no meio destes mundos de trevas que me obrigam e nos quais me parece já ter dado a vida do corpo e da alma; sinto que alguém dentro de mim toma o meu coração, como se fosse um cálice, e repetidas vezes o levanta ao céu. E a fonte do meu coração continua ainda; é um esforço constante, são todos os meios empregados para obrigar as almas a virem beber a ela. Ai delas que resistem, não querem beber, morrem à sede! Está próxima a noite. Já sinto o meu rosto esbofeteado e escarrado e as minhas veias rasgadas e espremidas pelo peso esmagador dos crimes do mundo. A minha agonia, a minha agonia, amo-a por amor a Jesus e por amor às almas.

— Oh! quantas – repito a Jesus. Sou a Vossa vítima, sou vítima das almas.

E, se a dor de algumas que me ferem com espinhos, me afligem, esforço-me por não pensar nas suas faltas e digo:

— Ó Jesus, modelai-as Vós, assemelhai ao Vosso os seus corações, modelai e assemelhai primeiro que tudo o meu, porque é o que mais necessita. Jesus, Mãezinha, sou eu a filha mais indigna e pequenina que tendes no mundo; sou eu a mais pobrezinha que tivestes e tendes na terra. Oh, quando chegará o meu grande dia! Quando chegará o meu céu!

E assim vou passando os dias e as noites da minha agonia. Tudo parece perdido e nada em mim realizado, nenhumas promessas de Jesus cumpridas.

— Oh! quanto custa a vida! Quanto custa não ser compreendida! Mas, ai, digo de alma e coração, ou sofrer ou morrer. Antes o inferno do que desgostar a Jesus, ou deixar de O amar.

13 de Julho de 1945 – Sewta-feira

Em toda esta manhã, experimentei dentro de mim um amor e uma ingratidão fortíssima. O amor era um amor imenso, enchia o céu e a terra. A ingratidão era tão grande e tão grave, opunha-se a esse amor, amor que, como uma barquinha firme e segura, nadava por cima de tudo. Recebi a ingratidão sem deixar de amar. Com o corpo despedaçado caminhava para o meu calvário. De repente, senti como se nas minhas faces corressem dois regatos de lágrimas. Logo após este sentimento, saiu-me a Mãezinha ao encontro. O Seu olhar era angustioso. De mim saíram outros olhares a fitarem-se Nela. Que olhar de dor e de amor! Sem tempo para o poder contemplar, devido à pressa que levava, ficou-me o coração preso a Ela, e ia caminhando sempre. Ela caminhava também, guiada pelo olhar que Lhe tinha ferido e atraído o coração e a alma. Chegados ao calvário, Ela observou toda a cena e, angustiosa, ficou de pé junto à cruz. Eu estava em tão grande desfalecimento! Os sofrimentos da alma e do corpo quase me obrigavam a crer que não podia resistir e que a morte se aproxima e sem a realização das promessas de Jesus.

— Sagrado Coração de Jesus, tenho confiança em Vós.

Repetia isto muitas vezes. O demónio aproveitava a ocasião do meu desfalecimento para convencer-me de que tudo era ilusão e falsidade. Mas não ficou só isto. Em forma de cães, começaram os demónios em barulho à minha volta; e as suas manhas malditas a trabalharem em mim. Fingindo não quererem nada comigo, diziam-me:

— Pecas sozinha, nem os cães te querem.

Junto a isto as palavras mais feias e indecentes. Eu sempre a lutar, sempre a dizer a Jesus que não queria pecar, e eles sempre em barulho à minha frente. A presença de Jesus afugentou-os.

— Coragem, filhinha! Colho de ti duas flores ao mesmo tempo, flores que se transformam nas moedas de maior valor: a reparação e a dor. Peço-te a reparação da impureza, peço-te a dor para comprar as almas. Não me ofendes, amas-me; não me desgostas, consolas-me. Confia, tem coragem.

Jesus serenou a tempestade, e eu fiquei na cruz, na agonia, na dor quase insuportável. Parecia-me arrancarem-me o coração, para deitar Dora, ser calcado e destruído pelas feras. Mas outro coração ficava dentro de mim com uma grande ferida, sempre aberta a verter sangue. Parecia-me desprender os braços da cruz para levantar as mãos e pedir socorro ao Eterno Pai. Que dor e tremendo abandono! E a Mãezinha a observar tudo. De repente, senti como se a abóbada do céu pousasse sobre o meu peito. Comecei a sentir dentro dele um calor, que o irradiava todo. Ouvi Jesus a dizer-me:

— Minha filha, desceu o céu a ti para receber a fragrância da tua dor, do teu amor. É a Trindade augusta a recebê-la, é a tua e minha bendita Mãe, são os anjos a acompanhar-nos e a entoar seus hinos e louvar-nos por termos na terra esta crucificada. És de Jesus, sofres pelo mundo, amas a Jesus e amas pelos que O não amam.

            Senti em mim a presença da Santíssima Trindade, da querida Mãezinha e ouvia um coro, que entoava hinos harmoniosos; arrebatou-me o coração, prendeu-me mais. Não era da terra, vivia uma vida que não era dela; era como se nela não estivesse. O coro fazia-se ouvir cada vez mais, e compreendi que cantavam: glória, glória, honra e amor, glória, glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; glória, glória, honra e amor à Mãe de Deus, filha e esposa da Trindade augusta; glória sempre a Ti, nosso Deus e Senhor.

Repetiram isto várias vezes. O calor ia abrasando sempre o meu peito. Jesus novamente continuou:

— Filhinha, esposa, pomba amada da Trindade divina. Vou dar-te por gotas o meu divino sangue. Sou teu Pai, sou teu Esposo e sou também teu Médico divino. Tenho que to dar por gotas para por gotas o dares a cada alma. Não podes com a abundância dele. Que dor para mim ter que operar milagres para conservar-te a vida! A cegueira, os corações empedernidos dos homens assim me obrigam. Dou-te as gotas do meu sangue como alimento da minha eucaristia: passam do meu coração para o teu.

Jesus uniu os meus lábios ao Seu Divino Coração e muito lentamente eu sentia passar para mim o sangue de Jesus. Começou o coração a dilatar-se, e Jesus quase logo retirou dos meus lábios o Seu. E continuou:

— Vives de mim, tens a vida de Cristo; dá-te às almas, sofre por elas. Sabes, esposa amada, quem dentro de ti toma o cálice e o levanta ao céu? Sou eu, que o ofereço ao Eterno Pai repetidas vezes, para aplacar a justiça divina. É o cálice da tua dor e amargura. A tua agonia, dor e amargura assemelham-se às minhas, e ao meu se assemelha o teu amor às almas. És o retrato mais semelhante a Cristo. A tua vida é a vida de Cristo, o teu coração o coração de Cristo. Como a tua vida é a minha, e estás toda transformada em mim, uno a mim os teus sofrimentos, a tua crucifixão e duro martírio e nesta união ofereço ao Eterno Pai, para suster o braço da Sua justiça, e tu continuares a vida de resgate na terra. Não enganas, minha filha, e eu não te engano; a minha divina causa triunfa. Sofre contente; salva-me o mundo, que está em tanto perigo. Abrasa os corações no meu divino amor. Guarda, filhinha, toda a oferta da Trindade divina. A minha foi o meu divino sangue. Recebe agora a oferta de meu Pai, do Divino Espírito Santo e de minha Bendita Mãe.

Deu-me o Padre Eterno uma cruz, colocou-ma dentro de meus braços. Jesus disse-me:

— Aceita-a, abraça-a por nosso amor.

O Divino Espírito Santo, em forma de pomba, infundiu na minha cabeça uma luz como uma lâmpada eléctrica. Jesus disse novamente:

— Aceita a prenda do Espírito Santo, é luz que te fará ver e compreender tudo, tudo.

Veio a Mãezinha, acariciou-me, cobriu-me das Suas ternuras.

— Aceita – disse Jesus – as ternuras, as carícias e o amor da tua Mãezinha. É o conforto para a tua dor.

— Obrigada, Mãezinha, obrigada, meu doce Jesus, Pai e Espírito Santo, obrigada para sempre. Vede a minha humilhação por tantas graças e dons de Vós recebidos. Aceitai-a por Vosso amor, aceitai-a para as almas.

Tudo isto que fica escrito passou-se noutra região, que era para mim desconhecida. E já lá vão duas horas e ainda me parece que ainda estou em região diferente, mas que nada se passou comigo. O que eu quero é não enganar. Seja tudo pelas almas.

18 de Julho de 1945

Aumentam os sofrimentos ou diminuem as minhas forças para os suportar. Parece-me não poder mais. Tudo são horrores para mim. As pessoas íntimas, que eu tanto amo, quando digo a alguém que o amo, parece-me mentira a mim mesma. Causa-me horror a sua presença e, quando alguém me denuncia, elas virem para junto de mim. Sinto que é Nosso Senhor a ocultar-me todos os fiozinhos que a eles me possam prender. Tenho tanto medo delas! Mas, ao mesmo tempo, parece-me de não viver mais a vida da terra, mas sim de viver uma região diferente, desconhecida desta. Quantas vezes digo: Eu estou no mundo! Que vida é esta! Se algumas vezes tenho sentido saudades do céu, nestes últimos dias não se explica a força delas e as vezes que me consomem:

— Jesus, quando chegará o meu grande dia! Quando Te verei, Jesus, tal e qual Tu és? Ó céu, quando te verei?

Nestes desejos, nestas ânsias parece-me sair fora de mim mesma a pedir a Jesus amor. Não Lhe peço o céu, para não faltar ao que Lhe prometi, mas quão grande é o meu sacrifício!

— Desapegai-me de tudo o que é da terra, Jesus! Eu não tenho querer, quero só a Vossa vontade e possuir-Vos inteiramente.

Tudo o que faço, tudo o que penso é só por Jesus e pela Sua glória; não é com o fim do prémio que me espera. Quero ser só o que Nosso Senhor quer, nem desejo ir mais um passo para a frente na perfeição, sem que Nosso Senhor o queira. Sofro amargamente com o agravamento dos meus males, que se juntaram ao agravamento dos males da minha alma, mas não sofro por mim, sofro por Jesus, porque quero que para glória Sua e bem das almas realize as suas divinas promessas. Não digo isto por querer que o meu director espiritual venha junto de mim, para satisfazer os meus desejos: não, isso é o menos. Tenho uma eternidade inteira, tenho o céu para o ver e para com ele amar a Jesus e a Mãezinha, eternamente. A razão do meu desfalecimento, que sinto às vezes, é o ver que me aproximo do meu fim e a realização das promessas de Jesus mostra-se, humanamente falando, impossível. Quando vejo que estou naquele desfalecimento, que dilacera a alma, vou repetindo: Sagrado Coração de Jesus, eu tenho confiança em Vós. No domingo, mergulhada nos horrores, de que falei acima, e no desfalecimento por me sentir morrer, exclamei:

— Jesus, Jesus, estou sozinha!

— Não estás, minha filha – respondeu – estou bem no íntimo do teu coração. Que mais queres tu, se tens o teu Jesus? Sou o teu esposo e amo-te tanto. Sou o esposo fiel que nunca te deixa. O abandono que sentes e o horror das pessoas que te são queridas sou eu a tirar de ti tudo para mim. Possuo-te inteiramente. Desprendi-te de tudo o que é da terra. Possuis o meu coração com todas as suas riquezas. Tens todo o meu amor, que nuca te falta. Caminha confiada e espera em mim.

Estas palavras de Jesus não foram para a minha alma uma consolação, mas foram um alívio para o peso dos meus sofrimentos. Suavizou a minha cruz. Fiquei mais confiada e com mais resistência para sofrer. Nestes últimos dias voltou o mafarrico a atormentar-me a imaginação com a minha vida de ilusões, como ele diz, e a abanar-me a cama, fortemente, duas vezes ao menos. Sinto-me despedaçada pelo peso de uma Justiça que cai sobre mim. Parece o meu corpo ser todo destruído com esse peso e todas as minhas veias rasgadas, experimentando ao mesmo tempo grande satisfação por dar a essa Justiça o meu sangue, que parece chover até o fim do mundo como reparação. Quando soube que não ia comungar nesta semana, sofri tanto, senti tantas saudades:

— Também Vós me deixais? Como hei-de passar sem Vós?

Recebi a Jesus na segunda-feira e recebi-O como a um estranho, com o maior gelo. Durante o dia, quando pensava nisso, não podia sofrer mais e dizia:

— Só Vos sei amar, quando Vos não tenho para Vos amar. Só conheço a Vossa falta, quando não vindes ao meu coração. Como sou ingrata! Terça-feira não comunguei e morria de saudade. Agora sim, Jesus, conheço a falta que me fazeis. Como hei-de passar sem a Vossa vida divina? Fazei que eu seja firme no meu amor. Fazei que Vos ame e saiba agradecer tanto quanto mereceis e quereis, meu Jesus!

Hoje, inesperadamente, recebi a visita de Jesus e, logo que entrou no meu coração, falou-me:

— Cá estou eu, minha filha, a dar-me a ti sacramentalmente. Não podes viver sem esta vida divina, porque não tens outra a não ser esta. São exigências do meu Divino Coração. Sou eu que permito tudo isto. Dá ao meu querido Padre Humberto um grande enchente do meu divino amor e da minha Bendita Mãe. Dá-lhe os meus agradecimentos a ele e a todos os concorrem para a vinda dele aqui, para alívio da tua alma. Não tens outro apoio se não Jesus, exijo o teu amparo, o teu conforto. Sou o teu Jesus.

Agradeci a Jesus, fiquei mais unida a Ele com os sofrimentos da alma mais suavizados. Com o correr das horas foram-se avivando, e experimentei grande variedade de sofrimento.

19 de Julho de 1945

Nos mundos das minhas trevas infundiu-se junto a mim o coração envolto em negros panos: é o luto mais pesado. É para poder enfrentar as trevas que momento a momento vou atravessando. Ó meu Deus, nunca mais têm fim. E eu tão só a infundir-me mais nelas. A elas não vai penetrar a luz do céu nem o conforto da terra. Que grande horror! Ó Jesus, ó meu Deus, sede Vós por mim. Sinto que o coração de vez em quando tenta deixar o meu corpo, tenta voar ao alto, muito ao alto. Vai sequioso, vai louco, sobe à semelhança do fumo que desaparece nas alturas. E ele quer desaparecer, quer esconder-se numa grandeza incomparável. São mundos, são céus de grandeza ilimitada, e ele quer ir e ficar para sempre nessa grandeza que o atrai, nessa grandeza, porque só suspira. Queria exprimir os sentimentos da minha alma; é impossível, a minha língua não sabe mover-se para falar de tal grandeza: a grandeza de Deus, o poder de Deus, a bondade e amor de Deus.

— Bendito sejais, meu Jesus, por me fazerdes conhecer tudo isto. Ai, queria que todo o mundo conhecesse esta grandeza, que não há línguas que possam dizê-la nem corações que possam senti-la. É preciso um poder supremo para aguentá-la. E o que é uma ofensa feita a esta grandeza suprema! E o que são tantas ofensas que se cometem! Se o mundo compreendesse! Possuo uma luz que não me pertence, que vê e compreende tudo claramente. Sinto necessidade de chorar por não saber exprimir estas verdades. Não tenho forças para orar. Quando era pequenina, orava tanto e amava tanto a oração!

Passaram-se os anos, veio a doença, e o amor à oração continuou. Não ficava satisfeita, se algum dia tinha de deixar algumas orações por fazer. A doença aumentou. Com a falta de forças tive de as resumir. Mas foi aumentando a minha união com Deus, mas não deixava de sofrer, quando tinha de deixar de as fazer. O que é agora a minha vida de oração? É quase só mental, mas posso dizer que é quase contínua. Digo a Jesus que me entrego em seus braços, é neles que quero orar, é neles que quero sofrer e viver até mesmo durante os meus ligeiros sonos. Quantas vezes as visitas falam junto de mim, e a minha oração continua. Desligada da conversa se não me interessa, fico unida a Jesus, embora o não sinta nem o veja com a escuridão das trevas. Mas Jesus sabe que estou com Ele e só quero o que Ele quer. Amava tanto as quintas-feiras por amor a Jesus na Eucaristia, longe de pensar que elas haviam de ser dolorosas para mim. Ai, como eu vejo a traição que me preparam, ou preparam-na a Cristo que está em mim. Vejo que Ele passa e é apontado e escarnecido, e todos ficam a comentá-Lo. Sinto no meu coração o Coração d’Ele: um Coração mansíssimo que, já ferido por tudo, não se altera, tudo suporta, sereno e calmo. A vergonha já se apoderou de mim, já parece que sou despida para ser despedaçada. Vejo as estrelas cintilantes no firmamento a brilharem por entre a ramagem verde das oliveiras. Sinto já a agonia e o ensopamento do sangue. A dor e o brilho das estrelas, com o cansaço, convidam-me ao retiro, ao silêncio. Aproxima-se o traidor. Os ouvidos, que estão introduzidos nos meus, já escutam tudo. Já vejo o desembainhar da espada, o cair dos soldados e o abandono de todos, até daqueles que mais presos estavam ao coração.

— Aceitai, Eterno Pai, o cálice da minha amargura, que Jesus dentro de mim Vos oferece.

20 de Julho de 1945 – Sexta-feira

De manhãzinha, cedo ainda, senti que foram abertas as portas da minha prisão, e conduziram-me dela para fora. O cansaço, o peso das humilhações, pouco retirada dela, fizeram-me cair por terra. Caíram sobre mim os algozes. Que raiva infernal! Que descarga de bofetões e pontapés. Sem o conforto da visita de Jesus, sem a Sua vida divina, fiquei mergulhada na minha dor e desfalecimento. Comecei a sentir a Sua grandeza e o coração a ansiar por ela. Era tal o cuidado e a pressa de deixar o mundo e esconder-se nessa pureza e grandeza suma que não sossegava; não queria manchar-se no lodo deste mundo. Esforçava-se por voar, sem quebrar o voo para não cair. E as saudades do céu principiaram a consumi-lo. Pobre coração, quanto sofria por não chegar à sua Pátria! Os meus olhos estavam como que esgazeados para a fitarem. Mas os mundos das minhas trevas escondiam tudo.

— Ó meu Deus, morro entre elas. Ah! Se eu Vos visse! Ah! Se eu Vos amasse! Dai-me força e coragem, meu amor, e outra coisa não quero senão a Vossa vontade.

Inesperadamente, uma voz suavíssima fez-se ouvir aos meus ouvidos e ecoou no meu coração.

— Vem, vem, esposa do meu Filho, caminha, tem coragem.

E a minha alma viu estenderem-se-lhe uns braços para a receberem e levantarem o meu corpo de tão grande desfalecimento, ajudando-o a caminhar. Esta voz e estes braços vinham do alto, muito do alto. Foi um convite e auxílio do céu; atraiu-me para lá ainda mais.

— Ai o céu, ai o céu! Quem me dera lá para sempre!

Esta voz e estes braços eram do Eterno Pai. Posso dizê-lo, a minha alma viu-O. O demónio não quer que eu o diga, faço-o por obediência. Ele está ao meu lado cheio de raiva, acusa-me de falsa e de mentirosa. Este miminho do céu não me causou alegria nenhuma, nenhuma, mas fortaleceu-me para subir o calvário. Mas a agonia continuou e parecia-me caminhar como se o coração já não tivesse sangue. No cimo do calvário, já crucificada na cruz, sentia comigo Jesus crucificado e vi que Ele estendeu os olhos por todo o mundo a contemplá-lo, e a agonia aumentou. Que grande dor ao ver para muitos tanto sofrimento inútil! O coração agonizante deitava para fora em golfadas o pouco sangue que lhe restava. Com o horrível abandono, se o Eterno Pai pudesse morrer, eu  ter-Lhe-ia dito:

— Também Tu morreste, Pai!

Como sabia que era impossível morrer, bradei então em grande aflição:

— Pai, ó meu Pai, até Tu me abandonaste!

Assim fiquei nesta amargura por um grande espaço de tempo. Veio Jesus. E como veio Ele? Veio como uma nuvem descida do céu, baixou sobre o meu peito; a essa nuvem estava unido um canal que em mim pousava também. Ouvia Jesus beber por esse canal, sofregamente.

— Minha filha, esposa querida, estou a beber as doenças das tuas virtudes. Estou sequioso, venho saciar em ti a minha sede de amor. Venho a ti buscar o bálsamo para o meu divino Coração tão ferido com os crimes do mundo. Venho levar do teu martírio a salvação para as almas. Eu sou a nuvem, o canal és tu. Recebo de ti tudo, porque toda me pertences. Sou todo teu, a ti me dou inteiramente. Dou-te todo o meu amor e todas as minhas riquezas. Possuis todos os tesouros divinos; és o canal por onde passa para o mundo tudo o que é divino. Se ele soubesse agradecer! Se correspondesse às graças que por ti lhe dou! Ai dele, se continua a sua infelicidade. Ai de Portugal, se não aprende em ti as lições que por ti lhe dou e se não for agradecido pela riqueza que lhe dei. Filha, minha amada filha, vou pedir-te agora uma grande reparação: grandes lutas como demónio e sem o meu conforto divino. Só virei, quando estiveres prestes a vacilar no meio das tuas trevas e grandes amarguras. Aceitas, aceitas, para acudires às almas e eu não ser ferido?

— Tudo, tudo, meu Jesus. Eu sempre ferida e Vós sempre amado. Vós não me faltais, pois não, meu Jesus?

— Nunca, minha pomba bela, estarei sempre contigo até ao fim, fim que se aproxima; chega o teu céu, caminhas para ele, é a tua última fase. Consola-me então na minha amargura, repara por tantos crimes que se cometem. Desapareceu do meio dos lares, na maior parte, o verdadeiro temor de Deus. Não há bons pais, não pode haver bons filhos. Que horror essas praias, casinos, cinemas e casas de vícios! Não põe termo a isto quem lho podia pôr, não lhes acode quem lhes podia acudir. Acode tu ao mundo, dá-me a reparação que te peço, suaviza, alegre, a dor do meu divino Coração.

— Antes o inferno, Jesus, do que ofender-Vos ou negar-Vos alguma coisa. Estou pronta para tudo, não me falteis. Em tudo quero a Vossa vontade, não quero mais um passo nem menos um passo. Seja tudo como quereis.

— Minha filha, como prémio da tua aceitação e como recompensa do aniversário que hoje passa, aniversário em que deste a mim e ao mundo a grande prova do teu amor e da tua grande heroicidade no sofrimento, vou dar-me a ti sacramentalmente. Não quero deixar-te neste dia sem a minha eucaristia, sem a vida de que vives. Dou-me a ti pelo teu anjo da guarda.

Uma chuva de anjos em hinos harmoniosos desceram sobre o meu leito. E a minha alma deixou de ver Jesus em forma de homem para O contemplar numa hóstia branca nas mãos de um formoso anjo. Tocaram e cantaram por um pouco e, inclinados à frente de Jesus, diziam:

— Reverentes, adoremos ao nosso Rei e Senhor, ao nosso Deus, ao Deus de amor.

E depois o anjo, que tinha a Jesus, pronunciou: Corpus Domini nostri Jesu Christi, etc, etc. Continuaram por um pouquinho os hinos depois de eu receber Jesus. E a pouco e pouco foram subindo ao alto como pombinhas batendo as suas asas. Ficou junto de mim, em tamanho de homem, o belo anjo da minha guarda. Ficou a dizer-me:

— Estou contigo e sempre ao teu lado, estou a desempenhar a missão que Jesus me confiou. Estou contigo e amparo-te sempre no teu sofrimento, nas tuas lutas. Todo me consolo ao ver a reparação que dás ao teu Jesus, ao meu Senhor. Todo me consolo ao ver o amor com que O amas. Sou teu companheiro na vida e também na tua passagem de terra para a eternidade.

Dito isto, desapareceu. Fiquei, pelo espaço de três horas, com a minha alma forte e cheia. Agora só já vejo trevas e estou tímida com os sofrimentos que me esperam. Temo-os, mas quero-os e amo-os por ser essa a vontade do meu Jesus.

23 de Julho de 1945

Passo os meus dias em escura prisão. Os olhos do corpo não podem ver a luz, e a minha alma não tem luz. Lançaram-me ao abandono, às trevas e à morte. Tudo o que são trevas me cobrem, só nas trevas me infundo. Paredes do meu quarto, testemunhas de tanta dor, se vós falásseis, quanto teríeis que dizer. Bendito seja o Senhor, a Ele bendigo a minha cruz. O meu coração foge para a grandeza do céu, mas ai, foge tão cheio de amarguras, tão oprimido pela dor. Mas à vista clara de tanta grandeza e de tanto amor esquece tudo, tenta não recordar a dor, para perder-se naquele oceano infindo das maravilhas do Senhor. Que cuidado ele tem de voar ao alto, sem ser manchado pelo pó imundo da humanidade! Quero e não posso, não quero o pó, mas bem manchada me sinto. Oh! como eu estou suja e banhada no lodo imundo. E que vergonha a minha diante de Jesus! E que horror tão grande o da justiça divina! Parece que se abrem as nuvens, estalam os trovões, e faíscas imensas de fogo vêm destruir um corpo. Jesus preveniu-me, e foi bem verdade. Oh! quantas amarguras as da minha alma! Não sei dizê-las, é impossível. Por vezes parece-me não poder mais. Não sei dizer outra coisa a Jesus a não ser:

— Por Vosso amor, por Vosso amor e pelas almas, sou a Vossa vítima, faça-se como quereis, fazei que Vos ame tanto quanto deseja o Vosso divino Coração.

Jesus continua dentro de mim a oferecer ao céu o cálice da amargura. Pobre Jesus, quem sofre é Ele, a amargura que oferece só a Ele pertence apesar de eu estar sempre tão amargurada. É Ele que sofre e não eu. Sinto na minha alma que continuam os maus juízos, as falsas apreciações a meu respeito e a respeito do meu santo pai espiritual. Sinto que estão tantos corações endurecidos e cegos à luz da verdade. Bendita cruz! Não digo bem falsas apreciações: não são falsas, coitadinhas, não compreendem mais. Não sabem a dor duma alma no meio das lutas e das trevas, ao desamparo. Ó sofrimento amado, que há tão pouco quem te conheça e compreenda! Há dias que eu sinto que o meu coração é uma casa aberta, de entrada para quem quer. Sofri muito com este novo sofrimento. Hoje, em momentos de amargura quase insuportáveis, em que o demónio me queria levar ao desespero, trazendo-me à memória a minha vida de enganos e falsas ilusões, e queria forçar-me a não confiar em Jesus, obrigando-me quase a acreditar que não seriam realizadas as Suas divinas promessas. Ó meu Deus, que duro e penoso martírio! Já via tudo a perder-se. Eu queria dizer àqueles que me amam, apesar de eu já não sentir que sou por eles amada, que me esquecessem, que me deixassem também ao abandono, para não ser tão grande a sua humilhação, pois assim não sofreriam tanto, como se esperassem até ser descoberta a minha falsa vida. Com os olhos fitos em Jesus e na Mãezinha, jurava-Lhes que confiava. O demónio, mais enraivecido, veio como um ladrão, e senti como se ele me levasse o coração.

— É meu – disse-me ele – vamos pecar.

E cobriu-me de insultos.

— E com o teu coração nas minhas mãos faço-te pecar quando quero.

Então muito mais ao vivo senti ser essa morada de que acima falei. Nela entravam quantos queriam, eu era a casa do pecado e o próprio pecado; estava disposta para tudo. Meu Deus, que horror! Tantos pecados, tantos crimes! Lutei muito, e o demónio mostrava-se contentíssimo por fazer de mim tudo quanto queria. Disse a Jesus muitas vezes que era a Sua vítima e que não queria pecar. A luta terminou, mas o demónio por algum tempo continuou ainda a dizer-me que o coração era dele, e eu sentia que ele o tinha em suas mãos. Eu não tinha coração senão para palpitar aflitivamente. Tudo em mim estava vazio, ele tinha em suas mãos o meu maior tesouro. Ele continuou-me a insultar, e eu fiquei a dizer:

— A minha vida, meu Jesus, a minha vida, oh! como ela é! Que ela seja vida de amor e reparação, e só como Vós quereis.

Jesus não veio confortar-me, e eu estou nas minhas horríveis amarguras. Que Ele seja a minha força, para eu poder resistir a tudo. Que Ele seja o meu guia nas minhas trevas. A não ser Ele, quem me guiará? Tudo me roubaram.

26 de Julho de 1945

Tenho que ser, quero ser uma outra Madalena junto à cruz; tenho que chorar e quero chorar as minhas culpas. A minha alma sente disso necessidade. Jesus espera-me de braços abertos para me receber; espera-me cheio de sorriso e de amor. Quer possuir-me, quer abrasar a minha frieza na fornalha do Seu Coração Divino. Mas, ai que vergonha a minha! Caminho par Ele tão tímida, não posso levantar para Ele os meus olhos. A minha alma e o meu corpo não podem aparecer na Sua divina presença; estão nojentos e desfeitos em lepra. Ouço que uma voz me chama, atrai-me a doçura do seu chamamento. Tenho de ir, quero ir. Se não vou, perco-me. Tenho que chorar, quero chorar. Vejo que é perfeito, muito mais perfeito, serem as minhas lágrimas de dor e de amor; o temor que fica mais de rasto fica longe de subir à altura do amor. O meu coração sobe, deixa o mundo, deixa o corpo, vê nas alturas a grandeza e o amor do infinito. Ai, que sede de se perder nele! Oh! que sede de dar a esse amor o que ele deseja. Deseja o mundo, e ele, tão pequenino, quer dar o mundo a esse amor, a essa grandeza. Perdeu-se nesse amor e desse amor recebeu tudo, e esse tudo faz chover por toda a terra. Sinto e vejo cair essa chuva. É chuva miudinha, mas orvalha tudo, é orvalho do céu, são as grandezas, as maravilhas e o amor de Jesus. É água que vem lavar a lepra do meu corpo e da minha alma. Não sei falar do amor de Jesus, não sei falar da Sua grandeza, não sei exprimir a Sua sede e ânsias das almas. E queria dizer tudo, queria que o mundo soubesse, só com isto pode ser salvo. As trevas cegam-me, o seu terror parece desequilibrar-me e desnortear-me. Que agonias, que agonias as da minha alma! Quantos ais, quantos suspiros abafados! São as trevas que os não deixam subir ao céu. Jesus exigiu hoje de mim duas dolorosas reparações. De uma à outra houve um intervalo de poucos momentos. Lutei perto de uma hora com o demónio, em suores e palpitações, palpitações do coração aflitíssimo, que me pareciam tirar a vida. Que malvado imundo! A primeira reparação, sentia-me essa morada de porta aberta, pela qual entrava quem queria. Vi entrar tanta gente, louca pelo prazer e que tentava disfarçar quem era. A segunda foi a reparação da família. Ainda o que se peca! Ai o que Jesus é ofendido! Eu dizia:

— Ó Jesus, para longe de mim o pecado, não quero pecar. É para Vós, para o Vosso Santíssimo Coração a reparação e o amor.

Logo na primeira luta, eu parecia-me desesperar, ia desfazer-me em lágrimas, em lágrimas de desespero. Eu senti, e a minha alma via uns braços que se estendiam para mim, para me amparar e abraçar. Ao terminar da segunda reparação, romperam esses braços por entre a fúria dos demónios, que fugiram como leões espavoridos. Era a Mãezinha, foi Ela que me tomou para o Seu regaço e me abraçou e disse-me:

— Minha filha, é esta a reparação que mais custa a uma vítima, a uma esposa e virgem fiel do meu Jesus. Vem cá, não mereces estar entre os demónios. És digna de estar entre os anjos e à sombra do santo das virgens. Vem, meu filho, conforta a tua filhinha desfalecida, quase sem vida.

Veio logo Jesus a beber do meu pobre coração. Sentia-O, ouvia-O beber sem parar. Mas já antes da reparação tinha feito isso.

— Filhinha, filhinha, a primeira reparação, que de ti exigi, é reparação pelos crimes cometidos nas casas do demónio, nas casas do pecado. Vistes aqueles que lá entravam disfarçados? São os que se envergonham do horroroso nome que têm. Oh quanto eu sofro!

E Jesus chorava e disse-me quem eram esses que entravam disfarçados. Que pena eu tive do meu Jesus ao vê-Lo chorar e ao ouvi-Lo dizer: “vê quanto eu sofro!” A segunda reparação, que te pedi, foi a da família. Sentiste com a dor violenta o meu Divino Coração? Quantos crimes, quantas maldades se praticam! Obrigam-me a castigar. Privam da minha glória a tantos inocentes. Continuas, filhinha amada, a dar-me esta reparação? Não temas, confia que não me ofendes, não é manchada a alvura da tua inocência.

— Estou  pronta, Jesus, só na certeza de pecar é que Vos nego alguma coisa.

Jesus estreitou-me com a Mãezinha, e Ela disse-me:

— Vai, vai, esposa amada do meu Jesus, vai e não Lhe negues nada. Eu amo-te, Jesus ama-te.

Voltei às minhas agonias e a ver as agonias e todos os sofrimentos do calvário. Vejo correr em mim do Coração Divino do meu Jesus o sangue que dentro em pouco há-de regar a terra. Sinto arremessos rancorosos, que contra mim são feitos. Vejo a grande coroa de espinhos em forma de capacete, que há-de coroar a minha cabeça. Sinto-me a desfalecer ao ver a agonia do horto e a morte.

27 de Julho de 1945 – Sexta-feira

O meu corpo não pode resistir a tanta raiva e maus tratos dos judeus. Já não é uma pessoa que leva a cruz, é um cadáver disforme. As carnes do meu corpo foram despedaçadas. Caio e fico, como se já não tivesse vida. Os espinhos, ao eu cair, penetram cada vez mais fundo. A cabeça é uma dor só. O rosto pisado e em sangue mancha as pedras onde bate repetidas vezes. Sou arrastada pelas cordas tão cruelmente. O corpo com tal fúria e rancor é levantado ao ar, nas minhas repetidas quedas, e vem depois arrastado, coberto de maus-tratos. Ao que chegou a malícia dos homens! Não tenho coração que consinta que o meu Jesus seja tratado assim. Dentro de mim, mas pelos lábios santíssimos de Jesus, corre sangue, vindo do peito, motivado das grandes quedas e maus-tratos dos bárbaros judeus. Já no calvário e na cruz pregada, o sangue continuava a correr, a regar a terra. Que chuva de veados bebia dele! Mas eram tantos os que o desprezavam e fugiam dele a passos de gigante! E Jesus, louquinho de amor, sem poder desprender os braços da cruz! Chamava-os e convidava-os a entrarem no Seu Divino Coração aberto. Eles rejeitavam a entrada nele. Oh que agonia! Jesus queria-os oferecer ao Eterno Pai, e eu queria-os oferecer a Jesus. Que confusão, que vergonha! De nada valiam os sofrimentos de Jesus e o Seu sangue derramado. E de nada valia o meu martírio. Jesus envergonhava-Se diante do Seu Pai, e eu envergonhava-me diante de Jesus. A minha agonia subia, subia às alturas. Jesus, tomando o cálice do meu coração, levantou-o, ofereceu-o repetidas vezes ao Eterno Pai e dizia-Lhe:

— Recebe, meu Pai, o tributo deste martírio, o incenso deste amor.

Fitei o meu Jesus na cruz, e a agonia continuou. De verdade, eu queria ter sempre um turíbulo de incenso de amor, para oferecer a Jesus. Mas nada tinha, porque a agonia e as trevas tudo destruíram. Veio Jesus, suavizou a dor, a agonia e dissipou as trevas. Fez que eu O sentisse em mim muito terno e doce. E disse-me:

— Minha filha, o meu coração e o teu são um só, prenderam-nos os laços do amor. Vai, flor, flor mimosa do jardineiro divino. Vai à conquista das almas, leva as riquezas, os tesouros imensos, que te confiei. Traz-mas, compra-as a todo o preço. O cofre dessas moedas é o teu coração e o meu. Vai, és a luz das almas. Vai, és a pureza das virgens. Vai, és o amor dos corações. Vai, diz, minha filha, que se ouça repetidas vezes a voz do Pastor do Universo, que só será salvo por uma completa emenda de vida. Nunca, nunca, minha filha, se pecou como hoje! Não há justos na terra que apaguem tanta maldade, tanta gravidade de crimes. Isto é uma queixa amorosa do meu Divino Coração ao teu. Haja penitência, faça-se penitência. Confiei-te o mundo, ó vítima sem igual. Sim, e por ti será salvo, por ti serão salvas as almas, ou com castigo ou sem ele. Se ouvirem a minha voz divina, saída pelos teus lábios, serão salvas pelo prémio e grande glória. Se não ouvirem, salvam-se, mas sem merecimento; salvam-se pelo temor à justiça do meu Pai. Vítima pura, vítima amada, quanto te deve a cega e ingrata humanidade!

— Acredito, meu Jesus, confio na Vossa divina palavra, porque a Vós, meu sumo Bem, devemos tudo, e, como estais em mim, conVosco posso tudo. Mas ai, meu Jesus, que vergonha a minha! Sei que tudo é Vosso, mas ainda assim confundo-me, porque só vejo em mim miséria.

— Ó minha estrela brilhante, encantam-me as tuas virtudes. Eis porque te dou os títulos mais belos. Encontrei em ti uma felicidade e generosidade sem igual. Eis porque te fiz poderosa. Pede-me o que quiseres, nada te negarei sobre a missão que te dei, isto é, sobre os pecadores. Já to disse e repito: a uma palavra tua em seu favor junto do trono divino eles serão salvos. Escuta, filhinha, um convite do meu Coração: vem, esposa amada, bebe o meu divino sangue, é a tua vida, é a vida das almas. Dou-to para conservar-te a vida, dou-to para dares às almas. É um milagre conservar-te a existência aqui. Quero-te acabrunhada debaixo do peso da dor; quero que sintas no teu corpo o que há de mais doloroso. É maior o poder e maior a graça. É maior o proveito das almas e a glória para mim.

Jesus não uniu como das outras vezes o Seu Divino Coração ao meu, porque eu já sentia os dois transformados num só. Mas senti, como se Ele abrisse um registo pelo qual principiou a correr em mim o Seu divino sangue. E ainda mais: fez um enleio das veias d’Ele nas minhas pelas quais corria também sangue. Não eram só d’Ele nem só minhas, eram de nós os dois.

— Recebe – dizia Jesus – vive e dá a vida. São as minhas as tuas veias, e as minhas tuas. É teu o meu Coração, e o teu é meu; é meu todo o teu ser, és de Jesus, e Jesus é teu. És minha esposa, possuis a minha vida. Vai, farol do mundo, vai, pastorinha, vai buscar-me as almas, fecha-as em meu Divino Coração, possuis a chave. É meu divino desejo que depois da tua morte apareças muitas vezes como pastorinha, trazendo as ovelhas junto do meu sacrário, fechando-as aí em meu Coração. Quero que apareças com o teu aberto, lavando-as, purificando-as dentro dele antes de a mim se entregarem, sinal de que foram lavadas na tua graça, nas tuas virtudes, no sangue que de mim recebeste. Digo-te isto hoje, minha pomba bela, como prémio e para conforto da dor causada pelo aniversário que passa: a cegueira e maldade dos homens. Que ingratos são para o meu Divino Coração e para as almas! Fiz luz em ti para lhes dares luz, e tentaram apagá-la. Imolei-te, sacrifiquei-te para as salvar, e tentaram encobrir e abafar os meus meios. Não amam o meu Divino Coração, não amam as almas. Em vão, em vão, tudo em vão. A minha divina causa triunfa, o seu brilho existirá sempre no tempo e na eternidade, mas à custa do teu prolongamento e duro martírio. Coragem! Alegra-te! Em breve, chega o céu cheio de glória, prémio inigualável, amor sem fim.

— Obrigada, meu Jesus. Sede amigo, espero de Vós tudo, porque nada tenho.

 Queria dizer o que sentia, quando nas minhas veias corria o sangue de Jesus, mas não sei dizê-lo. Eu era toda amor, tudo era luz, tudo era vida eterna.

— O que será, meu Jesus, o céu para sempre! Aceitai-me o sacrifício de ditar tudo isto e, junto a ele, aceitai-me as amarguras que já me acompanham com as dores da alma e do corpo.

30 de Julho de 1945

Caíram sobre mim as trevas mais aterradoras da morte. Que profundo abismo! Oh! tantos mundos delas atravessados e tantos outros para atravessar! Encobriram o meu Jesus, o meu Deus, o meu tudo; encobriram a Sua luz, grandeza e omnipotência. Mas o meu coração sabe que tudo existe. Quer subir, quer voar, chegar ao seu termo, quer parar no céu, parar em Jesus, mergulhar-se n’Ele. Ó que sede ardente, consumidora! E sobre tudo isto caem as grandes humilhações por que há um ano passei. Sofro, revivo tudo. Ai se não fosse o amor a Jesus e às almas, o desejo ardente que tenho de lhe dar tudo, o que seria então? Cairia na lama, desfalecida por completo para aí apodrecer e morrer. Mas oh! não acontecerá assim. Jesus é a minha força e amparo mesmo sem eu o sentir. Jesus é a minha confiança e o meu eterno amor. Confio, espero, serei d’Ele e sempre d’Ele. Para maior martírio da minha alma sinto-O dentro de mim, tratado como Rei, mas, por escárnio, de mãos atadas e entre elas uma cana verde. Sinto-O preso à coluna e frequentes vezes açoitado; não O deixam respirar, tiram-Lhe a vida, despedaçam-Lhe as carnes e Ele sempre manso como um cordeirinho inocente. E eu não sei consolá-Lo, não tenho para Ele uma palavra amiga, a não ser: “sou Vossa, amo-Vos, sou a Vossa vítima”. Mas isto com frieza, com secura, com cegueira mortal. E o demónio vai continuando a sua tarefa, vem com as suas ameaças repetidas vezes. Durante esta noite temi algum ataque violento. Quando esperava o seu assalto, apareceu-me uma linda floresta cheia de flores e lugares de passatempo. Depois apareceu-me outro lugar aterrador; tudo era escuridão, cavernas feias, lugares de prisões, abismos de perdições. Causava nojo e pavor ao mesmo tempo. E passou assim sem eu saber o seu significado. Hoje de manhã, antes de receber o meu Jesus, já ele andava com os seus falsos rodeios. Comunguei, e não se tinha passado ainda uma hora, e veio ele fortemente. Lutei no meio de insultos e palavras só dele, feias e vergonhosas.

— Olha, aqui tens uma prova de que o teu coração é meu, faço de ti o que quero e quando quero e tenho poder para tudo. Deus quer que tu peques. Se assim não fosse, eu não viria tão depressa depois de O teres recebido. Vistes o que ontem à noite te mostrei? Aquele lugar encantador, de belos passatempos, é o prémio que eu dou aos que me servem e são meus. O outro lugar, que te causava horror, é o que te dá Deus. Não sofras, diz-Lhe que não O queres servir nem sofrer por Ele.

Invoquei fortemente o nome de Jesus e da Mãezinha:

— Sou a Vossa vítima e não quero pecar.

Fiquei libertada, mas o meu dizer não era o meu sentir. Eu sentia querer o gozo e o prazer e sentia que nada me satisfazia e tina pena com isso ou sentia que a tinha. O meu Jesus bem sabe que não. Os meus olhares eram como que esgazeados, e fiquei como a avezinha que perdeu o seu ninho e, batendo as asas, ficou nos ares sem poder subir, sem poder poisar, esperando a morte a cada momento, vendo-se perdida para sempre. Depois disto, semeada por entre espinhos, deu-me Jesus uma florinha do Seu amor. Trata-se dumas almas que vieram aí e dum santo sacerdote que junto do meu leito me deu grande prova de dedicação e muitas palavras de conforto. Foi a primeira vez que o vi, Jesus o cubra de glória. Bendito Jesus, ainda não estão todos contra mim. Não posso dizer que senti consolação, mas sim grande alívio espiritual. Ver duas almas no bom caminho, mais perto de Nosso Senhor! O bom sacerdote a suavizar a minha cruz! Esqueci-me do que sofria, para agradecer ao Senhor. Ou antes, todos os sofrimentos achei poucos, para Lhe dar as almas. Se o mundo soubesse quanto sofre Jesus com os nossos pecados!