A Beata
ALEXANDRINA MARIA DA COSTA

« Vibrações de poesia »

Os estudiosos da Beata Alexandrina comprazem-se em chamar a atenção para a beleza de algumas das suas páginas. Escreveu assim o Padre Mariano Pinho :

« Pela sua correcção, viveza, novidade de imagens e originalidade de expressão, (essas páginas) legam às letras um verdadeiro monumento. »

O Padre Umberto Pasquale não se mostra menos entusiasta quando faz esta apreciação :

« Os escritos da Alexandrina sob o aspecto teológico deixam-nos maravilhados. Por vezes têm laivos de lirismo ; não apresentam correcções de espécie alguma e contam muito poucos erros de ortografia. Passam neles vibrações de poesia pura e imagens deslumbrantes ; o conteúdo é denso, de excepcional poder expressivo. »

Veja-se então o tom nocturno, « decadente », deste excerto, no qual, contudo, do meio da dor, irrompe a prece da confiança :

« A minha alma está em ruína e tudo à minha volta são ruínas. Sinto o esmagamento de um peso enormíssimo. Luz não existe ; estou numa noite saudosa e triste. Parece que os dias claros mais me ferem. Não pode o Sol vir penetrar na minha escuridão. O canto das avezinhas são espadas que me vêm cortar o coração. Para mim não há alegria, porque a minha tristeza é de morte. Sinto como se estivesse todo o mundo morto na minha alma. Parece-me que caio em desespero.

Meu Deus, meu Deus! Amar-Vos sempre, nunca ofender-Vos !

Jesus, não me deixeis cair; eu, por mim só não me sustento. Dai a vossa bendita mão a quem em Vós confia.

Quero flores para Vos oferecer, mas sempre e só entre espinhos as quero ir colher. É por teu amor que quero viver ferida!... »

Ensina o Padre Gabriele Amorth que « Na Alexandrina desenvolveu-se muito cedo uma grande sensibilidade pela beleza da criação. Talvez como reacção a tantos sofrimentos que a rodeavam, gostava de contemplar o céu estrelado ; com quatro anos procurava a maneira de o tocar, com a sua fantasia, pondo uma casa em cima da outra, uma árvore sobre a outra.... Gostava muito das flores, dos prados, das árvores. O seu carácter vivaz, brincalhão, alegre, rico de iniciativas, con­quistava facilmente a simpatia das amiguinhas. Cheia de vitalidade, corre, brinca à roda, sobe às árvores como um esquilo; pelos caminhos prefere caminhar em equilíbrio sobre os muros que delimitam as propriedades. »

Essa sensibilidade — mas não a alegria infantil — percorre os textos seguintes. A meditação que agora apresentamos não é menos poética nem menos repassada de misticismo que o texto precedente :

« Levantei-me cega pela dor e fui para a janela : não encontrava posição.

A noite estava bela. Tudo dormia; a casa estava em silêncio.

Todo o meu ser estava morto. Contemplava o céu cintilante de estrelas ; a lua era brilhante. Meditava nas belezas e grandezas do meu Criador. Tudo quanto contemplava era motivo para mais ferir o meu pobre coração.

Fiquei por largo espaço de tempo num profundo acto de agradecimento ao Céu. Dizia a Jesus :

“Eu não vos vejo, eu não vos sinto, mas sei que sois o meu Criador e quando me criastes já sabíeis que eu hoje havia de estar aqui a contemplar as vossas grandezas, já sabíeis que a falta de ar que hoje sinto necessitava do vento que me dais. Um eterno obrigado, meu Jesus !”

O vento era forte : parecia que tudo derrubava. Obrigava-me a meditar os horrores do Inferno, a vida e os tormentos dos condenados.

De novo contemplava o céu e as estrelas. Pedia a Jesus que multiplicasse milhões e milhões de vezes mais do que as estrelas os meus actos de amor para os sacrários. Não O queria sozinho, e (só lá) queria que Ele só lá tivesse amor...

A minha alma continua a exigir a solidão.

É ao brilho das estrelas e luz do luar que eu sozinha me ponho a meditar.

Peço a todos os astros que amem por mim a Jesus. E ao contemplar o céu, digo-Lhe repetidas vezes :

“Jesus, não Vos vejo, mas sei que me vedes a mim. Não sinto que Vos amo, mas confio que me amais. Alegrai-Vos na minha dor. Consolai-Vos na minha desconsolação. Curai as feridas do Vosso Divino Coração com a dor que no meu causam as Vossas grandezas” ».

* * *

Mais um texto. Nele a Venerável exprime-se, em imagens de grande força expressiva, sobre o indizível sofrimento da sua imolação:

« Caíram sobre mim todos os leões. Não deram sepultura ao meu corpo, vieram as aves nocturnas e, apesar de ne­gras trevas, viam para comer o meu corpo. Fiquei sempre neste sofrimento. Agora sinto essas aves a enterrarem o bico nos meus ossos e a reduzirem tudo a cinzas.

A cruz onde fui cravada caiu por terra, mas ainda sinto uma parte do meu corpo presa pelos cravos.

Aqueles pássaros têm ainda muito que escabulhar no meu corpo, que não tem vida nenhuma da terra ; apenas o meu coração sente uma vida que não é humana, é vida divina. Esta vida dá-lhe sangue, e a humanidade inteira, como um bando de passarinhos, a beber essa vida. Sinto que depois de essas aves nocturnas reduzirem os meus ossos a cinzas é que poderei partir. Já não me sinto mais sobre a cruz, mas o sofrimento é o mesmo e não é menos doloroso.

Os leões aproveitam agora mais da minha carne, que já está em putrefacção e nojenta, e as aves com os seus grandes bicos, assaltam os ossos e broqueiam-nos. Não com­preendeis quanto sofro e nem eu sei explicar-me.

Deixaram a minha alma no meio da montanha, entregue ao maior turbilhão, negra, tristíssima, árida: deixaram-me ao abandono. Caíram sobre mim todos os leões !

Como é amarga a ingrati­dão dos homens ! »

E agora talvez o seu texto mais poeticamente admirado, do qual o mesmo Padre Mariano Pinho afirma que lhe faz lembrar o Canto do Sol de S. Francisco de Assis ou o bíblico Benedicite. Nele não há cenários nocturnos de dor, mas apenas a alegria e a urgência da gratidão. Literariamente, assenta nos recursos bem simples da anáfora, da enumeração, do refrão :

« Ó meu Jesus, eu quero que cada dor que sentir, cada palpitação do meu coração, cada vez que respirar, cada se­gundo das horas que passar, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu quero que cada movimento dos meus pés, das mi­nhas mãos, dos meus lábios, da minha língua, cada vez que abrir os meus olhos ou os fechar, cada lágrima, cada sorriso, cada alegria, cada tristeza, cada atribulação, cada distracção, contrariedades ou desgostos, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu quero que cada letra das orações que reze ou oiça rezar, cada palavra que pronuncie ou oiça pronunciar, que leia ou oiça ler, que escreva ou veja escrever, que conte ou oiça contar, sejam

actos de amor para com os vossos Sacrários.

Eu quero que cada beijinho que Vos der nas vossas santas imagens ou da vossa e minha querida Mãezinha, nos vossos santos ou santas, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu quero que cada gotinha de chuva que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo encerra, oferecida às gotas, todas as areias do mar e tudo o que o mar contém, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu Vos ofereço as folhas das árvores, todos os frutos que elas possam ter, as florzinhas oferecidas pétala por pétala, todos os grãozinhos de sementes e cereais que possa haver no mundo, e tudo o que contêm os jardins, campos, prados e montes, ofereço tudo como

actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu Vos ofereço as penas das avezinhas, o gor­jeio das mesmas, os pêlos e as vozes de todos os animais, como

actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu Vos ofereço o dia e a noite, o calor e o frio, o vento, a neve, a lua, o luar, o sol, a escuridão, as estrelas do firmamento, o meu dormir, o meu sonhar, como

actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu Vos ofereço tudo o que o mundo encerra, todas as grande­zas, riquezas e tesouros do mundo, tudo quanto se passar em mim, tudo quanto tenho costume de oferecer-Vos, tudo quanto se possa imaginar, como

actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, aceitai o Céu, a terra, o mar, tudo, tudo quanto neles se encerra, como se esse tudo fosse meu e de tudo pudesse dispor e oferecer-Vos como

actos de amor para os vossos Sacrários.»

Nesta versão dos Actos de Amor de Alexandrina, colhida do livro do Padre Mariano Pinho, pensamos que está a transcrição exacta das suas palavras, mesmo que, sendo um texto de quando tinha 27 anos, ela pudesse ter melhorado posteriormente a sua expressão. Esta informação faz sentido porque quase tudo o que podemos ler como sendo palavras suas nos é veiculado em tradução para português do que já tinha sido uma tradução das suas palavras originais para o italiano. Significa isto que, para apreciarmos a autenticidade dos seus textos, precisávamos de uma substanciosa autobiografia, como a que se publicou em italiano, onde se recolhesse ao menos o que há de mais significativo nos seus escritos, segundo o original português.

* * *

A 26-XI-40 :

« Ó dor, ó bendita dor ! O cruz, ó leito sagrado, quero que sejas tu a minha sepultura, donde jamais me possa levantar ! Tu és, ó cruz bendita, o tesoiro imenso com que Jesus me enriqueceu. Eu te quero, eu te abraço, em ti quero estar cravada e toda de espinhos cercada! Ë por Jesus que quero viver ferida e no altar com Ele sempre imolada! Ditosa sorte que me espera na terra ; ditosa me fará eternamente no Céu ».

Assim o descreve ela em carta para ele 24-IX-37 :

« ... Minha filha, tomei-te para os meus braços, para te defender ; e todas as vezes que seja preciso, Eu te defenderei.

Aceitei a tua oferta de te dares a Mim ; tomei-a bem à letra. Consolou-Me muito a simplicidade com que te ofereceste. Escolhi-te para mim ainda no ventre de tua mãe, para que dentro em pouco, e bem depressa chegou, te pudesse chamar minha esposa.

Eu e tua Mãe Santíssima olhamos-te com predilecção, pelos caminhos pedregosos e medonhos por que tiveste de passar. Fui Eu que tos destinei, para que agora pudesse ter assim uma vítima de tanta reparação.

Repousa contra o meu Coração, aqui encontras tudo : luz para poderes caminhar, força para tudo suportares e amor para tudo sofreres.

Minha filha, tem dó do teu Jesus; não durmas, desagrava-Me dos pecados que a esta hora se estão a cometer. Faz-me companhia nos meus sacrários. Estou tão só ! »

A 12-XI-40 :

«Quer saber então o que se passa em meu cora­ção, mesmo assim no meio de tantas tristezas e amarguras ?

Tem ânsias, grandes ânsias. Está caído em desânimo, não tem forças para voar : está caído. Sinto-o como a pombinha ferida pelo chumbo. Abre as asas, bate-as, mas bate-as contra o chão ; o ferimento não a deixa levantar voo.

Mas queria gritar bem alto a Jesus que O amo. Eu queria com a minha própria mão arrancar do peito o coração, assim nes­tas chamas abrasadoras em que o sinto, e ir colocá-lo no Coração do meu Jesus e dizer-lhe : aqui tendes a prova do meu amor; guardai-o para sempre. E vosso e da querida Mãezinha !

Ai ! meu Padre, sinto que sou o retrato da pombinha de que acima falei. O chumbo feriu-me por todos os lados. A dor é constante. Com a tristeza, parece que me faz agonizar. Tudo me parece mentira, mesmo o meu Jesus dizer-me ontem, que com um pequeno voo repousava n’Ele para sempre. Parece-me que nunca mais posso voar para Ele nem possuí-Lo. »

José Ferreira