Jornal do Médico
– 8/8/953 – editorial
A quilómetros da vilazinha onde eu moro, vive
uma pobre mulher a quem a
doença
inutilizou o reduziu à quase expressão de dois olhos negros o buliçosos. Uma
queda aos quinze anos fracturou-lhe a coluna e deu origem a uma paralisia que a
imobilizou numa cama donde começou a dar um exemplo edificante de resignação e
paciência. Se a visitavam e lhe diziam uma palavra de lamento, ela encolhia os
ombros magros, esboçava um sorriso resignado e dizia-se conformada com o seu
sofrimento e destino.
Assim se passaram dez, quinze, trinta anos
sem que a frescura do seu rosto murchasse ou a vivacidade do seu espírito
ensombrecesse. Sempre com um sorriso alegre a iluminar a tristeza do seu olhar
calmo e uma palavra de consolo a desprender-se dos seus lábios descorados, ela
mostrava uma resignação e paciência que começou a criar na vizinhança um
sentimento de veneração que aos poucos transbordou para as aldeias mais
próximas. E começou a chegar gente para a ver. Outra vinha para a ouvir. O
recorte suave do seu rosto pálido, a expressão doce dos seus olhos tristes, a
transparência azulínea das suas mãos delicadas, o tom penetrando da sua voz
lenta e a comunicabilidade da sua palavra consoladora, criaram no espírito
daquela gente simples uma ideia de sobrenaturalidade, de um ser à parte mantido
na vida por um desígnio superior ao seu entendimento que a maravilhava. Os que
vinham para pedir, rezavam com ela. Ela também ainda dizia que não fossem
simples palavras de conforto ou piedosas orações. As mezinhas misteriosas, os
sinais cabalísticos, os passes magnéticos, desconhecia-os. Aconselhava apenas
resignação, dizia palavras de esperança, consolava as almas desesperadas. Mas o
sentimento que as ditava, a dor alheia que tomava para si, tantas vezes, as
lágrimas que chorava por amor do próximo, eram de molde a erguer um altar de fé
nas almas que dela se aproximavam e a criar uma legenda de santidade junto dos
que ela acolhia.
Assim se dilatou o conhecimento desta pobre
mulher que, por muito se dar, muito se esquecia de si. O sou nome começou a
andar de boca em boca e ultrapassou as raias fronteiriças. Dos recantos mais
longínquos do país vieram excursões de curiosos. De Espanha veio também gente
para a ver. Junto da sua humilde casa organizavam-se peregrinações a que só a
Igreja era estranha. Os que sofriam o esperavam, tinham fé no poder magnífico
das suas palavras e no valor das suas orações. Sentiam-se reconfortados na sua
presença e aceitavam a sua intervenção como a expressão maravilhosa dum prodígio
extraterreno, cujo entendimento estava fora do alcance da compreensão humana.
E a legenda de santidade foi firmando raízes.
Falava-se de milagres: cegos que viam, paralíticos que andavam, curas
extraordinárias que se obtinham, numa revoada de esperanças que alargava por
longe a fama do seu nome. Dela se dizia que não se alimentava, como se a vida
orgânica já tivesse chegado ao sou termo e a sua existência só se mostrasse pela
chama brilhante que luzia no seu espírito. E vieram módicos para a ver, atraídos
pela nomeada extraordinária da sua fama.
A mistificação podia ocultar-se por detrás do
temperamento neurótico, impressionável e impressionador, destes que quase
suspendem a vida vegetativa quando a força de vontade determina. E
propuseram-lhe o internamento numa Casa de Saúde, que ela aceitou. E vigiaram-na
durante largas semanas sem descobrirem qualquer fraude. O único alimento que
ela não dispensava era o Sagrado Viático que ela recebia com humildade e unção
cristãs. Os seus lábios em nada mais tocavam. As observações dos médicos
chegaram por fim a termo e ela regressou de novo à sua pobre casa da aldeia.
Vinha como fora, com a mesma resignação, a mesma bondade, a mesma compreensão
pelo sofrimento a1heio. Não se sabia qual o parecer dos médicos. Mas o povo, com
a sua imaginação prodigiosa e a sua tendência para o maravilhoso, continuou a
ungi-la com a sua fé e a procurá-la com a sua devoção, como se não tivesse
quaisquer dúvidas sobre a missão que lhe fora confiada na terra e soubesse, de
fonte certa que ela era um elo de ligação entre a humanidade que sofre e o
infinito poder de Deus.
Este caso estranho, que agitou o Norte do
país e movimentou muitos milhares de pessoas, merece um comentário ligeiro à
margem de paixões que, como é de costume, acompanham sempre os eventos que saem
da linha do comum.
Trata-se, na verdade, duma pobre mulher de
espírito simples e desinteressado, sublimado por virtudes que se originam,
talvez, na própria doença. Salvo os prolongados jejuns, que aliás se vêem de
quando em quando anunciados nos jornais como curiosidade de indivíduos dados a
certas práticas abstencionistas, a resignação, o sofrimento, a paciência, a
compreensão, a tolerância e a bondade, se não são atributos comuns, não são tão
excepcionais que não se mostrem em milhares de pessoas sem que felizmente surja
qualquer acontecimento que lhes dê notoriedade. A própria formação religiosa não
ultrapassa a linha vulgar — não é uma mística com arrebatamentos e transportes
que deixem perceber uma psiconeurose, nem uma beata que se esconda por detrás
da sua hipocrisia. As condições de excepção são outras e vivem mais do
desinteresse que ela mostra pelos bens do mundo que a podiam enriquecer, do que
da fama que lhe criaram sem outro proveito que não seja o de aumentar-lhe o
sofrimento.
Não é, porém, a mulher com a sua doença, com
os seus jejuns ou com as suas prédicas o que importa; o mal dos outros não
contenta ninguém, nem serve para obrar prodígios que sirvam de regalo. É ao
povo, a essa gentalha ignorante e crendeira, retintamente boçal e lorpa, que me
quero referir por se ter deixado arrastar pelas suas tendências supersticiosas e
ludibriar pelas habilidades interesseiras de uns tantos videirinhos. Ao
princípio, ainda ele ia por devoção, levado por aquela dor íntima que precisa de
consolo espiritual, para não conduzir ao desespero; depois começou a ir por
distracção, movido pela curiosidade de saber o que ela dizia e os milagres que
operava ; em seguida, como a romana, acampando nas redondezas com farnel e
zabumba para aligeirar o caminho; por fim, levado por interesse e com o desejo
de ganhar a vida, aproveitando a maré que ajudara a subir. Houve quem montasse
na vizinhança barracas de comes e bebes, tendas de bentinhos e recordações
negócios de santas relíquias tocadas pelas mãos descarnadas da pobre mulher.
Alguns mais felizes deitaram muros abaixo e transformaram belas terras de
lavradio em parques de estacionamento, cobrando chorudas prebendas de quantos
nelas arrumavam os carros. Outros fretavam camionetas, contratavam preços,
organizavam peregrinações, não se esquecendo de cobrar unia avultada comissão
para o seu trabalho.
Montou-se assim um verdadeiro negócio a que
não faltava larga propaganda com o apregoar de milagres. Todos os dias era
certo o aparecimento de uma história maravilhosa e sobrenatural, daquelas que
impressionavam as almas simples e parvas. Até que se deu o inevitável : o caso
desandou em chocarrice e houve uma intervenção superior. As peregrinações
acabaram. Deixou do haver arraial. Os interesses que andavam à sua volta ruíram
e a terra principiou a ser lavrada. Talvez tarde de mais. A semente já devia ter
sido lançada para poder produzir bons frutos. Mesmo assim, ela há-de germinar e
dar grão. Só não dará nessa massa estúpida de gente que se atropelava, moía,
suava, perdia a calma, gastava tempo e dinheiro para ouvir uma pobre mulher
dizer — tenham paciência, não desesperem, rezem, rezem sempre.
Por mais que se diga e faça, há uma tendência
no povo a crendice que e difícil eliminar. As raízes mergulham no pó dos séculos
e só o trabalho lento o persistente da instrução é que conseguirá modificar este
aspecto baixo da alma popular. É certo que ele não define a mentalidade do país,
nem tão pouco a compromete. Em todo o caso mostra inferioridades
lamentáveis e sentimentos que melhor seria esconder, tanto mais que, com verdade
ou sem ela, se procura juntar nomes de médicos e com eles defender uma posição
que me parece enquadrar-se perfeitamente no campo da neurologia.
Casos como este não faltam por esse mundo
fora. O que importa é que sejam tomados nas justas proporções e vistos apenas
pelo seu aspecto humano, som as sobrenaturalidades que não se coadunam com a
condição terrena dos homens.
Joaquim Pacheco Neves
Respeitosas referências a
“um caso estranho”
Jornal do Médico
– 19/9/953
Lemos há dias o artigo do Senhor Dr. Pacheco
Neves, “Um caso estranho”,
publicado
no Jornal do Médico. Fora-nos anunciado como um artigo que humilhava aqueles que
estão confiantes na grandeza deste Caso. Afinal, não é bem assim.
Literariamente, parece estar bem feito, e até, ao findar a sua leitura, veio-nos
à memória, mantidas as devidas proporções, a “Vida de Jesus”, de Ernesto Renan.
Este artista literário quis amortalhar no lençol de púrpura do seu estilo
feiticeiro a divindade de Jesus, e o nosso colega, se isso lhe fosse possível,
amortalhará no seu belo estilo aquilo que há de invulgar e extraordinário no
Caso de que falou. Tê-lo-ia conseguido ? Parece que não. Um dia Felix Leseur,
medico ateu, amigo íntimo do sábio Le Dantec, quis amortecer as crenças
católicas de sua esposa, a extraordinária mulher que foi Elisabeth Leseur, e por
isso, entre os livros cuja leitura lhe aconselhou, dois deles foram a “História
das Origens do Cristianismo” e a “Vida do Jesus”, do Renan. O resultado da sua
leitura, porém, foi contraproducente. Elisabeth, inteligente como era,
não se deixou fascinar pelo brilhantismo da forma literária desses livros e
ficou surpreendida pela pobreza do seu fundo. Lendo atentamente o artigo do
nosso Colega, vemos bem que as roupagens literárias com que o revestiu
são aliciantes, mas, afinal, não conseguiram o fim em vista.
Falta de talento, falta de sinceridade,
talvez nada disso; simplesmente, dificuldade e grandeza do assunto a demolir. E
senão vejamos. Percorramos o artigo a fugir, notando também uma ou outra
inexactidão mais importante; o da existência delas não haja surpresa, porque
dizem não haver bela sem senão. Essa mulher, pobre, porque assim o quer, dos
bens terrenos, mas rica dos bens celestes, embora emaciada, ainda não esta assim
reduzida a “uma quase expressão de dois olhos negros e buliçosos”. Nem oito nem
oitenta, Colega ; nem tem a coluna fracturada. Dizem (Dr. Roberto de Carvalho e
outros) ter uma mielite. Mas mais ou menos mielite, mais ou menos polinevrite,
não é isso que nos traz justificadamente apreensivos. Há, por aí, muitas
mielites e polinevrites e nada disso é fora do vulgar. Mas “o exemplo edificante
de resignação e paciência, o sorriso resignado” para os visitantes, e dizer-se
“conformada com o seu sofrimento e destino”, esses “dez, quinze, trinta anos sem
que a frescura do seu rosto murche ou a vivacidade do seu espírito
ensombrecesse, sempre com o seu sorriso alegre a alumiar-lhe o olhar calmo”,
toda essa resignação e calma” que chegou “a criar na vizinhança um sentimento de
veneração, que transborda para as aldeias mais próximas” e afastadas, e para o
estrangeiro, tudo isso que o Colega regista, que significa e denuncia ? Qual a
causa de efeitos tão belos ? Que nevrose ou psiconevrose ou doença mental,
referidas na Neurologia e Psiquiatria, se coaduna com o estado orgânico,
psíquico e moral a
que
se está referindo no seu artigo ? Se queremos fazer ciência, temos de explicar
os efeitos por causas proporcionadas. Como se chama a árvore que dá frutos tão
belos ? Essas qualidades morais, evidentes na nossa heroína, constantes e nunca
desmentidas, serão vulgares ? Essa sua heroicidade de virtudes não será
caminho aberto para coisas superiores e transcendentes ? Os factos tão
persistentes, tão coerentes, tão belos e radiosos, sob o ponto de vista moral, e
que aponta nessa doente deixam-nos perplexos, não nos permitindo dar-lhes uma
explicação natural. Mas o Colega continua o seu fraseado belo, cujo resultado
será aumentar o número de visitantes, que provocarão as iras de gansos que
grasnem no Capitólio, talvez devido ao medo de Deus, sofrendo o médico
assistente e a família da doente as respectivas alfinetadas e consequências. E
essa doente nada diz “que não fossem palavras de conforto ou piedosas orações ;
nada de mezinhas misteriosas, sinais cabalísticos, e só palavras de esperança a
consolar almas desesperadas”. E a fama desta doente, “que por muito se dar,
muito se esquecia de si”, passou as fronteiras, mostrando, talvez, que estamos
todos alucinados, não é assim ? Que poderá a Neurologia ou a Psiquiatria dizer
sobre isto ? Sempre além, deixando as circunstâncias secundárias para o caso de
que fala, e de que ninguém tem culpa, para nos interessarmos do essencial, do
importante caso: vieram os médicos, e a doente foi internada numa Casa de
Saúde, em que foi vigiada, de dia e de noite, sucessivamente por três grupos de
duas Senhoras, havendo o cuidado de escolher algumas descrentes em Religião.
Esteve internada durante 40 dias e, nesses dias, foi constatado que não
bebeu uma gota de água nem houve a menor excreção. Onde se registou uma caso
natural destes, Colega ? O seu peso manteve-se constante, as suas tensões
normais, o seu sangue, analisado à quarta semana de internamento, era normal nos
seus elementos constitutivos e de desassimilação, a sua vida intelectual era
sujeita a rigorosos interrogatórios e finalmente foi dito que a Medicina não
explicava este caso por modo natural. Mais e a propósito : o argumento único,
que convenceu a doente a deixar-se internar, foi eu dizer-lhe que a Autoridade
eclesiástica assim o desejava. Tudo tem, já se vê, a sua significação, o seu
valor para o julgamento de Caso. Enquanto ao jejum ou abstinência dessa doente,
o Colega está enganado, ao dizer que esse jejum se vê, de quando em quando,
anunciado nos Jornais. A abstinência alimentar dessa doente data de 1942,
é quase absoluta, porque só bebe, de longe a longe, umas colherinhas de
água simples, mas simples. Em1942, fizemos várias experiências, dando-lhe água
açucarada ou com qualquer água mineral ou coisa idêntica, mas tudo isso era
logo vomitado. Desde então, nada tomou a não ser a tal água simples. Onde se
vêem esses jejuns, a não ser em Tereza Neumann, de Konnersreuth, ou no Padre
Pio, em Itália ? A Fisiologia e a Patologia ensinam-nos que o homem não pode
sobreviver, a uma abstinência de sólidos e líquidos, prolongada por semanas.
Sabemos que o Lord Cork, recusando alimentar-se, em protesto contra a dominação
inglesa sobre a Irlanda, e tomando somente líquidos, durou dois meses e
meio. O bandido Granié, bebendo água e não querendo alimentar-se, durou
63 dias. Gandhi fazia os seus jejuns, mas tomava água e vitaminas, e
sabemos bem o que lhe acontecia em poucos meses de jejum. Os faquires fazem os
seus jejuns, que não são totais, e por pouco tempo. Os que sofrem de anorexia
mental não se privam da alimentação total, e todavia conhecemos bem o seu
estado psíquico, o seu emagrecimento e, se não arrepiam caminho, depressa caem
no túmulo. Mas então não haverá pessoas que vivam num jejum perpétuo? Há sim.
Essa doente de que estamos falando, o Padre Pio na Itália e Tereza Neumann,
a mística de Konnersreuth. Pelo que nos dizem o Dr. Imbert Goubeyre e o Dr.
Henri Bon, que são autoridades destes assuntos, conhecemos vários místicos que
viveram numa inédia bem constatada e naturalmente inexplicável : Ângela Foligno,
que viveu dois anos, sem tomar qualquer alimento, Santa Catarina de Sena, 8
anos, Isabel de Reuth, 12 anos; Catarina Emmerich, nos últimos 12 anos de vida,
só tomava água fresca simples e a Sagrada Comunhão, Nicolau von der Flue, passou
20 anos sem comer nem beber, e apresentava-se sempre bem disposto e robusto ;
Dominica del Paraiso, 20 anos; Santa Ludovina de Schiedman, 28 anos ; etc., etc.
O verdadeiro alimento destes místicos era a
Sagrada Comunhão. Autoridades Civis e Eclesiásticas constaram, por vezes, essa
abstinência de alimentos com o maior rigor. Quem não sabe o que se tem passado
com Tereza Neumann, no nosso tempo ? Quem explica, naturalmente, a possibilidade
e facto da realização de tais inédias, de tais abstinências alimentares ? Pelo
contrário, que sabemos nós da parcial abstinência alimentar dos anoréxicos
mentais ? Sabemos que, apesar dos seus metabolismos descerem muito, e das suas
combustões internas serem reduzidas, e de tomarem alguma quantidade de
alimentos, o falecimento desses anoréxicos mentais sobrevém, nos casos rebeldes
ou sem tratamento, em poucos meses. E não nos falem, nestes casos, em letargia
própria dos animais hibernantes, pois trata-se, por vezes, de pessoas de vida
normal e até muito activa. Não nos falem também em assimilação das
radiações solares. O dever da ciência é “estudar os factos e indagar-lhes a
causa, qualquer que ela possa ser”. Claro que podemos tentar dar uma explicação
desses jejuns, mas é preciso que ela seja razoável. E diz o Dr. Henri Bon que
“quando se trata de fenómenos comuns a duas disciplinas intelectuais, ou a duas
ciências, a conclusão definitiva não se obtém sem que os dois métodos confiram
juntamente os resultados. E nos fenómenos médico-religiosos é à Teologia que
pertence evidentemente a última palavra. Em matéria religiosa, a leviandade é
inadmissível”. Esses jejuns não querem dizer, só por si, santidade. Num e noutro
jejum, até poderá haver intervenção diabólica. É certo que o que faz os Santos
não são estes jejuns nem estas abstinências alimentares. Mas, regra geral, estas
absolutas abstinências alimentares, prolongadas, são gritos clamorosos a
anunciar-nos que há um Ente Supremo e Providente, que nem tudo acaba com a
morte, e que são do Céu as Mensagens, que alguns desses abstinentes nos
anunciam. Nessas inédias sensacionais, aliadas a outros fenómenos místicos
extraordinários, embora a Medicina e a Psicologia devam ser ouvidas, a última e
decisiva palavra pertence à Mística, pertence à Igreja. O nosso caso um destes.
Como vê, Colega, não poderá dizer-se que casos como este “não faltam por esse
mundo fora” e não basta “vê-los apenas pelo seu aspecto humano”, se os quisermos
explicar. Concluindo agora: a princípio, comparei o estilo do Colega ao
fraseado sedutor de Renan. Quero terminar os meus dizeres, recordando o fim
deste brilhante escritor francês, no meio literário e científico em que por
tempo pontificou. Nessa Academia Francesa, o seu sucessor Challemel Lacour
provou no seu discurso de recepção, em que era costume fazer-se o elogio do
antecessor, que a ciência de Renan não era científica e que a filosofia deste
filósofo não era séria.
É sabido que Renan tinha recebido dum
banqueiro judeu um milhão de francos para escrever as blasfémias que escreveu
contra a Divindade de Jesus. A Bossier, encarregado de responder a Challemel
(querendo atenuar o golpe dado em Renan) só foi possível dizer que Renan era um
“sonhador”.
No seu leito de morte, às seis horas da manhã
de 2 de Outubro do 1892, um domingo, Renan morria a rezar, a dizer: “Tende
compaixão do mim, meu Deus, tende compaixão de mim”. Por fim, o Colega
desculpar-me-á o dizer que o seu artigo, literariamente bem escrito, é
inofensivo contra o maravilhoso e extraordinário do caso de que fala. Sendo os
frutos bons, óptimos e raros, boa, óptima e rara devera ser a árvore que os dá.
Isto também é ver as coisas “pelo seu lado humano”.
Ribeirão, 31 de Agosto de 1953.
Dias de Azevedo.
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