Triste mês de Maio
1942

O mês de Maio de 1942 foi para a Beata Alexandrina um mês triste e cheio de grandes sofrimentos: ela vive então as penas do Purgatório. É também o período em que sofre da ausência do seu Paizinho espiritual, objecto de restrições e de vexações da parte de seus superiores e colegas da Companhia de Jesus.

Alexandrina, também atacada e caluniada, sofre e oferece...

A 3 de Maio de 1942 ela escreve para o seu Diário, mais conhecido sob o título de “Sentimentos da Alma”:

« Meu Deus! Meu Deus! O brado agonizante da minha alma perde-se na montanha e não é ouvido na terra, nem no Céu; digo isto repetidas vezes com o pensamento, enquanto vou sentindo as aves devorarem-me as coxas e a agonia na alma que se não pode explicar e aumenta ao saber de tantas mentiras que de mim dizem e ao sentir que ainda depois da minha morte tudo isto continuará, sendo motivo de grande sofrimento para os meus. Eraa meu desejo que todas as mentiras morressem comigo.

De 4 para 5 de Maio; durante a noite, veio repetidas vezes a Mãezinha, muito bela, apresentar-se à minha frente junto da minha cabeceira, suavizando a minha dor.

Na mesma noite, o Anjinho da Guarda com as suas asinhas inclina-se sobre mim fazendo por aliviar o meu corpo. »

Jesus tinha confiado então à Alexandrina toda a humanidade, aquela humanidade repleta de crimes e de grandes pecados; aquela humanidade que estava então em guerra, guerra que no seu final cifraria milhões de mortos, mortos inocentes, mortos cristãos ou ateus, mortos em estado de graça e mortos cobertos de lama e de grandes pecados... Alexandrina sofria por todos, esperando que os seus sofrimentos fossem úteis à salvação da maior parte. Mas este sofrimento que ela aceitava com uma heroicidade extraordinária não era suficiente, mesmo se inexplicável pela sua dureza e pelos efeitos que provocava na alma e no coração da vítima de Balasar... Ele sente-se cada vez mais reduzida em cinzas, prestes a desaparecer por completo...

Ouçamos o que ela diz no seu “Diário” a 6 de maio desse mesmo ano de 1942:

« Ó trevas, ó trevas, ó negras e assustadoras trevas! Ó Céu, ó Céu, dá-me a tua luz! Recebi tamanhos golpes no meu coração e sinto que ficou tão aberto e tão retalhado que me parece não ter forma de coração humano; contudo é um fontanário de sangue que brota com toda a abundância. É a vida divina que o faz brotar e sinto toda a Humanidade a beber dele com toda a força, com receio que ele se esgote. O meu estado de alma agravou-se assim depois de saber o muito que fazem sofrer o meu Paizinho, contudo não perco a minha confiança de que Jesus há-de justificar a sua inocência.

Agora sinto que as aves nocturnas já vão a chegar aos joelhos. Todo o corpo está quase en cinza. E não vira Nosso Senhor buscar-me? »

Os sofrimentos eram tantos e tão grandes que ela pensava estarem a chegar os seus últimos dias de vida:

É isso mesmo que ele escreve no dia 7 de maio de 1942:

« Com a aflição da minha alma eu dizia assim: Que tristes e amarguríssimas são as últimos dias da minha vida. Tirai, meu Jesus, da minha amargura toda a doçura e alegria para vós e proveito para as almas. »

Este belo mês de Maria que começa apenas, anuncia-se para a Beata Alexandrina como um mês de grandes sofrimentos, sofrimentos que não irão nunca diminuir, mas pelo contrário aumentar... Ela continua a viver as penas do Purgatório e sente-se picotada por aquelas aves cujo intento é reduzir seu corpo em cinzas... Este “Purgatório” é tão doloroso que ela chega mesmo a preferir a vivência da paixão a este novo estado doloroso. E, como se estes sofrimentos não fossem suficientes, o “mafarrico” — compreenda-se: o diabo —  vem “consumir a imaginação” da pobre doentinha de Balasar.

Diz-nos ela a 8 do mês de Maria:

« Já não podendo mais com o peso das humilhações, com a agonia e negras trevas que sentia na minha alma, porque tudo me abafava a confiança que tenho em Jesus, eu dizia: Se aqueles que me tiraram o meu Paizinho experimentassem o que era sofrer, davam-mo para meu conforto. E segredava para Jesus: Juro-vos que confio em vós! Recordando que já não tinha crucifixão, senti tão grande dor no meu coração que me parecia chorar lágrimas de sangue e lembrava-me que se eu fosse de novo crucificada era bastante para aliviar o sofrimento da minha alma! Que saudades, que saudades, meu Jesus, não ter agora a crucifixão!

Agora as aves andam abaixo dos joelhos e sinto o coração a perder a vida divina. Vou caindo lentamente. Tudo desaparece em mim.

Também sinto que a humanidade já não bebe com aquela força que bebia, porque o sangue se vai acabando.

O mafarrico tem-me consumido a imaginação, pretendendo prender-me às coisas da terra; mas quanto mais ele tenta fazê-lo, mais Nosso Senhor me eleva para Ele. »

Na véspera do aniversário da primeira aparição da Virgem em Fátima, Alexandrina escreve ainda:

« Hoje a vida divina do meu coração comparo-a a uma lâmpada amortecida que a cada momento parece apagar-se. Já não nasce o sangue senão de longe a longe uma gota, que  já mal se pode beber. Eu hoje dizia a Nosso Senhor assim: Meu Jesus, Mãezinha, vede a aridez da minha alma, vede o abandono que ela sente do Céu e da terra. Lançai sobre mim vossos divinos olhares de compaixão. Acudi-me, acudi-me, não me deixeis morrer de susto no meio das trevas. A minha alma está tímida com os assaltos do demónio. Quer acusar-me e lançar-me ao rosto tudo o que há de pior, apresentando-me a minha vida inteira cheia de enganos. Jesus não me deixa por muito tempo combater as dúvidas, mas ele enraivecido enche-me de pavor. Se eu pudesse ter um sacerdote sempre junto de mim! É o meu Paizinho quem eu quero, pois foi esse que Jesus me prometeu e que os homens me tiraram.

As aves sínto-as já nos pés, mas como que aborrecidas por não encontrarem que comer. Vão mexendo e remexendo as poucas cinzas que me restam. Ai, o dia mais feliz da minha vida é o dia da minha morte! »

O dia 14 de Maio desse ano de 1942 é dia da Ascensão do Senhor. Alexandrina desejaria de certo viver esse dia de festa de maneira jubilosa, mas o seu “coração continua como uma lâmpada amortecida”, mas ela não perde a esperança, porque ela sente e está segura que “quem lhe sustenta a vida do coração é Jesus”...

« Eu quisera dizer — escreve ela nesse dia 14 de Maio — quanto a minha alma tem sofrido, mas apenas tenho experimentado, e não sei explicar. Horrorosos sofrimentos passaram por mim! Nunca pensei poder sofrer tanto. Hoje sinto-me mais aliviada um bocadinho, mais redobrada a minha confiança em Jesus e na Mãezinha, com mais forças para combater o inferno que se tem revoltado contra mim.

O meu coração continua como a lâmpada amortecida. De longe a longe vai deitando uma gotazinhas de sangue que a Humanidade ainda vem aproveitá-las. Cada uma delas parece ser a última. Sinto que ele ainda está preso à vida divina por um fiozinho comparado a um arame fininho que à mais pequenina cloisa pode partir.

No meu corpo já não sinto as aves; parece-me já não existir dele nem sequer o mais pequenino bocado de cinza.

Sinto que quem me sustenta a vida do meu coração é Jesus, só Jesus, parecendo-me estar ligada à Pátria celeste por aquele fiozinho.

Viva Jesus! Viva Maria! Viva a Santíssima Trindade a quem amo tanto! »

A paixão visível tendo terminado, ela sente, de vez em quando, sobretudo nos momentos em que mais “padece” outras penas e outros sofrimentos que ela própria não sabe explicar, ela tem “saudades da paixão”, porque sem ela o “tempo não passa” e mesmo as horas parecem-lhe séculos. Ela “brada” então aos Céus, chama por Jesus, por Maria, pela Santíssima Trindade, que parecem não ouvir as súplicas da vítima...

Isto podemos ler no seu “Diário” de 24 de Maio:

« Jesus suspendeu-me a crucifixão: parece-me que me suspendeu a vida. Só Ele pode avaliar a minha tristeza e saudade. Não tenho o sofrimento da cruz; já não me sinto nela, escondeu-se-me por completo, mas tenho maior cruz ainda, são maiores os meus sofrimentos. Não posso viver no mundo. O tempo não passa, as horas parecem-me séculos, os dias e as noites eternidades. Quantas vezes levanto os meus olhos ao Céu para exclamar: Jesus, ó meu querido e saudoso Jesus! Mãezinha, ó minha querida e saudosa Mãezinha! Santíssima Trindade, ó minha querida e saudosa Trindade, para quem só quero viver, a quem me entrego, a quem só quero amar. Pobre de mim! Digo que amo e não tenho coração para amar, não tenho corpo senão para a dor, sou como uma bola de espuma que depressa se desfaz. Que trevas, meu Jesus, que securas, que amarguras, que agonias as da minha alma.

O fiozinho da vida divina que estava ligado ao meu coração, apesar de sentir que o não tenho, ainda está ligado ao lugar onde ele habitava. Sinto que ele está a cada momento a querer quebrar. A  fúria da horrenda tempestade dá-lhe todos os abalos. Do pequenino lugar que ocupava o meu pobre coração sai, de longe a muito longe, umas escassas gotas de sangue. Agora é que eu sinto quanto a pobre Humanidade necessita dele; toda ela sequiosamente o que sugar. Ó meu Jesus, não abandoneis a pobrezinha que sempre em vós confiou e confia. Apesar de tudo sentir perdido por entre as trevas, é de vós que tudo espero. »

E, como se esta “ausência” dos seus “Amores” não fosse suficiente, um outro sofrimento vem juntar-se ao primeiro, mas desta vez não se trata de uma “ausência” cujo retorno é vivamente desejado, mais duma “presença”, presença esta que Alexandrina não deseja, mas que aceita por amor de Jesus e para Lhe salvar almas: a presença de Satanás.

Nesse mesmo dia 24 de Maio, ela escreve para o seu “Diário”:

« O demónio quebrou todas as cadeias que o prendiam, caiu sobre mim. Luto sozinha, combato a sua raiva. Ó minha querida Mãezinha, tiram-me o meu Paizinho nestes tristes dias em que eu mais precisava dele. »

Corajosamente ela luta e vence; corajosamente ela tudo oferece e pede perdão “para todos os que a ferem”, pedindo mesmo ao seu Senhor e Esposo que a leve “sem demora” para junto dele.

Mas o seu desejo de salvar as almas e de fazer a santíssima vontade de Jesus é sempre mais forte, sempre constante, o que a levará a confessar humildemente: “Só tenho corpo para a dor!”

« Sinto-me abandonada de todos — escre ela no dia 24 do mesmo mês — a não ser quando mo dais milagrosamente para conforto da minha alma; o que tão raras vezes acontece. Perdoai a todos os que me ferem, perdoai tanta cegueira; eles de mim estão perdoados. No lugar do meu coração já não cabem mais espadas; tenho sofrido por todos os lados, tenho recebido sofrimentos de quem menos esperava. Ó meu Jesus, para todos o vosso perdão, o vosso amor e a vossa compaixão. Purificai, santificai, abrasai no vosso divino amor e levai para junto de vós sem demora a vossa filhinha agonizante.

Desde o dia 24 de Maio, dia do divino Espírito Santo, em que eu pedia toda a luz e todo o fogo do seu divino Amor, do seu Amor santificador, o estado da minha alma modificou-se, mas nesse dia de tarde eu ainda dizia: Eu já não tenho vida da terra, só tenho corpo para a dor. A partir deste dia, deixei de sentir o que até ali sentia quase continuamente, que eram nojentas serpentes cheias de toda a imundice, que entravam pela boca e saíam arrancadas não sei por quem, fazendo lembrar os condenados do inferno atormentados pelos demónios. Não podia ouvir o chilrear dos passarinhos ao alvorecer e ao anoitecer do dia, apesar de me lembrar que estavam a louvar o seu Criador. Os seus gorjeios feriam muito a minha alma. Nada podia ouvir de alegria. A minha sede era abrasadora, as saudades de me alimentar não as sei exprimir e tudo isto me parecia levar ao desespero por sentir que era impossível saciar os meus desejos. Logo dizia ao meu Jesus: É por vós que sofro, e saciai vós a vossa sede de amor, a sede que tendes das almas. »

Este estado particular e de particulares sofrimentos transformam-na fisicamente, segundo diziam as testemunhas oculares e mais particularmente no dia 25 de Maio de 1942.

Alexandrina admira-se disso, mas não contesta... Ela só deseja então o Céu, ir para junto do Esposo amado, ver a Deus para sempre:

« No dia 25 notaram diferença em mim, eu não tinha outra a não ser a transformação da minha alma. Deixei de sentir as grandes amarguras, trevas, securas e agonias a não ser de longe a longe e passageiras, para sentir grandes desejos de voar para o Céu, chegando a sentir impulsos que me faziam levantar, figurando-se-me que tinha asas e formava voo para o Céu. Tendo inteira confiança em Jesus e na Mãezinha e sempre conforme com a sua vontade. No meio de tudo isto a minha alma sente-se em festa, que por vezes chego a cantar com júbilo e alegria:

“Ver a Deus, ver sempre,
sempre Deus: eis o Céu!
Quem me dera lá ir, etc.”

Parece-me ir para a Pátria celeste, para o meu Jesus, de pé, de braços abertos, a descansar em seu divino regaço.

Já que não posso saciar-me dos desejos e saudades que tenho dos manjares da terra, suspiro, morro e anseio por ir saciar-me dos manjares celeste e só esses valem para a eternidade. O fio divino que liga ao lugar onde habitava o meu coração está quase a quebrar, parece-me que foi limado. O que lhe tem valido é a tempestade só de longe a longe lhe dar uns pequeninos abalos. Agora sim, agora posso dizer: O Céu está perto, vou ver o meu Jesus, vou ver a minha querida Mãezinha, vou gozar do Paraíso, vou amar os meus Amores eternamente. Deixo o mundo sem saudade, não lhe pertenço, não sou dele. [1] »

O mês de Maio de 1942 ia terminar...

Como para recompensar tanta dor e tantos sofrimentos livremente aceites, o Senhor vai “gratificar” a sua vítima com uma espécie de visão, provavelmente premonitória, durante a noite de 31 de Maio para o 1º de Junho. Ouçamo-la explicar, tendo em conta que o dia 31 de Maio era o dia da festa da Santíssima Trindade:

« A cair da tarde, sentia o fiozinho divino a quebrar de todo. Naquele meu estado de alma estava a ver o que Jesus inventaria para mim da sua Ciência divina, a não ser que tudo acabasse com a minha morte. Na segunda-feira seguinte, dia 1 de Junho, de manhãzinha, senti que tinha falhado por completo o fiozinho que para o lugar do meu coração se prendia, mas a ciência de Jesus ainda tinha mais que dar; pouco tempo depois vi e senti descer do Céu à terra para o lugar do meu coração raios de luz mais brilhante que o sol, pareciam vindos do Coração do meu Jesus, ligando-se e reflectindo-se para sempre no lugar do meu coração. Tinha que me embeber toda naqueles raios de amor, o que dia a dia me vão embebendo cada vez mais, deixando-me transformada neles. Esses raios vão-me levantando da terra para o Céu. São um canal no qual eu me tenho de transformar e por dentro dele passar. É por ele que eu vou para Jesus.

Já me sinto elevada a uma certa altura da terra. Momentos há em que não posso resistir a tantas saudades do Céu. Espero ver o meu Jesus dentro em pouco com a minha querida Mãezinha e todos os meus amores por quem aspiro; porém quero que se cumpram todas as promessas de Jesus, quero que me dêem o meu Paizinho que sem eu dar motivos para isso e em momentos tão amargos mo retiraram. Parece que só isso e a determinação da consagração do mundo pelo Santo Padre me obrigam a ainda viver na terra, triste exílio que não posso suportar. »

Ao lermos estas páginas do “Diário da Beata Alexandrina, páginas do mês de Maio de 1942, podemos por elas verificar que, apesar da sua grande devoção à Virgem Maria, todos os meses de Maio, não foram “rosas” para a doentinha de Balasar, ou se o foram, essas rosas eram na verdade demasiado espinhosas!...

Mas, ela própria muitas vezes repetia: “Seja feita a vontade do Senhor!”

Afonso Rocha


[1] Ignoramos a fonte desta adição. Provavelmente Alexandrina que neste período vive a segunda morte mística. Dom Humberto.

“Estou fina, fina das ideias! Em 27 de Maio, quando assistia ao mês da Mãezinha, eu tive este pressentimento que me deixava em paz: Morro em Maio, vem a paz em Junho. O meu Paizinho espiritual vai ser libertado e vem-me assistir à morte. Morrerei no sábado à tardinha, o meu enterro na segunda-feira, no primeiro dia do mês de Jesus”.

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