CAPÍTULO 39

Prossegue na mesma matéria das grandes mercês que lhe tem feito o Senhor e como lhe prometeu favorecer as pessoas por quem ela lhe pedisse. Diz algumas coisas assinalados nas quais Sua Majestade lhe tem feito este favor.

1.  Estando uma vez importunando muito ao Senhor para que desse vista, a uma pessoa que a tinha quase de todo perdida, e a quem eu devia, obrigações e por ela sentia grande dó, temia que, por meus pecados, o Senhor não me ouvisse. Ele apareceu-me como de outras vezes e começou a mostrar-me a chaga da mão esquerda, e com a outra arrancava um grande cravo que nela tinha metido. Parecia-me que, ao arranca-lo, arrancava a carne. Via-se bem a grande dor que muito me condoía, e disse-me, que não duvidasse de que, quem aquilo havia passado por mim, melhor faria o que eu Lhe pedisse. Já sabia que nada Lhe pediria, senão o que fosse conforme à Sua glória, e assim faria isto que agora pedia. Advertisse a que, mesmo quando não O servia, hão Lhe pedira coisa que Ele não ma tivesse feito melhor de que eu a soubera pedir. Quanto mais o faria então agora que sabia que O amava. Não duvidasse disto.

Não creio passassem oito dial que o Senhor não voltasse a dar vista àquela pessoa. Isto soube-o logo o meu confessor. Bem pode ser que não fosse por minha oração, mas, como eu tinha tido esta visão, ficou-me uma, certeza de que era por mercê feita a mim; dei graças a Sua Majestade.

2.  Outra vez estava uma pessoa muito mal de uma enfermidade muito penosa que, por não saber de que natureza, não a nomeio aqui. Era coisa incomportável o que padecia, havia já dois meses. Estava num tormento que se despedaçava. Foi vê-Ia o meu confessor, que era o Reitor de quem tenho falado, e causou-lhe grande lástima e disse-me que de todo o modo a fosse ver, pois era pessoa a quem o podia fazer, por ser meu parente. Fui e comovi-me a ponto de ter tanta compaixão dele, que comecei a pedir importunamente a sua saúde ao Senhor. Nisto vi claramente, sem me ficar qualquer dúvida, a mercê que me fez; porque logo, no outro dia, estava de todo bom daquela dor.

3.  Estava, uma vez, com grandíssimo pesar, porque sabia que uma pessoa, a quem eu devia muitas obrigações, queria fazer uma coisa muito contra Deus e a sua própria honra, e estava já muito determinada a isso. Era tanta a minha aflição que não sabia que fazer; remédio para que desistisse, parecia já não haver. Supliquei a Deus, muito do coração, que lho desse, mas, enquanto o não via, não se podia aliviar a minha pena.

Fui-me, nesta aflição, a uma ermida bem apartada, que as há neste mosteiro, e estando eu numa onde está Cristo atado à coluna, suplicando-Lhe que me fizesse esta mercê, ouvi que me falava uma voz muito suave, como envolta num silvo. Eu arrepiei-me toda, pois me causou temor. Quisera eu entender o que me dizia, mas não pude. Passou muito rapidamente. Passado o meu temor, que foi breve, fiquei com um sossego e gozo e deleite interior, que me espantei, pois, só o ouvir uma voz (que isto ouvi-o e com os ouvidos corporais, e sem entender palavra) produzisse tanto na alma. Por isto, vi que se havia de fazer o que pedia, e assim foi que se me tirou de todo a pena em coisa que ainda não era, tal como se já o visse feito, como foi depois. Disse-o a meus confessores, que tinha então dois, bem letrados e servos de Deus.

4.  Sabia que uma pessoa que se determinara a servir muito deveras a Deus e tido alguns dias oração, na qual Sua Majestade lhe fazia muitas mercês, a tinha deixado por certas ocasiões bem perigosas que teve, e das quais ainda não se apartara. A mim deu-me isto grandíssima pena, por ser pessoa a quem eu queria e devia muito. Creio que foi mais de um mês que eu não fazia senão suplicar a Deus que tornasse esta alma para Si.

Estando um dia em oração, vi um demónio ao pé de mim que, com muita raiva, fez em pedaços uns papéis que tinha na mão. A mim deu-me, isto um grande consolo, pois me pareceu que se havia feito o que eu pedia; assim foi, pois soube mais tarde que tinha feito uma confissão com grande contrição e voltou tão deveras para Deus que, espero em Sua Majestade, há-de ir sempre muito adiante. Seja bendito por tudo. Amen.

5.  Isto, de Nosso Senhor tirar almas de pecados graves por eu Lho suplicar, e trazer outras a mais perfeição, acontece muitas vezes. Quanto a tirar almas do Purgatório e outras coisas assinaladas, são tantas as mercês que o Senhor me tem feito, e muitas mais a favor da, saúde das almas que dos corpos que seria cansar-me e cansar a quem as lesse, se as houvesse de dizer todas. Isto tem sido coisa muito conhecida e há bastantes testemunhas. Logo, dava-me muito escrúpulo, porque não podia deixar de crer que o Senhor o fazia por minha oração — deixemos o principal de ser só por Sua bondade — mas são já tantas as coisas e tão vistas por outras pessoas, que não me dá pena crê-lo e louvo a Sua Majestade. Fico porém confusa, porque vejo que sou mais devedora, e faz-me — a meu parecer —, crescer o desejo de O servir e aviva-se o amor. E o que mais me espanta é que, quando o Senhor vê que as coisas não convêm, eu não posso, embora queira, suplicar-Lhas, senão com tão pouca força, espírito e cuidado que, por mais que eu me queira esforçar, é-me impossível fazê-lo como em outras coisas que Sua Majestade há-de fazer, que então vejo que Lhas posso pedir muitas vezes e com grande importunação; embora eu não traga este cuidado, parece que mas fazem ter presentes diante de mim.

6.  É grande a diferença entre estas duas maneiras de pedir. Não sei como o declarar; porque umas coisas, embora peça (pois não deixo de esforçar-me no suplicá-las ao Senhor, ainda que não sinta em mim aquele fervor como em outras, e por muito que me digam respeito), é como quem tem travada a língua que, embora queira falar, não pode e, mesmo que fale, é de modo que vê que não o entendem; ou como quem fala claro e desembaraçadamente a quem vê que de boa vontade o está ouvindo O primeiro, digamos agora, pede-se como em oração vocal; e o outro em contemplação tão subida, que o Senhor se representa de maneira que se entende que Ele nos entende, e que Sua Majestade Se alegra de que Lho peçamos e de nos fazer mercê.

Seja bendito para sempre, que tanto dá e tão pouco Lhe dou eu. Porque, que faz, Senhor meu, quem de todo se não desfaz por Vós? E quanto, quanto, quanto — e outras mil vezes o posso dizer —, me falta para isto! Por isso não havia de querer viver, ainda que haja outras causas, porque não vivo conforme ao que Vos devo. Com quantas imperfeições me vejo! Com que frouxidão em servir-Vos! É certo que, algumas vezes, me parece quereria estar sem sentir, para não entender tanto mal de mim. Ele, que pode, que o remedeie!

7.  Estando eu em casa daquela Senhora que já disse, tinha necessidade de andar com cuidado a considerar sempre a vaidade que trazem consigo todas as coisas da vida, porque era muito estimada e muito louvada e ofereciam-se-me assim muitas coisas a que bem me poderia apegar, se olhasse a mim mesma; mas olhava Aquele que possui a verdadeira visão de tudo, a fim de não me deixar de Sua mão...

8.  Agora que falo de "verdadeira visão", lembro-me dos grandes trabalhos que passam (as pessoas a quem Deus tem dado a conhecer o que é a verdade), em tratar nestas coisas da terra, onde ela tanto se encobre, como o Senhor me disse uma vez. Que muitas coisas das que escrevo aqui não são de minha cabeça, senão que mas dizia este meu Mestre celestial. E assim, nas coisas em que digo assinaladamente: «isto entendi», ou «isto me disse o Senhor», faz-me grande escrúpulo pôr ou tirar uma só sílaba que seja. Quando de tudo não me recordo bem exactamente, vai como coisa dita por mim, ou porque também algumas o serão. Não chamo meu ao que é bom, pois já sei não há coisa em mim que o seja, senão o que, tão sem eu o merecer, metem dado o Senhor; assim chamo «dito por mim», o que não me foi dado a entender em revelação.

9.  Mas, ai, Deus meu! e como até nas coisas espirituais queremos muitas vezes julgar as coisas pelo nosso parecer e muito torcidas da verdade, tal como nas do mundo! E julgamos que havemos de medir o nosso aproveitamento pelos anos que temos de algum exercício de oração e até parece que queremos pôr limite Aquele que, sem medida alguma, dá os Seus dons quando quer, e pode dar em meio ano mais a uma alma do que a outra em muitos! E isto é coisa tão vista por mim em muitas pessoas, que eu me espanto como nos podemos deter nisto.

10. Creio bem que não cairá neste engano quem tiver talento de conhecer espíritos e lhe tenha dado o Senhor humildade verdadeira. Este julga pelos efeitos e determinação e amor, e dá-lhe o Senhor luz para que isto conheça. E nisto olha ao adiantamento e aproveitamento das almas, e não aos anos, pois, em meio ano, pode: um ter alcançado mais de que outro em vinte; porque, como digo, dá o Senhor a quem quer e ainda a quem melhor se dispõe. Porque vejo agora vir para esta casa umas donzelas que são de pouca idade e, em tocando-as Deus e dando-lhes um pouco de luz e amor — digo naquele pouco de tempo em que lhes fez algum regalo — não O fizeram esperar, nada se lhes pôs diante, pois, sem se lembrarem do comer, se encerram para sempre em casa sem renda, como quem não estima a vida senão por Aquele que sabem que lhes tem amor. Deixando tudo, não querem ter vontade, nem se lembram do que se podem desgostar em tanto encerramento e austeridade. Todas juntas se oferecem a Deus em sacrifício.

11. Quão de boa vontade lhes dou eu aqui a vantagem e devia andar envergonhada diante de Deus! Porque o que Sua Majestade não acabou de conseguir de mim em tanta multidão de anos como os que há desde que comecei a ter oração e Ele a fazer-me mercês, consegue delas em três meses — e até com alguma em três dias —, com fazer-lhes muitas: menos de que a mim, embora bem lhes pague Sua Majestade. Bem certo é, porém, que não estão descontentes pelo que têm feito por Ele.

12. Para isto quereria eu que nos recordássemos dos muitos anos, os que os temos de profissão e as pessoas que os têm de oração, e não para afligir aos que, em pouco tempo, vão mais adiante, fazendo-os voltar atrás, para que andem a nosso passo; e, aos que voam como águias, com as mercês que Deus lhes faz, queremo-los fazer andar como frango, travado, mas ponhamos os olhos em Sua Majestade, e se os virmos com humildade, é largar-lhes as rédeas, que o Senhor, que lhes faz tantas mercês, não deixará que se despenhem. Eles entregam-se confiadamente a Deus, pois para isto lhes aproveitam as verdades que conhecem da fé; e não os havemos nós de fiar a Ele, senão que os queremos medir pela nossa medida, conforme aos nossos baixos ânimos? Não assim; mas, se não alcançamos seus grandes efeitos e determinações, que sem experiência mal se podem entender, humilhemo-nos e não os condenemos; porque, parecendo que olhamos ao seu proveito, o tiramos a nós mesmos e perdemos esta ocasião que o Senhor nos proporciona para nos humilharmos e vermos o que nos falta. Quanto mais desapegadas e unidas a Deus devem estar essas almas do que as nossas, pois Sua Majestade tanto se chega a elas!

13. Não entendo outra coisa nem quereria entender, senão que oração de pouco tempo que produz efeitos muito grandes que logo se percebem (pois é impossível deixar tudo só para contentar a Deus, sem grande força de amor), mais a quisera eu do que a de muitos anos, em que a alma nunca acabou por se determinar mais no último dia do que no primeiro, a fazer por Deus coisa que não seja nada, a menos que umas coisitas miúdas como sal, que não têm peso nem tomo — que parece um pássaro as levará no bico — as tenhamos por grande efeito e mortificação; é que fazemos caso de certas coisas que fazemos pelo Senhor, que é lástima nos apercebamos delas, ainda que se fizessem muitas.

Eu sou assim e a cada passo esquecerei as mercês. Não digo eu que Sua Majestade não as terá em muito, porque é bom; mas quisera eu não fazer caso delas, nem ver que as faço, porquanto não são nada. Mas perdoai-me, Senhor meu, e não me culpeis, pois com alguma coisa me hei-de consolar, visto que em nada Vos sirvo. Se em coisas grandes Vos servira, não faria caso das ninharias. Bem-aventuradas as pessoas que Vos servem com obras grandes! Se, o ter-lhes eu inveja e desejar imitá-las se me leva em conta, não ficarei muito atrás em contentar-Vos; mas não valho nada, Senhor meu. Ponde Vós em mim o valor, pois tanto me amais.

14. Tendo chegado um destes dias um Breve de Roma, a fim de que este mosteiro não possa possuir renda, acabou-se de todo a fundação que, me parece, custou algum trabalho. E aconteceu-me que, estando eu consolada de o ver assim concluído e pensando nos trabalhos que tinha tido e louvando o Senhor, que de algum modo se havia querido servir de mim, comecei a pensar em tudo quanto tinha passado. Assim, em cada uma das coisas em que parecia eu ter feito algo, achava muitas faltas e imperfeições e, às vezes, pouco ânimo e muito pouca fé. É que até agora, eu nunca acabava de crer determinadamente que se havia de cumprir tudo quanto o Senhor me disse que se faria desta casa; mas tão pouco o podia duvidar. Não sei como era isto. Por um lado, me parecia muitas vezes impossível e, por outro, não podia duvidar, digo, crer que não se havia de fazer. Enfim, achei que era o Senhor que, de Sua parte, tinha feito o bem, e o mal que era da minha. E assim deixei de pensar nisso, e quisera não se me recordasse, para não tropeçar com tantas faltas minhas. Bendito seja Ele que de todas tira o bem quando é servido. Amen.

15. Digo pois que é perigoso ir contando os anos que se têm tido de oração, porque, embora haja humildade, penso que pode ficar um não sei quê de parecer que se merece alguma coisa pelos serviços feitos. Eu não digo que não o merecem, e ser-lhes-á bem pago; mas qualquer pessoa espiritual a quem parecer que, pelos muitos anos de oração, merece estes regalos de espírito, eu tenho por certo que não subirá ao cume dele. Não é já muito que haja merecido que a tenha Deus de Sua mão para não O ofender como fazia antes de ter oração, senão que Lhe ponha pleito pelos seus dinheiros, como dizem? Não me parece isto profunda humildade. Bem pode ser que seja; mas eu tenho-o por atrevimento, pois, apesar de ter pouca humildade, não me parece ter-me jamais atrevido a isto. Bem pode ser que, como nunca O servi, nunca o tenha pedido; que porventura, se O tivesse servido, quisera mais de que todos que o Senhor mo pagasse.

16. Não digo que a alma não vá crescendo e que Deus não lhe dará a paga se a sua oração tem sido humilde; mas que se olvidem estes anos, pois tudo quanto podemos fazer é asco, em comparação de uma gota de sangue que o Senhor por nós derramou. E se servindo-O mais, ficamos mais devedores, que é isto que pedimos, pois se pagamos um maravedi da dívida, nos tornam a dar mil ducados? Por amor de Deus, deixemos estes juizos, que são Seus. Estas comparações sempre são más, ainda mesmo em coisas de cá de baixo. Que será pois no que só Deus sabe, e isto mostrou-o bem Sua Majestade quando pagou tanto aos últimos como aos primeiros?

17. Escrevi estas três folhas por tantas vezes e em tantos dias — porque tive e tenho, como disse, pouco vagar — que me ia esquecendo do que comecei a dizer. Era esta visão.

Vi-me, estando em oração, sozinha num grande campo, e em redor de mim muita gente de modos diversos que me cercava. Todos, me parece, tinham armas nas mãos para me agredir: uns, lanças; outros, espadas; outros, adagas e outros, estoques muito compridos; enfim, eu não podia sair por nenhum lado sem me pôr em perigo de morte, e só, sem ninguém que se achasse do meu lado. Estando meu espírito nesta aflição, que não sabia que fazer de mim, levantei os olhos ao Céu e vi Cristo, não no Céu, mas bem por cima de mim, no ar, e me estendia a mão e de ali mesmo me favorecia, de maneira que eu não temia toda aquela outra gente; nem eles, embora quisessem, me podiam fazer dano.

18. Parece sem fruto esta visão, e tem-me feito grandíssimo proveito, porque deu-se-me a entender o que significava. Pouco depois, vi-me quase metida naquela bateria e conheci ser aquela visão uma imagem do mundo, onde, tudo quanto nele há, parece que tem armas para ofender a triste alma. Deixemos os que não servem muito ao Senhor, e as honras e fazendas e deleites e outras coisas semelhantes, que, claro está, enredam ou, pelo menos, procuram enredar a alma quando ela se não precata; mas falo de amigos, parentes e, o que mais me espanta, de pessoas muito boas. De todos estes me vi depois tão atormentada, pensando eles que faziam bem, que eu nem sabia como defender-me, nem que fazer.

19. Oh! Valha-me Deus! Se dissesse as maneiras e diferenças de trabalhos que neste tempo tive, ainda depois do que atrás fica dito, como seria bom aviso para de todo a tudo aborrecer!

Foi, julgo eu, a maior perseguição de quantas tenho passado! Digo que me vi por vezes tão perseguida de todas ás partes, que só encontrava remédio em erguer os olhos ao Céu e chamar por Deus. Recordava-me bem do que tinha visto nesta visão. Serviu-me isto grandemente para não confiar muito em ninguém, porque não há quem seja estável senão Deus. Sempre, nestes grandes trabalhos, tal como se me mostrara nesta visão, me enviava o Senhor uma pessoa da Sua parte, que me desse a mão, sem outro intento senão o de agradar ao Senhor. E assim tem sido para me ajudar a sustentar este pouquito de virtude que eu tinha em desejar servir-Vos. Sede bendito para sempre!

20. Estava uma vez muito inquieta e alvorotada, sem me poder recolher, numa batalha e contenda e fugindo-me o pensamento para coisas que não eram perfeitas; até me parece que não estava com o desapego que costumo ter. Ao ver-me assim tão ruim, tive medo que as mercês que o Senhor me tinha feito fossem ilusões. Enfim, numa grande escuridão de alma. Estando eu com esta pena, começou-me a falar o Senhor, e disse-me que não me afligisse; em ver-me assim, compreenderia a miséria que eu seria, se Ele se apartasse de mim e que não há segurança enquanto vivemos nesta carne. Deu-se-me a entender quão bem empregada é esta guerra e contenda em vista de tal prémio, e pareceu-me que o Senhor tinha lástima dos que vivemos no mundo. Que não pensasse eu que Ele me trazia esquecida; jamais, me deixaria, mas que era preciso fazer eu o que estivesse na minha mão. Isto me disse o Senhor com uma compaixão e ternura, e com outras palavras em que me fez grande mercê, que não há para que dizê-las.

21. Sua Majestade tem-me dito muitas vezes estas palavras, mostrando-me grande amor: Já és minha e Eu sou teu.

As que eu sempre Lhe costumo dizer, e segundo me parece as digo com verdade, são estas: Que se me dá a mim, Senhor, de mim, senão de Vós? São para mim estas palavras e regalos de tão grandíssima confusão quando me lembro a que sou, que, como creio já ter dito outras vezes e agora o digo algumas a meu confessor, é preciso mais ânimo, me parece, para receber estas mercês, do que para passar grandíssimos trabalhos. Quando isto se dá, estou quase esquecida das minhas obras, mas é um representar-se-me que sou ruim, sem discurso do entendimento, que também por vezes me parece sobrenatural.

22. Vêm-me algumas vezes umas ânsias tão grandes de comungar, que não sei se se poderiam encarecer. Aconteceu-me uma manhã que chovia tanto, que parecia não estar o tempo de modo a se poder sair de casa. Estando eu fora dela, já estava tão fora de mim com aquele desejo, que, ainda que me pusessem lanças ao peito, me parece romperia por entre elas, quanto mais por água. Quando cheguei à Igreja, deu-me um grande arroubamento. Pareceu-me que vi abrirem-se os céus, e não apenas uma entrada como de outras vezes tenho visto. Representou-se-me o trono que tenho visto outras vezes, como já disse a V. Mercê e outro acima dele, no qual, por um conhecimento que não sei dizer, entendi estar ali a Divindade, embora nada visse. Parecia-me o sustentavam uns animais; creio ter já ouvido a significação destes animais. Pensei se seriam os Evangelistas. Mas, como era o trono e quem estava nele, isto não vi, senão uma muito grande multidão de anjos. Pareceram-me, sem comparação, de muito maior formosura que os que tenho visto no Céu. Tenho pensado se serão serafins ou querubins, porque são muito diferentes na glória. Pareciam estar inflamados. É grande a diferença entre eles, como tenho dito. A glória que então em mim senti não se pode descrever nem ainda dizer, nem a poderá imaginar quem não houver passado por isto.

Entendi estar ali, por junto, tudo quanto se pode desejar, e não vi nada. Disseram-me, e não sei quem, que o que eu ali podia fazer era entender que não podia entender nada, é ver o nada que era tudo em comparação daquilo. E assim, a minha alma envergonhava-se depois só de pensar que se poderia deter em alguma coisa criada, quanto mais de se afeiçoar a clã, porque tudo me parecia um formigueiro.

23. Comunguei e estive na missa, que não sei como pude estar. Pareceu-me ter decorrido apenas uns breves instantes. Espantei-me quando o relógio deu horas e vi que eram duas as que eu tinha passado naquele arroubamento e glória. Espantava-me depois, como, em vindo este fogo de verdadeiro amor de Deus, que dir-se-ia vir do alto — pois por mais que eu queira e procure e me desfaça por ele, a não ser quando Sua Majestade o quer dar, como de outras vezes já tenho dito, nada sou nem posso para conseguir sequer uma centelha —, parece que consome o homem velho nas suas faltas, tibiezas e miséria. E, à maneira do que sucede à ave fénix, que — segundo tenho lido —, depois que se queima renasce das próprias cinzas, assim a alma fica depois outra, com desejos diferentes e grande fortaleza. Não parece ser a mesma de antes; mas começa, com pureza nova, o caminho do Senhor.

Suplicando eu a Sua Majestade que assim fosse e de novo começasse eu a servi-Lo, disse-me: Boa comparação fizeste; olha a que te não esqueça para procurares ir sempre melhorando.

24. Estando uma vez com a mesma dúvida de que há pouco falei, se estas visões eram de. Deus, apareceu-me o Senhor e me disse com rigor: Oh! filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Que examinasse bem em mim uma coisa: se eu, de todo me tinha entregado a Ele ou não; se assim tinha feito e de todo era Sua, acreditasse que Ele não me deixaria perder.

Eu afligi-me muito com aquela exclamação. Com grande ternura e carinho tornou-me a dizer que não me afligisse, pois já sabia que eu, por mim, não deixaria de me entregar a tudo quanto fosse em serviço Seu; que se havia de fazer tudo o que eu queria (e assim foi que se fez o que então Lhe suplicava); visse o amor que, de dia para dia, se ia aumentando em, mim para O amar, que nisto conheceria não ser obra do demónio. Nem pensasse que Ele consentia que o demónio tivesse tanta entrada nas almas de Seus servos e pudesse dar a claridade de entendimento e quietude que tu tens. E deu-me ainda a entender que, tendo-me dito tantas e tais pessoas, que era Deus, que faria mal em não o acreditar.

25. Estando uma vez rezando o salmo «Quicumque vult», deu-se-me a entender a maneira pela qual Deus é um só em três Pessoas tão claramente,. que eu me espantei e consolei-me muito. Fez-me grandíssimo proveito para conhecer mais a grandeza de Deus e as Suas maravilhas e, quando penso ou oiço tratar da Santíssima Trindade, parece-me que entendo como pode, ser, e é para mim de muito contentamento.

26. Em dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me esta mercê: num arroubamento representou-se-me a Sua subida ao Céu e a alegria e solenidade com que foi recebida e o lugar onde está. Dizer como foi isto, eu não saberia. Foi grandíssimo o deleite que o meu espírito teve de ver tanta glória. Causou isto em mim grandes efeitos e tirei de proveito ficar com mais e maiores desejos de passar grandes trabalhos e de servir a esta Senhora, pois tanto mereceu.

27. Estando num colégio da Companhia de Jesus, e estando a comungar os irmãos daquela casa, vi um pálio muito rico sobre suas cabeças; isto vi por duas vezes. Quando outras pessoas comungavam não o via.