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O AMOR DE DEUS E
DO PRÓXIMO
A terceira
controvérsia de Mt 22 em Jerusalém,
que se sucedeu à disputa com os saduceus acerca da ressurreição (22,23-33),
coloca Jesus perante um doutor da Lei (w. 34-35). A pergunta
versa sobre o maior mandamento da Lei (v.
36). Na resposta Jesus cita e une dois preceitos (w. 37-39), que se
encontram em dois livros separados do Antigo Testamento (o amor de Deus e o amor
do próximo, cf. Dt 6,6 e Lv
19,18), e completa a resposta com o comentário: «Nestes dois mandamentos se
resumem toda a Lei e os Profetas.» (v. 40) Mateus estabelece uma simetria
perfeita entre este ensinamento de Jesus e a enunciação da «regra de ouro» no
Sermão da Montanha: «Tudo o que desejais que os outros vos façam, fazei-o também
a eles. Pois nisso consistem a Lei e os Profetas.»
(Mt
7,12) A simetria demonstra a importância que o evangelista atribui ao
ensinamento de Jesus acerca do amor.
Um enviado dos
fariseus, um doutor da Lei, interroga Jesus «para O experimentar» (v. 35). A
prova a que o Mestre é submetido é dupla. Em primeiro lugar, a pergunta diz
respeito à interpretação da Lei de Moisés, tarefa difícil, que requer prudência
e sabedoria, tanto mais consumadas quanto mais se tinha erguido ao redor da Lei
uma «sebe» de regras minuciosas, para impedir a menor violação dela. Em segundo
lugar, a pergunta tem um motivo específico.
O que está em jogo é o confronto directo entre Jesus e os fariseus. Desde
o princípio o Mestre ensinou e pediu que se praticasse uma «justiça» superior à
dos escribas e dos fariseus (Mt
5,20), A prova a que os fariseus O submetem pretende, por isso, demonstrar que
não é o ensinamento d'Ele, mas sim o deles, que é superior, e assim terem uma
desforra que possam desfrutar contra Ele. É por isso que enviam um perito, um
doutor da Lei.
Para responder, Jesus
não Se baseia em doutrinas de escola nem em decisões de mestres acreditados. Com
autoridade soberana, Ele vai buscar ao
Antigo Testamento as palavras decisivas e renova-as no Seu carisma de
verdade. Ele, que «não veio abolir a Lei e os
Profetas», mas dar-lhes pleno cumprimento (cf.
Mt 5,17), dá uma resposta em
dois momentos separados por uma suspensão cheia de significado. Para satisfazer
a pergunta do doutor da Lei não bastaria enunciar a exigência de «amar a Deus».
O próprio Jesus o reconhece: «Este é o maior e o primeiro mandamento.»
(v. 38) Mas o Filho sabe que a vontade de Deus não foi
ainda completamente revelada. Ele conhece também um outro amor que os fariseus –
e com eles quantos mais? – se arriscam a menosprezar. Quando tudo parece ter
sido dito, faz uma breve pausa, e depois acrescenta: «O segundo, porém, é
semelhante a este: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo."» (v. 39) O amor de
Deus e o amor do próximo tornaram-se inseparáveis, e para sempre. Um não pode
aparecer nem crescer sem que a seu lado surja e cresça também o outro.
O amor do próximo, no
espírito e na letra de Lv 19,18, devia exprimir-se até "querer bem ao irmão na
fé como se ama a própria vida" Nos lábios de Jesus, quem ama deverá perdoar ao
irmão «até setenta vezes sete» (Mt
18,22), amar «o perseguidor» e o
«inimigo» (cf. Mt
5,43-44). Assim os discípulos serão
«filhos do Pai celeste» e «perfeitos
como Ele é perfeito» (cf. Mt
5,45-48).
O amor de Deus e o
amor do próximo não se colocam «ao lado» de outras normas nem dos oráculos,
antes formam a sua base: são a linfa vital que alimenta a Lei os Profetas e
impedem que se transformem em letra que mata (cf.
2Cor 3,6;
Rm 5,5).
O fio condutor deste domingo
é o amor do próximo. A página
do «código da aliança»
(primeira leitura) dirige o amor do
próximo para os excluídos do
banquete da vida. A actualidade
das directrizes de Ex 22,22-26 é tanto mais clara e vinculadora
para nós cristãos, quanto maior cuidado tivermos em as
compreender, à luz do
Evangelho, no actual quadro histórico.
A assembleia é chamada a amar o
próximo, a começar pela
multidão dos pobres, que já no tempo de Israel atingia números
elevados, e hoje muito mais ainda. Além disso, a tríade bíblica
as personae miserae («estrangeiros», «órfãos», «viúvas»)
retrata um modelo que hoje nos
pede que identifiquemos não
somente as novas expressões de
diversidade étnica, cultural e
religiosa, mas também as
manifestações inéditas da orfandade
e da viuvez. As dificuldades de diálogo entre as gerações,
a interrupção da
corrente narrativa que transmite aos jovens o
melhor das memórias, das tradições e das experiências de
adultos e anciãos, geram novos órfãos que
procuram noutro lado paternidade, maternidade e histórias substitutivas.
Os próprios adultos acusam os sintomas da
viuvez: existem «viúvos» e «viúvas»
que vão perdendo a metade de si mesmos.
Mas despontam sinais de esperança:
iniciativas contra a usura; bancos
que oferecem empréstimos com juros razoáveis; oásis de solidariedade.
O mandamento do amor do próximo
de Lv 19,18, que Jesus
propõe no Evangelho de hoje, não foi concebido numa época
de bem-estar nem de eficiência das
instituições: no povo de Israel, regressado do exílio, faltavam, porque já
extintas ou destruídas, a
dinastia, o Templo, e quase todas as estruturas ao serviço do bem comum. O
projecto de uma comunidade
nova volta a partir dos antigos
valores da amizade e do amor
na Aliança, que já outrora tinham
misturado tribos diversas
num só povo de irmãos. O percurso de reconstrução colocou ao lado das primeiras
pedras dos edifícios o elo invisível das
relações intersubjectivas. A
segunda leitura confirma que esta
foi uma opção frutuosa para a
comunicação da fé, especialmente
nos tempos de desalinhamento e de fragmentação dos
pertences. A evangelização incide
e continua na História através
de uma cadeia viva de encontros, capazes de comunicar a
experiência do encontro com Deus
em Jesus Cristo. A Igreja
de Tessalónica é o modelo, em certa medida original, no qual
cada geração cristã pode inspirar-se.
O amor de Deus requer
o ser humano por inteiro. Nasce do «coração», centro da pessoa, das ideias e das
decisões, e infunde-se na «alma», fonte dos afectos, dos sentimentos
e das emoções; finalmente, Jesus pede que
amemos a Deus «com toda a nossa mente
[diánoia]». O amor de Deus conquista
a inteligência, habita com suavidade a mente, dilata os
pensamentos, evita os fanatismos e os
entusiasmos passageiros, torna familiar aquele que ama com os pensamentos e os
caminhos do Senhor. Amar a Deus com toda a mente é ter
uma ideia cada vez maior de um Deus cada vez
maior.
«Eu Te louvo, Pai, Senhor do Céu e
da Terra, porque revelaste
aos pequeninos os mistérios do reino dos céus.» Quem se
arroga pretensões de superioridade de doutrina e de disciplina moral não
compreende a revelação do duplo amor, porque
o Pai «escondeu estas coisas aos sábios e inteligentes
e as revelou aos pequeninos»
(Mt 11,25). Os «pequeninos»
compreendem-na e acolhem-na, porque essa
revelação pertence ao mistério do Reino de Deus, e os pequeninos são os
humildes e os simples que sabem como aceitar
os dons do Pai. Pequeninos são também os que conseguem sentir a necessidade de
Deus.
De entre as palavras de Jesus sobre
o amor, recolhidas pelo
evangelista Mateus, uma admoesta a Igreja de todos os tempos:
«Vão surgir muitos falsos
profetas que enganarão muita gente. A maldade
espalhar-se-á tanto que o amor de muitos se
esfriará. Mas, quem perseverar até ao fim, será salvo.»
(Mt
24,11-13) Um amor que esfria está perdido. A
predição de Jesus é também um acto de misericórdia e uma lição de
sabedoria, porque não permite ao amor uma caminhada incontestada e triunfal nesta terra. O Evangelho do amor nem sempre
encontrará os discípulos numa situação de sereno
gozo de Deus e do próximo. Pelo contrário, o seu amor deverá
enfrentar sempre novos dilúvios de injustiça
e de indiferença, restabelecer e sarar espaços destruídos pelo ódio,
construir baluartes contra a «ira futura» (lTs 1,10).
Padre José Granja, |