SITE DOS AMIGOS DA ALEXANDRINA - SITE DES AMIS D'ALEXANDRINA - ALEXANDRINA'S FRIENDS SITE

     

Beata Alexandrina
e a contemplação da natureza

I

A Beata Alexandrina mostra-nos como aprender com a natureza a louvar Deus. A Bíblia, de facto, afirma, recorrentemente, que todas as criaturas louvam o Criador; um exemplo dos Salmos, é suficiente para ilustrarmos este aspecto:

Louvai ao Senhor desde a terra, vós, baleias e todos os abismos, fogo e saraiva, neve e vapores e vento tempestuoso que executa a sua palavra; montes e todos os outeiros, árvores frutíferas e todos os cedros; as feras e todos os gados, répteis e aves voadoras. (Salmo 148, 7-10)

Beata Alexandrina
ícone de Domenica Ghidotti

O que quer o salmista dizer, quando estimula todos os seres da natureza a dar louvor a Deus? Baleias, fogo, neve, cedros, répteis ou saraiva... qual o louvor que estes seres ou elementos da natureza podem dar? De resto, o que os une na sua tão grande diversidade? O que há de comum entre o fogo e um réptil? Aquilo que têm em comum é o seu estado criatural, a sua condição de existenciados, isto é, de seres que foram criados ou trazidos à existência. Todas as criaturas saíram das mãos de Deus, que nelas colocou, ao criá-las, a Sua sabedoria e a Sua vontade. Como todas as criaturas foram ‘ideadas’ pelo Criador, há nelas uma dignidade, uma beleza, uma sabedoria inerentes que são, necessariamente, um reflexo dos atributos divinos. Assim, quando as criaturas agem de acordo com a lei natural, esse agir é em si mesmo uma forma de louvor e é por isso que estas criaturas, não louvando o Criador de forma consciente, louvam-n’O na sua acção, no seu ser, no seu agir espontâneo, pois este é uma manifestação dos atributos com que Deus os criou.

Assim, a ave louva o Criador em toda a sua acção: no seu voo, no seu repousar, no seu cansaço, na sua fuga, na sua demanda por comida, e não apenas no seu canto, como tantas vezes nos lembram os poetas. O rio louva o seu Criador, de forma real, com o seu correr; o murmúrio da fonte é um hino de louvor sem palavras, a nuvem que passa em constante metamorfose é um hino de louvor da efemeridade, bem como a imutabilidade do céu azul, em sua profundidade, é um hino silente à eternidade do Criador. E ainda o falcão no momento em que caça ou a presa quando foge ou é caçada. Tudo isto são formas de louvor e hinos ao Criador. A presa, quando foge não mostra, afinal, o seu amor à vida no instinto mesmo de fugir? E assim também o falcão caçador, para poder alimentar-se a si ou às suas crias? E para além das suas acções, temos também a sua beleza como uma expressão da beleza do próprio Criador, como a dignidade majestática do falcão ou a doçura terna da rola. E a sabedoria do funcionamento deslumbrante do organismo de cada ser, com milhões de operações a decorrer em simultâneo, sem que ele tenha consciência disso, não exprime também a sabedoria que Deus pôs ao criar?

Ora, o homem partilha com todas as criaturas esta forma de louvor, através da vida inerente ao seu organismo. Mas depois, tem a obrigação, pela sua parte espiritual, de dar louvor a Deus de forma completamente consciente, como os anjos. Podemos dizer que, de certa forma, o processo de santificação a que todos somos chamados, é este aprender a louvar ininterruptamente o nosso Criador, de forma deliberada e consciente; como diz S. Paulo: “orai sem cessar; em todas as circunstâncias dai graças, porque esta é a vontade de Deus a vosso respeito” (1Ts 5, 17-18).

Mas o homem é inconstante, porque dotado de liberdade. Esta diferença crucial, em relação a todos os outros seres, naturais ou angélicos, leva-nos a perguntar se não poderemos nós socorrer-nos dessas criaturas que, de certa forma, não apenas louvam, mas são elas mesmas uma forma de louvor ininterrupto? Para este fim, como ponto de partida, o mundo visível da natureza é-nos muito mais imediato ou acessível do que o mundo invisível dos anjos – afinal, quem pode ouvir o louvor ininterrupto dos anjos junto ao trono da Glória? Mas todos podemos ouvir o canto do pássaro ou ver o hino glorioso de um nascer do sol? E é aqui que a Beata Alexandrina nos pode ensinar, pois desde criança, com uma intuição espantosa, ela sabia ver o louvor de todas as criaturas. Esta capacidade, extremamente precoce, diríamos, se não soubéssemos que foi escolhida desde a eternidade, permite-lhe socorrer-se da natureza de três formas distintas: (a) a natureza como reflexo do Criador, (b) como livro e (c) como “intercessora”.

II

Antes de olharmos para estes três aspectos, vamos acompanhar a atmosfera em que vivia a Beata Alexandrina na sua infância; aí encontraremos já aqueles três elementos.

Acompanhemo-la, pois, aos quatro anos de idade, nessa precocidade típica de tantos santos, e sigamos as suas palavras que nos revelam em acção o desejo do Céu que, certamente, lhe infundira o Senhor no coração:

“Pelos quatro anos de idade punha-me a contemplar o céu (abobada celeste) e perguntava aos meus se poderia chegar-lhe se pudesse colocar umas sobre as outras todas as árvores, casas, linhas dos carrinhos, cordas, etc., etc. Como me dissessem que nem assim chegaria, ficava descontente e saudosa, porque não sei o que me atraía para lá.”[1]

Vemos, assim, como o desejo procura os meios para se realizar e, na mente de uma criança, procura-o na sua literalidade ou imediatez. Mas o que exercia aquela atracção a que se refere a Beata Alexandrina, logo aos quatro anos de idade, era já o Céu e esse seria o motor de toda a sua vida: o Céu para si mesma, o Céu – e não abobada celeste – para onde queria conduzir os outros e pelos quais ofereceu a sua vida, o seu sofrimento.

Agora, aos nove anos, ouçamos como se embebia no mistério da criação, sentindo e abismando-se no poder de Deus:

“Pelos nove anos, quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e quando me encontrava sozinha, punha -me a contemplar a natureza: o romper da aurora, o nascer do sol, o gorjeio das avezinhas, o murmúrio das águas entravam em mim numa contemplação profunda, que quase me esquecia de que vivia no mundo. Chegava a deter os meus passos e ficava embebida neste pensamento: O poder de Deus! E, quando me encontrava à beira-mar, oh! como me perdia diante daquela grandeza infinita! À noite, ao contemplar o céu e as estrelas, parecia esconder-me mais ainda para admirar as belezas do Criador! Quantas vezes no meu jardinzinho, onde hoje é o meu quarto, fitava o céu, escutando o murmúrio  das águas, e ia contemplando cada vez mais este abismo das grandezas divinas! Tenho pena de não saber aproveitar tudo para começar nesta idade as minhas meditações.”[2]

Estas duas citações dão-nos suficientemente a precocidade, a sensibilidade e a grandiosidade da alma da Beata Alexandrina e permitem-nos agora avançar um pouco nos modos pelos quais se dava em si a contemplação da natureza. Vimos como tomava conta dela o mysterium tremendum, o sagrado que emerge da natureza, porque sendo criação, nela ressoa o poder do Criador: o poder de Deus!, exclamava a menina abismada na maravilha do romper da aurora ou do canto das aves. Por elas, pressentia a grandeza e a beleza de Deus. Depois, a sua alma pressentia a sua própria infinitude ou eternidade ao contemplar o mar, que em Portugal é oceano. E conclui dizendo, de modo tão belo como impressivo: “e ia contemplando cada vez mais este abismo das grandezas divinas!” O abismo das grandezas divinas... onde foi, quase iletrada, beber tal expressão poética? É que ela bem conhecia o alfabeto do livro da criação e o seu olhar, podemos dizer, via que “o céu e a terra proclamam a Vossa glória”, como se diz no Sanctus.

III

Vamos, então, olhar brevemente para os três traços da contemplação da natureza segundo a Beata Alexandrina. Leiamos este episódio digno de constar nas florzinhas de S. Francisco:

“de repente poisaram-se em frente da janela duas avezinhas muito belas. Pus-me a contemplá-las; vi que voavam nos ares um bando delas. Encostei-me à janela e chamei-as:

(c) ‘Vinde, vinde, minhas irmãs em Cristo, louvai ao nosso Autor e Criador, louvai -O também por mim. (a) Como não há-de Ele ser belo para vos criar assim tão belas! (b) Vinde, vinde para eu aprender em vós a meditar no poder e na grandeza de meu Senhor!’

Todas as avezinhas que iam no ar se poisavam à minha frente, abriam as azinhas com faixas de prata; levantavam-se aqui poisavam ali e não saíam da minha frente. Que linda festa, tantas azinhas a bater no ar! Meditava na grandeza da minha alma, quanto devia a Jesus por me ter criado. Com as avezinhas esqueci a dor que antes me fazia sofrer. Depois disto queria-lhes dar de comer, mas elas já não me viam. Que pena eu tinha! Mas com a lembrança que Jesus não as deixaria morrer de fome nem de frio foi isto um conforto para a minha alma. Fiquei mais forte com esta pequenina meditação.”[3]

Este trecho, tão belo e significativo, condensa em si os três aspectos referidos:

(a) Como não há-de Ele ser belo para vos criar assim tão belas!

O primeiro aspecto que vemos é a ideia de que a natureza, sendo criada por Deus, necessariamente revela, como vimos, traços do seu Criador e, assim, é em si mesma um dos modos pelos quais podemos conhecer Deus. Contemplando e meditando na natureza, vendo nela as pegadas de Deus, segundo a típica expressão de S. Boaventura, a Beata diz noutra ocasião: “Olhava o céu cheia de saudade e dizia: ‘Oh, como é belo Aquele que te criou!’ O céu dava-me que meditar continuamente; teria sido suficiente como oração, mesmo se não tivesse sabido outra oração.”[4]

Estes estados contemplativos adensam-se e como que vão enraizando, gradualmente, na sua alma, sendo-lhe dado vivenciar a humildade da criatura face à infinitude abissal do Criador: “Quanto mais admiro as belezas do Criador tanto mais pequena me sinto aos Seus olhos divinos.”[5]

Algumas vezes, como que vendo à transparência os atributos do Criador, através da Sua criação, era levada à oração e à adoração: “Meditei nas belezas do céu e caí de joelhos a adorar o seu Autor. / Adorei-O no céu, adorei-O na terra, na santíssima Eucaristia e dizia: / ‘Ó Jesus, criastes-me para Vós e tudo criastes para mim! Obrigada, meu Jesus! Não me basta a eternidade inteira para agradecer-Vos’.”[6]

(b) Vinde, vinde para eu aprender em vós a meditar no poder e na grandeza de meu Senhor!

Somos levados agora ao segundo aspecto, que não é senão uma expressão aprofundada do primeiro, e que é o de ver na natureza um mestre com que se pode aprender; naturalmente, a razão por que as criaturas da natureza nos podem ensinar é o facto de serem elas mesmas, como já vimos, um reflexo do Criador e, particularmente, da Sua sabedoria: “As avezinhas servem para um ponto de meditação. Vejo-as ao frio e à chuva. Umas vezes ensinam-me a tudo sofrer em silêncio, outras vezes aprendo delas a sorrir e a cantar por tudo quanto Jesus me dá, por tudo quanto é dor... Ai, quanto tenho que aprender! Oh, como eu queria amar Nosso Senhor!”[7]

Temos de pensar que a Beata não faz literatura, isto não são figuras de estilo, mas realidades profundas que experimenta na sua alma.

(c) Vinde, vinde, minhas irmãs em Cristo, louvai ao nosso Autor e Criador, louvai-O também por mim.

Entramos agora no último, e mais original, aspecto da sua relação com a natureza. Com a Beata Alexandrina, a natureza não aparece, como noutros casos, apenas como um elemento que revela pela beleza, pela majestade, pela grandiosidade, os atributos do Criador. Nela, a natureza também não aparece apenas como um exemplo, um mestre com quem se pode aprender o caminho espiritual; aparece ainda com uma surpreendente função de “intercessora”!

Na sua contemplação, a Beata é levada a ver o ininterrupto e, de certa forma, perfeito louvor das criaturas – dentro das possibilidades inerentes à sua condição – e sente o contraste com a instabilidade e os momentos de interrupção do seu próprio louvor; sente-se, então, pequena mesmo em relação às outras criaturas que lhe são ontologicamente inferiores; isto enche-a de uma humildade tão radical que, vendo o louvor das criaturas, chega a afirmar que: “Tudo vive, tudo canta e bendiz ao Senhor; as avezinhas e tudo o mais o louvam, só eu não. Não é louvado por mim, não é amado.”[8] Esta profunda humildade, uma humildade criatural radical, e não apenas uma humildade na relação com os seus semelhantes, leva-a, pois, a pedir socorro às criaturas para a ajudarem, não só ensinando, mas até intercedendo por si: “Ao ver as flores, admiro, louvo e adoro o poder de Deus (...). A todo o ser criado que louva ao Senhor, eu lhe peço para O louvarem por mim”[9].

Vejamos ainda um outro exemplo: “A minha alma continua a exigir a solidão. É ao brilho das estrelas e ao luar que sozinha me ponho a contemplar. Peço a todos os astros que amem Jesus por mim”[10]. A Beata pede, pois, a todos os seres da natureza que louvam o Criador para O louvarem em sua vez, o que corresponde a uma surpreendente forma de intercessão da natureza e a uma união santificante, que de forma “eucarística”, por assim dizer, eleva toda a criação a um estado de redenção paradisíaca. O acume deste processo é este inspirado Hino aos Sacrários, que a Beata recitava em êxtase e durante o qual levitava e de que deixamos aqui um excerto:

Ó Jesus, eu quero que cada gotinha de chuva que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo encerra, oferecida às gotas, todas as areias do mar e tudo o que o mar contém,

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu Vos ofereço as folhas das árvores, todos os frutos que elas possam ter, as florzinhas oferecidas pétala por pétala, todos os grãozinhos de sementes e cereais que possa haver no mundo, e tudo o que contêm os jardins, campos, prados e montes, ofereço tudo

como actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu Vos ofereço as penas das avezinhas, o gorjeio das mesmas, os pêlos e as vozes de todos os animais,

como actos de amor para os vossos Sacrários.

Encerra-se, assim, o círculo contemplativo que começa com a Beata contemplando a natureza, vendo nela o reflexo do Criador, aprendendo com ela e pedindo a sua intercessão, para culminar nesta oferta da natureza ao Criador como um acto “eucarístico”, tanto quanto esta expressão pode ser aplicada a um leigo.

Para uma alma já cativa por Deus, todas as coisas são como um recordatório da presença do Criador. Aquilo que, imediatamente, nos impressiona nestes excertos que acabámos de ver sobre a relação da Beata Alexandrina com a natureza, é o modo como a sua alma está voltada para Deus em tudo, de tal modo que tudo parece servir para a lançar para Deus. Isto nos mostram estes excertos e a sua própria vida; isto que pode ser sintetizado nestas palavras lapidares dessa a alma vertical que é Santa Isabel da Trindade: “Uma alma sobrenatural não lida nunca com as causas segundas, mas apenas com Deus.”[11]

Possamos também nós, guiados pelas palavras e pela experiência da Beata Alexandrina, aprender a contemplar a natureza, repetindo as suas palavras:

“Vinde, vinde, minhas irmãs em Cristo, louvai ao nosso Autor e Criador, louvai-O também por mim. Como não há-de Ele ser belo para vos criar assim tão belas! Vinde, vinde para eu aprender em vós a meditar no poder e na grandeza de meu Senhor!”

Pedro Sinde


[1] Alexandrina Maria da Costa, Autobiografia. Balasar, 2018, p. 17.
[2] Autobiografia, pp. 26-27.
[3] Cartas ao Pe. Mariano Pinho, 7.11.1941.
[4] Eugénia e Chiaffredo Signorile, Vida Interior da Beata Alexandrina. Braga, 2009, p. 24.
[5] Vida Interior..., p. 24.
[6] Vida Interior..., p. 27.
[7] Vida Interior..., p. 26.
[8] Sentimentos de Alma, 21.8.1945.
[9] Sentimentos..., 19.3.1948.
[10] Vida Interior..., p. 25.
[11] Philippe de Jésus-Marie, Le secret du Carmel: le scapulaire et la vie mariale. Toulouse, 2010, pp. 95-96.

PARA QUALQUER SUGESTÃO OU INFORMAÇÃO