O dia
31 de Janeiro de 1947 foi uma sexta-feira.
Como
todas as sextas-feiras, a Alexandrina viveu a Paixão de Jesus e,
viveu-a tanto ao vivo que ao lermos o seu Diário desse mesmo dia,
temos a impressão nítida de ver nós mesmos o que ela descreve com
tanta simplicidade.
No
texto que vamos ler, as situações não se encontram na ordem exacta
do que se passou em Jerusalém e no Gólgota, mas esta maneira de
descreve uma situação tão dolorosa, não nos impede de compreender e
de “ver” o que então se passa.
Ela
começa por dizer: “Fiquei
como caída na valeta da estrada, não podia levantar-me nem tão pouco
levantar os olhos ao Céu para os fitar em Jesus.”
Isto supõe que ela estava a caminho do Calvário, visto ela dizer
ainda: “Não sei por quem fui levantada, mas sentia a minha alma
chorar com profunda dor.” Jesus caíra uma vez mais e a
Alexandrina com ele, o que a leva a exclamar: “Que indizível
vergonha!” A esta exclamação segue-se uma pergunta aflitiva:
“Tem ferido o meu Jesus?”
Algumas linhas depois ela volta
ao Jardim das Oliveiras, onde na realidade começou a Paixão de
Cristo e começa o seu texto com uma frase que só depois do Horto
será realizada: “Os meus espinhos do Horto deram princípio às
ruas estreitas e tristes do Calvário.”
Serão estes espinhos que a
acompanharão durante o doloroso caminho que ela vai percorrer até ao
Gólgota: “Segui por entre eles, abismada na noite mais negra;
neles perdi a carne e o sangue. Subi ao cimo da montanha e a mesma
noite se espalhou nela. No alto da cruz que era eu e nela estava
pregada.”
No alto da montanha a
Alexandrina era a cruz e ao mesmo tempo estava nela pregada. Esta
assemelhação utilizada por ela é frequente nos seus escritos, visto
que muitas vezes ela é a Alexandrina mas também Cristo, numa
estreita união mística. O mesmo se passa quando ela descreve a
última Ceia, onde ela é o pão e o vinho, mas também o cálice.
Assim pregada no madeiro, ela
“sentia o levantar do peito de Jesus, o seu ofegar, palpitar do
coração. Sentia o brado triste, o eco agonizante dos Seus gemidos;
sentia o Seu sangue divino que caía ao pé da cruz.”
Nesses momentos de agonia de
morte, a Alexandrina descreve ainda: “Sentia uma dor de alma que
a obrigava a chorar e a dar a vida despedaçada de dor. Eu não podia
aguentar aquela dor que era de Jesus. O que Ele sofreu! Ai a dor do
Calvário, a dor, a visão da maldade humana. Eu não resisti; por
alguns momentos pareceu-me mesmo a minha morte ser real.”
E depois esta exclamação que
exprime bem os seus sentimentos nesse momento: “Não quero pensar,
porque não posso recordar o sofrimento do meu Jesus.”
Depois
de viver a Paixão, como se o sofrimento não fosse suficiente, o
Senhor permitiu que ela fosse tentada pelo demónio, antes de se dar
a ela na Eucaristia, como ela o explica a seguir:
“Com a vinda d’Ele ao meu
coração esqueci mais as maldades do demónio; pude unir-me mais a
Jesus e desabafar com Ele.”
Alguns
dias antes, a Alexandrina tinha-se queixado a Jesus, mas uma queixa
toda ela cheia de amor e de humildade. Ouçamo-la:
“Quero amar e falar do amor de Jesus e não amo, nem tão pouco sei
falar do Seu divino amor. Que ânsias insuportáveis de O amar e
insuportáveis desejos de uma vida mais pura e perfeita! Que grande
dor não poder nem saber amar Aquele, que tanto me ama e morreu por
mim, e não ter nem saber viver aquela vida de perfeição, de que
Jesus é digno que eu viva. Que horror!
Constantemente cai sobre mim como que uma chuva de maldades e de
crimes. Sinto-me queimada e carbonizada dum fogo indizível de
paixões. Eu sofro, ó meu Deus, e sofro tanto, sei que sofro e em
quase nada se resumem os meus sofrimentos. Não sei exprimir-me, não
sei falar, não sei dizer nada desta dor, que me consome; tudo se
apaga, tudo morre. Ai meu Deus, que trevas tão doridas!”
(S. 26-12-1947)
Afonso Rocha |