Maré Humana
a “vida pública” da Alexandrina
junho de 1953
 

O mês de Junho é, como todos sabem, o mês consagrado ao Coração de Jesus.

É também do conhecimento comum ― sobretudo daqueles que de mais perto lidam com a “vida e obras” da Beata Alexandrina ― que a Bem-aventurada de Balasar tinha uma grande devoção ao Coração do Esposo da sua alma cândida e bela, uma devoção nunca desmentida desde a sua mais tenra idade.

Não vamos aqui lembrar toda essa devoção, mas frisar um mês de junho bem preciso: aquele de 1953.

Neste ano, a notoriedade da Alexandrina tinha já superado todos os problemas provocados pela hostilidade de certas pessoas que, movidas pelo que poderíamos chamar “ciúmes” ou “inveja”, tinham levantado contra ela calúnias inverosímeis que muito a fizeram sofrer e foram igualmente causa de decisões drásticas da parte do Arcebispo de Braga.

As visitas que anteriormente tinham sido proibidas pelo Arcebispo de Braga, eram agora permitidas e, estes últimos anos da vida da Beata aparentavam-se à “vida pública” de Jesus, com “prédicas” e “discursos” que com firmeza ela dava a todos aqueles que vinham àquele quarto, testemunha de tantas graças e de tantos e tão grandes sofrimentos.

Esta vida pública não impedi o sofrimento, aumentando-o mesmo, mas Alexandrina guarda sempre o seu eterno sorriso, o seu invariável bom humor que a leva a escrever no seu diário: « Queria dizer muito, tenho necessidade de dizer tudo e poucas palavras posso dizer. E o pouco que digo nada representa para o que me vai na alma ».

Mais adiante, no mesmo diário de 5 de junho de 1953, os “Sentimentos da Alma”, encontramos esta afirmação que corrobora aquilo que aqui queremos expor: a sua “vida pública”. « Parece que tenho dentro em mim um alto-falante que ecoa no mundo inteiro. Sinto como se ele amolecesse os rochedos das montanhas. Para mim, o meu maior calvário é ver-me rodeada da multidão de gente que se abeira de mim ».

E, como se esta “imagem” não lhe parecesse suficiente para definir a sua situação actual, ela afirma ainda: « Ao mesmo tempo parece que está um motor a trabalhar, a mover os meus lábios, sem os poder deixar parar ».

E como para confirmar que é bem a “vida pública” de Jesus que ela vive então, ela deixa passar este desabafo que o deixa perceber: « Saio fora de mim, sou como uma casca de ovo, como um sopro que me vou mergulhar num outro espírito, numa vida que não é minha ».

“Numa vida que não é minha”, diz ela, numa vida que é aquela de Cristo, afirmamos nós.

Algumas linhas mais longe Alexandrina afirma: « Falei a milhares de almas ».

Como é possível que esta alma simples e entrevada possa ter falado a milhares de pessoas? Não quererá ela dizer que espiritualmente falou à milhares de pessoas, pessoas pelas quais ela orou ao Senhor?

Não, não é uma “imagem” esta afirmação, não é uma fórmula de estilo, mas sim uma realidade palpável: é na realidade a “vida pública” da Alexandrina, da “Doentinha de Balasar”, como o povo amava chamá-la.

Para que não subsistam dúvidas, vejamos esta nota que pessoas bem intencionadas e que tinham o sentido certo do que é a história, conservaram desse tempo épico da vida da Beata Alexandrina.

Diz a nota:

« No dia 5 de Junho de 1953, dia da Ascensão de Nosso Senhor, a Alexandrina foi muito visitada por pessoas que vieram de camionetas, comboio, automóvel, etc. Registaram-se 80 camionetas, mais de 100 automóveis, muitas bicicletas e pessoas a pé. O número de visitantes foi calculado em 5.000. A Alexandrina falou 9,30 horas durante o dia. As visitas foram recebidas num sistema de vaivém, demorando-se as visitas alguns minutos junto dela a pedir orações, conselhos, a agradecer graças recebidas. Ofereceram-lhe flores, velas, fotografias, cartas, etc. Ao fim do dia, dizia ela que ainda era capaz de receber outras tantas pessoas ».

Quem não conhece Balasar e, mais particularmente o sítio do Calvário, onde vivia a Alexandrina, não poderá ter uma ideia do quanto este movimento de veículos e de pessoas terá sido difícil de canalizar, visto que mesmo diante de igreja paroquial não poderiam estacionar 80 camionetas e ainda muito menos mais de 100 automóveis. Por isso mesmo é de pensar que por todos os lados estariam os ditos veículos estacionados, ocasionando engarrafamentos notáveis dado a estreiteza das ruas de então.

Foi certamente necessária uma extraordinária organização, tanto da parte das autoridades locais, como da parte dos familiares e amigos da “Doentinha de Balasar” que tendo falado durante nove horas e meia, se sentia com coragem de falar outras tantas, o que significaria ter recebido 10 000 pessoas no mesmo dia... e isso acontecerá!

Mas, que vinham ali fazer todas aquelas pessoas?

A resposta a esta pergunta é dada na mesma nota citada: “Agradecer graças recebidas”, o que nos mostra e prova ― se tal fosse necessário ― que as orações da Alexandrina encontravam junto do seu divino Esposo o apoio necessário e a conclusão esperada, desde que esses pedidos fossem para o bem das almas daqueles que as pediam, como Jesus avisara, várias vezes: cura das almas antes de todo o resto.

Neste mesmo mês de junho de 1953, no dia 10, feriado nacional, uma nova “enchente” jorra sobre Balasar, uma maré humana que aumentou, que cresceu em número, como nos explica a nota já citada:

« No dia 10 de Junho de 1953, porque era feriado nacional, a afluência foi maior, calculando-se em 102 autocarros, 180 automóveis, muitas bicicletas, peões, etc. Foi calculado em 6.000 pessoas que passaram pelo quarto da doente, num sistema de vaivém, durante 12 horas, havendo um intervalo de 45 minutos. A todos dirigia umas palavrinhas e ia recomendando sempre que fossem bons cristãos, cumpridores dos seus deveres, que rezassem, que comungassem, que cumprissem todos os deveres na família e na sociedade. Pedia penitência, oração, emenda de vida. Durante os outros dias foi recebendo sempre todo o dia aos grupos de 50, 60, 70: a todos fazia as mesmas recomendações ».

6 000 pessoas, em grupos de 50, 60 ou 70, vinham àquele quarto em busca de reconforto espiritual, à busca de conselhos, conselhos que ajudem a um “arrepiar caminho” tão necessário a muitos, a um começo de nova vida espiritual, a uma melhor entrega aos desígnios divinos, tanto na alegria como na dor...

Alexandrina, “armada” daquele sorriso que sempre mostrou em todas as ocasiões, confessa humildemente: « Não posso dizer mais do muito que tinha de dizer, não humanamente, mas infinitamente ».

Depois, ela interroga-se: « Falaria bem? Faria a vontade de Jesus? Fiz o que pude ».

E, quando se faz aquilo que se pode, já muito se fez, quando isso é feito com amor e humildade, com carinho e disponibilidade.

Estas visitas não impedem o prosseguimento da sua missão na terra que é de sofrer e oferecer para a salvação das almas.

Esse dia 5 de junho era uma sexta-feira, sinónimo de paixão e de grandes sofrimentos, por isso ela diz, no seu diário: « Hoje, de manhã ― portanto antes da chegada dos visitantes ―, fui para o calvário, caminhei sozinha, mais triste que a noite, sem nunca encontrar Jesus. No alto da montanha, de repente, sem saber como, todo o mundo caiu sobre mim e me invadiu em todo o calvário com o peso de toda a humanidade, sempre sem Jesus. A morte prolongou-se por muito tempo ».

Depois, como para consolá-la, mesmo se pedindo mais sofrimentos, Jesus vem e fala-lhe, lembrando-lhe de certa maneiro o mês que lhe é consagrado. Ouçamos:

— « Amor, amor, amor vem pedir Jesus. Amor, mais àqueles de quem sou amado. Tenho sede, sede, muita sede. Tenho sede, sede, sede e não sou saciado. Pede amor, pede, minha filha, pede ao meu divino Coração. Sofre, sofre, minha filha! Repara a justiça do meu Eterno Pai. Sofre, sofre, minha filha! Dá ao meu divino Coração a reparação necessária. Avante, avante, na tua missão sublime. Coragem, coragem! Tu não estás sozinha, filhinha. As almas, as almas!... Quero que se salvem as almas! Foram para os que Me amam as minhas primeiras palavras. São para aqueles que andam afastados de Mim, tudo o que vou dizer, todos os meus queixumes, toda a minha dor. Vê, minha filha, como está ferido o meu divino Coração ».

Esta última frase lembra aquela que Jesus disse a santa Margarida Maria em Paray-le-Monial: “Vê, minha filha, este Coração que tanto amou os homens e que deles só recebe ingratidão!”

Alexandrina não pode consentir que Jesus sofra; logo se oferece, logo se propõe como vítima reparadora.

— « Custa-me tanto, tanto, meu Jesus, ver este rio de sangue que sai dessa chaga profunda. Já vejo, meu doce Amor, que nada valem os meus sofrimentos se não evitam os Vossos. Ai, tanto sangue, Jesus!... Onde está a minha missão, como Vós dizeis, meu Amor? »

Jesus reafirma a utilidade da missão confiada à “Doentinha de Balasar” e convida-a a continuar, a empregar todos os esforços para o ajudar na redenção do género humano:

— « Sossega, sossega, florinha eucarística. Vês o Sangue com as ofensas que me dão. Mas são salvas as almas pela tua sublime missão, pelo teu calvário, pela tua cruz. Se não fosse a tua reparação, perdiam-se as almas aos milhões, aos milhões. É nobre, é nobre a tua missão. É nobilíssima. Encanta o Céu, encanta a terra, os que compreendem os encantos, as maravilhas do Senhor. Avante, avante, a vós todos a quem o Senhor vos chama. Coragem, coragem! A hora é grave. Mãos à obra, mãos à obra. Quero as almas, quero as almas a todo o custo, com toda a dor ».

Alexandrina que tudo aceita, que tudo quer sofrer pela humanidade pecadora reitera a sua oferta incondicional... não bem incondicional, porque na sua resposta vão alguns pedidos, que no entanto não são nem podem ser condições... mas um grito de amor, uma intercessão permanente:

― « Ó meu amantíssimo Senhor, sou a Vossa vítima, mas quero que todas as almas se salvem, as da minha família, Jesus, as da minha terra, as que me são queridas, as que me pedem orações e as do mundo inteiro, Jesus. Se me quereis aqui, até ao fim do mundo, presa, estou pronta. Já o sabeis já Vo-lo tenho dito ».

Esta sinceridade, esta disponibilidade e esta doação sem falhas agradam ao Senhor que a todos nos quer em seu divino Coração:

— « Vem, louquinha eucarística, vem louquinha das almas, vem receber conforto. Inclina-te ao meu divino Coração. Coragem! Comigo triunfas. Coragem! Já não vês mais Sangue. Foste tu, não fui Eu. Foi a tua oferta que o estancou. Coragem! Os pecadores andam tão perdidos, tão loucos nas paixões. Fiz tudo, faço tudo para os salvar. São meus filhos, são meus filhos ».

Dizer à Alexandrina que muitos pecadores se perdem por causa das paixões desordenadas e pela recusa de ouvir a vós de Deus, é causar-lhe pena, causar-lhe uma dor indiscritível. Eis porque, ao ouvir o Senhor dizer que muitos “pecadores andam perdidos”, logo ela procura uma solução para os converter, para os fazer arrepiar caminho:

— « Ai, meu Jesus! Se Vós mostrásseis uma vez o inferno para ver se todos arrepiavam caminho! Eu não sei mais o que hei-de fazer, meu Jesus ».

A esta proposição ingénua da Alexandrina, a resposta de Jesus é sem apelo e terrivelmente exacta:

― « Se Eu mostrasse o inferno, muitos ainda não acreditariam ».

Os dias e as semanas passam. Estamos a chegar ao fim do mês de junho. Alexandrina vai viver a última paixão de junho no dia 26 que foi uma sexta feira. Ela sente-se triste porque novamente a querem internar no hospital para estudar o seu caso, mas ela sente-se pouco desejosa que um tal projecto se realize, que uma vez mais ele tenha de se submeter aos vexames dos médicos et às piadas vexatórias das enfermeiras. Ela queixa-se, mas não se recusa a isso categoricamente, porque se isso for mesmo da vontade de Deus, ela se submeterá humildemente.

― « Ordens para novos exames. Meu Deus, quererem tirar-me daqui para fora quando me parece que nem aqui posso resistir! O Senhor seja comigo ».

E mais adiante:

― « Sinto-me diante de vários juízes, a ser sentenciada sem ter ninguém que me defenda. Ninguém, ninguém, por mim. Só a vontade está firme como a rocha ».

Algumas linhas depois ela acrescenta ainda no seu diário:

― « Meu Deus! Meu Deus! Só o Vosso amor me cega, só as ânsias de Vos consolar e dar almas me levam a sujeitar-me a tudo. Só para diante do meu Jesus me sinto culpada, mas tenho que ser julgada e sentenciada. Serei sempre a Vossa vítima, meu Jesus. Morra eu, quando morrer! O que eu quero é obedecer em tudo, em tudo ».

Admirável confiança em Deus !...

Jesus vem encorajá-la, mostrar-lhe que nunca a abandona e que os sofrimentos da sua amada são necessários para a salvação das almas. A estes encorajamentos, Jesus ajunta promessas, promessas que muitos de nós podemos testemunhar serem verídicas. Ouçamos:

― « Minha filha, minha filha, flor mimosa, florinha eucarística, coloquei-te neste calvário, escolhi-te para este calvário para bem, para bem de Portugal, para honra de Portugal, para bem, para bem, para honra da humanidade inteira. (...) Coragem, coragem! A tua missão nobilíssima, a mais árdua, terminará depressa. O Céu, o Céu! Oh, que glória! Oh! Que triunfo do Céu! Tem coragem, tem coragem! Sempre te assisti e assistirei. Sempre velei e velarei por ti. As almas, as almas, salva-as aos milhões, aos milhões pelos teus sofrimentos. Preparo a tua coroa, a mais rica, a mais bela. Por cada alma uma pedra preciosa a orná-la ».

E ao terminar o colóquio desta sexta-feira, Jesus dirige à sua amada um longo “discurso”, tece um longo programa:

— « Ó minha filha, ó minha filha, mãos à obra, mãos à obra! Falta tão poucochinho para o Céu! Eu quero, Eu quero… dir-te-ei breve o que Eu quero. Para hoje, quero as almas, almas, sempre almas. Dá o teu sangue, dá o teu sangue. Tens de tudo te assemelhar a Mim. Dei-os até à última gota. Como não há-de dá-lo aquela que Eu escolhi  para cópia, a mais fiel, da minha vida?! Diz ao mundo, diz às almas que basta, basta de Me ofender! É urgente, é mais que urgente a reparação. É urgente, é mais que urgente a emenda de vida. Tu és o porta-voz de Jesus a avisar, a avisar a pobre, a infeliz humanidade. Tu és o farol do mundo, a iluminá-lo a minha luz divina. Dá luz às almas! Dá luz às almas! Fala-lhes, fala-lhes ao coração. O teu coração está cheio de Mim. Comunica-lhes toda esta abundância. Vem receber a gota do meu Divino Sangue. Dois corações unidos a viverem a mesma vida, Jesus e a Sua esposa, Jesus e a Sua vítima a cada momento imolada. A gotinha do sangue passou. Maravilha prodigiosa, a vida que te faz viver. Fica no teu calvário, na tua cruz. Ficai no vosso calvário, na vossa cruz. Coragem, coragem! O mundo, as almas obrigam-me a fazer-te sofrer assim ».

A recomendação de Jesus: “Fala-lhes, fala-lhes ao coração” vai novamente tornar-se uma realidade palpável no penúltimo dia daquele mês de junho de 1953, como consta numa nota deixada para a posteridade:

« No dia 29 de Junho, a doentinha recebeu cerca de 15.000 pessoas. Foi este cálculo feito por pessoas que se deram ao trabalho de observar o movimento. O serviço estava bem ordenado e tudo correu normalmente, graças a Deus. Recebeu pelo correio 50 cartas e por mão própria inúmeras. Quase todos eram portadores de pedidos de orações em benefício de quem fazia as petições. Outras agradeciam graças espirituais e temporais que os declarantes receberam por intermédio da doente ».

Leram bem, não foram 1 500 pessoas que ela recebeu nesse dia, foram bem 15 000 ― quinze mil!...

Se assim foi durante a vida, que melhor não será agora no Paraíso onde ela pode receber a humanidade inteira, aquela mesma humanidade que durante tempos foi encerrada no seu coração por Jesus e Maria!

Se durante a vida a Alexandrina foi um “canal pelo qual Jesus fazia passar as graças”, quanto maior não será essa canal agora, agora que as medidas não tem medida, porque são eternas!

Alexandrina Maria, nossa irmã e nossa protectora, lembra-te de cada um de nós justo do Esposo que tanto amaste e que agora amas mais e mais, na Mansão celeste, onde a medida se chama eternidade!

Vela por cada um de nós, porque todos somos pecadores e, pelo canal divino, envia uma chuva de graças que nos permita de sermos realmente como Jesus deseja que sejamos.

Afonso Rocha

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