H. Gomes de Araújo
da Real
Academia de Medicina de Madria.
Director do Refúgio da Paralisia Infantil.
Especializado nas Doenças Nervosas e Artríticas.
RELATÓRIO SOBRE A ALEXANDRINA MARIA DA COSTA
de Balasar, Póvoa de Varzim
Um
notável caso de abstinência e anúria
O
nosso amigo e colega Dr. Dias de Azevedo, de Ribeirão –
Famalicão assiste há anos a Senhora Alexandrina Maria da Costa,
residente na freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de Varzim.
Em
Julho de 1941 acompanhou-a à nossa clínica em demanda de
serviços especializados para as paralisias de que sofria.
Contou-nos a história da doença, adiante pormenorizada, que, com
o exame objectivo nos levou à conclusão de: Paraplegia espática
por compressão medular.
Não
tivemos ensejo de determinar a qualidade do agente compressor.
Nada mais soubemos da doente até 6 de Março de 1943, por ocasião
do convite que o Dr. Azevedo nos fez para mandarmos para casa da
doente enfermeiras de inteira confiança a verificarem com rigor
a abstinência completa da doente, feita já desde Abril de 1942,
ou fosse da duração de 13 meses. Como, por motivos diversos, não
acedêssemos ao convite, uma e mais vezes, o nosso colega
convidou-nos a visitar a paciente no seu domicílio, para
minucioso exame, o que, com o Prof. Carlos Lima, da nossa
Faculdade de Medicina, fizemos no dia 26 de Maio passado, sob o
duplo aspecto: neurológico e psicológico, sendo aconselhado que
a Alexandrina fosse isolada numa casa de saúde para observação
condigna e correlativas tentativas terapêuticas, estas impostas
pelos deveres de consciência profissional e até moral, tão
incompatíveis são, perante nós, a existência do sofrimento e a
inércia do clínico. Por especial atenção pelo Dr. Azevedo e por
alguns amigos que muitos carinhos e atenções de longe vêm a
dispensar à doente, acedemos a recebê-la numa ampla e luzida
sala do Refúgio da Paralisia Infantil, ainda disponível, pela
ampliação do edifício, onde ingressou no dia 10 de Junho e donde
retirou em 20 de Julho corrente.
História da doença
Elaborada pelos elementos do Dr. Azevedo, pelos informes que
colhemos no exame domiciliário e dutrante a pbservação que
fizemos no internamento, sabemos que a Alexandrina Maria da
Costa, natural de Balasar, tem 38 anos, é solteira, aprendeu as
matérias da Instrução Primária, não tem alcoólicos nem loucos na
família, mas vários cancerosos e tuberculosos, sendo seus pais e
irmãos, todos activos, videiros, feição nervosa e franea, de
bons costumes, boas pessoas.
Teve aos 11 anos grave doença (febre tifoide?) de que resultou
ficar débil, fraca, com algumas dores articulares, foi em sua
casa assaltada por conhecido sátiro, perversamente intencionado,
para fugir do qual, trespassada pelo medo, se precipitou de uma
janela ao largo fronteiro, de altura de pouco mais de três
metros e meio, caindo curvada, e sentindo nessa ocasião, uma dor
muito viva na região lombo-sacra que durou minutos, durante os
quais ficou como que desmaiada com agravamento das dores de
cruzes lombares que muito antes já vinha a sentir, quando
levasse à cabeça pesos grandes. A emoção, contudo, deixou-lhe
persistentes e magoantes recordações, às quais sucederam os
primeiros distúrbios, que foram, como é habitual da ordem
dispéptica e consequência deles e do temperamento da doente,
manifesta depressão neuro-psíquica, sobre que, em breve,
assentaram os fenómenos paralíticos, de que não mais se
libertou. Estes, durante 6 anos, ainda lhe permitiram pequenas
excusões, mormente pelos consultórios e pelas festas religiosas,
tal o Congresso Eucarístico de Braga, tinha então 19 anos. Aos
20 foi definitivamente para o leito, tão intensos se volveram os
seus padecimentos.
Em
Julho de 1941 coube-nos a vez de examiná-la no nosso
consultório, onde veio de donde retirou entre sofrimentos
óbvios. As anomalias das sensibilidades, o tipo das paralisias e
muitas razões, que dispensamos referir, levaram-nos à conclusão
de Paraplegia demular por compressão alta, parecendo-nos assim
de feição orgânica (adiante mencionaremos explicações meramente
pessoais, do equívoco feito entre paraplegias com aparência de
orgânicas). E não vaultÉmos a ver a doene senão na visita
domiciliária de 26 de Maio 9. P. P.. Então, em minucioso exame
neuro-psicológico, noustrou-nos que a Paraplegia, longe de
agravada, nos pareceu um tanto melhorada, sem contudo, sem
outros recursos, poder ban ir-se a hipótese de organicidade.
Pelo n osso espírito passlou a ideia de pura funcionalidade, o
que, não permitindo o estado da doente apura-se nós hoje
concebemos, conceito meramente pessoal, que num parêntese, que
vamos abrir nesta altura, passamos a explicar.
Uma
serosa ou uma mucosa, uma membrana envolvente de um órgão
(tendão, nervo, dedula), quando inflamada, incha, aumenta de
volume e comprime ou entope o órgão ou a cavidade que envolve ou
constitui. Assim, uma rinite tolhe a respiração nasal; uma
vaginite impede o deslize do tendão. É natural e lógico, e
cremos que corrente, que os envóllucros medulares,
congestionados, comprimam a medula e os nervos seus afluentes
com as correlativas perturbações compressivas, estas funcionais,
melhoráveis. Todos sabemos, porém, que uma perturbação funcional
perdurando longo tempo sem combate, pede tornar-se lesionai,
orgânico. E a propósito comcebemos bem quanto um indivíduo
neuropático, de nervos vegetativos em agitação, por um cérebro
instável, se presta às fáceis congestões e, quanto à nossa ordem
de ideias, às compressões.
Fechado este parêntese elucidativo, não temos hoje, mesmo por
insuficiência de exame e exploração incompatíveis com o estado
da Alexandrina, razões para eliminar a hipótese de Paraplegia
orgânica.
Estado actual
O
exame psicológico: à primeira vista parece-nos perfeita, normal,
intelectiva, afectiva e volitivamente, mas bem depressa se nos
revela portadora de um agrupamento de ideias fixas,
estereotipadas e sistematizadas, que vive e sente intensa e
sinceramente, sem sombra de mistificação ou impostura, odeias
que determinam a sua abstinência. Este pormenor, sem dúvida o
mais interessante do caso, será apreciado mais adiante em lugar
competente. Informam o clínico, a família e os seus íntimos que
esta abstinência vem já de há treze meses.
A
sua expressão é viva e perfeita, meiga, bondosa, acariciante;
atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nada de ascetismo,
de melifluosidade; nada de voz tímida, amelaçada, cadenciada,
nem exaltada, conselheira, catequeta (catequista). Conversa em
tom natural, inteligente, subtil mesmo; responde sem hesitação e
convictamente, sempre em harmonia com a sua estrutura psíquica e
a construção sólida de juízos feitos e bem delineados por si e
pelo meio, sempre, repetimo-lo, com um ar de bondade espontânea
que a ambiência mística que há tanto tempo a cerca e que ela
parece não ter provocado, não modificam. Sob o ponto de vista
somático apresenta acentuada emaciação, os relevos musculares
apagados, a pele pouco tenra, as maçãs do rosto, as mucosas
palatina, labial e oculares normalmente tingidas. O membro
superior esquerdo levemente parético, os membros inferiores
estendidos em certa espasmocidade, pés rasos, sensibilidade
diminuída globalmente; não há defesas automáticas, nem
trepidações da rótula esboço de clono dos pés — ausência de
reflexos plantares. Esfíncteres: por não necessitarem de função.
Foi
neste estado que veio em automaca através de 60 quilómetros
fazer o seu internamento.
Internamento no Refúgio da Paralisia Infantil
Este teve lugar, como já dissemos, pelas 20 horas du dia 10 de
Junho pp. Logo foi assistida e vigiada (para efeito
observacional) por um grupo de se nhoras de inconcussa
probidade, incapazes da menor venalidade ou do mínimo conluio,
todas com alguma prática de enfermagem, mas não profissionais,
inteiramente livres, sem qualquer intgeresse pecuniário,
carinhosas e boas para se sujeitarem a permanecer continuamente,
revézando-se, à volta [da] doente, dormindo no mesmo quarto, a
chave da porta sempre à sua guarda.
Nunca pessoas estranhas tocaram na doente ou fizeram as limpezas
higiénicas sem máxima vigilância, quantas vezes estes cuidados
exercidos pelas próprias senhoras assistentes, tão cristã e
carinhosamente, aliás, serviçs simples, pois não havendo micções
nem dejecções, apenas se limitavam: abluções com álcool por
causa da transpiração, dos pequenos suores e dos raros vómitos,
alguns salpicados de sangue. Eis os nomes das mesmas: Ex.ma
Senhora D. Maria Guichard, Sr.a Amélia Romualdo Ribeiro, Sr.a
Irene e D. Júlia de Fontoura Madureira Guedes, S. Ana e D.
Idalina Gomes d’Araújo, D. Elvira Gomes d’Araújo e Silva, Sr.a
Maria de P. Brito e D. Maria Alice da Silva Nunes. O
recrutamento de algumas era feito perante as dúvidas que o
estranho caso oferecia, ao dizerem: “Ora! Eu não creio. Se eu lá
estivesse, descubriria o mistério…”. Logo surgia o
convite-intimação pelas anterioridades o que, após hesitação e
desculpas, vinha a ser aceite.
As
Senhoras D. Maria Brito e D. Alica Nunes, das mais cépticas,
assistiram respectivamente 10 e 4 dias. A observação, assim, e
pela nossa parte, pôde ser segura, firme incontestável, só
deixando dúvidas aos que têm hábito de duvidar de si próprios.
Assim se foram colhendo elementos de estudo, e correlativos
ensaios terapêuticos foram tentados, digamo-lo já, inúteis, dada
a brevidade do internamento, que, com esforços resopeitáveis,
pudemos “esticar” até 40 dias, tanto o bulício da cidade (Rua da
Foz muito ruidosa e barulhenta), saudades dissimuladas do seu
meio, tensão de espírito, até a beira-mar estavam a prejudicar a
paciente.
Pormenores principais: no dia 11 de Junho, depois de nojo (…) te
pouco tranquila, queixando-se (só ao saberem dela) de dores
dispersas, gerais, fomos encontrá-la corada, alegre, um pano
refrigerante na fronte e com um saco impermeável no epigastro.
Fique aqui bem expresso que tanto o líquido do pano, como o do
saco, eram, na ignorância da Alexandrina, quase sempre solução
concentrada de sal amargo ou de sulfato de sódio. Falou-nos em
linha normal, conversou e, como se vê no gráfico junto, tinha
(às 10 horas) temp. 36,3; pulso – 108; respiração – 22.
À
tarde respectivamente: 37,1 – 92 e 20. No dia 12 de Junho: nada
de maior. À 10 horas: 37 – 86 e 24. Às 20 horas: 37,2 – 90 – 22.
(Ver gráfico). Dia 13 de junho – Bom aspecto – alguns vómitos
com pequenas manchas de sangue, algumas dores no epigastro.
Pareceu-nos bem fazer o interrogatório seguinte, um pouco
análogo ao que lhe havíamos feito no domicílio, mas mais
tranquila e confiadamente:
— De que se queixa?
— De dores por todo o corpo; doe-me tudo por igual.
— Está muito contrariada por essas dores?
— Não, porque Deus assim o quer. Até me agradam, porque quero
sofrer, visto quanto mais sofrer mais agrado a Nosso Senhor.
— Então pensa que Deus seja tão excxigente?
— É
por causa dos outros que quero sofrer. Ofereci até a minha vista
— o que mais prezo — a Deus, se com isso puder converter os
grandes da guerra…
— Então não trata com isso de garantir a sua vida eterna?
— Trato…
— Então quer ter lá no céu um lugar de destaque, e vir a ser
canonizada, santa?
— Se o merecesse… Mas isso é o que menos me preocupa; o que
quero é nunca ofender a Deus.
— Porque sofre?
— Por amor de Nosso Senhor e para salvar bas almas.
— Então a sua grandeza de alma é máxima. Quer sofrer muito para
salvar os outros, não é? Ora suponha que Deus punho como
condição ou como consulta que para salvar os outros era n
ecessária a perda da sua alma, de uma só. Que fazia?
— Não, isso não queria… Perder a m:inha alma… isso não.
— Ora diga-me: Sabe que, se continuar nessa abstinência, mais
semana, mais mês menos mês, morre. Não deve esforçar-se por
prolongar a vida, para aumentar o número dos que salva pelos
seus sofrimentos, os quais continuariam a martirizÉ-la, desde
que comesse e bebesse pouquinho, o suficiente para viver? Nunca
lhe fizeram sentir a ameaça de remorso, pelo facto de se deixar
morrer mais depressa e abandonar os que supõe ser capaz de
salvar?
— Repito, que não como, porque Deus não quer, e não sei
explicar-lhe mais.
— Repugna-lhe a ideia de alimentar-se, enjouam-na os alimentos?
— Não. Até tenho por vezes saudade da comida.
— Então vamos começar amanhá ou depois a tentar uma alimentação
leve, para viver, para salvar…
— Não, Deus não quer.
— Como sabe isso?
— Porque sei. Isso são coisas íntimas. Sei por Deus e por…
(referiu individualidades que não vêm para aqui).
E
foram baldados os meus primeiros esforços e depois todos os
outros análogos no mesmo sentido, os de levarmos a doente pela
persuação a alimentar-se e pela reeducação, pelo ingresso no
subconsciente de conselhos fragmentários que viessem a dar um
tal útil… De resto nunca tentámos a alimentação forçada, porque
a julgámos inteiramente inoportuna e contraindicada.
E
assim, foram decorrendo os dias, uns após outros, a doente
conversando, entoando cantigas religiosas, numa conformação
absoluta com a sua decadência física mas psiquicamente forte e
perfeita, aparte as sistematizações referidas, o primum movens
do seu quadro mórbido.
Exames diversos
Tenção arterial ao Bolliite medianamente: M x 9 Mn. 6.1 = 1
Sangue (colhido pelo Prof. Ernesto Morais e analizado pelo Sr.
António Fânzeres):
Ureia por % - 0,332 Glucose“ – 1,000
HemoglbinA – 80%
Glóbulos rub. – 3.700.000
Glóbulos br. – 6.4000
Fórmula leucicitária:
Gran. Neutrófilos - 50,5%
“cosinófilos – 40%
Meetamielócitos – 25%
Linfócitos – 40,5%
Monócitos – 2,5%
Metabolismo Basal (Dr. Neto Parra) abaixo de 39%
Peso efectuado após alguns dias de repouso deu: 18 de junho
(líquido) 31,850
8
de Julho 30,750.
Perda em 20 dias: 1,100 (Houve engano, porque não se pesou com o
travesseiro (Nota do Dr. Azevedo).
O
metaboismo basal revela a existência de consumo mínimo.
O
sangue não oferece grandes desvios do normal. Estes casos
parecem de vida «parada», fazendo lembrar os animais
hibernantes.
Apreciação e crítica dos factos
É
para nós inteiramente certo que durante 40 dias do internamento
a doente nem comeu, nem bebeu; não urinou nem dejectou e esta
ciscunstância leva-nos a crer que tais fenómenos possam vir a
produzir-se de tempos anteriores. Não podemos duvidá-lo. Os
treze meses, como no-lo informam? Não sabemos.
Mas
encerremo-nos no período restrito da nossa observação — a
quarentena. É conhecido cientificamente que o homem pode viver
sem comer até 20 dias, movimento em repouso e particularmente as
doentes histéricas. Qualquer livro de Fisiologia no-lo
patenteia. Sabe-se que há Fakires hindus que ficam enterrados
várias semanas, alguns durante 40 e 50 dias. Mas sabe-se também
que esses exibicionistas bebem ais ou menos. Há cerca de 40 anos
tivemos entre nós um Sr. Tapuro que se exibiu no Teatro “Águia
d’Ouro”. Lá nos refere o Dr. Gley pag. 41 do seu Tratado
de Fisiologia (Paris 1924); Os grandes jejuadores de 40 e 50,
são abstinentes de alimento, mas bebem. A morte surge quando um
animal perde 6% do seu peso, isto é, quando pesam, limite
extremo, 40% do peso normal”.
O
que não vimos ainda referido, e que, por isso, desconhecemos no
campo da Biologia, é o limite extremo das possibilidades de vida
no caso de abstinência total de alimentos e de bebida. Foi
Lasèque quem melhor, até hoje, traçou a descrição da Anorexia
Mental. Todos estão de acordo nesta questão. E Charcot, o Mestre
de Salpetrière, diz-nos no tomo V do Tratado de Patologia de Ch.
Bouchard citado por Dégérine (Semiologia do Sistema Nervoso) a
pag. 1060 e seguintes: “A anorexia mental (perda de apetite) é
dos acidentes mais graves nos histéricos…”
Em
restrito número de casos pode ser outra a origem (crise?)
mental. A doente obedece a uma ideia mística e quer assim
mortificar o seu corpo e depressa chega à perda da sensação da
fome. E não se revolta contra a decadência física. Efectivamente
aqui há na base da afecçã uma ideia aceite pela sua consciência,
a de que não deve nem pode comer. Uma vez chegadas as coisas a
este estado, elas eliminam-se… É claramente exposta a situação
da Alexandrina. Isto pelo que respeita à Anorexia e Inanição.
Mas
o caso desta doente é mais complexo: porque não se trata de
Anorexia ou inanição. Aqui há abstinência total mental, estamos
certos; abstinência, porque não come nem bebe. É este para nós o
mais interessante do caso. Apreciado o facto da abstinência
sobretudo de líquidos, resta-nos salientar outro pormenor, o da
não micção, por anúria, isto é, pela parese do trabalho ou
função excretora dos rins. Diz-nos o sábio e católico Prof.
Grassei, da Faculdade de Medina de Montpellier, no Dicionário
das Ciências Médicas de Léchambre – tomo 51, pag. 327 (?):
“Charcot chamou a atenção para este sintoma, tornado permanente,
oligúria ou mesmo anúria, podendo durar meses inteiros e
acompanhando-se de vómitos”. Mas Dégérine referindo-se a
trabalhos posteriores de Charcot, refere-nos a pag. 1068 do já
citado Tratado de Patologia de Ch. Bouchard, tomo V: “citam-se
algumas observações em que a anúria persistiu durante vários
dias: 17 (Holst) e 8 (Benedikt)…”
Voltando a Grasset, lê-se na obra já referida, a pag. 327: “Um
notável facto diz respeito à perfeita tolerância des histéricas
que vivem neste estado (anúria), visto que todas as outras
anúrias são fatais a breve trecho”.
E
por nossa parte conhecemos um nosso caso extraordinário, como
talvez n enhum outro referido, respeitante à cunhada de um
colega e amigo, do Porto, que deu imenso trabalho aos Drs. Óscar
Moreno (Porto), Ângelo da Fonseca (Coimbra) e Henrique Bastos
(Lisboa) todos especialistas de Urologia e a muitos outros
clínicos. Tratava-se de histérica de 13 anos que, durante mais
de 20 meses, comendo e bebendo quase normalmente, tinha durreias
de 200, 100, 70 e 50 gr., sem qualquer mistificação, nem grande
sofrimento, e que só curou com a extracção, por nós proposta, do
rimm direito feita pelo Prof. Morais Frias, rim anatomicamente
considerado bom, mas que, extraído, depressa consentiu que o
outro passasse a efectuar diureses enormes.
A
Histeria, este vasto e complexo departamento da Patologia que
tem passado pelas mais variadas vicissitudes especulativas,
voltou na acutalidade a conceber-se com a mesma feição nebulosa
de tempos lngínquos, mas o acordo é geral neste sentido: Doença,
afecção, sindroma, diatere, enfim, um mal vasto e complexo,
limites indecisos, mas uma realidade. Dentro da Histeria cabe um
número infindo de manifestações mórbidas. Em tudo o caso elas
todas devem ter limites, vastos umas vezes, vastíssimos outras e
inverosímeis até algumas vezes também. Mas, posta de parte a
pretençãos especulativa da natureza dos males, olhemos os factos
parcelares que, aglomerados, constituem a doença ou o síndroma.
E tais factos têm um certo feitio, uma certa extensão, um
determinado limite de existência. Eis o que nos leva à seguinte
conclusão.
Conclusão
Afirmando pôr todo o nosso escrúpulo nesta conclusão, que pecará
por incompetência científica, mas não peca por improbidade
profissional nem pessoal, temos de terminar este aglomerado de
considerações pela forma seguinte:
a)
Alexandrina
Maria da Costa é uma neuropata.
b)
Ela passou
40 dias em completa abstinência de alimentos e bebidas, tudo nos
convencendo que tal situação possa ter já notável precedência.
c)
Alexandrina
não dejectou nem urinou durantes os mesmos 40 dias, no que
ultrapassa (dado mesmo que isto só tenha tido lugar durante o
internamento) os casos da anúria do nosso conhecimento.
d)
Alexandrina
segue o que é quase habitual, quanto à perda de peso, mas
conserva frescura e resistência impressionantes.
e)
Finalmente,
Alexandrina oferece-nos o aspecto de um caso que a Medicina sabe
em grande parte explicar, não deixando, contudo, de
patentear-nos alguns pormenores que, pela sua importância
fundamental de ordem biológica, tais como a duração da
abstinência de líquido e a anúria, nos tornam suspensos,
aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz.
Porto, 25 de Julho de 1943
H.
Gomes de Araújo |