“Se
conhecesses o dom de Deus”
Na primeira leitura de hoje
encontramos uma queixa que é comum a todos aqueles que não sabem esperar
a hora de Deus e se queixam, como os judeus, porque pensam que o Senhor
os esqueceu:
«Porque
nos tiraste do Egipto? Para nos deixares morrer à sede, a nós, aos
nossos filhos e aos nossos rebanhos?».
Dizer que
temos a cabeça dura é o mínimo que se possa dizer de cada um de nós,
sobretudo daqueles que se impacientam facilmente, o que leva os nossos
verdadeiros pastores a perguntarem ao Senhor nosso Deus, como o fez
Moisés:
«Que hei
de fazer a este povo? Pouco falta para me apedrejarem».
E nós, pobres pecadores seríamos
capazes disso e talvez de muito mais, porque a nossa sede rapidamente se
transforma em cegueira furiosa, capaz das maiores barbaridades, dos
maiores excessos.
E mesmo quando Deus mata a nossa
sede, ficamos furiosos, porque Ele tardou em ouvir-nos, como se nós
mesmos fôssemos os mestres de Deus…
Sejamos humildes e reconheçamos,
não somente a nossa miséria, mas também o nosso nada e deixemos ao
Senhor o cuidado de agir por nós em seu tempo.
Como no-lo recomenda o salmista
«prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor que nos criou. Pois Ele é
o nosso Deus, e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.»
No Evangelho de hoje
(Jo.4,5-42),
São João conta-nos um encontro bem particular
entre Jesus e uma samaritana.
O
evangelista começa por descrever o palco onde a cena se vai realizar:
«Chegou
Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, junto da propriedade que
Jacob tinha dado a seu filho José, onde estava o poço de Jacob. Jesus,
cansado da caminhada, sentou-Se à beira do poço. Era por volta do
meio-dia.»
Se Ele se
sentou à beira do poço foi porque tinha sede, sobretudo àquela hora do
dia. O poço, como todos os poços devia ter um balde e uma corda para
tirar água, mas Jesus sabia o que ia acontecer e esperou que alguém
viesse.
«Veio
uma mulher da Samaria para tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-Me de
beber”».
Jesus
estava só, porque «os discípulos tinham ido à cidade comprar
alimentos.»
Entre
samaritanos e judeus as relações eram difíceis e por isso mesmo aquele
encontro que parecia improvável nos interpela, como interpelou a
samaritana.
«Como é
que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana?».
Jesus não
vai responder a esta pergunta, mas começar a tocar o coração daquela
mulher cuja vida nada tinha de exemplar:
«Disse-lhe Jesus: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te
diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva”.»
Estranha
maneira de pedir de beber! A samaritana, talvez um pouco trocista, ousa
perguntar:
«Senhor,
Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo: donde Te vem a água viva?
Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual
ele mesmo bebeu, com os seus filhos e os seus rebanhos?»
De novo,
esquivando a pergunta da mulher, Jesus responde com doçura:
«Todo
aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da
água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der
tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna.»
Esta
afirmação de Jesus despertou na mulher, não um princípio de conversão
mais um interesse temporal:
«Senhor,
– suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais
sede e não tenha de vir aqui buscá-la.»
Como
anteriormente, Jesus não responde a este desejo natural da mulher, mas
diz-lhe: «Vai chamar o teu marido e volta aqui».
Este pedido
certamente que envergonhou a samaritana que logo procura justificar-se,
dizendo a verdade: «Não tenho marido.»
Desta vez
Jesus não esquiva, mas ensina, provoca:
«Disseste bem que não tens marido, pois tiveste cinco, e aquele que tens
agora não é teu marido. Neste ponto falaste verdade».
A mulher é
surpreendida pela afirmação de Jesus e compreende que se encontra face a
um homem que sabe de tudo e responde, provavelmente com uma certa
timidez:
«Senhor,
vejo que és profeta. Os nossos antepassados adoraram neste monte, e vós
dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar».
A mulher,
talvez já um pouco “baralhada” acabou por dizer, demonstrando que
conhecia um pouco as Escrituras:
«Eu sei
que há de vir o Messias, isto é, Aquele que chamam Cristo. Quando vier,
há de anunciar-nos todas as coisas».
E aquilo
que ela não esperava vai acontecer, porque Jesus lhe declara:
«Sou Eu,
que estou a falar contigo».
Nesse mesmo
momento chegaram os discípulos e ficaram admirados que Jesus falasse com
uma samaritana, mas não fizeram perguntas.
Entretanto
aquela mulher, como arrebatada por uma alegria súbita, deixou a bilha na
borda do poço e correu para a cidade, chamar os habitantes. Para os
convencer rapidamente, disse-lhes:
«Vinde
ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será Ele o Messias?».
De facto
muitos vieram. Jesus falou para eles com doçura e pertinência, o que os
levou a pedir-lhe que ficasse com eles. Jesus aceitou e ficou três dias
naquela cidade, continuando o seu apostolado: o anúncio da Boa nova do
Reino.
Peçamos nós
também que Jesus fique connosco e nos ensine a amá-lo e a segui-lo passo
a passo, mesmo no nosso caminho do calvário quotidiano, porque não há
amor sem dor.
Ouçamos
também a sua voz que aos nossos ouvidos murmura: «Se conhecêsseis o
dom de Deus!» Amém.
(Afonso
Rocha:
Comentário para o terceiro domingo da quaresma - A). |