Sobre a expiação que todos devem
ao Sagrado Coração de Jesus
I
– Introdução
Aparição de Jesus à Santa Margarida Maria Alacoque
1-
Nosso Misericordioso Redentor depois de conquistar a salvação da
raça humana no madeiro da Cruz e antes da Sua ascensão ao Pai
deste mundo, disse aos Seus Apóstolos e discípulos que estavam
entristecidos com sua partida, para os consolar: “Vede que eu
estou convosco todos os dias até o fim do mundo”.
Voz dulcíssima cheia de segurança esperança; esta voz,
veneráveis irmãos, vem à memória facilmente tanto quantas vezes
contemplamos deste elevado monte a universal família dos homens,
trabalhando em meio a tantos males e misérias, e ainda a Igreja,
de tantas impugnações sem trégua e de tantos golpes oprimidos.
Esta divina promessa, assim como no princípio levantou os ânimos
abatidos dos Apóstolos e, levantados, os incendiou e os inflamou
para propagarem a semente da doutrina evangélica em todo mundo,
assim depois alegou à Sua Igreja a vitória sobre as portas do
inferno. Certamente, em todo o tempo Nosso Senhor Jesus Cristo
esteve presente junto à Sua Igreja; porém, Ele esteve com
especial auxilio e protecção nas vezes em que a viu cercada de
mais graves perigos e moléstias, para subministrar-lhe os
remédios convenientes à sua condição nos tempos e nas coisas,
com aquela Divina Sabedoria que “toca de extremo a extremo com
fortaleza e a tudo dispõe com suavidade”.
Porém “não se intimidou a mão do Senhor”
nos tempos mais próximos: especialmente quando se introduziu e
se difundiu amplamente aquele erro do qual era de se temer que
em certo modo se secara as fontes da vida cristã para os homens,
afastando-os do amor e do trato para com Deus.
Mas, todavia, como alguns do povo talvez desconhecessem e outros
desdenhassem aquelas queixas do amantíssimo Jesus quando
apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque, que manifestou
esperar e querer aos homens, para o proveito deles, apraz-nos,
veneráveis irmãos, dizer-lhes algo acerca da honesta satisfação
a que estamos obrigados em respeito ao Coração Santíssimo de
Jesus com o desígnio de que cada um de vós os comunique e ensine
a seu rebanho e o exorte a praticá-lo.
2-
Entre todos os testemunhos da infinita bondade de Nosso Redentor
resplandece singularmente o fato de que, quando a caridade dos
fieis se torna tíbia, a caridade de Deus se apresenta para ser
honrada com culto especial, e os tesouros de sua bondade se
descobriram por aquela forma de devoção com que damos culto ao
Coração Sacratíssimo de Jesus “em quem está escondido todos os
tesouros de sua sabedoria e ciência”.
Pois assim como em outros tempos quis Deus que aos olhos da
linhagem humana que saía da arca de Noé resplandecesse como
sinal de pacto e de amizade “um arco que apareceu nas nuvens”,
assim nos turbulentíssimos tempos da modernidade, serpeando a
heresia jansenista, a mais astuta de todas, inimiga do amor de
Deus e da piedade que prega que não tanto há de amar-se a Deus
como Pai quanto temê-lo como implacável juiz, o benigníssimo
Jesus mostrou Seu Coração como bandeira de paz e de caridade
desprendida sobre as pessoas assegurando a vitória certa no
combate. A este propósito, nosso predecessor Leão XIII, de feliz
memória, em sua encíclica Annum Sacrum, admirando
oportunamente a devoção ao Sacratíssimo Coração de Jesus não
vacilou em escrever: “Quando a Igreja nascente se encontrava
oprimida pelo jugo dos Césares, apareceu no céu, a um jovem
imperador, uma cruz, presságio e ao mesmo tempo autora da
vitória esplêndida que imediatamente se seguiu. Eis que hoje se
oferece aos nossos olhares um outro sinal diviníssimo e
profético: o Coração Sacratíssimo de Jesus, sobreposto pela Cruz
e resplandecente, entre as chamas, de luz vivíssima. Nele são
postas todas as nossas esperanças, dele devemos implorar e
esperar a salvação dos homens”.
A
devoção ao Sagrado Coração de Jesus
3-
E com razão, veneráveis irmãos, pois neste muito agradável sinal
e nesta forma de devoção oportuna, não é verdade que se contem
ali a suma de toda religião e ainda a norma de vida mais
perfeita, com que mais eficazmente conduz os ânimos a conhecer
intimamente a Cristo Senhor Nosso, e nos impulsiona a amá-lo
mais ardentemente, e a imitá-lo com mais eficácia? Nada
estranha, pois, que nossos predecessores incessantemente tenham
protegido essa aprovadíssima devoção das discriminações dos
caluniadores e a tenham exaltado com sumos elogios e
solicitamente a fomentaram, conforme as circunstancias.
Assim, com a graça de Deus, a devoção dos fieis ao sacratíssimo
Coração de Jesus tem crescido dia a dia; daí vemos aquelas
piedosas associações, que por todas as partes se multiplicam,
para promover o culto ao Coração Divino; e daí o costume, hoje
já estendido em todo o mundo, de comungar na primeira sexta
feira de cada mês, conforme o desejo de Jesus Cristo.
A
consagração
4-
Mas entre tudo quanto propriamente se refira ao Culto do
Sacratíssimo Coração de Jesus, salienta-se a piedosa e memorável
consagração com que nos oferecemos ao Coração Divino de Jesus,
com todas nossas coisas, reconhecendo-as como recebida da eterna
bondade de Deus. Depois que nosso Salvador, movido mais que por
seu próprio direito, por sua imensa caridade para connosco,
ensinou à inocentíssima discípula de seu coração, Santa
Margarida Maria, o quanto desejava que os homens lhe rendessem
esse tributo de devoção, ela foi, com seu director espiritual o
padre Cláudio da La Colombière, a primeira a render esse culto
ao Sagrado Coração de Jesus. Seguiram, depois deles, durante o
tempo, os indivíduos particulares, depois as famílias privadas e
as associações e, finalmente, os magistrados, as cidades e os
reinos.
Mas, como no século precedente ao nosso, pelas maquinações dos
ímpios se chegou a desprezar o império de Cristo Nosso Senhor e
a se declarar publicamente a guerra contra a Igreja, com leis e
moções populares contrárias ao direito divino e à lei natural,
houve até mesmo assembleias que chegaram a gritar “não queremos
que reine sobre nós”
por essa consagração que dizíamos, a voz de todos os amantes do
Coração de Jesus prorrompiam unânimes opondo acirradamente, para
proteger a Sua gloria e assegurar seus direitos: “é necessário
que Cristo reine,
venha a nós o Vosso reino”. Do qual foi consequência feliz que
todo género humano, que por nativo direito possuem Jesus Cristo,
único por quem todas as coisas são restauradas,
ao começar este século, se consagra ao Coração Sacratíssimo de
Jesus, por nosso predecessor Leão XIII, de feliz memória,
aplaudida por todo orbe cristão.
Começos tão alegres e agradáveis, nós, como já dissemos em nossa
Encíclica “Quas Primas” acendendo aos desejos e as preces
reiteradas e numerosas de bispos e fieis, com o favor de Deus
completamos e aperfeiçoamos tudo, quando, ao término do ano
jubilar, instituímos a festa de Cristo Rei e sua solene
celebração em todo orbe cristão. Quando isso fizemos, não só
declaramos o sumo império de Jesus Cristo sobre todas as coisas,
sobre a sociedade civil e domestica e sobre cada um dos homens,
mas também pressentimos o júbilo daquele faustíssimo dia em que
o mundo inteiro espontaneamente e de bom grado aceitará a
dominação suavíssima de Cristo Rei. Por isso ordenamos também
que no dia desta festa se renovasse todos os anos aquela
consagração para conseguir mais certa e abundantemente seus
frutos e para unir todos os povos com o vínculo da caridade
cristã e a conciliação da paz no coração de Cristo – Rei dos
reis e Senhor dos que dominam.
II
– Expiação ou Reparação
5-
A estes deveres, especialmente a consagração, tão frutífera e
confirmada na festa de Cristo Rei, necessário é acrescentar
outro dever, do qual um pouco mais extensamente queremos,
veneráveis irmãos, falar a vós nesta presente carta; nos
referimos ao dever de tributar ao Sacratíssimo Coração de Jesus
aquela satisfação honesta que se chama reparação.
Se
a primeiro e principal aspecto da consagração é que ao amor do
Criador responda o amor da criatura, segue-se espontaneamente
outro dever: o de compensar as injúrias de algum modo proferidas
ao amor incriado, se esse amor foi desdenhado com esquecimentos
e com ultrajes através de ofensas. A esse dever chamamos
vulgarmente de reparação.
E
se as mesmas razões nos obrigam a um e ao outro, com mais
preeminente título de justiça e de amor estamos obrigados ao
dever de reparar e de expiar: de justiça, enquanto expiação da
ofensa feita a Deus por nossas culpas e enquanto a reintegração
da ordem violada pela penitência; e também de amor, enquanto
podemos padecer com Cristo “paciente e saturado de opróbrio”, e,
em nossa pobreza, oferecer-lhe algum consolo.
Pecadores como somos todos, envolvidos de muitas culpas, não
temos de nos limitar a honrar ao nosso Deus somente com aquele
culto no qual adoramos e damos os obséquios devidos a Sua
Majestade suprema, ou nos reconhecemos suplicantes o Seu
absoluto domínio, ou louvamos com acções de graças na sua
grandeza infinita, senão que, mais do que isto, é necessário
satisfazer a Deus, Juiz justíssimo, “por nossos inúmeros
pecados, ofensas e negligências”. A consagração, pois, com que
nos oferecemos a Deus com aquela santidade e firmeza que, como
disse o Angélico, são próprias da consagração,
há de se acrescentar a expiação, com que os pecados são
totalmente extintos, para que não aconteça que a santidade da
divina justiça rechace nossa indignidade imprudente, e repulse
nossa oferenda, sendo ingrato, em vez de aceitá-la como
agradável.
Este dever de expiação é incumbido a todo género humano, pois,
como sabemos pela fé cristã, depois da caída miserável de Adão,
o género humano, infectado de culpa hereditária, sujeito às
concupiscências e miseramente depravado, havia merecido ser
arremessado às ruínas eternas. Soberbos filósofos de nossos
tempos, seguindo o antigo erro de Pelágio, isto negam ostentando
certa virtude inata na natureza humana, que por suas próprias
forças continuamente progride a perfeições cada vez mais altas;
porém, a essas injecções do orgulho rejeita o Apóstolo quando
nos adverte que “éramos por natureza filhos da ira”.
E,
com efeito, já desde o princípio os homens de certo modo
reconhecem o dever daquela comum expiação e começaram a praticar
guiados por certos sentidos naturais, oferecendo a Deus
sacrifícios, mesmo públicos, para aplacar a Sua Justiça.
A
expiação de Cristo.
6-
Porém, nenhuma força criada era suficiente para expiar os crimes
dos homens se o Filho de Deus não houvesse tomado a humana
natureza para repará-los. Assim o anunciou o mesmo Salvador dos
homens pelos lábios do sagrado salmista: “Hóstia e oblação não
quisestes, mas me deste um corpo. Holocaustos pelo pecado não te
agradaram; então disse: Eis-me aqui”.
E “certamente Ele levou nossas enfermidades e sofreu as nossas
dores; e ferido foi pelas nossas iniquidades”;
e “levou nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro”;
“apagando o documento escrito contra nós, quitando este
documento e cravando-o na cruz”,
“para que mortos ao pecado, vivamos para a justiça”.
Expiação nossa, sacerdotes de Cristo.
7-
Mas, ainda que a copiosa redenção de Cristo superabundantemente
“perdoou nossos pecados”;
porém, por aquela admirável disposição da divina Sabedoria,
segundo a qual há de completar-se em nossa carne o que falta à
Paixão de Cristo em seu corpo que é a igreja,
ainda às orações e satisfações “que Cristo ofereceu a Deus em
nome dos pecadores” podemos e devemos acrescentar também as
nossas.
8-
Necessário é não esquecermos nunca que toda força da expiação
vem unicamente do cruento sacrifício de Cristo, que de modo
incruento se renova sem interrupção em nossos altares; pois,
certamente, “é uma e a mesma a Hóstia, o mesmo que agora se
oferece mediante o ministério dos sacerdotes que aquele que
antes se ofereceu na cruz; somente é diferente o modo de
oferecer”;
pelo qual deve unir-se com este augustíssimo sacrifício
Eucarístico a imolação dos ministros e dos fiéis, para que
também se ofereçam com “Hóstias vivas, santas e agradáveis a
Deus”.
Assim, não duvida afirmar São Cipriano “que o sacrifício do
Senhor não se celebra com a satisfação devida se não se
corresponder à Paixão a nossa oblação e nosso sacrifício”.
Por
isto nos admoesta o Apóstolo que, “levando em nosso corpo a
mortificação de Jesus”,
e com Cristo sepultados e plantados, não somente à semelhança de
sua morte crucifiquemos nossa carne com seus vícios e
concupiscências,
“fugindo do que no mundo é corrupção e concupiscência”,
senão que também “em nossos corpos se manifeste à vida de Jesus”,
e feitos partícipes de seu eterno sacerdócio “ofereçamos dons e
sacrifício pelos pecados”.
Não
somente gozam da participação deste misterioso sacerdócio e
deste dever de satisfazer e sacrificar aqueles de quem Nosso
Senhor se serve para oferecer a Deus a oblação imaculada desde o
oriente até o ocaso em todo lugar,
senão também todo o rebanho cristão, chamado com razão pelo
Príncipe dos apóstolos de “raça escolhida, real sacerdócio”,
deve oferecer por si e por todo o género humano sacrifício pelos
pecados, quase da própria maneira que todo sacerdote e pontífice
“tomado entre os homens e a favor dos homens é constituído no
que diz respeito a Deus”.
E
quanto mais perfeitamente corresponda ao sacrifício do Senhor
nossa oblação e sacrifício, que consiste em imolar nosso amor
próprio, nossas concupiscências e em crucificar nossa carne com
aquela crucificação mística de que fala o Apóstolo, tantos mais
abundantes frutos de propiciação e de expiação para nós e para
os demais perceberíamos. Há uma relação maravilhosa dos fiéis
com Cristo, semelhante com a que há entre a cabeça e os demais
membros do corpo, dessa mesma forma há uma misteriosa comunhão
dos santos, que pela fé católica professamos, por onde os
indivíduos e os povos não só se unem entre si, mas também com
Jesus Cristo, que é a cabeça; “do qual todo corpo é composto e
bem ligado por todas as suas juntas, segundo a operação
proporcionada de cada membro, recebe aumento próprio,
edificando-se no amor”.
O qual, o mesmo mediador de Deus e os homens, Nosso Senhor Jesus
Cristo próximo à morte, pediu ao Pai: “Eu neles e Tu em mim,
para que sejam consumados na unidade”.
Assim, pois, como a consagração professa e afirma a união com
Cristo, assim a expiação dá principio a esta união apagando as
culpas, a aperfeiçoa participando de seus padecimentos e a
consuma oferecendo sacrifícios pelos irmãos. Tal foi, certamente
o desígnio do Misericordioso Jesus quando quis revelar seu
Coração com os emblemas da sua paixão e espargindo de si chamas
de caridade: que olhando de um lado a malicia infinita do pecado
e de outro a infinita caridade do Redentor, mais veementemente
detestássemos o pecado e mais ardentemente correspondêssemos à
sua caridade.
Comunhão Reparadora e Hora Santa
9-
E certamente no culto ao Sacratíssimo Coração de Jesus tem a
primazia e a parte principal o espírito de expiação e reparação;
não há nada mais conforme a origem, índole, virtude e práticas
próprias dessa devoção, como a história, a tradição, a sagrada
liturgia e as atas dos Santos Pontífices confirmam.
Quando Jesus Cristo apareceu a Santa Margarida Maria,
pegando-lhe a infinidade de sua caridade, juntamente, como
sofrido, se queixa de tantas injúrias que recebe dos homens com
essas palavras que haveriam de se gravar nas almas mais piedosas
de maneira que jamais se esquecessem: “Eis aqui o Coração que
tanto tem amado os homens, e de tantos benefícios os tem
cumulado, e que em troca ao seu infinito amor não recebe nenhuma
gratidão, mas apenas ultrajes, e às vezes ainda daqueles que
estão obrigados a amá-lo com especial Amor”. Para reparar estas
e outras culpas recomendou entre outras coisas que os homens
comunguem com ânimo de expiar, que é o que chamamos de Comunhão
Reparadora, e as súplicas e preces durante uma hora, que se
chama propriamente de Hora Santa; exercícios de piedade que a
Igreja não só aprovou, senão que enriqueceu com copiosos favores
espirituais.
Consolar a Cristo
10-
Mas como poderão estes actos de reparação consolar a Cristo que
ditosamente reina nos céus? Respondemos com as palavras de Santo
Agostinho, “Dá-me um coração que ame e sentirás o que digo”.
Uma
alma verdadeiramente amante de Deus, se volta ao passado, vê a
Jesus Cristo trabalhando, doente, sofrendo duríssimas penas “por
nós homens e por nossa salvação”, tristezas, angústias,
opróbrios, “esmagado por nossas culpas”
curando-nos com suas chagas. Quanto mais profundamente penetram
as almas piedosos nesses mistérios mais claro veem que os
pecados dos homens em qualquer tempo cometidos foram a causa
pela qual o Filho de Deus se entregou à morte: e ainda agora
esta mesma morte, com suas mesmas dores e tristezas, de novo Lhe
ferem, já que cada pecado renova a seu modo a paixão do Senhor,
conforme diz o apostolo: “novamente crucificam o Filho de Deus e
o expõe a vilipêndios”.
Por causa também dos nossos pecados futuros, por Ele previstos,
a alma de Cristo esteve triste até a morte; sem dúvida, algum
consolo Cristo recebia também de nossa reparação futura, que foi
prevista quando o anjo do céu Lhe apareceu
para consolar seu Coração oprimido de tristeza e angústias.
Assim, podemos e devemos consolar aquele Coração Sacratíssimo,
incessantemente ofendido pelos pecados e pelas ingratidões dos
homens, por este modo admirável, mas verdadeiro; pois, como se
diz na Sagrada Liturgia, o mesmo Cristo se queixa a seus amigos
de desamparo, dizendo pelos lábios do Salmista: “Impropério e
miséria esperou meu coração: e busquei quem compartilhasse da
minha tristeza e não houve ninguém; busquei quem me consolasse e
não encontrei”.
A
paixão de Cristo no Seu Corpo, a Igreja
11.
Acrescenta-se que a Paixão expiadora de Cristo se renova e de
certo modo continua e se completa no Corpo místico de Cristo,
que é a Igreja; pois, servindo-nos das palavras de Santo
Agostinho:
“Cristo padeceu quanto devia padecer, e nada falta à medida de
Sua Paixão. Completa está a paixão, mas na Cabeça; faltava ainda
a paixão de Cristo em Seu Corpo”. Nosso Senhor se dignou
declarar isto mesmo quando, aparecendo a Saulo, “que respirava
ameaças e morte contra o discípulos”,
Ele lhe disse: “Eu sou o Jesus, a quem tu persegues”;
significando claramente que nas perseguições contra a Igreja é à
Cabeça divina da Igreja a quem se maltrata e se desafia. E isso
com razão, porque, Jesus Cristo, que ainda padece em Seu Corpo
Místico, deseja ter-nos por sócios na expiação, e isto pede como
sendo nossa própria necessidade; porque sendo como somos “corpo
de Cristo, e cada um, por outra vez, membro”,
é necessário que o que padeça a Cabeça isto com ela os membros.
Necessidade actual de reparação por tantos pecados
12.
Quanto seja, especialmente em nossos tempos, a necessidade desta
expiação e reparação, não deixará de ser visto por quem olhe e
contemple este mundo, como nós dissemos, “que está sob poder do
mal”.
De todas as partes sobe a nós o clamor dos povos que gemem,
cujos príncipes ou governantes se congregaram e conspiraram
unidos contra o Senhor e Sua Igreja.
Por essas regiões nós vemos atropelados todos os direitos
divinos e humanos; demolidos e destruídos os templos, os
religiosos e as religiosas expulsas de suas casas, afligidos com
ultrajes, tormentos, cárceres e fome; multidões de meninos e
meninas arrancadas do seio da Mãe Igreja, e induzidos a
renunciar e blasfemar contra Jesus Cristo e induzidos também aos
mais horrendos crimes da luxúria; todo povo cristão duramente
ameaçado e oprimido, colocados na difícil situação de apostatar
da fé ou de padecer uma terrível morte. O mais triste de tudo
isto é que nestes acontecimentos parecem manifestar-se “o
princípio daquelas dores” que haviam que preceder “ao homem de
pecado que se levanta contra tudo que se chama Deus ou que se
adora”.
Ainda é mais triste,
veneráveis irmãos, que entre os mesmos
fieis lavados no baptismo com o sangue do Cordeiro Imaculado e
enriquecidos com a graça, tenha tantos homens, de toda a ordem
ou classe, com incrível ignorância das coisas
divinas, infectados por falsas doutrinas, vivem vida cheia
vícios, longe da casa do Pai; vida
não iluminada pela luz da fé, nem encorajada pela esperança da
felicidade futura, nem aquecida e fomentada pelo calor da
caridade, de forma que eles parecem verdadeiramente sentados na
escuridão e na sombra da morte. Também se espalha cada vez mais
entre os fiéis a negligência da disciplina eclesiástica e
daquelas antigas instituições em que toda vida cristã se funda e
com que a sociedade doméstica é governada e se defende a
santidade do matrimónio; totalmente menosprezada ou depravada
com lisonjas de bajulação a educação das crianças, até mesmo
negada à Igreja a faculdade de educar a juventude Cristã;
o esquecimento deplorável da modéstia cristã na vida e
principalmente no vestido da mulher; a cobiça desenfreada das
coisas perecíveis, o desejo desproporcional das honrarias
mundanas; a difamação da autoridade
legítima e, finalmente, o desprezo da palavra de Deus, com a
qual a fé é destruída ou se põe a bordo da ruína.
Formam o cúmulo
destes males a preguiça e a loucura dos que, dormindo ou
escapando como os discípulos, vacilantes na fé, miseravelmente
desampararam a Cristo, oprimido de angústias ou rodeado dos
satélites de Satanás; ajuntam-se a estes males a deslealdade dos
que, à imitação do traidor Judas, ou temerária ou sacrilegamente
comungam ou passam para os acampamentos inimigos. Deste modo,
inevitavelmente, se nos apresenta a ideia de que se aproximam os
tempos vaticinados por Nosso Senhor: “e porque abundará a
iniquidade, se esfriará a caridade de muitos”.
O
desejo ardente de reparar
13.
Quanto mais fieis meditarem tudo isso piamente, não poderão
deixar de sentir, incendiados de amor por Cristo afligido, o
desejo ardente de expiar as suas culpas e as dos outros; de
reparar a honra de Cristo, de ajudar na salvação eterna das
almas. As palavras do Apóstolo: ” Onde abundou o pecado,
superabundou a graça”,
de alguma maneira também se acomodam para descrever nossos
tempos; porque embora a perversidade dos homens cresça
incrivelmente, maravilhosamente cresce também, inspirando o
Espírito Santo, o número de fieis de um e outro sexo que com
ânimo resoluto procuram satisfazer ao Coração divino por todas
as ofensas que lhe são feitas, e não duvidam ainda em se
oferecer a Cristo como vitimas.
Quem com amor medite tudo quanto dissemos e no fundo do coração
o gravem, não poderão deixar de odiar de se abster de todo
pecado como sendo ele o sumo mal, e se entregarão à vontade
Divina trabalhando, também, para reparar a honra ofendida da
Divina Majestade, seja rezando assiduamente, seja sofrendo
pacientemente as mortificações voluntárias e as aflições que
sobrevierem, seja, em resumo, ordenando à reparação toda sua
vida.
Aqui têm sua origem muitas famílias religiosas de homens e
mulheres que, com zelo fervente e como ambiciosos de servir, se
propõem fazer dia e noite as vezes do Anjo que consolou Jesus no
Horto; daqui surgem as piedosas associações aprovadas pela Sé
Apostólica e enriquecidas com indulgências, que fazem suas
também este ofício de expiação com exercícios convenientes de
piedade e de virtudes; finalmente daqui surgem os frequentes e
solenes actos de desagravo encaminhados a reparar a honra
Divina, não só pelos fiéis particulares, senão também pelas
paróquias, dioceses e cidades.
III – A DEVOÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
Causa de muitos bens
14.
Pois bem, veneráveis irmãos, assim como a devoção da
consagração, em seus começos humildes, estendeu-se depois,
começa a ter seu esplendor desejado com nossa confirmação, a
devoção da expiação ou reparação, de um princípio santamente
introduzido e santamente propagado. Nós desejamos muito que,
mais firmemente sancionada por nossa autoridade apostólica, mais
solenemente seja praticado por todo o universo católico. A este
fim dispomos e mandamos que todos os anos na festa do Sagrado
Coração Jesus – festa que com esta ocasião ordenamos que se
eleve ao grau litúrgico de primeira classe com oitava – em todos
os templos do mundo se reze solenemente o ato de reparação ao
Sacratíssimo Coração de Jesus, cuja oração colocaremos ao pé
desta carta para que se reparem nossas culpas e se restituam os
violados direitos de Cristo, Sumo Rei e amantíssimo Senhor.
Não
é de duvidar, veneráveis irmãos, senão que desta devoção
santamente estabelecida e mandada para a Igreja inteira, muitos
e preclaros bens sobrevirão não só aos indivíduos, mas para a
sociedade sagrada, para a civil e a doméstica, já que nosso
mesmo Redentor prometeu a Santa Margarida Maria “que todos
aqueles que com esta devoção honrarem Seu Coração, serão
cumulados de graças do céu”.
Os
pecadores, certamente, “vendo aquele que traspassaram”,
e comovidos pelos gemidos e gritos de toda Igreja,
entristecendo-se pelas injúrias proferidas ao Rei Supremo,
“voltarão ao seu coração”;
não aconteça que, obcecados e impenitentes por suas culpas ,
quando virem Aquele a quem feriram ” vindo nas nuvens do céu”
tarde e em vão eles chorem diante Ele.
Os
justos serão justificados cada vez mais e se santificarão, com
novos fervores se entregarão ao serviço de seu Rei, a quem veem
ser tão menosprezado, combatido e de tantas maneiras ultrajado;
porém, especialmente se sentirão inflamados a trabalhar pela a
salvação das almas, compenetrados daquelas queixas da Vítima
divina: “Qual é a utilidade do meu sangue”?;
e daquela alegria que receberá o Sagrado Coração de Jesus “por
um único pecador que fizer penitência”.
Especialmente anelamos e esperamos que aquela justiça de Deus,
que por dez justos movido à misericórdia perdoou os de Sodoma,
muito mais perdoará a todos os homens, suplicantemente invocada
e felizmente aplacada por toda a comunidade dos fieis unidos com
Cristo, seu Mediador e Cabeça.
A
Virgem Reparadora
15.
Cheguem, finalmente, à benigníssima Virgem Mãe de Deus nossos
desejos e esforços, porque quando nos deu o Redentor, quando o
alimentava, quando ao pé da cruz O ofereceu como hóstia, por sua
união misteriosa com Cristo e singular privilégio de sua graça
foi, como se diz piamente, reparadora. Nós, confiados na Sua
intercessão junto de Cristo, que sendo o “único Mediador entre
Deus e o homens”,
quiz associar-Se a sua Mãe elegendo-A como advogada dos
pecadores, dispensadora da graça e mediadora, amantissimamente
vos damos como penhor dos dons celestiais de nossa paternal
benevolência, a vós, veneráveis irmãos, e a todo o rebanho
confiado a vossos cuidados, a bênção apostólica.
Dado em Roma, junto a São Pedro, dia 8 de maio de 1928, sétimo
ano de nosso pontificado.
***
ORAÇÃO REPARADORA
AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
Dulcíssimo Jesus, cuja infinita caridade para com os homens é
deles tão ingratamente correspondida com esquecimentos, friezas
e desprezos: eis-nos aqui prostrados diante do vosso altar, para
vos desagravarmos, com especiais homenagens, da insensibilidade
tão insensata e das nefandas injúrias com que é de toda a parte
alvejado o vosso amorosíssimo Coração. Reconhecendo, porém, com
a mais profunda dor, que também nós mais de uma vez cometemos as
mesmas indignidades, para nós em primeiro lugar imploramos a
vossa misericórdia, prontos a expiar não só as próprias culpas,
senão também as daqueles que, errando longe do caminho da
salvação, ou se obstinam na sua infidelidade, não vos querendo
como Pastor e Guia, ou, conculcando as promessas do baptismo,
sacudiram o suavíssimo jugo da Vossa santa lei.
De
todos estes tão deploráveis crimes, Senhor, queremos nós hoje
desagravar-vos, mas particularmente da licença dos costumes e
imodéstias do vestido, de tantos laços de corrupção armados à
inocência, da violação dos dias santificados, das execrandas
blasfémias contra Vós e vossos Santos, dos insultos ao vosso
Vigário e a todo o vosso Clero, dos desprezo e das horrendas e
sacrílegas profanações do sacramento do divino amor, enfim, dos
atentados e rebeldias oficiais das nações contra os direitos e o
magistério da vossa Igreja.
Oh!
Se pudéssemos lavar com o próprio sangue tantas iniquidades!
Entretanto para reparar a honra divina ultrajada vos oferecemos,
juntamente com os merecimentos da Virgem Mãe, de todos os Santos
e almas piedosas, aquela infinita satisfação, que Vós
oferecestes ao Eterno Pai sobre a cruz, e que não cessais de
renovar todos os dias sobre nossos altares.
Ajudai-nos Senhor, com o auxílio da vossa graça, para que
possamos, como é nosso firme propósito, com a viveza da fé, com
a pureza dos costumes, com a fiel observância da lei e da
caridade evangélicas, reparar todos os pecados cometidos por nós
e por nossos próximos, impedir, por todos os meios, novas
injúrias de vossa divina Majestade e atrair ao Vosso serviço o
maior número de almas possível.
Recebei, ó benigníssimo Jesus, pelas mãos de Maria Santíssima
Reparadora, a espontânea homenagem deste nosso desagravo e
concedei-nos a grande graça de perseverarmos constantes até à
morte no fiel cumprimento dos nossos deveres e no vosso santo
serviço, para que possamos chegar todos à pátria bem-aventurada,
onde vós com o Pai e o Espírito Santo, viveis e reinais – Deus –
por todos os séculos dos séculos. Assim seja.
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