PÁGINAS DE POLÉMICA

MARAVILHOSO, PATOLÓGICO
OU SUBCONSCIENTE?

Na casa que foi da Beata Alexandrina existe um exemplar do Mensageiro de Maria. Que saibamos, é caso único. É o de Março de 1942, um pouco posterior portanto ao artigo que o P.e A. Veloso fizera sair na Brotéria com o título de «A mística e a medicina». Neste número da revista, que o P.e Mariano Pinho ainda dirigia (vai em breve ser-lhe retirada essa direcção que era sua de há mais de dez anos), vem um artigo que é sem dúvida a resposta do director da Beata Alexandrina ao seu colega e rival. Até porque o mesmo P.e Mariano Pinho classifica em No Calvário de Balasar o artigo do P.e A. Veloso de «anódino», paga a pena ler este com toda a atenção. E nunca podemos esquecer o que dele declarou Jesus: «Ele será sempre um mestre de grandes almas».

 

Aparições de Fátima, milagres de Fátima… milagres de S. João de Brito… vida da Jacinta a rescender a suave fragrância de influxos divinos… e ainda haverá mais?

Aura riquíssima de maravilhas envolve nesta hora a terra de Santa Maria e, como garantia a autenticar a verdade dessas maravilhas, a doce graça da paz de que desfruta Portugal, enquanto o universo arde em guerra.

Por outro lado, para contraste, ou para embaraço — imaginárias aparições da Senhora do Pinheiro, estigmas abertos à navalhada a simular chagas de Cristo, curas milagrentas por meios repugnantes… é o doentio, o fraudulento, manejado por vezes pelo espírito da treva, a macaquear o divino, para tudo envolver na mesma atmosfera de descrédito, no intuito de embargar, se possível for, os desígnios de Deus.

História contemporânea?... História de sempre, sobretudo a partir do Evangelho, mas talvez hoje mais abundante em factos do que nunca.

E nota-se invariavelmente isto: logo que aparecem essas maravilhas, reais ou fictícias, parte-se em dois campos a opinião, uns contra, outros a favor, pelo menos enquanto os factos não impõem pela evidência a realidade ou a fraude.

Urge por isso ter à mão um critério que nos dite a atitude digna e prudente em presença de tais factos. Ideias claras, doutrina clara traçar-nos-ão caminho claro.

Preconceitos não dão luz. Adesões ou repulsões irreflectidas podem dar no ridículo ou no desastroso. Tão imprudente é o que precipitadamente proclama como verdadeiros os supostos fenómenos extraordinários como o que precipitadamente os condena.

Mas, evidentemente, não é ao vulgo que havemos de confiar a tarefa de discernir a verdade nos casos concretos. Venham os técnicos, examinem, estudem, decidam.

Estão naturalmente indicados no assunto de curas milagrosas e fenómenos místicos o teólogo, o médico e, como poderoso auxiliar de um e outro, o psicólogo-filósofo.

Claro está que nem a mística é da competência da medicina, nem a medicina da competência da mística. Sucede porém frequentemente terem ambas à uma entre mãos o estudo do mesmo indivíduo em concreto e de nele se observarem manifestações que simultaneamente interessam a ambas e cuja natureza não poderia cientificamente estabelecer-se sem o concurso das duas.

É o caso das curas milagrosas; é o caso de vários fenómenos místicos.

 

Expliquemo-nos:

A vida mística é neste mundo o grau supremo da vida espiritual, dá-a Deus gratuitamente a quem Lhe apraz, por seus desígnios; não está necessariamente ligada a acção pessoal ou sacramental do indivíduo.

Há nela de um modo geral, duas espécies de graças: primeira, a principal, é a contemplação ou união místicas, com os seus diferentes graus de união incompleta, ou oração de quietude, união plena ou semi-extática, união extática (suave, cruciante), união transformante ou deificante ou desposório espiritual.

A segunda espécie de graças são os fenómenos extraordinários, uns mais directamente de ordem intelectual (revelações, palavras sobrenaturais, visões, toques divinos); outros de ordem psicofisiológica (levitação, eflúvios luminosos, odoríferos, jejum absoluto prolongado, estigmatização, bilocação); poderemos ao lado destes colocar (para o nosso intento) os de ordem diabólica: obsessões e possessões.

Não é aqui lugar de explicarmos a natureza de cada uma destas graças ou manifestações, pois transformaríamos o artigo num tratado de mística.

Todos os mestres da vida espiritual são acordes em assinalar o primeiro lugar de importância ao primeiro género de graças, em comparação do segundo.

No entanto, pode dizer-se que é o segundo género que reclama em muitos casos, para serem diagnosticados com probabilidade de acerto, a luz conjunta da teologia, da medicina e da psicologia. Porque, como observa H. Bless, «não é fácil nem na teoria nem na prática, dizer onde começa exactamente um estado psicopatológico, nem estabelecer a demarcação exacta entre os fenómenos normais e os fenómenos anormais da vida psíquica» [1].

Note-se contudo, desde já, a atitude da Igreja diante desses fenómenos, quando eles se manifestam na vida de homens ilustres pela santidade. «Admite de um modo geral a sua possibilidade e existência, como lembra o P. Marechal, mas não lhe interessa o seu mecanismo. Os graus místicos foram para determinada pessoa piedosa escala de santidade? São conformes ao ideal evangélico? A Igreja aprovará convencida de que todo o efeito bom e salutar é secundado pela graça divina» [2].

Mas observa também Pacheu, «a Igreja não declara ordinariamente, pelo exame psicológico dos fenómenos, a intervenção de Deus nisto ou naquilo, nem estabelece cientificamente o modo misteriosos destas comunicações. Sobre este ponto deixa uma grande latitude aos sistemas de explicação. Do que ela julga é do efeito produzido, das virtudes e da santidade moral» [3].

Ensinou Bento XIV que ao exame das revelações e visões deve preceder o das virtudes, ainda que essas visões pareçam apresentar o cunho de divinas [4].

Fica então campo aberto aos técnicos para o estudo desses fenómenos.

Mas quem serão os técnicos? A que escola os vamos buscar: aos demasiadamente crédulos ou aos demasiadamente incrédulos?

«Uma credulidade religiosa excessiva quis por vezes atribuir carácter sobrenatural a factos que nada tinham de sobrenatural. Uma credulidade materialística insuficientemente dotada de espírito crítico – é um médico que fala – quis igualmente arrumar tudo num sistema explicativo. Por ignorância, há católicos que desprezam esplêndidos milagres; por ignorância religiosa há ateus que assemelham entre si factos completamente diferentes» [5].

E já antes tinha dito o mesmo autor: «dois escolhos ameaçam o médico nas suas investigações. Por um lado pode falhar-lhe a competência a respeito dos fenómenos biológicos em questão: até os especialistas encontra por vezes dificuldades em acertar; por outro lado, se recebeu uma formação universitária laica, o médico ignora os factos análogos àqueles que tem que examinar, ou possui apenas um conhecimento insuficiente [6].

Médico ou psicólogo que não admite a existência do sobrenatural, ou nunca estudou fenómenos místicos, facilmente, em presença de manifestações sensíveis de origem preternatural, decretará sumariamente que se trata de mais um caso patológico de nevrose ou psicose.

«Se houve teólogos – lamente Henri Bon – que se preocuparam muito de biologia e medicina a ponto de reduzirem a um mínimo o sobrenatural (característica do erro modernista), houve médicos que tinham a tendência de dissertar sobre questões médico-religiosas sem a documentação filosófica e religiosa necessária» [7].

Os que como Sergi afirmam que todo o sentimento religioso é patológico, ou como Régis consideram as ideias religiosas como coisas que predispõem para a loucura, carecem de competência para ajuizar de tais fenómenos.

Também nos devem ser suspeitos os que por exemplo, em face dos grandes milagres de Lourdes, enfileiram ao lado de Carlos Richet. Carlos Richet esforça-se por dar uma explicação dos milagres de Ruder e Galgam. Aceita a realidade dessas curas extraordinárias; diz mais: que não obsta a histeria para dar razão dos factos. Mas não consente a intervenção duma força metapsíquica nova. «Tais casos indicam apenas – diz ele – que o sistema nervoso central, em certas condições, possui um poder excepcional sobre os fenómenos orgânicos» [8]. Pronto! É assim, porque ele o disse!...

Vachet não hesita em falar deste modo: «a alegria excita a secreção do fígado, o qual elabora açúcar em maior quantidade, proporcionando assim mais combustível à máquina humana. Excita igualmente a leucocitose, facilitando a destruição das toxinas e a produção de anticorpos. Elimina a proliferação celular e em proporções consideráveis o processo de cicatrização.

As emoções que nascem da alegria, da esperança exercem uma poderosa acção sobre a vitalidade do organismo e podem supor-se modificações fisiológicas produzidas, quando o ser humano galvanizado pela fé, submetido à magia duma grandiosa decoração, impressionado pelo fervor dos cânticos e das súplicas, invoca com todo o desejo a cura milagrosa. Ainda mais que o médico, a cerimónia de Lourdes desperta no enfermo uma nova energia excitando intensamente o seu sistema simpático. Esta excitação não poderia prolongar-se muito tempo, mas as bruscas melhoras que suscita livram o enfermo da depressão fatal em que estava submergido… a auto-sugestão que orienta a imaginação para a representação de um certo modo de funcionamento do organismo é o factor essencial do milagre» (?!) [9] Assim fala este professor da Escola de Psicologia e atestava firmemente falando à maneira de Zola: «podemos afirmar que o milagre não é tão arbitrário e livre como poderia crer-se: está sujeito a leis imutáveis e pode resumir-se assim o seu mecanismo: auto-sugestão, quebrantamento emotivo, treino durante a viagem, orações, ritos e cerimónias, fé ardente na cura e finalmente um poder formidável que se desprende das multidões e transforma as condições físicas e morais do ser humano» [10].

Dos fenómenos místicos procuram desembaraçar-se de modo análogo: ou os colocam na categoria da doença ou os atribuem a produto da subconsciência.

Para Murisier e Pedro Janet os místicos são uns abúlicos, para Max Nordau uns degenerados caracterizados por uma hiper-excitabilidade malsã de alguns centros nervosos. As visões e as palavras sobrenaturais não passam de alucinações patológicas provenientes duma deficiência de atenção voluntária, ou mais exactamente uma substituição de um modo particular da atenção automática, em vez de atenção voluntária tornada impossível.

O êxtase, que consideram o fenómeno místico por excelência, declaram-no igualmente de origem patológica. Leuba, na sua Psychologie du mysticisme religieux, chama ao êxtase uma tempestade psíquica, provocada por uma descarga nervosa, análoga à aura epiléptica…

Bessmans tratando das chagas estigmáticas, com caracteres específicos de periodicidade, de continuidade e constante frescura, isto é, sem supuração, apesar de confessar que «cientificamente deve reconhecer-se que ainda não se encontrou uma explicação natural satisfatória», vai dogmatizando entretanto que se pode presumir que uma enfermidade ainda não determinada se estabeleceu em terreno extraordinariamente sugestionável» [11].

Estes científicos esquecem neste caso o dever da verdadeira ciência que «consiste em estudar os factos e indagar-lhe as causas, quaisquer que eles possam ser» [12].

A subconsciência é o último grande refúgio dos materialistas e modernistas para explicarem as revelações, palavras sobrenaturais e outros fenómenos místicos. James Delacorix tenta resolver tudo pela actividade do subconsciente. É o sistema da moda: ainda bem se não sabe ao certo o que é a subconsciência e já é ela que dá aos sábios resposta satisfatória a problemas obscuríssimos. Admirável! É o caminho facílimo para nos desembaraçarmos de toda a acção extraordinária de Deus na alma dos seus eleitos. Para estes sábios parece-lhes ridículo que a Igreja declare doutor em assuntos místicos a S. João da Cruz.

Ainda assim, W. James vai confessando que «as negações dos racionalistas carecem de força… fica sempre em aberto a questão: os estados místicos não serão janelas que dão para um mundo mais extenso e mais completo?

As mais subidas manifestações do misticismo apresentam-nos hipóteses que os nossos raciocínios não deitam por terra» [13].

Se até pelas direitas espiritualistas, nestes prodígios são muitas vezes olhados com uma espécie de suspeita: «o espírito modernista – é de todos os tempos: é de novo Henri Bon que fala – quer-se um Deus filosófico, mas indispõe-nos um Deus que muda a água em vinho para uma boda ou permite à nossa fé deslocar uma montanha. Proporcionamos Deus à nossa medida. Consentimos-lhe que faça coisas grandes, mas coisas pequenas não, como se para o Todo-poderoso houvesse distinção entre umas e outras» … [14]

 

Em resumo: é difícil encontrar técnicos do lado da ciência com verdadeira competência para ajuizar dos fenómenos místicos. Precisa-se em primeiro lugar de quem domine perfeitamente a sua especialidade em medicina e em psicologia e nos possa dizer com verdade, com sinceridade, sem preconceitos, quais as conclusões certas a que chegou a ciência, para bem discernirmos o natural do extraordinário.

Mas em segundo lugar, que esse técnico ou técnicos saibam da existência da mística e de suas incontestáveis manifestações. E que antes de mais nada tenham compreendido que a mística não é uma doença. M. Bergson insurge-se contra os que consideram os místicos como doentes: «Quando se toma assim em seu termo a evolução dos grandes místicos, pergunta-se como foi possível assimilá-los a doentes. É certo que vivemos num estado de equilíbrio inestável, e a saúde média do espírito como a do corpo é coisa difícil de definir. Contudo há uma saúde intelectual solidamente estabelecida, excepcional que se reconhece sem trabalho.

Nota-se pelo gosto da acção, a faculdade de se adaptar e readaptar às circunstâncias, a firmeza junta à docilidade, o discernimento profético do possível e do impossível, um espírito de simplicidade que triunfa das complicações, enfim, um bom senso superior. Não é isto precisamente o que se encontra nos místicos de que falamos? E não são eles os melhores exemplos da robustez intelectual?» [15].

Não é uma doença: é um dom gratuito de Deus. Não é místico quem deseja sê-lo, nem quem tem este ou aquele feitio. Não há feitios nem temperamentos místicos. «A união mística é dom gratuito de Deus e não é determinada por nenhum elemento corporal», diz acertadissimamente o por nós já citado Dr. Henri Bon, Presidente do Comité de Franche Conté e da Société Médicale de St. Luc [16].

Além disso tenha-se premente que (não) são mais os místicos ave tão rara, como talvez à primeira vista se imagine. Fala ainda Henri Bon: «Quando pensamos que a maior parte dos santos inscritos no cânon da Igreja foram favorecidos de graças místicas, e eles são aos milhares; se advertirmos que para cada santo canonizado há inumeráveis santos ignorados ou simples pessoas piedosas que provaram as graças místicas, chegamos à conclusão que a experiência mística foi feita por milhões de almas» [17].

Citámos um autor leigo; citemos os que o não são. Poulain crê que na maior parte dos meios populosos, entre as pessoas que se dão deveras à piedade, há almas favorecidas pelas graças místicas, mesmo entre as pessoas do mundo. Contudo afirma que estes casos são frequentes nas comunidades religiosas, sobretudo nas de clausura. E alega a seu favor Santa Teresa [18].

E aos pregadores ou missionários que afirmam não ter encontrado dessas almas, responde, que se não as encontraram, não foi porque elas não existissem, mas várias circunstâncias impediram que se lhes confiassem. E são muito para se ponderar essas circunstâncias.

O P.e Arintero, na sua Evolución Mística, a cada passo ensina que muitos são os chamados à vida contemplativa, numerosos os que a iniciam e se nem todos a realizam plenamente (os que atingem os graus supremos da mística são reduzidos) é, no parecer do mesmo distinto autor, pela dificuldade árdua desses caminhos e por falta de Directores experimentados, e tem estas palavras severas: «a crassa ignorância dos caminhos de Deus, as contínuas imprudências e temeridades, a falta de zelo e quiçá sobre de zelos, as intenções rasteiras de tantos directores ineptos que não sentem, nem sabem, nem querem saber as coisas do espírito, são responsáveis diante de Deus de que a imensa maioria, o 90%, segundo o P.e Godinez, das almas que se encontram nesta aridez (fala de purgações passivas) em vez de passarem em cheio ao estado da contemplação a que Deus as chama com insistência, descaiam lastimosamente do seu primeiro fervor numa tibieza habitual ou tornem à vida mundana…» [19].

Diante de possíveis manifestações místicas deve o técnico proceder sem precipitações. «Armar-se de paciência e esperar, observando os resultados da Inquirição teológica que corroborarão, rectificarão ou talvez anularão as conclusões médicas. Não é uma questão de amor-próprio, mas de ciência; ora quando se trata de fenómenos comuns a duas disciplinas intelectuais ou a duas ciências, a conclusão definitiva não se obtém sem que os dois métodos confiram mutuamente os resultados. E nos fenómenos médico-religiosos é à teologia que pertence evidentemente a última palavra… em matéria religiosa a leviandade é inadmissível» [20].

O médico que estabeleceu exactamente o seu diagnóstico, asseverou o prognóstico e ponderou as forças agentes numa cura, conclui o mesmo autor Henri Bon, contribui assim para a glória de Deus. E é uma subida honra para a medicina ser a que mais frequentemente é chamada para dar testemunho de Deus [21].

Finalmente, a competência será incontestável se em presença de factos verdadeiramente inexplicáveis pela ciência houver a ombridade e carácter bastante para o afirmar seja diante de quem for. «Não se tem visto médicos mudar o diagnóstico depois das curas?» [22]. 

A competência da parte do teólogo nem há por que lembrá-la. Está claro que deve ele quanto possível primar antes de mais ninguém, dominando não só as ciências sagradas a que está obrigado todo o ministro do Senhor, em geral, mas possuindo bem dum modo especial a teologia mística. Felizmente hoje nos Seminários já se dá uma iniciação sobre este ramo aos futuros sacerdotes; mas quem tivesse entre mãos casos concretos a resolver precisaria de muito mais que essa iniciação sumária.

Domine bem o que dizem os mestres da Mística; a par da mística possua também quanto possível um conhecimento claro da psicologia e psiquiatria pastoral; para depois na prática poder mais facilmente distinguir o natural do sobrenatural, o patológico do são, o fraudulento ou imaginado do verdadeiro.

Assim, não chamará extraordinário – sem razões superiores bem evidentes – ao que se pode explicar por causas ordinárias naturais. Em casos duvidosos, inclinar-se-á antes a atribuir-lhes origem natural do que sobrenatural; nem temerá com essa atitude que venha a perder a causa de Deus. Uma verdadeira prudência não faz mal nenhum às causas de Deus.

Saiba antes de mais nada, em presença de casos possivelmente extraordinários, examinar bem e exigir toda a virtude sólida. E provada essa, satisfatoriamente, se não há razão nenhuma urgente para se pronunciar a respeito desses fenómenos, só ganha em esperar e em calar. Se por motivos superiores houvesse urgência de chegar à certeza, então estude, examine, exija provas irrefutáveis e, obtida a certeza, não tema afirmá-la.

Era o caso dos milagres do Evangelho quando Cristo dava vista aos cegos e fazia andar os paralíticos; é o caso das manifestações divinas em almas a quem Deus confia especial missão dentro da Igreja, como em S. Francisco de Assis e Santa Margarida Maria Alacoque.

Com competências destas não se dirá o que dizia um conhecido e autorizado Autor, com cujas palavras terminamos este nosso artigo: «É muito frequente dizer que a contemplação infusa é um dom tão extraordinário que se reserva a muitíssimo poucas almas; e que para a generalidade daquelas mesmas a quem chamam espirituais seria presunção e inútil desejá-la ou pedi-la e muito mais dispor-se para chegar a ela. Daqui essa funesta persuasão de que, para ser bom director, não se necessita nenhum conhecimento especial da Mística; como se fora a maior casualidade encontrar-se com uma só alma metida nessas perigosas vias extraordinárias (o sublinhado é do Autor). Assim quando encontram alguma que tome a sério o seu aproveitamento e levada do Divino Espírito aspire a ter uma oração superior ao comum, pobre dela!, acoimá-la-ão de temerária ou de ilusa; e deste modo como adverte o P.e Lallemand [23] cerram-lhe para sempre a porta a estes dons, o que é um grande abuso.

Este abuso são muitos por desgraça os que hoje o cometem – continua o citado Autor – imitando os escribas e fariseus de quem o Senhor tanto se lamentava, porque nem entram no reino de Deus, nem deixam entrar os outros (Mt. 23, 13). Se o rigorismo jansenista empregava as suas subtilezas em apartar as almas da Comunhão frequente – e com o pretexto de indignidade as privava do Pão da vida, remédio principalíssimo da própria fraqueza – outros rigoristas, com não menos vãos pretextos de falsa humildade, apartam-nas quanto podem destas e outras comunicações a que o Senhor as está convidando; e com esse procedimento seguro o que fazem é trabalhar quanto podem para impedir as delícias que em morar com os filhos dos homens tem a divina sabedoria [24].

P.e Mariano Pinho


[1] Psychiatrie Pastoral de H. Bless, Paris, 1936, pág. 86,

[2] Études sur la psychologie des mystiques, pág. 256.

[3] L’Experience mystique et l’activité subconsciente, pág. 156.

[4] Vid. A. Poulain, Grâces d’Oraison, 1922, pág. 602.

[5] Henri Bon, Précis de Médicine Catholique, pág. 248

[6] Henri Bon, obra cit., pág. 64

[7] Obra citada, prólogo, pág. X.

[8] Cit. ib., pág. 456.

[9] Poodt, obra citada, pág. 187.

[10] Ib., pág. 184-185.

[11] Aos olhos dos incrédulos, a perfeição cristã não passa dum fenómeno subjectivo, que não corresponde a nenhuma realidade certa. Vários entre eles não estudam o que denominam os fenómenos místicos senão com preconceitos malévolos, sem distinguirem entre os verdadeiros e os falsos místicos: tais são Mas Nordau, J. H. Leuba, E. Murisier. Segundo eles, a pretensa perfeição dos místicos não é mais que um fenómeno mórbido, uma espécie de psiconevrose, de exaltação do sentimento religioso, e até mesmo uma forma especial de amor sexual, como bem o mostram os termos de desposório, de matrimónio espiritual, de beijo, de abraço, de carícias divinas, que tantas vezes saem da pena dos místicos.

Evidentemente estes autores, que apenas conhecem o amor profano, não compreenderam nada do amor divino; são daqueles a quem se poderia aplicar a palavra de Nosso Senhor: Neque mittatis margaritas vestras ante porcos» (Taquerey – Compêndio de Teologia Ascética e Mística: J. Ferreira Fontes, trad. 1926, I, pág. 213).

[12] Henri Bon, obra citada, prólogo, pág. X.

[13] L’expérience mystique, pág. 362, em Poulain, ob. cit., pág.613.

[14] Obr. cit., pág. 350.

[15] Cit. por Henri Bon, obr. cit., pág. 187-188.

[16] Obr. cit., pág. 189.

[17] Ib., pág. 187.

[18] Grâces d’Oraison, pág. 549 e ss.

[19] Fr. G. Arintero, O.P., Evolución Mística, lib. III, pág. 368; Salamanca, 1930.

[20] Henri Bon, obr. cit., pág. 65.

[21] Vid. ib. pág. 60.

[22] Ib., pág. 67.

[23] Doctrine Spirituelle, pr. 7 c. 4, a. 3.

[24] Arintero, obr. cit., pág. 617-618.

 

 

 

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