"Consolaste o Coração do teu Jesus"

 

Capítulo 31

NA UNIÃO CONSUMADA

1938-1955

Quem vem seguindo atentamente o que neste livro fica escrito sobre os sofrimentos de Alexandrina, cada vez mais atrozes e mais misteriosos à medida que a vida se aproxima do seu termo, poderia ter talvez a impressão de que afinal tudo se lhe vai em provações e purificações místicas, sem nunca atingir o fim dessas purificações, que é levar a alma ainda na Terra à união consumada com Deus.

Tal conclusão desfiguraria por completo a fisionomia espiritual da nossa biografada e a grande finalidade da sua cruz, sobretudo a partir de 3 de Outubro de 1938. Expliquemo-nos.

Pie Rémaguey, no seu precioso livro La Croix du Christ et celle du Chrétien, depois de falar das provações místicas que geralmente e primariamente são destinadas à purificação da alma, afirma luminosamente que:

Quanto mais a alma caminha com simplicidade, menos necessita delas; o trabalho faz-se nela como por encanto, sem todo esse aparato trágico.

E continua:

Mas evidentemente que as provações místicas têm outro sentido além desta purificação, necessária para elevar a alma a certos graus da união divina; evidentemente (sublinhamos o evidentemente) que há provações particularmente elevadas que não crucificam a alma a fim de a purificar, mas existem precisamente, porque a alma já está purificada. (conf. trad. port. O Mistério da Cruz, pág. 103, ed. Éfeso, Lx.)

E conclui que esses sofrimentos dão-se "na medida em que a graça lhe concede uma eminente conformidade com Cristo Crucificado pelo mundo".

Ora é o caso da nossa Alexandrina. Alma tão simples como ela, tão angélica, tão desprendida de si e de tudo, tão dócil às divinas inspirações e tão perfeita e pronta em abraçar a vontade de Deus, fosse ela doce ou amarga, suave ou atroz, depressa atingiu, sob a acção abundantíssima da graça, a purificação exigida para a perfeita união com Deus. Não mentia, quando em seus colóquios com Deus lhe dizia com tanta simplicidade:

Ó meu Jesus, eu nunca vos neguei nada, nada, nem na menor coisinha!

Só para a purificação da alma da Alexandrina não era preciso todo esse "aparato trágico" de sofrimento. Já de há muito que Nosso Senhor em seus colóquios com ela a tratava de "minha bela, meu lírio, meu lindo amor: tu estás pura, pura, pura", e outras muitas expressões análogas.

Mas é que Deus, na missão que destinava à Alexandrina, determinou conceder-lhe a graça de uma eminente conformidade com Cristo Crucificado pelo mundo. Mistério que se verifica em toda a sua pureza na "compaixão da Imaculada", como adverte o Autor citado.

Este ponto ficou superabundantemente demonstrado em muitas das páginas desta biografia. A prece tantas vezes dirigida ao Céu pela Alexandrina, a pedir que a fizesse uma perfeita imagem de Cristo Crucificado, para O ajudar a salvar os pecadores, foi bem atendida, e essa prece apresentada — é já por si um sinal da sua grande união com Deus, pois que, como escreveu o Pe. Penido no Itinerário Místico de S. João da Cruz, falando do que foi neste ponto a vida do Santo e comentando uma passagem do "Canto Espiritual" do grande Doutor místico, " um dos efeitos da união transformante é uma profunda apreensão do mistério da Redenção, grandes luzes sobre a Cruz, árvore da vida. A alma transmutada em chama de amor constantemente se volta para Deus, com desejo de sofrer por Ele: almeja embrenhar-se nos trabalhos, porquanto são o meio de penetrar na sabedoria divina, sobretudo no mistério da Encarnação Redentora, que o mais puro padecer traz o mais íntimo e puro entender". (ibid. pág. 206, ed. Vozes, 1949)

Cremos por isso, em face dos documentos e do conhecimento directo que tínhamos de sua alma, que a Alexandrina, já por fins de 1938 atingira essa união transformante, que evidentemente se foi intensificando cada vez mais, até voar para o Céu.

Com efeito, já a 4.10.34 encontramos Jesus a declarar-lhe que quer ser seu Esposo:

Nosso Senhor — escrevia ela — pediu-me o meu coração, para o colocar dentro do dele, para que eu não tivesse outro amor a não ser o dele e às suas obras.

— Escolhi-te para Mim: corresponde ao meu amor. Quero ser o teu Esposo, o teu Amado, o teu tudo. Escolhi-te também para a felicidade de muitas almas.

E Jesus promete nunca mais a abandonar:

Ó minha filha, minha amada, Eu estou sempre contigo. Oh como Eu te amo! São tão fortes as cadeias de amor que me prendem a ti, que as não posso quebrar: não te posso abandonar. (carta de l.11.1934)

É notável que, já nesta época, não há sofrimento que ela não aceite com amor e ânsia de mais:

Faz-me preocupação — escreve ela — não saber agradecer tanto amor ao sofrimento. (16.2.35)

Célebre é o convite para o matrimónio místico a celebrar-se na Cruz, de que já falámos e que se repetiu várias vezes:

E, no meio dos seus algozes, queres, minha filha, participar comigo de toda a minha Paixão? Oh, não me dês uma negativa: ajuda-me na redenção do género humano! (11.10.34)

E que delicadas expressões de Esposo lhe dirige desde já Nosso Senhor!

A 8.12.34, fez, como já dissemos, voto de perpétua virgindade: Jesus chama-lhe então:

Meu lindo amor, companheira dos meus Sacrários, meu Céu na Terra!

E da parte dela cresce a generosidade:

Crucificai-me à vossa santíssima vontade! Crucificai-me a mais não poder ser. (26.12.35)

A 22 de Fevereiro de 1936, pede a Nossa Senhora que ajude Jesus a crucificá-la.

E veio a primeira morte mística, vieram as grandes lutas a braço partido com o inferno, e já nesta altura lhe diz Jesus, como vimos:

Escolhi-te para mim ainda no ventre de tua mãe, para que dentro em pouco, e bem depressa chegou, te pudesse chamar minha esposa. (24.9.37)

Vieram as inflamadas ânsias de amor e os abismos e já então a comunicação dos sofrimentos íntimos de Jesus pelos pecados do mundo.

A alma estava pura para o matrimónio místico. Por isso, não se estranha o que a 16.3.38, escreve ela:

Todo o dia tive o meu coração numa fornalha ardente no amor do meu Jesus; à noite deram-me ânsias muito fortes de O amar. Não pude passar sem as dar a conhecer. Hoje continuo a sentir no meu coração a mesma fornalha de amor...

Por fim falou-me Nosso Senhor:

— Minha filha, belo anjo, pérola resplandecente, estrela brilhante que fazes brilhar toda a coroa do teu Esposo.

Diz ao teu Paizinho: Eu que quero que ele conheça bem o amor com que tu me amas, para o dar a conhecer ao mundo, porque é de muita glória para Mim e proveito para as almas. Eu quero que ele conheça bem o que tu és para mim: que és a minha esposa mais querida…

E termina dizendo:

A minha alma estava toda iluminada, a tanta distância só era luz... Estava cheia, bem cheia. Que alegria, que paz eu sentia na minha alma!

Eis pois Jesus a chamá-la bem claramente esposa.

Porém, a uma outra alma, grande vítima, contemporânea da Alexandrina, também já falecida em França em odor de santidade, declarava Nosso Senhor:

Eu, Esposo crucificado, é crucificando que me desposo. (cfr. Cum Clamore Valido, págs. 45 e 52, Paris, 1943)

Parece-nos claro que foi sobretudo no célebre 3 de Outubro de 1938, primeira crucifixão da Alexandrina, nesse êxtase de quase seis horas, que se consumaram as suas núpcias com o Cordeiro Imaculado. Foi, crucificando-a, que Jesus a desposou.

Não lhe dizia Ele na véspera:

Aceitas um calvário que Eu só dou às minhas esposas mais predilectas?

E no dia da sua crucifixão, não lhe chama a "sua heroína, uma louquinha, consumida, perdida no amor de Jesus"?

E veremos daí por diante Jesus, nas suas expressões, como que a indicar-nos a íntima relação entre esse desposório e a crucifixão. Por exemplo, imediatamente antes da paixão de 7.4.39:

Ó minha esposinha, minha crucificada, dás a esmola ao teu Jesus?

A 11.5.39, assim lhe chama Jesus:

Loucura do meu amor, loucura do meu Coração, minha crucificada, minha Alexandrina. Eu sou um louquinho, um perdidinho de amor por ti.

E a 16.7.40:

As minhas lágrimas, a minha dor e a agonia do meu Coração é o que Eu mais dou às minhas esposas. Chora, chora, para que o teu Jesus não tenha que chorar a perda eterna das almas.

Ainda a 22.12.38, repete no êxtase o que lhe está dizendo Jesus:

Uma vez que me tomastes para Vós, não me deixareis jamais? Escolhestes-me para esposa e crucificaste-me? Sou um modelo para todos imitarem?... Ó Jesus, isso confunde-me; mas faça-se como quiserdes.

E a 28.12.38, repetindo o que de Jesus vai ouvindo no êxtase:

Mas a vossa Alexandrina, o vosso anjinho querido, como Vós a amais? Quereis dizer bem claro que sou a vossa esposa mais amada? Fui escolhida desde tenra idade para Vós, para virdes mais tarde crucificar-me tão semelhante a Vós?

Logo dois dias depois da primeira crucifixão, dizia-lhe Nosso Senhor:

Do Horto à Cruz, é por onde Eu levo as esposas mais queridas. Então a nossa amada não podia deixar de ir por aí!

E acrescentava:

Perco-me em ti, levo-te ao mais íntimo do meu Coração.

No dia 6 chama-lhe "a esposa querida que vive toda no tabernáculo do seu Coração".

Ainda nesse mês, a 9, ia ela repetindo o que ouvia:

Que dita a minha, que felicidade já na Terra, meu Jesus?

São poucas as esposas que escolheis para vossas crucificadas?

Já quando estáveis na Cruz, me tínheis a mim escolhida para ser agora vossa crucificada convosco?

Em Novembro, a 25, depois de lhe dar a beber do sangue de seu Coração, diz-lhe que ficou muito contente com o voto que ela fez de perfeição e vítima e pergunta-lhe:

Queres, meu amor, estar sempre a consolar o teu Jesus e a salvar-lhe almas, muitas almas?... Responde, esposa do Rei divino, encanto do Rei de Amor! Responde, esposa bem amada do teu Jesus!

Longe iríamos, se quiséssemos trasladar todas as passagens de suas cartas e êxtases, em que se confirma o que dizemos.

De 1944 a 1947, culminam as demonstrações desta união inefável. A 1.12.44, escutava ela de Jesus:

Se o mundo conhecesse esta vida de amor, esta união conjugal com a alma que escolhi para esposa!

E a 29 do mesmo mês ainda uma prova que é esta a união que existe entre Ele e ela:

Minha filha, anjo da Terra, flor delicada, recebe ainda (sublinhamos o ainda, porque não foi a única, já tinha havido muitas provas) uma prova do meu desposório contigo, da minha união conjugal.

Neste momento, tomou-lhe a mão, osculou-a e estreitou-a docemente a Si.

Três anos mais tarde, repetir-se-á prova parecida, de 14 para 15 de Abril de 1947. Diz a Alexandrina que veio dar bálsamo ao seu sofrer uma bela visão da Santíssima Trindade que ela contemplava em trono riquíssimo. No alto, o Espírito Santo, que sobre o Pai e o Filho, sentados mais abaixo, deixava cair uma profusão de raios doirados. Pouco depois, uma alma ajoelhada, em sinal de reverência, sentiu que sua mão se unia à de Jesus e que o Pai as ligava. Era tudo luz, luz do Céu: era o Céu e a alma da Alexandrina nadava em gozo indizível. E exclamava:

Ó meu Jesus, vale a pena sofrer tudo, para possuir o Céu! (30.3.45; cfr. Humberto Pasquale, Alexandrina, Elle Di Ci-Torino, p. 272)

Não admira pois que tão íntimo seja, agora mais que nunca, o convívio de Jesus e da sua Alexandrina. Quantas vezes lhe dá o seu divino Coração, para que ela o guarde, para que disponha à vontade dos seus tesoiros! Quantas vezes faz desse Coração e do dela um só coração!

Outras vezes dá-lhe a beber do sangue que jorra desse manancial, declarando-lhe que é este o alimento misterioso que a sustenta milagrosamente na vida. De que variados modos nos declara a Alexandrina que já não é ela que vive, que sofre, que ama, mas que é Cristo que vive, sofre e ama e tudo opera nela!

Quem tem seguido com atenção estas páginas, encontrou já muitas passagens a confirmar o que dizemos; mas acrescentemos mais algumas.

A 13.4.1939, por exemplo, num dos raros alívios que lhe vinham do Céu, ouviu de Jesus:

À louquinha do meu amor renovo a entrega dos tesoiros do meu divino Coração, toda a riqueza do meu amor, para poderes dar às almas. Dou tudo o que posso dar à louquinha que Eu mais amo. Tem coragem!

A dor há de pungir o teu coração. O teu corpo, o teu coração, a tua alma são mártires do meu amor.

Eu escolhi a dor; pela dor salvei o mundo. Tu pela dor de novo vens resgatá-lo. Tem coragem!

A 22.9.39, dizia-lhe Jesus que confiasse no seu Esposo, que Ele não a deixaria desgostá-lo:

Quem uma vez entrou no seu divino Coração jamais se pode sujar.

É este um dom do estado do matrimónio místico, como ensina S. João da Cruz e outros autores.

No mês seguinte, a 20, ouve de Jesus que os seus sofrimentos são uma nova invenção para salvar o mundo.

A 1.11:

O teu sofrimento é um mistério de prodígios, é uma nova invenção minha. Se não fosse esse sofrimento, muitos pecadores que se salvam não se poderiam salvar... Dentro em pouco serás contada entre os meus Santos.

Primogénita do meu divino Coração, — chama-lhe Jesus a 20.12.39 — vou desabafar contigo...

Constantemente, depois dos êxtases da paixão, Jesus lhe dá a beber do Sangue de seu Lado aberto. A 1.9.39:

Bebe agora na Chaga bendita do Lado do teu Jesus, para reparar as forças.

E ela responde:

Essa Chaga bendita dá-me vida.

E Jesus retroca que "é alimento das suas esposas, das suas crucificadas!"

A esposa que se deixa crucificar pelo seu Crucificado vence. (29.3.40)

Nada tem que temer a esposa de Jesus, a vítima que por Ele e pelas almas se deixa imolar. (5.4.40)

E quantas vezes lhe dirige o Salvador palavras que parecem do Esposo à Esposa no Cântico dos Cânticos:

A minha pomba, a minha bela, a minha amada, a minha louquinha, a minha heroína, a florinha da Eucaristia!

A 21.6.40, referindo-se ao Céu, diz-lhe Jesus:

Oh, como é belo, belo, belo o lugar da minha esposa, da minha amada, da minha louquinha!

No dia 15.11.40, assim abria ela a sua alma com Nosso Senhor:

Quero ser pequena para tudo, apenas grande para a dor.

Acode Jesus:

Basta, minha jóia: em pouco disseste tudo. Consolaste o Coração do teu Jesus, consolaste o Coração do teu Esposo.

E continua Jesus:

Se o mundo conhecesse esta crucificada de Jesus, muitos a amariam.

Mas muitos a tratavam como louca, impostora, criminosa... São assim as crucificadas de Jesus: há muito quem as ame e muito quem as odeie.

Mostrando-se-lhe Jesus muito triste, diz-lhe a 24.10.41, três vezes:

Jesus veio consolar-se no coração da sua esposa mais querida! Jesus é tão ofendido! Veio refugiar-se no coração da sua esposa mais amada!

Saltemos para 18.9.43:

Minha filha: amor, amor, amor! O teu coração e o meu é um só; estás toda transformada em mim. Eu sou a tua vida: não tens a vida humana, tens a vida divina. Não tens a vida da Terra, tens a vida do Céu!

Mas ao mesmo tempo declara-lhe Nosso Senhor que "esta vida terá sempre espinhos... E assim crucificada à minha semelhança, passarás ao Céu cravada na cruz por amor de mim".

Em 3 de Julho de 1944, dá-lhe Jesus de novo o seu Coração, para que lho defenda dos pecadores. E, na sexta-feira Santa de 1947, a 4 de Abril, depois de sofrimentos inexplicáveis, ouve Jesus:

És a minha esposa mais querida, a maior vítima que tenho na Terra; és a continuadora da minha Paixão, da obra da Redenção...

A 17 de Junho de 1955, festa do Coração de Jesus, escreve ela:

O dia do Sagrado Coração de Jesus, o dia da minha loucura! Mas não foi desta vez: a morte, as trevas, a inutilidade, a incerteza escondeu tudo, tudo...

Meu Deus meu Deus, estou sozinha nestes mundos de morte, de trevas, de escuridão!...

Socorro, socorro, se puder haver!... Eu creio, meu Deus, eu creio, embora este meu creio seja tão doloroso que me arranca o coração...

E eis que de longe começa a ouvir Jesus:

Sou amor, sou amor, sou amor e aqui estou, ó vítima e esposa minha.

Sou amor que tu não sentes, mas que amas; sou sabedoria que tu não compreendes, mas acreditas.

Coragem! A tua vida é divina. Não pode ser vivida nem sentida na Terra. São maravilhas da Sabedoria divina. É missão tão nobre a que te confiei! Só neste estado de alma a desempenhas com perfeição.

Coragem, filha, coragem: é a última fase...

Olha: hoje, dia do meu divino Coração, renovo a minha oferta: aqui o tens embutido no teu, cheio com todo o amor, com todos os tesoiros que ele encerra. É a mesma vida: somos dois num só coração. Dá com abundância este amor, estes tesoiros aos que te rodeiam, aos que tu amas e trabalham por ti e por mim. Dá-lhes tudo na abundância que eles quiserem; e depois a todo o mundo, a todo o mundo que é teu.

E a Alexandrina continua:

Com esta oferta de Jesus o meu coração dilatou-se. Era uma sala infinita, iluminada com luz de Jesus. Senti que a minha vida era a dele e que o seu sangue corria em mim, como água que verte das rochas. Jesus falou de novo:

— Minha filha, este sangue é o sangue da vida divina que tu vives sem a compreenderes, mas vou dar-te a gota que costumo dar-te, para que vivas a semana fortalecida com ela...

Prolongaríamos sem medida este capítulo a citar todas as numerosas passagens de seus escritos que confirmam de variados e saborosos modos o que tentámos demonstrar.

Mas fique para quando um dia se venha a publicar todo esse manancial de luz, calor e beleza.