O Padre Humberto junto da Beata Alexandrina

 

 

 

Capítulo 29

AMPARO INESPERADO

1944-1948

Neste abandono em que se encontrava a Alexandrina, quis a Providência, como outrora a Cristo no Horto, enviar-lhe um anjo a confortá-la.

Encontrando-se em Junho de 1944, em pregação perto de Balasar, o R. Padre Humberto Pasquale, salesiano, alguém lhe pediu que fosse por caridade a levar algum conforto à Doentinha de Balasar, que estava muito abandonada em grandes tribulações.

Se se deixasse levar pelas vozes que em contrário ouvira nesses dias, não teria cedido; mas foi precisamente aquela discordância de pareceres expressos e preparados com tão pouco escrúpulo que lhe despertou o desejo de indagar a verdade.

E lá foi, levado em automóvel pelo Médico Assistente da Alexandrina, o Dr. Azevedo. Outra vez voltou a visitá-la, a 14 de Julho do mesmo ano, mas agora por motivo superior: "por um sentimento de bem-estar que se experimenta ao pé dela" — escreveu ele e acrescenta: "tenho ouvido da boca de outros a mesma coisa: naquele quarto a gente sente-se bem, como envolvido numa atmosfera especial: é o bonum est nos hic esse de S. Pedro com Jesus." (carta de 27.7.44)

Desde a primeira visita que a Alexandrina sentiu, na pessoa daquele filho de S. João Bosco, como que o anjo confortador que vinha incutir-lhe coragem para continuar a subir o seu calvário tão duro. E facilmente começou a abrir-lhe a alma, ao contrário do que acontecia com outros Sacerdotes que a visitavam, a tal ponto que, desde Setembro, o considerou como o segundo director que o Senhor lhe enviou.

Não foi sem hesitação que o R. Padre Humberto aceitou a delicada incumbência de dirigir a Alexandrina, sentindo interiormente o peso daquela responsabilidade; nem o fez sem consultar primeiro a quem desde 1933 até 1942 a dirigira. Como ele mesmo escreveu na preciosa biografia da Alexandrina que publicou em Itália em 1957, a pág. 201:

Naquele brevíssimo encontro, o único e primeiro director da Alexandrina não só confirmou o Salesiano na delicada empresa, mas com uma sensação de alívio lhe disse:

— É sua; confio-lha plenamente. O Senhor lhe concederá luz para a guiar.

Temos de facto, de confessar que foi para nós, seu primeiro director espiritual, um alívio, ao vermos como a Providência supria tão competentemente, na pessoa do R. Padre Humberto Pasquale — Mestre de noviços em Mogofores, pregador e escritor — a falta que em circunstâncias tão acres e difíceis fazia à Doente uma direcção assídua e esclarecida.

Meteu pois generosamente ombros à empresa. Para logo, mandou à Alexandrina que semana por semana, lhe mandasse por escrito, ao menos resumidamente o que se ia passando. Apesar da repugnância e dificuldade que neste período, mais que nunca, sentia em ditar o que se passava em sua alma, obedeceu àquela ordem como se de Deus emanada. E assim se foram juntando, ano por ano, centenas de páginas, logo dactilografadas em Mogofores, pelos Salesianos, que são mais uma mina preciosa a mostrar bem claro a elevação daquela alma de eleição e a melhor resposta às incompreensões, aos dictérios, às calúnias com que em vão tentaram deitar por terra a obra que Deus vinha realizando na alma da Alexandrina. (ib. p. 201)

O novo timoneiro tomou com toda a responsabilidade e consciência o leme dessa atribulada barquinha, que parecia neste momento vagar no mar alto, entregue a todos os ventos e tempestades, sem uma estrela a luzir no firmamento que lhe orientasse a rota difícil.

Tão bem compreendida e guiada se sentia a Alexandrina que lhe abria de par em par a consciência, tal qual ao primeiro director. Por isso, há de ela escrever-lhe, quando ele estiver em vésperas de partir para Itália:

30.8.1948

Meu bom Padre: desde criança sempre gostei de nunca faltar ao que prometia, mesmo nas mais pequeninas coisas. E ainda hoje quero continuar na mesma forma, mas já não é com aquela prontidão de outrora, porque as minhas forças não me permitem, o que é por vezes de grande sofrimento para mim. Mas como não estou no mundo para fazer a minha vontade mas sim a de meu Jesus, cá estou a fazer o que há um ano prometi. Perdoe-me a falta que foi inteiramente involuntária.

É com certeza a última carta que escrevo por minha mão a vossa Rev.cia: seja em tudo feita a vontade de Deus: que ela se cumpra em mim sempre e em tudo.

Depois de pedir luz e forças ao Céu, quero dizer ao meu bom Padre que esta minha carta tem o fim de felicitar e saudar aquele que tanto por mim tem feito nas horas trágicas da minha vida, o que jamais esquecerei. E depois de o felicitar de alma e coração, prometo no dia um de Setembro, aniversário de V. Rev.cia, comungar, sofrer e orar, para que Jesus com sua bendita Mãe lhe dêem as suas melhores bênçãos e graças e o façam cada vez mais santo e mais cheio de amor pelas almas.

Meu bom Padre, quando penso na minha vida, no meu calvário, no abandono em que estou e se sim ou não Nosso Senhor me quererá só, mesmo só, sem ter junto de mim um Sacerdote que me compreenda, o meu coração cobre-se de toda a escuridão e fico como que sem nenhuma esperança: a custo encubro as lágrimas e por vezes nem sou capaz de as esconder.

Mas isto não quer dizer que não aceito com alegria da alma, mais este golpe, o segundo golpe espiritual, se Jesus com ele me quiser ferir. Pode acreditar, meu Padre: seja esta carta como que meu testamento, que é depois do meu Paizinho (o primeiro director), outro segundo Paizinho a ocupar lugar no meu coração. São os dois Padres por quem eu mais oro, que mais união têm na minha alma e que melhor me compreendem.

Ai, meu Padre, eu não sou digna de ter a amparar a minha alma Sacerdotes tão sábios e tão santos. Será por isso que Jesus deixa que os homens os retirem lá para longe? Pobre de mim: eu não sou nada! Eu não sou o que devia ser; sou pior que o nada, vou muito além do nada: muito mais além! Eu gostava, meu bom Padre, de saber dizer o que sinto, todo o horror que isto me causa e como me sinto indigna de tudo e de todos; mas não sei nem poderei jamais saber.

Adeus; nunca esquecerei o grande bem, o grande amparo que tem dado à minha alma. Lembro-o na Terra e lembrá-lo-ei no Céu.

Muito obrigada.

Na verdade, só durante três anos e tanto tratou o Padre Humberto pessoalmente com a Alexandrina. E esse período não deixou de ser atribulado para ele e para a dirigida.

Mal começou a ir a Balasar, logo houve quem quis ver nessas visitas transgressão às ordens emanadas da Autoridade eclesiástica. Dizia-se que o Salesiano andava a fazer-se director da Doente, metendo assim a fouce em seara alheia. A documentação que temos diante deixa entrever qualquer coisa parecida a intriga.

Fosse como fosse, o certo é que, passados poucos meses, o P. Humberto recebe ordem de não se meter no caso de Balasar: foi-lhe comunicada pelo seu Inspector, que a tinha recebido do Sr. Arcebispo Primaz.

Apresentando-se ele (o Padre Humberto) como director espiritual da Doente, concorre — dizia a ordem — para perturbar algumas pessoas mais sensíveis que a rodeiam. (ob. cit. p. 167-168)

Esteve por isso, algum tempo sem escrever nem visitar a Doente.

Mas logo que se fez luz sobre aquela urdidura, a autoridade competente atenuou a proibição e ficou a escrever-lhe e a visitá-la uma vez por mês. (ib.)

E seguiram-se da parte do Padre Humberto quase quatro anos de estudo a sério daquela alma de escol, não só para a poder dirigir com todo o acerto, mas para logo após a morte dela, a dar a conhecer ao mundo, como o prova a esplêndida biografia que dela publicou em Itália, em 1957.

O ter tomado a direcção do Padre Humberto Pasquale deu ensejo à Alexandrina de se ligar espiritualmente à Congregação Salesiana. Já no ano de 1944, recebia o diploma de Cooperadora Salesiana que lhe foi dado para poder gozar de todas as indulgências anexas e com a sua oração colaborar, em união com os Salesianos, na salvação das almas, sobretudo dos jovens e a fim de orar e sofrer pela santificação dos Cooperadores de todo o mundo. (ib. 310)

Meu Deus, já não estou sozinha! - exclama ela confortada.

Não estava de facto, e os Salesianos de Mogofores principiaram a mostrar de vários e delicados modos quanto a consideravam da Família de Dom Bosco, tanto os Padres como os Noviços. Dir-se-ia que principiaram a corresponder-se como irmãos da grande Família Salesiana.

Por gentileza do Padre Humberto, possuímos a fotocópia de dois autógrafos dela, datados no dia do seu aniversário, um para os Padres outro para os Noviços. Transcrevemo-los:

Só Deus é grande!

Balasar, 30.10.1944.

Exmos. e Revmos. Senhores Padres.

Para todos o amor mais abrasador de Jesus e da Mãezinha e todas as riquezas do Céu. Tenho presente todas as intenções que me recomendaram e faço-os participar das minhas pobres orações e sofrimentos. É um dever de gratidão da minha parte: não faço nada demais. Sinto-me tão feliz e tão rica com o apoio que tenho em Vossas Reverências!

Ó meu Deus! Já não estou sozinha: tenho quem me ajuda a subir o meu tão penoso calvário. De todo o meu coração e de toda a minha alma digo: Jesus e a querida Mãezinha lhes paguem tudo e lhes dêem todas as riquezas do Céu: riquezas de virtudes, de graças, para com elas atraírem para o Coração divino de Jesus as almas.

Não posso mais. Sempre unidinhos na Terra e no Céu. A bênção e o perdão para esta que implora orações e muitas orações, a pobre Alexandrina.

A carta para os Noviços é como segue:

Meus queridos Noviços e Salesianos dessa Santa Casa.

Queria escrever a cada um de vós, mas não posso: faltam-me as forças. Como tenho um dever a cumprir de vos agradecer as santas orações que tendes feito por mim, faço-o a todos em geral. Jesus e a Mãezinha vos paguem tanta caridade. Só desejo que ocupeis no Coração divino de Jesus o lugar que ocupais no meu, porque assim tudo podeis receber. Jesus é tão rico!... E eu tenho-vos a todos tão dentro do meu coração! É por isso, que vos quero assim nos de Jesus e da Mãezinha.

Um muito obrigada a todos os que me escreveram. Podeis confiar que Jesus vos concederá tudo quanto desejais, para vossa santificação e salvação das almas. Confiai, confiai:

Jesus será sempre convosco. Contai sempre comigo aqui na Terra e depois no Céu, onde vos espero.

Por caridade orai por mim.

Sou a pobre Alexandrina Maria da Costa.

Mas de novo vinha Jesus mostrar-lhe o que já há tantos anos lhe tinha afirmado: "Ele é que era o seu director de perto, contínuo", os outros que lhe dava na Terra, sê-lo-iam de longe. No êxtase após a primeira Crucifixão ouvia ela de Jesus que "Ele é que tinha sido seu Mestre a ensiná-la desde pequenina."

Por isso, não nos espanta que o R. Padre Humberto, em fins de 1948, fosse chamado pelos seus Superiores para a sua pátria, para a Itália.

No Brasil, onde nos encontrávamos desde princípios de 1946, recebíamos nas vésperas da sua despedida de Portugal a seguinte carta:

Porto, 9.6.48.

R. Padre Mariano Pinho.

Há quanto tempo devia ter escrito. Perdoe-me tanto silêncio. O tempo não chega para nada. A falta de notícias deve ser para V. Rev.cia um sacrifício, mas também para nós não há mimos, graças a Deus. Estamos perto, mas não tanto como se julga. Os afazeres e as contrariedades nos acompanham sempre.

Te Deum laudamus! No sofrimento sim, oh, nele estamos juntos à vítima do Calvário; no sofrimento e na convicção cada vez mais profunda de que digitus Dei est hic.

A vida mística vivida cada vez mais intensamente, os escritos sempre teologicamente correctíssimos, a perfeição num aumento sensível e admirável, em todas as virtudes especialmente na humildade: eis em resumo o que continua a ser a Alexandrina.

Continua o jejum (começado em Março de 1942), continua o sofrimento da Paixão íntima sofrida por Jesus e descrita com uma visão psicológica das coisas, dos sentimentos do Salvador que não deixa dúvidas sobre sua veracidade e manifesta uma tal interioridade da alma vítima, que impressiona.

O que Nosso Senhor lhe tem pedido e o que ela lhe tem dado dão uma ideia da missão verdadeiramente grande de que está encarregada. O mundo com as suas maldades, com os seus diferentes crimes está nela representado ao vivo, como se ela tivesse a experiência de todo esse conjunto de mal que horroriza quem bem o conhece. E ao lado disso, que heroísmo de reparações!

Os colóquios são muito mais raros, mais breves e dolorosos. Há mais de um ano, o que acho de mais notável é a transfusão do sangue de Jesus para ela. Fala na gotinha de sangue injectada no seu coração por um tubo dourado, em comunicação com o Coração de Jesus.

Na sexta-feira Santa recebeu misteriosamente a Comunhão com estas palavras: Viaticum Corporis Domini Nostri Jesu Christi etc.

Um dia um Anjo dá-lhe a comunhão e diz: Corpus Domini Nostri Jesu Christi etc. Outra vez é Jesus que lha dá e diz: Corpus Domini Jesu Christi etc.

Pequenas coisas que, por ela não entender a língua, dizem muito.

O demónio, com assaltos sem a tocar, tem-na perseguido muito, deixando-lhe a sensação de consentir em baixezas sem nome. Há pouco tem-se feito ouvir com pancadas fortes no soalho da casa. Nada porém tira ao ambiente e a ela a paz e a serenidade mais invejável.

É esta, em resumo, a vida da vítima do Calvário (não esquecer que o lugar onde morava a Alexandrina se chama Calvário): um mistério de sobrenatural, de heroísmos que se desenrola na forma mais simples e sob o sorriso enganador que cativa as almas, as muitas almas que a visitam... Nas mil vicissitudes, vejo-a guiada pelas luzes do alto e cheia de uma sabedoria prudente que não encontrei ainda em ninguém.

Quantas coisas queria dizer mais a V. R., mas tenho que fechar a carta já interrompida umas poucas de vezes. Queira lembrar-se de mim: bem sabe que não é esquecido nunca entre nós. Oxalá que os planos de Deus se realizem quanto antes, para o bem das almas.

Abraça-o com amizade nos corações de Jesus e Maria.

P. Humberto Pasquale, Salesiano.

Além da actuação destes dois directores espirituais, ocupou lugar especial de bom conselheiro e confessor habitual da Alexandrina o R. Padre Alberto Gomes, pároco de Travassos, por quem a Doente de Balasar tinha a veneração e respeito que se tem aos santos, como ela em várias cartas o expressou.

Logo que por ordem dos Superiores nos vimos afastados de Balasar, nós mesmo pedimos ao R. Padre Alberto Gomes se dignasse, sempre que pudesse, passar por Balasar, para confessar a Alexandrina e confortá-la no seu martírio. O Padre "Albertinho", com toda a sua caridade e zelo característico, começou a visitar a Doentinha duas vezes por mês. Numa carta que nos escreveu Sua Rev.cia, a 29.2.49, encontramos esta passagem:

A Alexandrina continua no seu glorioso posto, sempre sofrendo mas sempre sorrindo e consolando outros que sofrem e não sorriem.

Eu, na falta de director idóneo, continuo a absolvê-la regularmente duas vezes por mês.

E depois da morte dela, lemos noutra sua carta estas linhas:

Até ao último dia, nunca eu fui infiel à delegação de V. Rev.cia, nem ela foi ingrata à minha dedicação. O que desejo é que ela, no Céu, conheça à evidência a intenção pura dos meus trabalhos e despesas. Sei que conhece e até sinto o seu conhecimento, desde que compareceu diante do Eterno Esposo.

Terminou pois a minha actuação no desempenho da pesada missão que V. Rev.cia me confiou, quando me apresentou Alexandrina com o cartão que de Braga a ela enviou por mim, no dia 20.1.1942. Nunca mais esqueço a V. R....

Muito dedicado em Jesus Cristo.

P. Alberto Gomes