Padre
Oliveira Dias, sj

* * *

"Nosso Senhor que quer que os Padres José de Oliveira Dias e Rogério Frutuoso, ambos colegas do director, venham examinar o caso".

 

 

Capítulo 15

ÊXTASES DA PAIXÃO

1938-1939

Na sua autobiografia, escreve a Alexandrina:

Sempre que ouvia falar em pessoas que iam fazer Retiro eu dizia:

Todos o fazem, só eu não.
Cheguei a dizer isto várias vezes na presença do meu Director Espiritual.

De facto, alguma vez me declarou que, se eu pedisse licença ao meu Superior, ele me deixaria ir dar-lhe um retiro a ela. Não me parecia o caso muito viável, mas prometi pedir licença ao meu Provincial. Assim o fiz e em resposta recebi o seguinte cartão:

Autorizo-o a ir passar, como pede, dois ou três dias a Balasar, para atender com vagar à doentinha Alexandrina Maria da Costa. E ela que me encomende a Nosso Senhor e, comigo, a toda a Província. Paulo Durão, S.J.

Por isso, a Alexandrina acrescenta nas suas notas:

Por alto desígnio de Deus, a licença foi concedida e, a 30 de Setembro de 1938, veio o meu Padre espiritual principiá-lo (o retiro).

Mas os desígnios de Deus não eram que lhe desse um retiro, mas que fosse testemunha dos acontecimentos extraordinários que iam dar-se nesses dias.

Já há tempos — afirma ela — que sentia grandes agonias na minha alma e me vi por vezes prestes a cair em assustadores abismos.

Na verdade, desde Março de 1938 em diante que ela começou a viver num estado quase habitual de terrores, abandono, esmagamentos e agonias a que podemos chamar um prolongado Horto. Às vezes eram horas seguidas e até noites inteiras de indescritíveis angústias. Mostrava-lhe Nosso Senhor ao mesmo tempo os grandes castigos que estavam para cair sobre a Terra.

Nunca porém foram tão longe esses horrores de espírito como de 2 para 3 de Outubro desse ano. Via-se como que esmagada com o peso de todo o mundo, a terra a abrir-se como que para devorar os homens e por cima o Céu em furiosíssima tempestade, ouvindo-se constantemente uma voz terrível que a trespassava e aniquilava toda:

— Vingança! Vingança!... Maldita, vou esmagar-te!

E ela desabafava:

Ai, ai... a ira de Deus!

Na noite de 2 de Outubro ouviu este convite de Nosso Senhor:

— Aceitas, minha heroína, um calvário mais doloroso, que Eu estarei sempre a teu lado e o teu Padre não te abandonará, para te dar forças – será o teu Cireneu?

— Sim, meu Jesus, aceito tudo, mas não queria que se soubesse.

— Nem convém: quero-te muito escondidinha. Não te aflijas: quando estiverem pessoas que Eu não quero, não te sucederá nada...

Indica-lhe então Nosso Senhor que quer que os Padres José de Oliveira Dias e Rogério Frutuoso, ambos colegas do director, venham examinar o caso.

— Então — pergunta ela a Nosso Senhor — o Sr. Padre Frutuoso não volta para a Índia? (Tinha vindo por doença à Europa e os Superiores queriam que regressasse ao seu posto de apostolado.)

— Não, não; se o não quisesse aqui, não lhe dava a doença. Preciso dele aqui para as almas. Que ele entende bem estas coisas e há poucos que as entendam...

No dia seguinte, 3 de Outubro, dia de Santa Teresinha, depois da Comunhão, após grandes aflições místicas em que se viu com Cristo no Horto, repete-se-lhe o convite:

— Aceitas, minha filha, um calvário que Eu só dou às minhas esposas mais predilectas?

E, ouvido de novo o sim generoso, anuncia-lhe então Jesus, como na véspera, que depois das 12 horas começará a sua paixão do Horto ao Gólgota e terminará às 3 da tarde. Depois ficará Ele com ela em colóquio a desabafar as suas mágoas, até às 6 da tarde.

Na verdade, tudo se realizou assim e os presentes vimos desenrolar-se o drama da Paixão do mais ao vivo que era possível: Horto... prisão... tribunais... flagelação... caminho do Calvário... Crucifixão... Morte.

Existe a descrição pormenorizada dum dos êxtases da Paixão da Alexandrina, pelo Padre José Alves Terças, publicada em 1941, no fasc. X da Vida de Cristo, pág. 319 ss. Também foram filmados alguns passos dos mesmos êxtases, que são de particular interesse para o estudo científico do estranho caso.

Os estigmas ficaram sempre ocultos, pois ela tinha pedido a Nosso Senhor que nada se percebesse. A Paixão foi violentíssima; os presentes não continham as lágrimas ante aquele espectáculo bem visível de dor.

No colóquio que se prolongou das 3 da tarde às 6, ouviram-se, entre outras muitas, estas palavras:

— Como vos amo? (Era o que Nosso Senhor lhe dizia, por isso ela o expressa em interrogação.) No meio de tanta dor?... Ó Jesus, não foi no meio da dor que me amaste também!? Pois foi: agora, não vos havia de amar? Oh, como era injusta, meu Jesus!...

Tendes muita pena de me fazer sofrer? Mas eu ofereci-me com toda a generosidade?...

Mas Jesus, eu queria amor! Não mo dais, Jesus? Dai-me!... Não podeis dar-me mais?... Eu queria morrer de amor!

Já mo prometestes? Ao que prometeis não faltais?... Eu bem sei, Jesus.

Eu sou vossa? Sempre o fui? Então quereis-me assim tanto, tanto?

Sou vossa heroína?... Sou toda para Vós, não é, Jesus? Sou uma louquinha consumida, perdida no amor de Jesus?...

Depois desse primeiro êxtase da Paixão tão prolongado e tão doloroso, ficou vários dias sem poder comer nem beber. Experimentava tortura em todos membros e sentidos do corpo, até no olfacto, pois tinha a sensação de que tudo lhe cheirava a cães mortos.

É daí por diante sobretudo que ninguém podia pronunciar na sua presença a palavra pecador; sentia-se logo novamente esmagada e contorcia-se toda dolorosamente. Cessou de ditar cartas; só passado mais de um mês é que o torna a fazer e começam então as suas mais belas cartas.

O êxtase da Paixão realizou-se invariavelmente todas as sextas-feiras (à excepção de uma – 30.12.38), até à sexta-feira de Dores inclusive, a 27 de Março de 1942. O que nesse êxtase se lhe ouvia dizer está escrito em doze cadernos que conservamos.

Mas o melhor ainda são as cartas em que ela explicava o que durante eles lhe passava na alma. Copiamos ao menos algumas, ao acaso.

A 7.4.39:

Busco um bocadinho de alívio para o meu sofrer. Espero a hora da minha crucifixão. Nem posso falar. O coração está em marcha acelerada. É uma revolta, é uma barafunda na minha alma. O peso esmaga-me. Trevas, noite medonha e triste; estou num abandono tremendo. Figura-se-me que ando no meio de todo o ódio, de tribunal em tribunal. Pobre de mim! E não recebi Jesus: mas confio que Ele suprirá a falta nas comunhões espirituais, apesar do nojo que tenho de mim mesmo e horror à minha enorme miséria.

Ontem, a tempestade acalmou. Que horror eu sentia! O meu corpo era-me trespassado todo de um lado ao outro com agudos ferros. Que momentos tão terríveis! Apesar do bocadinho de alívio, fiquei sempre numa noite escuríssima, numa tristeza profunda.

A noite, passei-a, posso dizê-lo, quase que toda a fazer companhia a Nosso Senhor Sacramentado e concentrava-me um pouquinho em toda a tragédia da noite. Parecia que Jesus me convidava ao Horto. Que movimento de gente! Mas tudo isto era sentido na minha alma.

Ai, meu Padre, parece que tudo isto que estou a ditar-lhe é mentira! Ai, tantas dúvidas!... Ai, ai, os medos de toda a Paixão!

Já disse à Deolinda: do modo que sinto o coração, é preciso um milagre para eu resistir. Jesus seja comigo.

Não digo mais nada que não posso.

Aqui interrompeu a carta, porque logo depois se seguiu a Paixão. Sua irmã Deolinda assim no-la descreve:

Ai, meu Padre, o que foi o dia de sexta-feira santa! É bem sexta-feira de Paixão!

Antes de principiar, ó como se via nela cara de aflição! Ela temia passar este dia! E dizia-me:

— Ai, se eu vejo este dia passado!...

Eu conformava-a quanto podia e acariciava-a; apesar de estar eu também cheia de medo e muito aflita.

Durante a Paixão eu não podia passar sem chorar e vi correr lágrimas pelas faces de quase todos os assistentes. Que espectáculo tão comovedor!

A agonia do Horto foi muito demorada e aflitiva... Ouviam-se gemidos muito profundos e por vezes via-se soluçar. Mas a flagelação e coroação de espinhos isso é que foi! Os açoites foram tomados de joelhos, com as mãos (como que) atadas. Eu cheguei-lhe uma almofada para debaixo dos joelhos e ela retirou-se dela, não quis. Tem os joelhos em mísero estado...

Os açoites foram pelo menos 5.311. Levaram tanto tempo! Ela desfalecia tanto! Os golpes na cabeça (com a cana na coroa de espinhos) foram 2.391.

Vomitou por duas vezes durante a Paixão: era água, porque mais nada tinha que vomitar.

O suor era tanto que os cabelos estavam empastados e ao passar-lhe a mão por cima de toda a roupa, ficava molhada. Quando acabou a coroação de espinhos, ela parecia um perfeito cadáver.

O Sr. Cónego Borlido (venerando Pároco de S. Domingos em Viana do Castelo, hoje já falecido) veio assistir com mais duas pessoas. Também veio o Sr. Dr. Almiro de Vasconcelos com a esposa e irmã D. Judite (de Penafiel).

Já alta noite, a Alexandrina, sentindo um pouco de coragem, ditou ainda o que segue:

A noite já vai adiantada e eu estou tão doentinha; mas tenho tantos desejos de lhe dizer umas palavrinhas. Com muito sacrifício, mas vou ver se consigo fazê-lo.

Ai meu Paizinho, como eu me senti desfalecida por tantas vezes! Nosso Senhor, antes de principiar, falou-me assim:

— Ó minha esposinha, minha crucificada, dás a esmolinha ao teu Jesus? É hoje o dia que te peço maior esmola. Foi nestes dias que Eu mostrei ao mundo quanto lhes amava e a recompensa são ingratidões.

Dá-me, dá-me a esmolinha, para me desagravar de tantos crimes.

— Ó meu Jesus, eu dou-vos tudo. Vede se encontrais em mim alguma coisa que eu vos possa dar.

— Muito obrigado, minha esposa. Tens coragem? Que hás de tu temer... se tens o teu Jesus ao teu lado?...

Algumas vezes durante a Paixão o meu Jesus confortava-me e dizia-me:

— Tens o teu Paizinho, tens o teu Jesus.

— Na flagelação desfaleci muitas vezes. Uma vez sempre disse:

Jesus, ajudai-me! Se não fosse por vosso amor, dizia-vos: não posso mais!

O meu Paizinho conhece bem quem eu sou? Eu parece-me que não há ninguém tão má, nem tão cheia de misérias como eu.

Eu hoje vi-me tão envergonhada e confundida, ao ver-me cercada de pessoas que pareciam tão santas; e eu, meu Paizinho, quem sou eu? Ai, a minha miséria, ai, o meu nada! Figura-se-me que tenho uma responsabilidade tão grande por andar tudo enganado comigo! Compadeça-se de mim, meu Padre, e peça a Nosso Senhor pela pobre filhinha.

Perdão e a bênção para esta má, tão má Alexandrina.

Nem é mister chamar a atenção do leitor esclarecido para estes efeitos de profundíssima humildade que na alma da Alexandrina deixavam as graças místicas de que foi objecto, efeitos que são ao mesmo tempo prova irrefutável da autenticidade dessas mesmas graças.

Passemos para o mês de Maio, a 19 desse ano de 1939:

Está próxima a minha crucifixão. Tenho o coração oprimido, nem posso respirar. Estou tão só, tão abandonada! Tenho que subir uma enorme montanha e não sinto forças: estou calada ao pé dela. Figura-se-me que não tenho ninguém que me auxilie. Ela é tão enredada! Se me meto nela, não posso sair. Pobre de mim; já não tenho quem se compadeça da minha dor.

Hoje, quando comunguei, Jesus não me falou; mas eu sentia tanta aflição. O coração era-me tão apertado, parecia-me que abafava; estava todo enredado de agudíssimos espinhos. Por todos os modos procuravam por entre os espinhos atravessá-lo por uma lança num e noutro lado. Bendito seja Nosso Senhor que tanta variedade tem para me dar.

Ai, meu Padre, parece-me que tudo isto é mentira! Até logo, não posso dizer mais nada.

Seguiu-se a Paixão e no fim, talvez lá mais para a noite, continuou a ditar:

Estou muito cansadinha, mas mais aliviada uma pouquinho. Nosso Senhor, antes de principiar a Paixão, disse-me assim:

— Anda, minha louquinha, meu amor, dar a esmolinha ao teu Jesus. Não te peço esmola que me não possas dar, coitadinha, porque Eu estou contigo, senão não podias nada. Coragem: dá-ma contente: dás?

— Tudo, meu Jesus, tudo que Vós quiserdes...

Por algum tempo, no Horto, sentia que Nosso Senhor estava prostrado comigo. Pedia-me coragem:

— Reanima-te, loucura do meu amor, loucura do meu Coração, minha crucificada, minha Alexandrina. Eu sou um louquinho, um perdidinho de amor por ti!...

Mais tarde, quando eu pedia a Nosso Senhor várias coisas, Ele dizia-me:

— Pede-me, pede-me sem cessar.

Na flagelação disse-me:

— Coragem, coragem; estás amparada. Sei que é por amor que sofres tudo.

Eu sentia que o meu Jesus, o meu Paizinho (apesar de ausente) e o meu Anjo da Guarda me amparavam pelos braços. Parecia-me que já tinha forças para tudo: já não tinha medo de cair.

A coroação de espinhos custou-me muito; até não me lembra que me custasse tanto. Parecia-me que os espinhos me entravam na cabeça, me atravessavam o corpo e se espetavam no coração. Ai que dor eu sentia! Custou-me tanto! Seja tudo pelo meu Jesus.

Durante toda a Paixão várias vezes sentia tanto abandono, tanto desânimo e tinha tantas dúvidas. Nosso Senhor dizia-me:

— Coragem. Esse abismo com a maldade desses crimes que te cobrem, que te esmagam, não são teus: é a maldade do mundo de quem és fiadora.

E acariciava-me. Mas eu tinha tanto medo do Eterno Pai!

Para não prolongarmos demais este capítulo, transcrevemos apenas mais uma carta referente à Paixão, a do dia do Coração de Jesus, a 16.6.39:

Nosso Senhor, às sextas-feiras, no fim da Sagrada Comunhão, costuma poupar-me de rolar pela cama; mas hoje não poupou, bendito Ele seja. E em que estado me ficou o meu coração e todo o meu corpo! Parece que me ficou tudo em mostarda. E eu sentia-me num abismo tão medonho! E Nosso Senhor dizia-me:

— Em que montão de ruínas vai ficar o mundo!

(N. B. Aproxima-se a Guerra Mundial, em que vão morrer mais de vinte milhões e em que ficarão mutilados ou inutilizados ainda mais de vinte milhões de homens, sem contarmos as ruínas materiais imensas!...)

É por causa da gravidade de tua maldade!

Converte-te! Arrepia caminho. Eu to peço no dia do meu Divino Coração.

Ó justiça, ó vingança de um Deus! Converte-te: peço-te contas de tudo!

O peso da justiça divina caiu bem sobre mim; espedaçava-me toda, a mão do Senhor. Não sei com que era que me cortava.

Fiquei ainda num abismo mais medonho e... não temia a Nosso Senhor!

Não quer isto dizer, meu Paizinho, que eu não temo ao meu Jesus; mas naqueles momentos a aflição da alma é grande, mas parece que não temo ao meu Jesus.

Até logo, meu Paizinho; estou no dia que mais temo.

E seguiu-se a Paixão. No fim, assim fala ela:

Da sexta-feira de hoje escapei; estava quase a parecer que não escapava. Ai, quanto sofri! E agora estou cheia de dúvidas, tão atribulada e parece-me que tudo é falso.

Bendito Jesus, que tanto tem que me dar e eu para Ele não tenho nada.

Antes de principiar a Paixão, o meu Jesus confortou-me um bocadinho. Bateu ao meu coração e disse-me:

— Alexandrina, minha crucificada, vem ao mendigo que está à porta: vem dar-lhe a esmola de tanto valor. Dá-ma; não ma negues. Não me contentam todas as outras esmolas, se não me deres a tua. Só a tua me satisfaz.

— Entrai, entrai, meu Jesus, e tomai tudo que vos agrade e despachai Vós.

— Não temas, meu encanto: terás todas as forças…

Toda a Paixão foi muito abandonada; Nosso Senhor só por três vezes me disse umas palavrinhas. A primeira vez no Horto, quando o peso da justiça divina caía sobre mim. Nosso Senhor dizia-me:

— Estás a fazer as minhas vezes; também sobre mim vinha tudo isto. Tem coragem; é obra divina que te dá força, que te move, que faz tudo isto.

A segunda vez no Horto (note-se que o Horto da Alexandrina tinha três partes bem marcadas, recordando as três horas de Cristo) … Via-me num abismo tão grande, tão cheio de imundícies: parecia-me que havia ali todas as misérias e que eram minhas. E Nosso Senhor dizia-me:

— Assim como Eu, és fiadora; também Eu estava nesse abismo coberto com todas as misérias.

Na flagelação estava tão desfalecida! E Nosso Senhor disse-me:

— Coragem! É para fazer o último pedido ao Papa que te faço assim sofrer. É o dia do meu divino Coração.

No fim de tudo, quando Nosso Senhor me falou, disse-me estas palavrinhas em particular:

— Diz ao teu Padre que mande dizer ao Papa por meio do Cónego Vilar:

Eu permiti que ele aqui viesse para que seja uma escora firme, para levantar a minha obra. Que diga ao Santo Padre... que hoje, dia do meu divino Coração, que é a última vez que peço a Consagração (do mundo) à minha Mãe Santíssima. Já a pedi tantas vezes! Que não me recuse por mais tempo o meu pedido.

Depressa, depressa! É a minha Mãe Santíssima com as minhas vítimas que salvam o mundo.

   

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