Padre Mariano Pinho, sj, primeiro Director espiritual da Beata Alexandrina e autor desta biografia

INTRODUÇÃO

A presente biografia pretende desempenhar-se de um propósito formulado na primeira notícia biográfica, aparecida poucos meses após a morte de Alexandrina Maria da Costa com o título Uma Vitima da Eucaristia, já esgotada hoje na primeira, segunda e terceira edição portuguesa e na tradução francesa, correndo actualmente a tradução alemã.

Aí se dizia :

"Vamos tentar, em breve resumo, fornecer desde já os traços mais vincados dessa fisionomia de escol, deixando para mais tarde, após estudo sério dos documentos, obra quanto possível completa."

Mas nem agora podemos lisonjear-nos de apresentar obra completa. Não é fácil escrever sobre a Alexandrina de modo a esgotar o assunto. Antes de mais nada, pela profusão e riqueza de material que possuímos: sobem a milhares de páginas os escritos legados por ela à posteridade.

No propósito de que, neste livro, fale quanto possível e sobretudo a própria Alexandrina — ante tão imenso material, forçoso se torna seleccionar. Fica-nos, porém, o escrúpulo, ao olharmos para o material deixado de parte, de que ele vale tanto como o escolhido e daria para outro volume igual ou maior que o presente.

Resignemo-nos e, firmados no conhecimento pessoal haurido durante nove anos (1933-1942) na direcção espiritual de Alexandrina e nos seus numerosos escritos, vamos tentar a presente biografia.

Sobre o valor desses escritos, escrevia-nos um venerando Prelado português, ao agradecer-nos a primeira biografia que lhe enviámos:

"O que traz publicado das cartas da Alexandrina é do mais sublime. Nenhum artista soube dizer coisas tão belas. Já nos colóquios tinha lido coisas verdadeiramente admiráveis. Os poetas, mesmo os mais ilustres, teriam gostado de atingir aquelas alturas de intensidade, de emoção, de simplicidade e de beleza".

Não há dúvida: a gente pasma, ao ver uma donzela do campo, quase analfabeta, sem nunca ter frequentado agremiações nem lido obras de alta espiritualidade e literatura, entrevada mais de trinta anos e em absoluto jejum nos últimos treze anos e meio da sua existência, escrever ou ditar, sem prévio rascunho, tantos documentos de autêntico valor literário, ascético e até teológico, de uma tal interioridade que não é fácil igualar, e, sobretudo, manancial de luz abundante a revelar-nos eloquentemente o que é em concreto a vida mística da verdadeira alma vítima.

E agora surge outra dificuldade. Da abundância do coração falam os lábios. Foi da abundância do coração, do seu intenso viver íntimo que brotaram todas essas páginas da Alexandrina e elas revelam-nos tantas coisas extraordinárias. Apesar da sua feição tão angelical, tão simples, tão verdadeira, tão serena, tão sem complicações: aprouve à divina Providência levá-la por vias nada vulgares e de autênticas maravilhas.

Quem se arrogará, portanto, competência criteriosa e perspicácia para interpretar, na sua verdade, o que foram esses caminhos percorridos pela Alexandrina? Todas as vezes que ela declara, por exemplo, que "Nosso Senhor lhe disse", "Nosso Senhor se lhe mostrou", "Nosso Senhor se queixa" etc., etc., havemos de tomar todas as passagens como autênticas comunicações extraordinárias, ou como simples inspirações ou bons pensamentos que lhe ocorrem?

Sabemos, é certo, que Deus, segundo São Paulo, falou e fala às almas de muitos e variados modos: "multifarium multisque modis" (Hebr 1,1) e que as suas familiaridades são com as almas rectas, sem dobrez: "cum simplicibus sermocinatio ejus". (Prov 3,32) Como nota o Padre Monier-Vinard (no belo livro Cum Clamore Valido, Appel du Rédempteur aux âmes consacrées, pág. 34), Deus geralmente fala por luzes íntimas que deslumbram a alma e a transportam a um mundo desconhecido, do qual ao voltarem a si, não sabem dizer nem comunicar nada. Tudo o que dizem lhes parece mentira.

Outras vezes, Nosso Senhor, por meio de ideias e imagens acomodadas à inteligência humana, mas que Ele escolhe e infunde por si mesmo, segundo as circunstâncias, comunica-se ao íntimo da alma; e ela tem então a impressão que Deus lhe fala distintamente e por vezes até lhe dita o que deseja transmitir.

O mais ordinário é Deus manifestar luminosamente o que pretende fazer compreender e a alma o traduz na sua linguagem pessoal, tendo a certeza que reproduz exactamente o pensamento divino, parecendo-lhe que não faz mais do que transmiti-lo.

Cremos que foi este o modo mais habitual das comunicações de Deus com a Alexandrina. Mas qual a garantia da sua origem divina?

Quanto a nós, temo-la na virtude heróica e nunca desmentida da nossa biografada — sem evidentemente querermos com isto antecipar juízos que só competem à autoridade eclesiástica — e além disso, no valor intrínseco desses documentos, como já dissemos e que o leitor irá mais demoradamente apreciando e saboreando ao longo deste livro. São belas de mais, são preciosas de mais essas inúmeras páginas, para as julgarmos simples fruto da imaginação e afectividade de uma pobre filha do campo, quase analfabeta, entrevada, vivendo ininterruptamente em dores contínuas, mais de trinta anos.

Poderíamos ainda lembrar desde agora, outra dificuldade: a oposição erguida contra este caso singular. Como escreveu o Rev. Dr. Molho de Faria, no seu livrinho de esclarecida orientação: "Tal qual surgiu o Caso de Balasar, a modos de explosão sobrenatural, não qualquer, mas de veras extraordinária, multi-facetada, tinha de provocar violentas reacções. E provocou-as. Houve-as fortes durante a vida da Alexandrina. Continuaram após a sua morte..." (A Devoção aos Servos de Deus acerca do Caso de Balasar, 1959, pág. 8; ed. do Pároco de Balasar)

Valha-nos isto — e importa declará-lo desde já: essas dificuldades não vieram de parte dos que com competência, serenidade e sem juízos preconcebidos, foram às fontes, estudaram o caso de perto, tratando pessoalmente, demoradamente com a Doente de Balasar. Esses não provocaram oposições; são os seus melhores apologistas.

Apesar de tudo, vamos tentar. Confiamos em Deus, de quem desce toda a luz, que nestas páginas só apresentaremos a verdade. Se assim for, o livro contribuirá de certo, para a solução das possíveis objecções: veritas te liberabit – a verdade te libertará.

S. S. Pio XI, na encíclica Miserentissimus Redemptor de 1928, depois de mostrar "quanto é urgente, especialmente neste século, a necessidade da expiação e reparação", afirma categoricamente:

"Enquanto sobe sem cessar a malícia dos homens, o sopro do Espírito Santo multiplica maravilhosamente o número dos fiéis de um e outro sexo que generosamente procuram reparar tantas injúrias feitas ao Divina Coração e até não hesitam em se oferecerem a si mesmo como vítimas."

Alexandrina Maria da Costa, nascida em plena "Era da reparação", como chamou ao nosso tempo o R. Padre Raul Plus, S.J.— é incontestavelmente uma dessas almas que não hesitou em se oferecer a si mesma como vítima de reparação e expiação.

Eis o que sobretudo querem demonstrar as páginas que vão seguir-se.