No tempo em que o ímpio Valeriano assolava a Igreja
de Cristo, destacou-se um activo sacerdote de nome Saprício. Seu
operoso zelo havia atraído a si um jovem leigo chamado Nicéforo, o
qual, no decurso do tempo, se tornou um valioso e indispensável
auxiliar. Certo dia eles se desentenderam...
* * * * *
Terrível e inesperado, como o
estrépito de um trovão numa manhã clara e sem nuvens, ressoou por
todo o Império Romano o anúncio da nova perseguição aos cristãos,
decretada por Valeriano.
À sangrenta e implacável
perseguição desencadeada pelo falecido imperador Décio — que havia
sonhado
com
ressuscitar o velho e desacreditado culto pagão — seguira-se um
período de paz e tranquilidade para a Igreja. Desde sua ascensão ao
trono, em 253, Valeriano dera mostras de simpatia e até benevolência
para com aquela religião que crescia sem cessar e cujos seguidores
enfrentavam os tormentos e a morte com uma valentia desconcertante.
Entretanto, transcorridos
quatro anos, essa benignidade subitamente cedeu lugar ao ódio, e em
257 um tirânico decreto foi promulgado contra a Santa Igreja de
Deus: todos os bispos, presbíteros e diáconos deviam sacrificar aos
ídolos, sob pena de desterro, e as reuniões para celebrar o culto
cristão eram proibidas sob pena de morte.
Em consequência, incontáveis
prelados e sacerdotes foram deportados para as minas de metal ou de
sal, nas quais — acorrentados junto com criminosos, escravos
revoltados ou prisioneiros de guerra — deveriam trabalhar sem
repouso, em condições verdadeiramente indescritíveis, até o
esgotamento final.
Esses horrores não foram senão
o primeiro relâmpago de uma furiosa tempestade.
Rios de sangue cristão inundaram o Império Romano
No ano seguinte, 258, um novo
édito agravou e estendeu a todas as províncias do Império o incêndio
da perseguição: os bispos e presbíteros que não sacrificassem aos
ídolos deveriam ser executados imediatamente; pelo mesmo "crime", os
senadores, nobres e cidadãos ilustres seriam condenados à morte, e
todos os seus bens confiscados.
Tudo parecia disposto pela
impiedade para fazer sucumbir definitivamente a única Religião
verdadeira.
Rios de sangue cristão
inundaram o vasto Império Romano. O Papa Sisto II subiu ao Céu
graças ao ferro dos carrascos. Poucos dias depois, seu valoroso
diácono Lourenço morreu queimado numa grelha. Um jovem acólito,
chamado Tarcísio, sacrificou sua vida em defesa do Santíssimo
Sacramento. Frutuoso, Bispo de Tarragona, foi queimado vivo junto
com seus dois diáconos. No norte da África, 153 fiéis foram
precipitados num forno de cal e passaram para a História com o
qualificativo de massa cândida (a massa branca). Cipriano, o grande
Bispo de Cartago, venerado pelos cristãos e odiado pelos pagãos por
seu espírito combativo, exclamou ao ouvir a sentença de morte:
"Graças a Deus!" e entregou resolutamente sua augusta cabeça ao
gládio do verdugo.
O paganismo, cego e moribundo,
embriagava-se com o sangue dos discípulos d'Aquele que havia
proclamado: "Coragem! Eu venci o mundo" (Jo 16, 33).
"Perdoa-me, padre, pelo amor do Senhor!"
Nesse período em que o ímpio
Valeriano assolava a Igreja de Cristo, destacou-se, numa paróquia de
Antioquia, um activo sacerdote de nome Saprício. Seu operoso zelo
havia atraído a si um jovem leigo chamado Nicéforo, o qual, no
decurso do tempo, tornou-se um valioso e indispensável auxiliar no
arriscado labor apostólico que Saprício desenvolvia em meio à
perseguição.
Por motivos que a tradição não
transmitiu nem a História registrou, certo dia eles se
desentenderam, e uma profunda inimizade os separou de tal modo que
os dois evitavam encontrar-se numa mesma rua.
Não durou pouco tempo esta
pouco edificante situação. Mas Nicéforo, arrependido de sua conduta
mais digna de um pagão do que de um discípulo de Cristo, recorreu a
alguns amigos de Saprício, por meio dos quais lhe enviou um pedido
de clemência.
Este, porém, ferido em seu
amor-próprio, negou-se a perdoar. Nicéforo renovou repetidas vezes a
manifestação de seu arrependimento e o pedido de reconciliação.
Saprício, entretanto, permaneceu inflexível em sua atitude de
recusa, e negava-se mesmo a receber qualquer mensageiro do amigo de
outrora.
Desconsolado, Nicéforo
apresentou-se na casa de Saprício e lançou-se aos seus pés,
exclamando: – Perdoa-me, padre, pelo amor do Senhor! Mas aquele que,
como sacerdote, deveria ser um exemplo de benevolência e
despretensão, permaneceu insensível e obstinado em seu rancor.
Frio e silencioso desdém
Perdurava esta lamentável
inimizade, quando a polícia imperial deteve Saprício e o conduziu ao
tribunal. Depois de confessar ser sacerdote de Cristo e negar-se a
adorar os ídolos, ele sofreu cruéis suplícios e, por fim, recebeu a
sentença irrecorrível: seria degolado imediatamente.
A pena capital, segundo o
costume da época, era aplicada fora das muralhas da cidade. E para
lá foi levado o réu, exausto e cambaleante pelos tormentos
padecidos.
Chegaram aos ouvidos de
Nicéforo os ecos desses dramáticos acontecimentos. Ele dirigiu-se
pressuroso ao encontro do cortejo que conduzia o sentenciado e
lançou-se aos seus pés, suplicando uma vez mais:
— Mártir de Cristo, perdoa-me
as ofensas que contra ti cometi! Mas os lábios de Saprício não se
abriram. Um frio e silencioso desdém foi sua única resposta.
Nicéforo, no entanto, não
desistiu. Adiantou-se por um atalho e, antes da saída da cidade,
suplicou novamente em alta voz:
— Mártir de Cristo, eu te rogo,
perdoa-me e esquece as ofensas que por humana fraqueza te fiz. Eis
que em breve receberás de Cristo a coroa da vitória por haver
confessado o nome do Senhor!
Nem um olhar sequer dignava-se
Saprício conceder a seu antigo e dedicado auxiliar, de modo que os
próprios algozes comentavam entre risos: "Nunca vimos homem tão
néscio! Pede perdão a um condenado à morte..." Ao ouvir isto,
Nicéforo respondeu com energia: "Não sabeis o que peço ao confessor
de Cristo, mas Deus o sabe".
Coração empedernido pelo orgulho
O orgulho, paixão dinâmica e
insaciável que Saprício, sem dúvida, não havia contido adequadamente
ao longo de sua vida, o impedia agora, às portas da eternidade, de
pôr em prática as palavras do Redentor:
"Se estás para fazer tua oferta
diante do altar e te lembrares aí que teu irmão tem alguma coisa
contra ti, deixa tua oferta diante do altar, vai reconciliar-te
primeiro com teu irmão e depois vem fazer tua oferta" (Mt. 5,
23-24).
Como poderia esse homem, que
negava o perdão a quem o implorava com humildade, receber de Deus as
graças extraordinárias indispensáveis para fazer o supremo
holocausto? Chegados, por fim, ao lugar do suplício, Nicéforo tentou
mais uma vez comover aquele coração empedernido: – Está escrito:
"Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á!"
Tudo foi em vão. Saprício parecia ignorar o que sucedia ao seu
redor.
Por não perdoar ao próximo...
— Ajoelha-te e põe logo a
cabeça sobre o cepo, para ser cortada — ordenou o carrasco.
— Por quê? — indagou Saprício.
— Porque, por amor a um homem
supliciado na cruz, não queres sacrificar aos deuses e desprezas o
édito do imperador — respondeu o comandante da milícia.
Cumpriram-se então as palavras
eternas do Divino Mestre: Não sereis perdoados "se
cada um não perdoar do íntimo de seu coração ao seu irmão" (Mt 18,
35).
O Senhor, Juiz perfeitíssimo,
não derramou naquele coração dominado pelo orgulho as graças
místicas e eficazes, sem as quais ele não teria forças para
enfrentar a morte por amor a Deus e à sua Lei. Abandonado, assim, às
suas próprias e humanas forças, aquele presbítero incapaz de perdoar
disse ao verdugo que já levantava a espada:
— Não me firas! Sacrificarei
aos deuses, como ordena o imperador.
A voz de Nicéforo rasgou o
silêncio de estupefacção que dominou durante alguns instantes todos
os presentes:
— Não, irmão, não apostates,
negando a Nosso Senhor Jesus Cristo! Não desfaleças! Não percas a
coroa celestial que para ti já está preparada!
Mas Saprício, que não havia
amado e perdoado o próximo a quem via, renegava agora o Deus a quem
não via (cf. 1 Jo 4, 20). Cego pela soberba, fechou diante de si as
portas do Céu.
Foi dada a outro a coroa
Enquanto o novo Iscariotes era
posto em liberdade e desaparecia rapidamente no meio da multidão
ainda atónita, Nicéforo começou a bradar:
— Eu sou cristão! Creio no Nome
de Jesus Cristo a quem esse negou! Descarregai sobre mim o golpe da
espada!
Contudo, ninguém se atrevia a
executá-lo sem uma ordem formal. E todos estavam admirados com a
valentia desse discípulo de Cristo que se entregava voluntariamente
à morte e não cessava de clamar:
— Sou cristão e não sacrifico
aos vossos deuses!
Um dos soldados foi enviado a
toda pressa ao palácio do governador para narrar-lhe o sucedido.
Pouco depois, retornou com a sentença, acolhida com júbilo por
Nicéforo: "Se não sacrifica aos deuses, segundo os éditos imperiais,
seja morto pela espada".
Rolou então por terra a cabeça
daquele arauto da fé, enquanto sua alma, perdoada e santificada,
voava para o Céu, inundada do amor infinito de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
A
Igreja atravessou triunfante o furacão
Valeriano recebeu, já nesta
terra, justa punição por seu ódio e crueldade. Numa batalha contra
os persas, no ano de 260, caiu prisioneiro de seus inimigos.
Abandonado até pelo seu próprio filho, Galieno, foi executado depois
de sofrer incontáveis humilhações.
E a Igreja atravessou incólume
e triunfante o furacão de maldade desencadeado por esse tirano. A
santa intrepidez de milhares de homens, mulheres e crianças que
haviam seguido o Mestre Divino até o alto do Calvário despertava um
entusiasmo crescente e arrastava multidões cada vez maiores para a
verdadeira fé. Deste modo, os golpes dos carrascos não produziram
outro resultado que o de multiplicar o número dos cristãos.
A Santa Igreja Católica
Apostólica e Romana, rocha inabalável, ressurgia como Cristo do
sepulcro, mais forte, esplendorosa e gloriosa. E ressurgirá sempre,
depois de cada nova investida das portas do inferno contra ela. E
até o fim do mundo, ao longo dos séculos, os povos poderão
contemplar o cumprimento desta infalível afirmação proferida um dia,
por lábios divinos, na cidade de Jerusalém:
"Todo o que cair sobre essa
Pedra, será quebrado; e aquele sobre quem ela cair, será esmagado"
(Lc. 20, 18).
(Revista Arautos do Evangelho,
Fev/2006, n. 50, p. 20 à 22)
Pe.
Pedro Morazzani Arráiz, EP
http://www.arautos.org/ |