Como não falar aqui do Fundador
da Obra das Marias dos Sacrários-Calvários?
Esta figura de sacerdote e de
bispo merece que a tornemos mais conhecida e amada, e inseparável da
Alexandrina Maria da Costa, porque um mesmo amor os unia a
distância, porque uma mesma paixão os movia: Jesus Sacramentado.
Manuel
Gonzalez Garcia nasceu em Sevilha, a 25 de Fevereiro de 1877, no
seio de uma família católica e praticante, onde recebeu os primeiros
ensinamentos religiosos, sobretudo por parte de sua mãe.
Foram seus pais Martin Gonzalez
Lara, carpinteiro e Antónia Garcia Pérez, ambos naturais de
Antequera (Málaga), mas domiciliados em Guadalquivir desde o seu
casamento. O casal teve cinco filhos, o primeiro dos quais morreu
pouco depois do nascimento. Três eram rapazes: Francisco, Martin e
Manuel e uma menina, Antónia, que será mais tarde a companheira
indefectível de seu irmão Manuel.
Naquele lar francamente
cristão, rezava-se antes e depois de comer e o Terço todos os dias,
sem contar os cânticos religiosos que durante o trabalho, na
carpintaria, se cantavam alegremente.
Foi neste ambiente que o menino
Manuel foi crescendo e aprendendo as coisas da vida e a ser homem.
O exemplo de sua mãe que
frequentava a Missa todos os dias, foi para ele uma grande lição de
amor eucarístico, o que explica talvez, de certo modo, a sua vocação
futura: o amor aos Sacrários.
Fez sua Primeira Comunhão em 11
de maio de 1886, e recebeu o Sacramento da Crisma em Dezembro do
mesmo ano. Por essa época pôde ver realizada uma das suas grandes
aspirações infantis: fazer parte dos “seises”, os famosos meninos
que, por especial privilégio, dançam diante do Santíssimo Sacramento
na Catedral de Sevilha.
«Bem cedo teve Manuel que começar os estudos. Levou
a cabo uma peregrinação por aquelas modestas escolas de bairro,
regidas por professores simples, que constituíam, naquela época, a
estrutura privada, não pública dos primeiros estudos.»
Para aprender a ler, frequentou
como é óbvio, uma escola infantil, passou depois para outra e outra
ainda e em seguida para o Colégio de S. Luís, que não foi a sua
última escola. Depois desta integrou o Colégio de S. Miguel onde se
formavam os “seises”, como dito acima. Foi nesta, onde permaneceu
até aos doze anos, que terminou os estudos primários.
«Atento nas aulas, Manuel não se distraía. Sabia
concentrar-se e era rápido e seguro em assimilar. Foi bom estudante,
encaixou na cabeça e no coração, e até na imaginação, uma dose
qualificada de conhecimentos básicos.»
Durante a sua escolaridade no
Colégio da Catedral, Manuel alcançou ou consolidou duas experiências
capitais na sua vida actual e futura: o amor a Nossa Senhora e uma
grande devoção ao Santíssimo Sacramento. Elas serão constantes
durante toda a sua vida. A vida dos “seises” girava à volta destes
dois polos, como acontecia igualmente no seio da sua família. O
amor, o carinho e a devoção permanente a estas duas “brancuras”
fizeram certamente que Manuel dirigisse o seu coração e os seus
passos para uma vocação onde estes seus dois amores desabrochassem e
dessem bom fruto: começou a pensar decididamente no sacerdócio.
Sobre esta vocação, deixo a
palavra ao seu biógrafo:
«O caso deu-se assim: Manuel era já tenaz e firme
nestes anos moços. E sabia ser reservado dentro do seu natural
expansivo e simpático. No fim do ano lectivo de 1889, obteve
excelentes resultados com as notas mais altas. Veio o verão. Certo
dia, era já quase ao entardecer e Manuel não tinha ainda regressado
a casa. Caiu a noite e ele sem voltar. A família começou a
alarmar-se. Antónia não sossega. O pai preocupa-se. Procuram-no por
toda a parte sem encontra-lo. De repente, ouviram-se passos de
alguém que vinha a correr pela vizinha Praça das mercenárias. Era o
Manuel! O suspiro de alívio foi geral. Os pais vacilam entre a
alegria do encontro e o merecido raspanete. Como sempre, optam pela
primeira. E Manuel estende-lhes um papel: “Venho do Seminário e esta
é a certidão do exame de admissão. Fui aprovado.”
Sem nada ter dito a ninguém, em segredo absoluto,
tinha levado a cabo, só com os seus meios, todo o processo de
entrada no Seminário.»
Claro que esta surpresa foi
motivo de pedidos de explicação por parte dos pais e mesmo dos
irmãos e da irmã. Para eles era uma verdadeira felicidade terem um
filho ou um irmão sacerdote.
A mãe, senhora muito sensata,
não deixou de dizer a seu filho:
“Meu
filho, muito nos agradaria ver-te sacerdote, porém, se o Senhor não
te chama, não o sejas; desejo mais que sejas um bom cristão, que um
mau sacerdote”.
Mas Manuel queria ser padre,
subir ao altar e dizer como o Amigo, cada vez mais presente na sua
alma e no seu coração, no momento da consagração: “Este é o meu
Corpo, este é o meu Sangue”.
No começo de ano lectivo
seguinte, com doze anos de idade, entrou no “velho seminário
sevilhano”, para seguir a vocação que escolhera e tornar-se mais
tarde “outro Cristo” na terra.
Da “Revista Católica”, editada
no Brasil, tiro este curto trecho que demonstra a personalidade de
Manuel, durante os seus cursos no Seminário:
«De imaginação viva, grande capacidade intelectual e
coração de generosos sentimentos, logrou, por sua constância e
vontade firme, passar por todas as dificuldades da primeira etapa
do seminário, desde assaltos de escrúpulos e doenças, até investidas
contra o sacerdócio, vindas dos flancos mais inesperados…
Certa manhã, em plena sala de aula, um de seus
professores pronunciou-se jocosamente contra o celibato
eclesiástico. Ao ouvi-lo, Manuel pôs-se de pé e, cheio de brio,
declarou: “É indigno que um professor se atreva a falar com tão
pouco respeito desta delicada matéria. Não podemos consentir que
se fale desta maneira aos que nos preparamos para o sacerdócio. Eu
protesto com toda a minha alma!”.
Irritou-se o professor ao ser repreendido por um
aluno e a classe se encerrou em clima de tensão. Na saída, seus
condiscípulos o aplaudiram com entusiasmo pelo acto de coragem e
ousadia. Depois, o mestre rectificou perante os alunos sua opinião e
pediu-lhes perdão por sua falta…»
Um facto que se assemelha com
aquele do Padre Abílio Gomes, foi o momento de ser incorporado no
exército. Não desejando interromper os seus estudos e atrasar assim
a sua ordenação, confiou este problema ao Sagrado Coração de Jesus e
de Maria Imaculada, pedindo-Lhes que o livrassem deste risco para
sua vocação. No entanto, acabou sendo chamado às filas…
Mas ele não perdeu a sua calma
nem mesmo pensou que Jesus e Maria o tivessem abandonado.
«Havia ainda a possibilidade –
explica a Revista
Católica – de se pagar um indulto de 1.500
pesetas para obter a dispensa. Apresentou-se ao reitor do seminário
e pediu autorização para recolher entre os conhecidos a não pequena
soma. Escreveu uma carta circular a estes todos, na qual discorria
sobre o mérito de quem ajuda os seminaristas, suprindo às suas
necessidades. Expunha em seguida a dificuldade na qual se encontrava
e pedia auxílio para salvar sua vocação, livrando-a dos perigos de
uma vida de quartel, e do significativo atraso nos estudos. A
quantia arrecadada chegou em tal abundância que, além de ter sido
suficiente para ele, lhe permitiu também auxiliar outro seminarista
em situação análoga.»
Como muito bem diz o nosso
povo : “Não custa viver o que é preciso é saber…” E Manuel soube o
que fazer, e fê-lo tão bem que ainda lhe foi possível ajudar um
colega.
O jovem estudante passou doze
anos no Seminário sevilhano, sendo ordenado diácono em 11 de Junho
de 1901. Aqui começou o seu ministério, visto que começou a ser
enviado a inúmeras missões, em diversas aldeias. Ele nos conta:
«Soou no relógio da Divina Providência a hora de
levantar os primeiros voos na minha vida ministerial. Ordenado de
subdiácono e diácono, fui várias vezes convidado a participar a
actos religiosos em algumas aldeias perto de minha terra. E, se
hei-de dizer a verdade, caíram-me muito mal as primeiras saídas.»
Grandes sonhos evangelizadores
trazia no coração, mas logo começou a dar-se conta de uma terrível
realidade, como ele mesmo o explicará mais tarde:
«Para ser franco, as primeiras missões me
decepcionaram. Voltava ao seminário amiúde com uma desilusão tão
grande quanto havia sido minha alegria ao tomar o trem, carro ou
cavalo, que me levaria ao povoado para exercer minhas funções.
Ansioso por encontrar aquele povo simples, aprazível e cristão,
deparava-me com miniaturas de cidades grandes, com toda a corrupção
moral destas… […] Na verdade, nem tudo era desapontamento e
desencanto, pois encontrei também costumes cristianíssimos,
conservados em toda a sua força, e preciosos exemplos de fé simples,
de corações sadios, de costumes patriarcais, gente parecida à
sonhada por mim… Contudo, tais pessoas não eram todo o povoado, e
não havia gente assim em todos os povoados».
Mesmo se não tinha encontrado
nos aldeães as características que ele pensava encontrar, não se
deixou levar pelo desânimo; o seu desejo era levar as almas a
Cristo, aquele Cristo do Sacrário, o seu mais íntimo amigo. Para
isso aceitaria de coração alegre tudo o que o Céu permitisse ou
desejasse para ele, para a sua formação de pastor das almas.
Foi com estas intenções que o
dia 21 de Setembro de 1901 foi ordenado presbítero. Tinha então 24
anos de idade.
Para que adquira experiência
passou os três primeiros anos da sua vida sacerdotal pregando
missões nas paróquias da diocese de Sevilha, mostrando-se um bom
“pescador de homens”, até que lhe tocou de ir fazer uma missão em
Palomares del Rio – cidade onde a frequentação da igreja e dos
Sacramentos, não era prioridade para os seus habitantes. Aqui vai
acontecer a sua “conversão”, ou melhor, a sua vocação pelos
Sacrários abandonados.
Vou transcrever este
interessante diálogo que recolhi do livro de Dom Manuel, “Mesmo se
todos… eu não” e que mete em cena o jovem sacerdote e o sacristão de
Palomares del Rio.
– Diga-me lá, amigo sacristão, as pessoas estão
muito entusiasmadas com a missão? A igreja é muito grande? Caberá
muita gente?... E depois destas, uma enxurrada de perguntas
destinadas a inteirar-me bem das condições e pontos fracos do povo
dos meus presumidos triunfos apostólicos.
– A igreja, começou a responder-me friamente e,
lentamente, o meu acompanhante, a igreja, se eu lhe disser a
verdade, não é igreja, ou melhor dizendo, sim é igreja; graças ao
Sr. António o vaqueiro que se empenhou com todos os ricos de Sevilha
e com o senhor Arcebispo e até com a Rainha de Madrid e tem
procurado dinheiro para lhe dar um tecto novo em lugar do que caiu
há uns nove ou dez anos; e o chão; e o altar-mor; e a torre; e ...
– Mas ouça, da igreja antiga o que restava? –
interrompi eu surpreendido.
– Nada, como diz o outro. Aquilo era uma desolação.
Por todos os lados entrava o vento e a água. Eu já não fechava a
porta, nem de dia nem de noite, para quê? Se tudo eram portas e
buracos.
– Mas em fim, hoje já é igreja.
– Agora o que acontece é que as pessoas se
acostumaram a não ir e eu acho que poucas vão ir à missão, vão é ao
casino ou às tabernas!
E deste modo foi o homem deitando no fogo dos meus
entusiasmos mais água fria, que eu tinha acabado de cruzar no
pequeno barco a vapor...
No entanto, há que dar a missão. Deus quer e Ele me
ajudará...
Demos uma visita à povoação e, ao contrário do que
eu esperava, sem o indispensável grupo de crianças que receberiam o
Padre missionário.
Apeámo-nos dos nossos jumentos e deixando-os ir à
nossa frente, eu continuei o meu interrogatório com o meu
acompanhante.
– Diga-me nesta povoação não há crianças?
– Sim, mas agora estão no campo ... E veja, mesmo se
eles estivessem, não são dadas à igreja, porque o sacerdote pela sua
idade, as suas enfermidades e pelo que aqui se passa e como não vem
da outra povoação que tem a seu cargo, a não ser aos domingos, na
verdade ele não quer ver uma criança nem pintada! Causam tanta
perturbação!... E como os pais também não vêm!...
– Então, quem vem à missa nesta povoação?
– Olhe, como não vêm, ou seja, vêm aqueles que têm
que se casar ou para baptizar uma criança, e o senhor António e eu
quando não tenho que ir para o campo ...
– E comungam?
– Comungar, também comungam algumas vezes os que vêm
casar-se ...
– Ninguém mais?
– Que eu me lembre, ninguém mais.
– Bem, mas pelo menos os doentes receberão os santos
sacramentos, não é?
– Não, não, como iriam receber? Se dizem que essas
são coisas de mau presságio e assustadoras. Na melhor das hipóteses
o que eles recebem é o santo óleo quando já perderam a consciência.
– E o padre não tem amigos aqui? Porque pelo menos
os amigos deveriam vir ao templo.
– Amigos? Aqui o padre não pode visitar ninguém! Boa
está a política do povo para que o padre visite!...
– E o que tem que ver a política com que o padre
tenha amigos?
– Muito simples; como aqui há tantos partidos, basta
que o padre visite ou fale com um, para que os inimigos políticos
deste o olhem já como pertencente àquele partido. Portanto, há
política em tudo, até na missa e nos sermões. Na missa, porque eles
olham até para a cor da casula. Se é branca, é porque o padre é do
partido dos “blanquillos”.
E se é encarnada, é porque é dos republicanos. E nos
sermões, porque os poucos que os ouvem lutam em seguida, se o que
ele disse foi a favor deste ou contra o outro. Resumindo, o padre
está aqui limitado, sabe?
Por isso ele vem aqui o menos possível e, quando
vem, fala com o menor número de pessoas desejando acabar para se ir
logo embora. Acha as pessoas impossíveis. E a igreja tem sido
composta porque o senhor António é o senhor António e prometeu não
parar até que a veja composta. Mas não pelo padre, que está
intimidado, nem pelo povo que não se importa que haja ou não haja
igreja, não colocam nem um tijolo.
Você não sabe como está o povo!... – terminou
enfaticamente o sacristão na altura em que chegávamos às portas da
igreja paroquial, sem ter conseguido atrair um único vizinho, adulto
ou criança.
A verdade é que eu não sabia como estava o povo!...
Esta conversa poderia ter
apagado por completo a ideia que se fazia o jovem sacerdote da sua
missão, mas não; outra preocupação o habitou desde logo: o Sacrário
da velha igreja restaurada. Como estaria ele? Em que estado o iria
encontrar?
«Nas profundezas da minha alma, continuava ainda de
pé, a igrejinha, mais limpa e mais branca do que todas as casas da
aldeia; e as pessoas simples dela a colocar flores no altar da sua
Virgem e a oferecer as suas adorações e a dar parte de suas dores e
das suas alegrias ao Coração de Jesus humilde e bom do seu
Sacrário.»
Amarrou o burro à porta da
igreja, entrou e foi ajoelhar-se diante do Sacrário. Surpresa!
Fui
direito ao Sacrário da igreja restaurada em busca de asas para os
meus quase caídos entusiasmos, e... que Sacrário!
Uma pequena janela com cerca de um palmo quadrado,
com mais teias de aranha que cristais, deixava entrar dificilmente a
luz da rua, com cujo auxílio pude distinguir um azul índigo sombrio,
que cobria as paredes; duas velas que poderiam ser de sebo ou de
terra ou das duas coisas juntas; toalhas de mesa com rendas
desfiadas e queimaduras e adornos de gotas pretas; uma lâmpada
imunda gotejando azeite sobre uns ladrilhos pegajosos; mais algumas
teias de aranha penduradas, que Sacrário, meu Deus! E que esforços
tiveram que fazer ali a minha fé e a minha coragem para não voltar
para o burro do sacristão, que ainda estava amarrado aos batentes da
porta da igreja, e sair a correr para a minha casa!
Mas o Padre Manuel não fugiu,
mesmo constatando que o interior do dito Sacrário estava cheio de
teias de aranha. E, naqueles minutos ali passados – entre tristeza
e surpresa –, nasceu, de repente, a vocação que o guiará durante
toda a sua vida: os Sacrários abandonados.
«Encontrei ali o programa da minha missão e coragem
para levá-la a cabo: mas, muito especialmente, encontrei… Entrevi,
naquela tarde, naqueles momentos junto do Sacrário, uma ocupação
para meu sacerdócio com a qual ainda não tinha sonhado: Ser pároco
de uma aldeia que não amasse Jesus Cristo, para ser eu a amá-lo por
todos: empregar o meu sacerdócio em mimar Jesus, nas exigências da
sua vida no Sacrário, alimentá-lo com o meu amor, dar-lhe calor com
a minha presença, entretê-lo com a minha conversa, defendê-lo do
abandono, deixar que o seu Coração desabafasse através dos meus
santos sacrifícios.»
Assim são os santos do Senhor!
Ele escreveu ainda esta linda impressão, que aquece os corações e
melhor faz compreender o amor que lhe ia na alma e a grandeza da sua
vocação:
«Mas eu não fugi. Eu fiquei ali um longo tempo e lá
encontrei o meu plano de missão para levar a cabo. Mas,
principalmente, eu encontrei...
Ali, de joelhos diante daquele montão de trapos e
sujeira, a minha fé via através daquela portinha comida pelas
traças, um Jesus tão silencioso, tão paciente, tão desprezado, tão
bom, que olhava para mim... Sim, pareceu-me que depois de percorrer
com a sua vista aquele deserto de almas, punha o seu olhar entre
triste e suplicante, que me dizia muito e me pedia mais. Isso me fez
chorar e guardar ao mesmo tempo as lágrimas para não o afligir mais.
Um olhar em que se reflectia uma vontade infinita de amar e uma
angústia também infinita por não encontrar quem quisesse ser
amado...
Um olhar em que se reflectiam todas as tristezas do
Evangelho: a tristeza do "não havia para eles estalagem em Belém." A
tristeza daquelas palavras do Mestre: "E vós também quereis
deixar-me?" A tristeza do mendigo Lázaro pedindo as migalhas que
sobravam da mesa do rico. A tristeza da traição de Judas, da negação
de Pedro, da bofetada do soldado, dos insultos do pretório, do
abandono de todos...
Sim, sim, aquelas tristezas estavam ali naquele
Sacrário oprimindo, apertando o coração doce de Jesus e fazendo sair
pelos seus olhos lágrimas amargas, lágrimas benditas as daqueles
olhos!..»
Quando voltou para Sevilha,
aquela experiência ficou para sempre gravada no seu coração a tal
ponto que diversas vezes a contou no seu jornal “Um grãozinho de
areia” ou no seu livro “Mesmo se todos… eu não”. Como aqui, nestas
linhas:
«Ser sacerdote de um povo que não ama a Jesus
Cristo, para amá-Lo eu por todo o povo.
Empregar o meu sacerdócio em cuidar de Jesus Cristo nas necessidades
que a Sua vida de Sacrário lhe criou. Alimentá-Lo com o meu amor.
Aquecê-Lo com a minha presença.
Entretê-lo com a minha conversa.
Defendê-Lo contra o abandono e a ingratidão.
Proporcionar alívios ao Seu Coração com os meus santos Sacrifícios.
Servi-Lo com os meus pés para levá-Lo aonde Ele deseja ir.
Com as minhas mãos para dar esmolas em Seu Nome
mesmo àqueles que não querem.
Com a minha boca para falar d’Ele e consolar por Ele
e gritar a favor d’Ele quando estão empenhados em não ouvi-Lo…até
que o ouçam e o sigam… Que belo sacerdócio!»
A 8 de Fevereiro de 1902
recebeu a sua primeira nomeação: o Arcebispo, Dom Marcelo Espínola,
indigitou-o para capelão do Asilo da Cidade, dirigido pelas
Irmãzinhas dos Pobres. Ali celebrou a primeira Missa no dia 11 de
Fevereiro, dia de Nossa Senhora de Lourdes.
«Passados alguns meses os meus superiores acharam
por bem me nomear para capelão do Asilo das Irmãs dos Pobres de
Sevilha.»
Como capelão do asilo de
Sevilha, promoveu adorações ao Santíssimo entre os anciãos, com o
intuito de que eles, em sua solidão, fizessem companhia ao grande
Abandonado do Sacrário. E nunca perdiam sua hora de vigília! Nascia
assim uma espécie de “Irmandade dos Abandonados”, os primeiros
reparadores do “Sacrário Abandonado”. Ele mesmo o escreveu:
Para
colaborar no trabalho das Irmãs e preencher o dever do meu
sacerdócio, fixo sempre o meu pensamento no Sacrário abandonado
daquela aldeia e de tantos como aquele, decidi fundar e fundei,
mediante a reorganização do Apostolado da Oração, uma espécie de
Irmandade de abandonados para fazer companhia ao grande Abandonado.
A mais destas primeiras
“fundações”, o Padre Manuel aprendeu muito e, esse “muito”, muito
lhe serviu depois no seu ministério sacerdotal e episcopal, ao
ponto de afirmar que foram aqueles três anos passados no Asilo de
Sevilha, os melhores da sua vida.
Depois daqueles três anos como
capelão, Dom Marcelo Spínola que se debatia com os graves problemas
da sua vasta Arquidiocese, pensou no Padre Manuel para arciprestado
de Huelva, que nesse tempo estava a seu cargo. O futuro Cardeal
sabia que podia contar com o zelo pastoral do capelão das
Irmãzinhas, mas não lho quis impor, como uma obrigação sujeita à
obediência incondicional. Convocou-o e expôs-lhe o problema,
pedindo que lhe desse uma resposta três dias depois.
Escusado será dizer que o Padre
Manuel aceitou imediatamente, mas o Arcebispo insistiu para que
reflectisse durante três dias, porque Huelva não era uma missão
repousante, mas árdua, cheia de embuches.
O ainda jovem sacerdote voltou
para o asilo e durante esses três dias que lhe propusera o
Arcebispo, ele orou e pediu ao Senhor, diante do Sacrário, que o
ajudasse, não a aceitar a proposta – que para ele era já uma certeza
–, mas no seu novo apostolado junto dos seus novos – e mal-afamados
– paroquianos.
Três dias mais tarde
deslocou-se ao Paço Episcopal e, depois de ter saudado Dom Marcelo
Spínola, disse-lhe com calma e aprumo:
– Excelência, aqui me tem para lhe repetir o que já lhe disse há
dias. Quando deseja que eu vá para Huelva?
Depois de conversarem durante
um momento, ficou o assunto resolvido entre os dois homens de Deus
e ficou decidido que Manuel seria o novo ecónomo da paróquia de S.
Pedro de Huelva. Tomou posse da mesma no dia 9 de Março de 1905.
Foi durante a sua estadia em
Huelva que nasceu a Obra das Marias dos Sacrários abandonados.
«A primeira experiência que eu colhi foi a de que o
grau de piedade e de religiosidade de um povo pode ser medido e
normalmente conhecido pelo sítio e do tratamento dado à imagem do
Sagrado Coração de Jesus.»
De facto, o Padre Manuel sempre
tivera, desde a infância – e continuou a ter – uma grande devoção ao
Sagrado Coração de Jesus. E para que não se duvide, ele argumenta:
«Posso afirmar sem o temor de ser desmentido, que
almas e povos que prestam culto a Nosso Senhor Jesus Cristo em seu
Coração, são almas e povos que caminham e avançam bem orientados.»
E exprime esta “sentença” que a
sua experiência lhe dita:
«Entrai na igreja de uma aldeia e procurai, como
Madalena o lugar onde está colocada a imagem do Coração de Jesus… a
piedade dos fiéis irá, mais ou menos, como o lugar que ocupa a
imagem do Coração de Jesus…»
No primeiro dia em que ia
celebrar a santa Missa na sua nova paróquia – provavelmente a 10 de
Março de 1905 – uma surpresa o esperava. Chegou à igreja quando eram
cinco e meia da manhã, mas as portas estavam fechadas: o sacristão
só chegou às oito. Quando lhe perguntou porque chegava assim tão
tarde, ouviu esta resposta:
— Bem se vê que é novato! As
pessoas aqui não madrugam, por que razão deveríamos nós madrugar?
O jovem sacerdote não
respondeu, mas recuperou a chave da igreja e preveniu o sacristão
que a partir daquele dia seria ele mesmo a abrir as portas da igreja
às cinco horas da manhã, para celebrar a Missa às seis e confessar
das cinco e meia às seis.
Rapidamente esta notícia se
espalhou em Huelva, provocando reacções diversas. Mas o Padre Manuel
não se deixou nem intimidar nem ceder às pressões de uns e de
outros.
Depressa compreendeu que o
Sacrário de S. Pedro, também fazia parte, como muitíssimos outros,
da longa lista dos Sacrários abandonados e, a lembrança do Sacrário
de Palomares del Rio.
Com o passar dos anos, o Padre
Manuel conseguiu, com paciência, carinho e muita insistência a
canalizar para a igreja da sua paróquia numerosos paroquianos que
tinham compreendido que aquele padre não era como os outros, que
aquele estava completamente embebido pelo amor e pelo zelo das
coisas de Deus.
Vou transcrever à maneira de
introdução as próprias palavras do Fundador:
«Confesso que é uma ideia que me preocupa e me ocupa, que se me
revela, com muita frequência, e de diversas maneiras, e que chega a
penetrar-me e fico triste, sem ter sido capaz de evitar que alguma
vez ao correr da caneta, se tenham escapado pela ponta desta
algumas gotas de amargura que esta ideia levanta no meu coração.
Tenho
tão cravado nele o olhar tão angustiado de Jesus sozinho no meio de
multidões cristãs!»
«Desde há tempos que na minha mente vem dando voltas
uma ideia e em meu coração um desejo algo inquietante sobre uma
obra que considero como uma necessidade urgente.
Amadurecidos, penso eu, uma e outro, eu queria
aproveitar a primeira sexta-feira da Quaresma para levar a cabo a
sua promulgação.»
De pé, junto do altar e perto
da imagem do Sagrado Coração de Jesus, O Padre Manuel fala ao seu
auditório, ou melhor, falava o seu coração. De repente, como quem se
lembra de algo que esquecera, ele diz aos paroquianos que o
escutavam:
«Tenho
pedido sempre a vossa ajuda para as crianças necessitadas e os
pobres abandonados. Hoje, o pároco fala-vos em favor do mais
abandonado de todos os pobres: Jesus Sacramentado.»
Depois de uma curta pausa,
continua: “a voz é de fogo”:
«Existem terras – e não se pense que é lá entre os
selvagens – existem terras em Espanha onde se passam semanas, meses,
sem que se abra o Sacrário; noutras, ninguém comunga nem visita o
Santíssimo Sacramento; e, em muitíssimas, só se abre para que possa
comungar alguma velhinha doutros tempos. Que abandono maior do que
estar sozinho de manhã à noite e da noite à manhã?»
Como para justificar as suas
recriminações sobre este abandono e pobreza, ele diz àqueles que o
ouvem em silêncio, boquiabertos:
«Sacrários pobres não já com a pobreza material – se
bem que haja Sacrários que em nada se diferenciam do primeiro
Sacrário de Belém – mas pobres de calor, de oração, de virtudes, de
companhia.»
O discurso continua perante
aquele auditório cada vez mais admirado e curioso:
«Jesus Cristo, no Calvário, abandonado de Deus e dos
homens pelos quais se imola não terá muito de semelhança com o Jesus
Cristo do Sacrário abandonado, não de Deus, visto que Lho impede o
seu estado glorioso, mas dos homens, por quem se imola
continuamente? Se alguma diferença existe é em desfavor da sua vida
no Sacrário. Ao menos, no Calvário, havia algumas Marias que
choravam e O consolavam. Mas, nesses Sacrários de que vos falo, nem
isso!»
O Padre Manuel vai terminar a
sua prática com palavras que não deixam dúvidas ao seu auditório:
«Marias adoradoras, diante do olhar dos fariseus
modernos e das ingratidões do povo outrora cristão, diante da
cobardia e da preguiça dos discípulos, ocupai os vossos lugares:
‘Iusta Crucem cum Mater eius’ – Junta da Cruz com sua Mãe.»
Um silêncio profundo se
instalou na capela onde dirigira aos paroquianos estas palavras
ardentes e cheias de santa convicção. Depois, foi para a sacristia
para retirar os paramentos religiosos. Imediatamente o local se
encheu de “Marias” desejosas de fazerem companhia a Jesus
Sacramentado: estava fundada a Obra das Três Marias, que pouco
depois se chamaria Obra das Marias dos Sacrários-Calvários.
Pouco tempo depois desta
primeira fundação, uma outra surgiu – quase logicamente – aquela
dos Discípulos de S. João.
De facto, no Calvário, junta da
Cruz de Jesus, não estavam só as “Marias” mas também João, “o
discípulo que Jesus amava”.
Esta ideia foi sugerida ao
Padre Manuel por um frade que tendo conhecimento da recente
fundação, lhe escreveu e lhe fez o pedido, afirmando que no convento
onde estava, eram já numerosos os frades que desejavam pertencer à
obra dos Sacrários abandonados. E o Jovem sacerdote aceitou a
proposta.
Para seu consolo, estes
empreendimentos difundiram-se rápida e largamente. A eles se uniram
várias outras obras: Missionários Eucarísticos Diocesanos,
Missionárias Eucarísticas de Nazaré, de religiosas, Missionárias
Auxiliares Nazarenas, de leigas consagradas, Reparação Infantil
Eucarística e Juventude Eucarística Reparadora.
Durante uma prática em Madrid,
onde o Padre Manuel tinha sido convido pelas Marias da capital,
falou na igreja das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Finda
esta, alguém lhe disse, muito seriamente, que era necessário ir a
Roma, encontra-se com o Santo Padre – S. Pio X – pedir-lhe a
aprovação da Obra e uma graça especial para as Marias: “permitir
que o Senhor as visite quando, por doença, não possam elas acudir
pessoalmente ao Sacrário, por outras palavras, a Missa em casa”.
E em coro, todos concordaram com esta solução:
— Tem de ir a Roma, padre! É
preciso alcançar essa graça! O Santo Padre tem de conhecer as
Marias!
Na audiência em que estavam
igualmente presentes os cardeais espanhóis, Vives e Merry del Val,
o arcipreste de Huelva foi apresentado ao Sumo Pontífice como o
“apóstolo da Eucaristia”, o que não deixou sua Santidade
indiferente, dado o amor que nutria pelo augusto Sacramento.
Durante esta viagem cujo
detalhe se pode ler nos livros de Dom Manuel, a Obra das Marias do
Sacrários abandonados foi aprovada e concedida à mesma o privilégio
do “altar móvel” do qual já falei acima.
Podemos ler na Revista
Católica que em «Dezembro de 1915 foi nomeado Bispo titular
de Olimpo e auxiliar de Málaga, e em 16 de Janeiro seguinte recebia
a ordenação episcopal. Ao se tornar o titular desta diocese, em
1920, fundamentou sua acção pastoral em três pilares: a formação
dos sacerdotes, a educação religiosa das crianças e o cultivo de uma
piedade autêntica entre os fiéis. A cada um destes aspectos deu uma
atenção especial, não obstante, seu chamado a ser reparador dos
“Sacrários Abandonados” o levou a dar prioridade à preparação dos
futuros sacerdotes e a fundar um seminário em Málaga. Incansável
nesta tarefa, Dom Manuel muito lutou para vê-los compenetrados da
importância de sua missão.»
O Bispo de Málaga preocupava-se
com secularismo que afectava até os próprios sacerdotes, por isso
mesmo os exortava a serem verdadeiras hóstias, instrumentos dóceis
nas mãos de Jesus e verdadeiros apóstolos da verdade evangélica.
Para os estimular e fazer reflectir, dizia-lhes com o ardor que lhe
era peculiar:
«Se o amor que tem meu Jesus é amor de Hóstia, eu
devo ser para Jesus hóstia de amor. Se Jesus é minha Hóstia de todos
os dias e de todas as horas, não devo aspirar e preparar-me para ser
sua hóstia de todas as horas e de todos os dias?»
Os anos passando, um outro
perigo bateu à porta, um perigo que iria ensanguentar toda a Espanha
e oferecer à Igreja um inumerável cortejo de mártires: a Guerra
Civil.
No mês de Maio de 1931, o
anticlericalismo, como um rastilho, espalhou-se célere por todo o
país – mais tarde iria tornar-se em guerra civil e causa de milhares
de mortos.
A cidade de Málaga foi uma das
mais atingidas e, a fúria anti-religiosa levou os seus habitantes –
os revolucionários, entenda-se – a exacções inqualificáveis, até
mesmo o incêndio do Paço episcopal. Dom Manuel teve de se exilar.
Deslocou-se para Gibraltar onde foi recebido pelo Bispo inglês do
“calhau” e ali se manteve durante alguns meses, até se deslocar para
Ronda de onde procurou ocupar-se a distância, da sua diocese, e de
Ronda foi para Madrid.
Um ano antes do começo da
Guerra Civil, em 1935, foi nomeado Bispo de Palência, onde passou os
últimos anos da sua vida.
Um ano depois desta nomeação,
em 18 de Julho de 1936 começou a guerra fratricida durante a qual
milhares de religiosos e religiosas e milhares de leigos pagaram com
a vida o facto de serem católicos.
Quantos conventos e igrejas
saqueadas e queimadas; quantos e quantos documentos históricos
confiados às chamas, quantas e quantas obras de arte sofreram a
mesma sorte… Quanto sofreu a Espanha!
No mês de Dezembro de 1939, a
saúde do santo Bispo piorou, ele que já a tinha bem frágil, teve de
sofrer ainda uma enfermidade renal que o levou ao hospital e daqui,
em 31 de Dezembro, para o Sanatório do Rosário, em Madrid. Foi aqui
que, na madrugada de 4 de Janeiro de 1940, entregou ao Jesus do
Sacrário abandonado, seu amigo de sempre, a sua bela alma. Tinha
então 62 anos de idade.
O seu corpo foi transportado
para Palência e sepultado junto do altar-mor, diante do Santíssimo
Sacramento, como tinha pedido, antes de morrer.
Uma lápide colocada no seu
jazigo, lembra este seu pedido:
“Peço
ser enterrado junto a um sacrário, para que meus ossos, depois de
morto, como a minha língua e a minha pena durante a vida, estejam
sempre dizendo aos passantes: Aí está Jesus! Aí está! Não O deixeis
abandonado!”
Depois do processo habitual
para as causas de beatificação e canonização, a cargo da Congregação
para as Causas dos Santos, o Papa, agora Santo, João Paulo II
beatificou-o no dia 29 de Abril de 2001, sendo a sua festa litúrgica
celebrada a 4 de Janeiro.
Tudo leva a crer que a sua
canonização acontecerá provavelmente em 2016.
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