Baluarte da Idade Média nascente
Doutor da
Igreja, um dos maiores Papas da História, dirigiu a Barca de Pedro com rara
habilidade e deu rumo à conturbada época em que viveu.
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“Gregório é
certamente uma das mais notáveis figuras da história eclesiástica. Exerceu em
vários aspectos uma significativa influência na doutrina, organização e
disciplina da Igreja Católica. A ele devemos olhar, para a explicação da
situação religiosa da Idade Média; com efeito, não se levando em conta seu
trabalho, a evolução da forma da Cristandade medieval seria quase inexplicável.
Tanto quanto o moderno sistema católico é um legítimo desenvolvimento do
catolicismo medieval, não sem razão Gregório deve também ser chamado seu pai.
Quase todos os princípios directivos do subsequente Catolicismo são encontrados,
pelo menos em gérmen, em Gregório Magno”.
Ele “merece o
glorioso título de Magno por todas as razões que podem elevar um homem acima de
seus semelhantes: porque foi magno em nobreza e por todas as qualidades que vêm
do nascimento e dos ancestrais; magno nos privilégios da graça com que o Céu o
cumulou; magno nas maravilhas que Deus operou por seu intermédio; e magno pelas
dignidades de Cardeal, de Legado, de Papa, para as quais a divina Providência e
seus méritos o elevaram”.
Esmerada e virtuosa educação
Gregório nasceu
em Roma no ano 540. Seu pai, Gordiano, era senador. Muito rico, após o
nascimento do filho consagrou-se inteiramente a Deus no serviço dos pobres. Sua
mãe, Sílvia, não era menos ilustre nem menos virtuosa, e passou os últimos anos
de sua vida em contemplação num pequeno oratório para onde se retirou. Além de
sua mãe, duas de suas tias, Tarsila e Emília, foram também elevadas à honra dos
altares. Assim, seu primeiro biógrafo, João, o Diácono, fala de sua
educação como sendo a de um santo entre santas.
Dotado de
excepcional inteligência e brilhante memória, Gregório aprendeu com facilidade
as letras divinas e humanas. É bem provável que tenha também estudado Direito.
São Gregório de Tours, que nos deixou algumas impressões sobre ele, diz que em
gramática, retórica e dialética ele era tão hábil que, segundo voz corrente, não
tinha igual em toda Roma. Diz também que ele se entregou a Deus desde sua
juventude.
Enquanto seu pai
foi vivo, Gregório tomou parte na vida do Estado e chegou a ser prefeito de
Roma. Com a morte daquele, resolveu retirar-se do mundo e consagrar-se a Deus.
Isso deu-se provavelmente em 574. Com sua grande fortuna, fundou seis mosteiros
na Sicília, além de um em Roma, em seu palácio, com o nome de Santo André. Nele
tomou o hábito religioso. Sua caridade para com os pobres era tão grande, que
foi premiada com vários milagres.
Em 577 o papa
Bento I o nomeou cardeal-diácono ou regional. Os que estavam revestidos
dessa dignidade, sete ao todo, presidiam às sete regiões principais de Roma para
atender às suas necessidades.
Mais tarde o Papa
Pelágio II enviou-o a Constantinopla, como legado e embaixador junto ao
imperador Tibério. Sua missão principal consistia em mover o imperador a pôr
ordem na Itália.
Depois de seis
anos de vida diplomática nessa cidade, Gregório foi chamado a Roma,
provavelmente em 585, sendo então eleito abade de Santo André. O mosteiro ficou
famoso com seu enérgico abade, podendo-se ler muita coisa edificante dele em
seus Diálogos. Dedicava-se muito à formação de seus monges, e
explicou-lhes vários livros das Sagradas Escrituras, como o Pentateuco, o
Livro dos Reis, os Profetas, o Livro dos Provérbios e o
Cântico dos Cânticos.
Intervenção divina elimina a
peste
No ano de 590,
terríveis inundações seguidas de peste assolaram a Cidade Eterna, privando a
Igreja de seu chefe, o Papa Pelágio. O clero, o povo e o Senado de Roma
escolheram unanimemente para o Pontificado o diácono Gregório. Ele não queria
aceitar, mas por fim acedeu, desde que a indicação fosse ratificada pelo
imperador. Ao mesmo tempo escreveu a este, que era muito amigo seu, implorando
que não ratificasse a escolha. Mas seu irmão, então prefeito de Roma,
interceptou a carta e enviou ao imperador outra, enaltecendo as qualidades de
Gregório e pedindo a confirmação no cargo.
Enquanto não
vinha a resposta, Gregório assumiu interinamente o posto, devido ao estado de
calamidade em que Roma se encontrava. Para fazer cessar o flagelo da peste,
convocou procissões rogatórias gerais, durante três dias, com a presença de
todos, inclusive a dos abades dos mosteiros da Cidade Eterna com seus
religiosos, e das abadessas com suas religiosas. Gregório portou nessa procissão
um antigo quadro da Virgem, cuja autoria é atribuída a São Lucas. Segundo a
tradição, por onde passava o quadro, o ar corrompido cedia lugar ao são. Quando
ele chegou nas proximidades do mausoléu de Adriano, de acordo com a mesma
tradição, ouviram-se coros angélicos que cantavam: “Rainha dos Céus,
alegrai-vos, aleluia; porque Aquele que merecestes portar, aleluia; ressuscitou
como disse, aleluia”. O povo ajoelhou-se, cheio de devoção e alegria, e
Gregório cantou: “Rogai por nós a Deus, aleluia”. No mesmo instante ele
viu um anjo que embainhava a espada, para significar que o flagelo cessara. A
partir de então o mausoléu de Adriano passou a ser conhecido como Santo Ângelo.
Quando chegou a
resposta do imperador confirmando Gregório no cargo, este quis fugir, mas à
força foi ordenado sacerdote e coroado Sumo Pontífice.
Capitão, rei, pontífice, pai do
povo
Triste situação
se apresentava ao novo Papa. A Igreja estava em deplorável estado, necessitando
de mão firme que a reformasse. Na África, imperava a heresia donatista; na
Espanha, a ariana; na Inglaterra, a idolatria; e na Gália, a simonia, os crimes
de Fredegunda e os erros de Brunilda, rainha da Austrásia, na Gália. Na Itália,
os lombardos, que eram arianos e rivais do poder imperial, faziam devastações.
No Oriente, havia a arrogância dos patriarcas de Constantinopla e a má vontade
dos imperadores bizantinos que, não podendo defender nem governar a Itália,
ficavam enciumados por ver que os Papas cumpriam esse papel. Enfim, em todas as
fronteiras do Império Romano, ondas de bárbaros ameaçavam acabar com o que
restava de pé nesse mundo em transição.
O novo Papa
“lutava contra a peste, contra os tremores de terra, contra os bárbaros
heréticos e contra os bárbaros idólatras, contra o paganismo morto e infecto mas
insepulto, contra seu próprio corpo, consumido pelas enfermidades; e se pôde
dizer que a alma de Gregório era a única inteiramente sã que existia em toda a
humanidade”.
Assim, com uma habilidade e energia raras ele se multiplicava, tornando-se
capitão, rei, pontífice, pai dos romanos. Arregimentou tropas e pagou seu soldo,
forneceu aos bárbaros as contribuições que exigiam para não invadir Roma;
alimentou e consolou o povo. Obteve do rei dos lombardos uma trégua para Roma e
seu território. Com a ajuda de Teodolinda, rainha dos lombardos, que era cristã
e amiga fiel do Papa, conseguiu a conversão de toda a nação lombarda do
arianismo para a fé católica. Livrou depois o território pontifício de todos os
tiranetes que tinham surgido em meio à anarquia, dando início ao poder temporal
dos Papas.
Em 592 o
imperador bizantino, por um edito, proibiu seus soldados de abraçar a vida
monástica. Imediatamente São Gregório escreveu-lhe mostrando que, com isso, ele
feria as leis de Deus e o direito de consciência dos soldados. E lembrou ao
imperador Maurício as contas terríveis que ele teria que prestar a Deus por essa
decisão, no dia de seu juízo particular.
O grande Papa
comunicou a seu embaixador em Constantinopla: “Sei tolerar por muito tempo,
mas, uma vez que resolva resistir, lanço-me com alegria em todos os perigos.
Antes morrer que ver a Igreja do Apóstolo São Pedro degenerar em minhas mãos”.
Por sua
humildade, Gregório foi o primeiro Papa que se chamou “servo dos servos de
Deus”. Em sua boca, essa declaração não era mera figura de retórica.
Consolida a liturgia, codifica o
canto sagrado
Gregório foi
profícuo em seus escritos, tendo todos eles alcançado grande repercussão. Daí o
título que merecidamente recebeu de Doutor da Igreja. Em seu Livro da
Regra Pastoral, por exemplo, uma de suas obras que mais influíram na Idade
Média, fornece ao clero uma norma de vida. Já em suas Homilias, dirige-se
ao povo com uma simplicidade comovedora. Sua palavra é tão eminentemente
comunicativa, tão viva, tão apropriada, que a multidão a escuta religiosamente,
às vezes com lágrimas, outras com aplausos.
De valor mais
transcendental foram sua consolidação litúrgica e a codificação do canto
eclesiástico (até hoje o canto-chão leva o seu nome, gregoriano). A ele
se deve, por exemplo, o costume de cantar o Kyrie eleison na Missa, a
introdução do Pai Nosso antes da fração da hóstia, e dos aleluias nos ofícios
divinos, mesmo fora do tempo pascal. Teve muito empenho em realizar as
cerimônias de culto com muita pompa exterior, para instrução e edificação do
povo.
Do ponto de vista da liturgia, foi um digno predecessor do Papa São Pio V.
São Gregório
Magno teve grande empenho na conversão dos ingleses, de modo a merecer o título
de Apóstolo da Inglaterra.
O Pontífice,
mesmo antes de ser eleito Papa, havia passado por diversas crises de
saúde ― gota e intestinos ― que duraram meses inteiros.
Já no fim de sua
vida, escreveu: “Há quase dois anos estou na cama, com grandes dores de gota,
de modo que apenas nos dias de festa posso me levantar para celebrar. E logo,
com a força da dor, me volto a deitar. [...] Assim, morrendo cada dia, nunca
acabo de morrer, e não é maravilha que eu, sendo tão grande pecador, Deus me
mantenha tanto tempo neste cárcere”. O grande Papa faleceu no dia 12 de
março de 604, aos 60 anos de idade.
Plinio Maria Solimeo
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