Evangelii Gaudium
Exortação Apostólica
do Papa Francisco
SOBRE O ANÚNCIO DO
EVANGELHO
NO MUNDO ATUAL
AO
EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
1. A
ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que
se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são
libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento.
Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta
Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para
uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar
caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos.
2. O
grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora oferta
de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração
comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres
superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se
fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros,
já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se
goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer
o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os
crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas,
queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena,
este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no
Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se
encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus
Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por
Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém
poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da
alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído».
Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um
pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de
braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus
Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso
amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança
convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me
mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar
para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se
cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua
misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete»
(Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete.
Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos
pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos
confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma
ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a
alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por
mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida
que nos impele para diante!
4. Os
livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação, que
havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta
Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo:
«Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os
habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!»
(12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a
tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto
de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A
criação inteira participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó
céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes!
Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos
desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega
«humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião!
Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a
ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante
talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus
como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer comunicar
ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este
texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso
salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te
renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).
É a
alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana,
como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se
tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade
presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se
vislumbra por detrás destas palavras!
5. O
Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida
insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a
saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a
Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1,
41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se alegra em
Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu
ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se
completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria
sob a acção do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua mensagem é
fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em
vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15,
11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração
transbordante. Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis de estar
tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria» (Jo 16,
20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração
há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16,
22). Depois, ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo 20,
20). O livro dos Actos dos Apóstolos conta que, na primitiva
comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde
passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no
meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um
eunuco, recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8,
39); e o carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter
acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar, também
nós, nesta torrente de alegria?
6. Há
cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa.
Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em
todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras.
Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um
feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o
contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se
vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de
suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé
comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no
meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já
nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu
coração; por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do
Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se
renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a
salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A
tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e
queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para ser
possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade
técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer;
no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a
alegria».
Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao
longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm
pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles
que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam
conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras,
estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós
manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas
palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um
novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de
Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da
nossa consciência isolada e da auto-referencialidade. Chegamos a ser
plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando
permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de
alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da acção
evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve
o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar
aos outros?
9. O
bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de
verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e
qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior
sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez
comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja
viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão
reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam
surpreender frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos
absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não
evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A
proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade:
«Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no
isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que
deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar
a vida aos demais».
Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais
do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização
pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida
se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos
outros”. Isto é, definitivamente, a missão».
Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente
uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito,
«a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for
preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que
procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova
dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados,
impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida
irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de
Cristo».
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não
praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade
evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência são
sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo
morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda
que sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia,
correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31).
Cristo é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o
mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8), mas a sua
riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte
de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a
«profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11,
33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência
de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais que a alma saiba
dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente».
Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe
consigo toda a novidade».
Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa
comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos
obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode
romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos
aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade
divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor
original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos,
outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias
de renovado significado para o mundo actual. Na realidade, toda a
acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro
considerá-la como uma heróica tarefa pessoal, dado que ela é,
primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender,
obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador».
Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que
quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do
seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus
misteriosamente quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que
Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma
maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a
iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4,
19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta
convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão
exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos
tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E
também não deveremos entender a novidade desta missão como um
desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos
acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé,
que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar
«deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória
quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf.
Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o
horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de
pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus
lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1,
39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma
verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas,
distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial para
fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos
guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às
vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos
iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento,
que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1,
5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
14. À
escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente os
sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A
nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Lá foi
recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se
fundamentalmente em três âmbitos.
Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral ordinária,
«animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar os corações dos
fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia
do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida
eterna».
Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam uma
fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos,
embora não participem frequentemente no culto. Esta pastoral está
orientada para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem
cada vez melhor e com toda a sua vida ao amor de Deus.
Em
segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas que,
porém, não vivem as exigências do Baptismo»,
não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a
consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que
elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé e o
desejo de se comprometerem com o Evangelho.
Por
fim, frisamos que a evangelização está essencialmente relacionada
com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus
Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles buscam
secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em
países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de receber o
Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir
ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem
partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um
banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por
atracção».
15. João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder
a tensão para o anúncio» àqueles que estão longe de Cristo, «porque
esta é a tarefa primária da Igreja».
A actividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio
para a Igreja»
e «a causa missionária deve
ser (…) a primeira de todas as causas».
Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras?
Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária é o
paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos
latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em
espera passiva, em nossos templos»,
sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para
uma pastoral decididamente missionária».
Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a
Igreja: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se
converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de
conversão» (Lc 15, 7).
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir
esta Exortação.
Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei
também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as
preocupações que me movem neste momento concreto da obra
evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização
no mundo actual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis.
Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de
questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso.
Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma
palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem
respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os
episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que
sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade
de proceder a uma salutar «descentralização».
17.
Aqui escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e
orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da
Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros
temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A
reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez
possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer um
tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes
assuntos na missão actual da Igreja. De facto, todos eles ajudam a
delinear um preciso estilo evangelizador, que convido a assumir em
qualquer actividade que se realize. E, desta forma, podemos
assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra
de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo:
alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
19. A
evangelização obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois,
fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos
tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos, aparece o
momento em que o Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em
todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se estenda a todos os
cantos da terra.
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de
«saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a
chamada para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3).
Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3,
10), e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17).
A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7).
Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios
sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos
chamados a esta nova «saída» missionária. Cada cristão e cada
comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede,
mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria
comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que
precisam da luz do Evangelho.
21. A
alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos,
é uma alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois
discípulos, que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10,
17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo e louva o
Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10,
21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem
no Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2,
6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o
Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contém sempre a
dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de
semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para
outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi
para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a
semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir
novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A
Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a
podemos prever. O Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à
terra, cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme
(cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão
variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões
e quebrando os nossos esquemas.
23. A
intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a
comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária».
Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para
anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as
ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do
Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém; assim foi
anunciada pelo anjo aos pastores de Belém: «Não temais, pois
anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo»
(Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor
eterno para anunciar aos habitantes da terra: a todas as nações,
tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
24. A
Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que
«primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e
festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a
iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou
a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por
isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao
encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos
caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de
oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia
infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no
tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se».
Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e
envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os
lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o
puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a
comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as
distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e
assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo.
Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas
escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se
a «acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos,
por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a
suportação apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e
evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor,
sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se
atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e
não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o
joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas.
Encontra o modo para fazer com que a Palavra se encarne numa
situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem
aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer
a vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus
Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que
a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e
renovadora. Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe
sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada
passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de
fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na
liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da
liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e
fonte dum renovado impulso para se dar.
25. Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse
que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso
sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um
significado programático e tem consequências importantes. Espero que
todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários
para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que
não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve
uma «simples administração».
Constituamo-nos em «estado permanente de missão»,
em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação de modo que
ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à
Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua
força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si
mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência
esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar
a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou
seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o
rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso,
surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto
é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e
rejeita, como se fosse um exame interior ao espelho do modelo que
Cristo nos deixou de Si mesmo».
O
Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura
a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo:
«Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior
fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina é chamada por
Cristo a esta reforma perene. Como instituição humana e terrena, a
Igreja necessita perpetuamente desta reforma».
Há
estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo
evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem quando há
uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito
evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação»,
toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo.
27. Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para
que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a
estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à
evangelização do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das
estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender
neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias,
que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais
comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude
constante de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos
aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade. Como dizia João Paulo II
aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na Igreja há-de ter como
alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão
eclesial».
28. A
paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma
grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que
requerem a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da
comunidade. Embora não seja certamente a única instituição
evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar
constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio
das casas dos seus filhos e das suas filhas».
Isto supõe que esteja realmente em contacto com as famílias e com a
vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das
pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A
paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da
Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a
caridade generosa, a adoração e a celebração.
Através de todas as suas actividades, a paróquia incentiva e forma
os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber
para continuarem a caminhar, e centro de constante envio
missionário. Temos, porém, de reconhecer que o apelo à revisão e
renovação das paróquias ainda não deu suficientemente fruto,
tornando-se ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos de viva
comunhão e participação e orientando-se completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades de base e pequenas
comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma
riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os
ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor
evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a
Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto com esta
realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom
grado na pastoral orgânica da Igreja particular.
Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e
da Igreja, ou que se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da Igreja Católica sob a guia do
seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária. Ela é
o sujeito primário da evangelização,
enquanto é a manifestação concreta da única Igreja num lugar da
terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja de
Cristo, una, santa, católica e apostólica».
É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada de todos os meios
de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria
de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por
anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante
saída para as periferias do seu território ou para os novos âmbitos
socioculturais.
Procura estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do
Ressuscitado.
Para que este impulso missionário seja cada vez mais intenso,
generoso e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas particulares
a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e
reforma.
31. O
Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja
diocesana, seguindo o ideal das primeiras comunidades cristãs, em
que os crentes tinham um só coração e uma só alma (cf. Act 4,
32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e
sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente
no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e,
em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para ajudar
aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui
o olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de promover
uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e
procurar o amadurecimento dos organismos de participação propostos
pelo Código de Direito Canónico e
de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos,
e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo
destes processos participativos não há-de ser principalmente a
organização eclesial, mas o sonho missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo
pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de
Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu
ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo
pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização. O Papa
João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de
exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é
essencial da sua missão, se abra a uma situação nova».
Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas
centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma
conversão pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança
das antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem
«aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento
colegial leve a aplicações concretas».
Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda não foi
suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais
que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo
alguma autêntica autoridade doutrinal.
Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da
Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A
pastoral em chave missionária exige o abandono deste cómodo critério
pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos a serem ousados e
criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas, o
estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma
identificação dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios
para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia. A
todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações
deste documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não
caminhar sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo
especial, a guia dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e
realista.
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se
também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo actual, com a
velocidade das comunicações e a selecção interessada dos conteúdos
feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre mais
do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos
seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que
fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que
lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que
anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários,
que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o
coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas
e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o
horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar
o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere
sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela
transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se
tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objectivo
pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem
excepções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que
é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais
necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder
profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são
acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes
por exprimir mais directamente o coração do Evangelho. Neste núcleo
fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus
manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido,
o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou “hierarquia”
das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente».
Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos
ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da
Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e acções que delas
procedem.
Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal 5,
6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais
perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal da
Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé
que opera pelo amor».
Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia
é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a
maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os
outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora,
isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se
diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto,
que se manifesta a sua omnipotência».
38. É
importante tirar as consequências pastorais desta doutrina
conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais
nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que
haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que
se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por
exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes
sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou
sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas
precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na
pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da
lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa
que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que
impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também
nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da
mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se
a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem
cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria
importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel
ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas
verdades e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética
estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática
nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de
tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos
outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este
convite não há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as
virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não
refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o
risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior
perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o
Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam
de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o
seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
40. A
Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na
sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da
verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o
juízo da Igreja».
Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências.
Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse
que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter
indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de
Magistério».
Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais
se indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar
pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja,
enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra.
A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances
por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a
realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver
melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem
que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades de
sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente
novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a
substância (...) e outra é a formulação que a reveste».
Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo
que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e
compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de
Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre
Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou
um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o
risco mais grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode
ser multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se
necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no
seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se
temos verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a sua beleza e
fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais
tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente
compreensível e felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre
um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua
adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta
adesão que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam
compreender as razões e os argumentos. Por isso, é preciso
recordar-se de que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na
atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a
proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a
reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do
Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já
não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente
não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não
prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos
medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais
que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a
mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino
sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao
povo de Deus «são pouquíssimos».
E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados
posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião
numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse
livre».
Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade
tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa
numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente
chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os
seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem
esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da
Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade dum acto
podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a
inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições
desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais».
Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso
acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de
crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia.
Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara
de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva
a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes
limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar
sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo
do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa,
para além dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se move por entre as
limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura comunicar cada
vez melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem
renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição
não é possível. Um coração missionário está consciente destas
limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos»
(1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias
seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele
mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento
das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda
que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
46. A
Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em
direcção aos outros para chegar às periferias humanas não significa
correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor
diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e
escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído
à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que
continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder
entrar sem dificuldade.
47. A
Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais
concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as
portas abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito
e se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza duma
porta fechada. Mas há outras portas que também não se devem fechar:
todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem
fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se
deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando
se trata daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A
Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é
um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento
para os fracos.
Estas convicções têm também consequências pastorais, que somos
chamados a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos
como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja
não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com
a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de
chegar a todos, sem excepção. Mas, a quem deveria privilegiar?
Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara:
não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e
aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos,
«àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14). Não
devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho»,
e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que
Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!
Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos
sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja
acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma
Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às
próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e
procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e
preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que
vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo,
sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido
e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo
de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa protecção,
nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em
que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão
faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de
comer» (Mc 6, 37).
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais relativas à
acção evangelizadora, convém recordar brevemente o contexto em que
temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de
diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas
e realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de
grande proveito um olhar puramente sociológico, que tivesse a
pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade de
maneira supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer
situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o
olhar do discípulo missionário que «se nutre da luz e da força do
Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa
da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma
capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos».
Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas realidades
hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear
processos de desumanização tais que será difícil depois retroceder.
É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que
atenta contra o projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e
interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também
– e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e
rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que
ofereceram os outros documentos do Magistério universal, bem como as
propostas pelos episcopados regionais e nacionais. Nesta Exortação,
pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas
sobre alguns aspectos da realidade que podem deter ou enfraquecer os
dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja porque afectam a
vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque incidem sobre os
sujeitos que mais directamente participam nas instituições eclesiais
e nas tarefas de evangelização.
52. A
humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos
constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas,
por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação.
Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres
do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas
consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero
apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados
países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece;
crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social
torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas
vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada
pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e
acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações
tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação,
fonte de novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer
«não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta
economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum
idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois
pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto
de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto
é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e
da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em
consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco
sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de
consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a
cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se
trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma
realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença
à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia
ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída
favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior
equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi
confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na
bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos
sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que
exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta,
desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar
conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores
alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos
interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma
responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do
bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o
mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas
vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero
espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o
dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e
as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a
negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração
do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma
nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma
economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A
crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a
descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave
carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas
a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da
maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria
feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a
autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por
isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar
pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às
vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas
leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros
afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os
cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma
corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram
dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites.
Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os
benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a
recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo
desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado
humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma
ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em
última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta
comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se
absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo
perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização
e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma
ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem
social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e os
governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio
da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios
bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os
bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma
vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a
quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e
clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada
contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a
todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de
lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e
promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um
regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser
humano.
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas,
enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da
sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a
violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais
pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de
agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou
mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade – local,
nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma,
não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos
que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não
acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reacção
violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema
social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a
difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende
a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases
de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça.
Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas
duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte.
É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do
qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado
«fim da história», já que as condições dum desenvolvimento
sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e
realizadas.
60. Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do
consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à
desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social.
Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma
violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão
resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que
reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas
e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e
piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos
próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações
indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os
tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto
torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este
câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos
países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual
for a ideologia política dos governantes.
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios
que se nos podem apresentar.
Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade
religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em
muitos lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença
relativista, relacionada com a desilusão e a crise das ideologias
que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto
não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos
que, numa cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade
subjectiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram
inserir-se num projecto comum que vai além dos benefícios e desejos
pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é
exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real
cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou
uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de
tendências pertencentes a outras culturas, economicamente
desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em
distintos Sínodos, os Bispos de vários continentes. Há alguns anos,
os Bispos da África, por exemplo, retomando a Encíclica
Sollicitudo rei socialis, assinalaram que muitas vezes se quer
transformar os países africanos em meras «peças de um mecanismo,
partes de uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com frequência
também no domínio dos meios de comunicação social, os quais, sendo
na sua maior parte geridos por centros situados na parte norte do
mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas
próprios desses países e não respeitam a sua fisionomia cultural».
De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as influências
externas que estão a penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo
formas novas de comportamento resultantes da orientação dos mass-media (…).
Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media e
espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A
fé católica de muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da
proliferação de novos movimentos religiosos, alguns tendentes ao
fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade sem
Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a
sociedade materialista, consumista e individualista e, por outro, um
aproveitamento das carências da população que vive nas periferias e
zonas pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e
procura soluções imediatas para as suas necessidades. Estes
movimentos religiosos, que se caracterizam pela sua penetração
subtil, vêm colmar, dentro do individualismo reinante, um vazio
deixado pelo racionalismo secularista. Além disso, é necessário
reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não sente a sua
pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas
com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e
comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos
problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos. Em muitas
partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem
como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O
processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito
privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a
transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um
enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um aumento
progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação
generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da
adolescência e juventude. Como justamente observam os Bispos dos
Estados Unidos da América, enquanto a Igreja insiste na existência
de normas morais objectivas, válidas para todos, «há aqueles que
apresentam esta doutrina como injusta, ou seja, contrária aos
direitos humanos básicos. Tais alegações brotam habitualmente de uma
forma de relativismo moral, que se une consistentemente a uma
confiança nos direitos absolutos dos indivíduos. Nesta perspectiva,
a Igreja é sentida como se estivesse promovendo um convencionalismo
particular e interferisse com a liberdade individual».
Vivemos numa sociedade da informação que nos satura
indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível, e acaba
por nos conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de
enquadrar as questões morais. Por conseguinte, torna-se necessária
uma educação que ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho
de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade, em
muitos países – mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja
Católica é uma instituição credível perante a opinião pública,
fiável no que diz respeito ao âmbito da solidariedade e preocupação
pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela serviu de
medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o
meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc. E
como é grande a contribuição das escolas e das universidades
católicas no mundo inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas,
quando levantamos outras questões que suscitam menor acolhimento
público, custa-nos a demonstrar que o fazemos por fidelidade às
mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana e do bem comum.
66. A
família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as
comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade
dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da
célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na
diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé
aos seus filhos. O matrimónio tende a ser visto como mera forma de
gratificação afectiva, que se pode constituir de qualquer maneira e
modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a
contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível
da afectividade e o das necessidades ocasionais do casal. Como
ensinam os Bispos franceses, não provém «do sentimento amoroso,
efémero por definição, mas da profundidade do compromisso assumido
pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O
individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida
que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre
as pessoas e distorce os vínculos familiares. A acção pastoral deve
mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai exige e incentiva
uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos
interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se
reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos,
insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas,
de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a
carregar as cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso,
vemos hoje surgir muitas formas de agregação para a defesa de
direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste modo se
manifesta uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem
ser construtores do desenvolvimento social e cultural.
68. O
substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma
realidade viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais
necessitados, uma reserva moral que guarda valores de autêntico
humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar
de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter
confiança na sua acção livre e generosa pensar que não existem
autênticos valores cristãos, onde uma grande parte da população
recebeu o Baptismo e exprime de variadas maneiras a sua fé e
solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais que
«sementes do Verbo», visto que se trata duma autêntica fé católica
com modalidades próprias de expressão e de pertença à Igreja. Não
convém ignorar a enorme importância que tem uma cultura marcada pela
fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura evangelizada
tem, contra os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos
do que a mera soma dos crentes. Uma cultura popular evangelizada
contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o
desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma
sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar
agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para
inculturar o Evangelho. Nos países de tradição católica, tratar-se-á
de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já existe e, nos
países de outras tradições religiosas ou profundamente
secularizados, há que procurar novos processos de evangelização da
cultura, ainda que suponham projectos a longo prazo. Entretanto não
podemos ignorar que há sempre uma chamada ao crescimento: toda a
cultura e todo o grupo social necessitam de purificação e
amadurecimento. No caso das culturas populares de povos católicos,
podemos reconhecer algumas fragilidades que precisam ainda de ser
curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a violência
doméstica, uma escassa participação na Eucaristia, crenças
fatalistas ou supersticiosas que levam a recorrer à bruxaria, etc.
Mas o melhor ponto de partida para curar e ver-se livre de tais
fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas
exteriores das tradições de grupos concretos ou a supostas
revelações privadas, que se absolutizam, do que ao impulso da
piedade cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio
duma vivência individual e sentimental da fé – que, na realidade,
não corresponde a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem
estas expressões sem se preocupar com a promoção social e a formação
dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para obter benefícios económicos
ou algum poder sobre os outros. Também não podemos ignorar que, nas
últimas décadas, se produziu uma ruptura na transmissão geracional
da fé cristã no povo católico. É inegável que muitos se sentem
desiludidos e deixam de se identificar com a tradição católica, que
cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os
ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de
fé. Algumas causas desta ruptura são a falta de espaços de diálogo
familiar, a influência dos meios de comunicação, o subjectivismo
relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a
falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum
acolhimento cordial nas nossas instituições, e a dificuldade que
sentimos em recriar a adesão mística da fé num cenário religioso
pluralista.
71. A
nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta
para onde peregrina toda a humanidade. É interessante que a
revelação nos diga que a plenitude da humanidade e da história se
realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir dum
olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que
habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de
Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efectuam para
encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os
citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de
bem, de verdade, de justiça. Esta presença não precisa de ser
criada, mas descoberta, desvendada. Deus não Se esconde de quantos O
buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando, de maneira
imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos
de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território e
das relações que difere do estilo das populações rurais. Na vida
quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para sobreviver e, nesta
luta, esconde-se um sentido profundo da existência que habitualmente
comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos de o
contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor
teve com a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua
sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias
humanas onde o cristão já não costuma ser promotor ou gerador de
sentido, mas recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e
paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em
contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e
está em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as
transformações destas grandes áreas e a cultura que exprimem são,
hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização.
Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com
características inovadoras, mais atraentes e significativas para as
populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência dos mass-media,
não estão imunes destas transformações culturais que também operam
mudanças significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos
de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que
suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são
concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra
de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve
esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes
cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas
compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões
semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em
territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem
variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes práticas de
segregação e violência. A Igreja é chamada a ser servidora dum
diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios
adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar,
muitíssimos são também os «não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os
«resíduos urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de ambivalência
permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes
infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao
pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca
sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são
cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam
liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não
forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser
silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o
tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o
abandono de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crime. Ao
mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de encontro e
solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para
isolar e proteger do que para unir e integrar. A proclamação do
Evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida humana
nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em
abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo da
vida humana proposto pelo Evangelho é o melhor remédio para os males
urbanos, embora devamos reparar que um programa e um estilo
uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta
realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no
coração dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer
cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a cidade.
76. Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na
Igreja. Não quero agora deter-me na exposição das actividades dos
vários agentes pastorais, desde os Bispos até ao mais simples e
ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios
que todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas,
antes de tudo e como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a
contribuição da Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e vergonha
pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos próprios, não
devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida por amor:
ajudam tantas pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em
hospitais precários, acompanham as pessoas que caíram escravas de
diversos vícios nos lugares mais pobres da terra, prodigalizam-se na
educação de crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados por
todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e dedicam-se
de muitas outras maneiras que mostram o imenso amor à humanidade
inspirado por Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo que me dão
tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria.
Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração
pessoal de superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta época, todos estamos de algum
modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que, sem deixar de
apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos,
condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos
de criar espaços apropriados para motivar e sanar os agentes
pastorais, «lugares onde regenerar a sua fé em Jesus crucificado e
ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais profundas
e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com
critérios evangélicos sobre a própria existência e experiência, com
o objectivo de orientar para o bem e a beleza as próprias opções
individuais e sociais».
Ao mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que
afectam, particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
78. Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas
consagradas, uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de
autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres como
mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria
identidade. Ao mesmo tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns
momentos religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam
o encontro com os outros, o compromisso no mundo, a paixão pela
evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes
evangelizadores – não obstante rezem – uma acentuação do individualismo,
uma crise de identidade e um declínio do fervor. São
três males que se alimentam entre si.
79. A
cultura mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às
vezes, uma acentuada desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um
certo desencanto. Em consequência disso, embora rezando, muitos
agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de
inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade
cristã e as suas convicções. Gera-se então um círculo vicioso,
porque assim não se sentem felizes com o que são nem com o que
fazem, não se sentem identificados com a missão evangelizadora, e
isto debilita a entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da
missão numa espécie de obsessão por serem como todos os outros e
terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa da evangelização
torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito
limitado.
80. Nos agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual ou
da linha de pensamento que possam ter, desenvolve-se um relativismo
ainda mais perigoso que o doutrinal. Tem a ver com as opções mais
profundas e sinceras que determinam uma forma de vida concreta. Este
relativismo prático é agir como se Deus não existisse, decidir como
se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não
existissem, trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio
não existissem. É impressionante como até aqueles que aparentemente
dispõem de sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam,
muitas vezes, por cair num estilo de vida que os leva a agarrarem-se
a seguranças económicas ou a espaços de poder e de glória humana que
se buscam por qualquer meio, em vez de dar a vida pelos outros na
missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e
luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar
alguma tarefa apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso
que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se
muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam
preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo
parecido acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente
com o seu tempo pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que
as pessoas sentem imperiosamente necessidade de preservar os seus
espaços de autonomia, como se uma tarefa de evangelização fosse um
veneno perigoso e não uma resposta alegre ao amor de Deus que nos
convoca para a missão e nos torna completos e fecundos. Alguns
resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam
mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O
problema não está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo
nas actividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma
espiritualidade que impregne a acção e a torne desejável. Daí que as
obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer.
Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e,
em definitivo, não assumida. Esta acédia pastoral pode ter origens
diversas: alguns caem nela por sustentarem projectos irrealizáveis e
não viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente fazer; outros,
por não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo
caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos
de sucesso cultivados pela sua vaidade; outros, por terem perdido o
contacto real com o povo, numa despersonalização da pastoral que
leva a prestar mais atenção à organização do que às pessoas,
acabando assim por se entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do
que com a própria marcha; outros ainda caem na acédia, por não
saberem esperar e quererem dominar o ritmo da vida. A ânsia hodierna
de chegar a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais
não tolerem facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um
aparente fracasso, uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo cinzento da
vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro
da normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e
degenerando na mesquinhez».
Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma
os cristãos em múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a
Igreja ou consigo mesmos, vivem constantemente tentados a apegar-se
a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera do coração como
«o mais precioso elixir do demónio».
Chamados para iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar
cativar por coisas que só geram escuridão e cansaço interior e
corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto, permiti que insista:
Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!
84. A
alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar
(cf. Jo 16, 22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja –
não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega e o
nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além disso, o
olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre
irradia no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o
pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é
desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e
a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta anos
depois do Concílio Vaticano II, apesar de nos entristecerem as
misérias do nosso tempo e estarmos longe de optimismos ingénuos, um
maior realismo não deve significar menor confiança no Espírito nem
menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar a ouvir as
palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de
Outubro de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas,
ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de
discrição e moderação. Nos tempos actuais, não vêem senão
prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que devemos
discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos
sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. Na
ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos
levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos
homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se
encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e
inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o
bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é
a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos
e desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma
luta, se de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem
começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra
os seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias
fraquezas, há que seguir em frente, sem se dar por vencido, e
recordar o que disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça,
porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O
triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente,
estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra
as investidas do mal. O mau espírito da derrota é irmão da tentação
de separar prematuramente o trigo do joio, resultado de uma
desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É
verdade que, nalguns lugares, se produziu uma «desertificação»
espiritual, fruto do projecto de sociedades que querem construir sem
Deus ou que destroem as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão
está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra excessivamente
desfrutada que se transforma em poeira».
Noutros países, a resistência violenta ao cristianismo obriga os
cristãos a viverem a sua fé às escondidas no país que amam. Esta é
outra forma muito triste de deserto. E a própria família ou o lugar
de trabalho podem ser também o tal ambiente árido, onde há que
conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir
da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a
alegria de crer, a sua importância vital para nós, homens e
mulheres. No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é
essencial para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros
sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda que muitas
vezes expressos implícita ou negativamente. E, no deserto, existe
sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias
vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim
viva a esperança».
Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de
beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz,
mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos
entregou como fonte de água viva. Não deixemos que nos roubem a
esperança!
87. Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação
humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de
descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos,
encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um
pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de
fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada.
Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em
novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. Como
seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar
este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem.
Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a
humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos.
88. O
ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança
permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que
nos impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos outros
fechando-se na sua privacidade confortável ou no círculo reduzido
dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social do
Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo puramente
espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações
interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e
sistemas que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto o
Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o
rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu
sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa
permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito
carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do
serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação,
o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura.
89. O
isolamento, que é uma concretização do imanentismo, pode exprimir-se
numa falsa autonomia que exclui Deus, mas pode também encontrar na
religião uma forma de consumismo espiritual à medida do próprio
individualismo doentio. O regresso ao sagrado e a busca espiritual,
que caracterizam a nossa época. são fenómenos ambíguos. Mais do que
o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder
adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham
de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem
carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma
espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao
mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade
missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem
dão glória a Deus.
90. As formas próprias da religiosidade popular são encarnadas,
porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por
isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias
harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm
carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades
relacionais e não tanto fugas individualistas. Noutros sectores da
nossa sociedade, cresce o apreço por várias formas de
«espiritualidade do bem-estar» sem comunidade, por uma «teologia da
prosperidade» sem compromissos fraternos ou por experiências
subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior
imanentista.
91. Um desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá
em escapar de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao
mesmo tempo nos comprometa com os outros. Isto é o que se verifica
hoje quando os crentes procuram esconder-se e livrar-se dos outros,
e quando subtilmente escapam de um lugar para outro ou de uma tarefa
para outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e
mudança de lugares enganou a muitos».
É um remédio falso que faz adoecer o coração e, às vezes, o corpo.
Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender a
encontrar os demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e
aceitá-los como companheiros de estrada, sem resistências
interiores. Melhor ainda, trata-se de aprender a descobrir Jesus no
rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender
também a sofrer, num abraço com Jesus crucificado, quando recebemos
agressões injustas ou ingratidões, sem nos cansarmos jamais de optar
pela fraternidade.
92. Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo de nos
relacionarmos com os outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é
uma fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a
grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser
humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência agarrando-se ao
amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino para procurar
a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente
nesta época, inclusive onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12,
32), os discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade
que seja sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São
chamados a testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença
evangelizadora.
Não deixemos que nos roubem a comunidade!
93. O
mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de
religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da
glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo
que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível acreditar,
se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a
glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira
subtil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de
Jesus Cristo» (Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas, de
acordo com o tipo de pessoas e situações em que penetra. Por
cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados de
domínio público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se
invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que
qualquer outro mundanismo meramente moral».
94. Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras
profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo,
uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma
determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos
que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a
pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos
seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo
auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas
próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo
estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança
doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e
autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam
os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os
outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo
antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas
desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo
evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes,
aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o espaço
da Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da
doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o
Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas
necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja
transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos.
Noutros, o próprio mundanismo espiritual esconde-se por detrás do
fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa
vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atracção
pelas dinâmicas de auto-estima e de realização autoreferencial.
Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo
envolvido numa densa vida social cheia de viagens, reuniões,
jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações,
onde o principal beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como
organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo
encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de
elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das
imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico,
mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de quantos se contentam
com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados
antes que simples soldados dum batalhão que continua a lutar.
Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas,
meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim
negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história
de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no
serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho
é «suor do nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a
falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo»
– como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções
ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e
perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a
profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar
constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência.
Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte
fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente,
não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao
perdão. É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos
evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de
missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos
livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais!
Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito
Santo, que nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos,
escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos que
nos roubem o Evangelho!
98. Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas
guerras! No bairro, no local de trabalho, quantas guerras por
invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual leva
alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se
interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança
económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à
Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer
à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou
àquele grupo que se sente diferente ou especial.
99. O
mundo está dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido por um
generalizado individualismo que divide os seres humanos e põe-nos
uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários países,
ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte
superados. Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero
pedir-lhes de modo especial um testemunho de comunhão fraterna, que
se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como
vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais
animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus
discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o
que Jesus, com uma intensa oração, Jesus pediu ao Pai: «Que todos
sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo17, 21).
Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos
para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos
alheios, que são de todos.
100. Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta
difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação, porque
pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a
memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que
atrai. Por isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades
cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias
formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a
desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até
perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem
queremos evangelizar com estes comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que
bom é termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns
aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a
exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal
com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o
bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e
talvez neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos
digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com este, com aquela.
Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem estamos
irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de
evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o
ideal do amor fraterno!
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao
seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a
consciência da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora
não suficiente, pode-se contar com um numeroso laicado, dotado de um
arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao
compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a
tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do
Baptismo e da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a
parte; nalguns casos, porque não se formaram para assumir
responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas
suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa
dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões.
Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios
laicais, este compromisso não se reflecte na penetração dos valores
cristãos no mundo social, político e económico; limita-se muitas
vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela
aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A formação dos
leigos e a evangelização das categorias profissionais e intelectuais
constituem um importante desafio pastoral.
103. A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na
sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades
peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos
homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros,
que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na
maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham
responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem
para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas
contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar
os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja.
Porque «o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida
social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres também
no âmbito do trabalho»
e nos vários lugares
onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas
estruturas sociais.
104. As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir
da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade,
colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem
iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como
sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão
que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente
controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o
poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal,
«estamos na esfera da função e não na da dignidade e
da santidade».
O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço
do seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível
a todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é,
como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o
coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão
justificação à superioridade de uns sobre os outros».
Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos.
Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à
santidade dos membros do corpo místico de Cristo».
A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como
domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia;
daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui
está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que
poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se
refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões
importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a
desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas estruturas
ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para as
suas preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós,
adultos, custa-nos ouvi-los com paciência, compreender as suas
preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a falar-lhes na
linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas
educacionais não produzem os frutos esperados. A proliferação e o
crescimento de associações e movimentos predominantemente juvenis
podem ser interpretados como uma acção do Espírito que abre caminhos
novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de
espiritualidade profunda e dum sentido mais concreto de pertença.
Todavia é necessário tornar mais estável a participação destas
agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.
106. Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve
crescimento em dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade
os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um
protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de
crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens
que se solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias
formas de militância e voluntariado. Alguns participam na vida da
Igreja, integram grupos de serviço e diferentes iniciativas
missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros lugares. Como é
bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes por levarem
Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à
vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de
ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não
entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar
Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde
os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida
fraterna e fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se
consagrar inteiramente a Deus e à evangelização, especialmente se
essa comunidade vivente reza insistentemente pelas vocações e tem a
coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial
consagração. Por outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje
temos noção mais clara da necessidade de melhor selecção dos
candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários com
qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão
relacionadas com insegurança afectiva, busca de formas de poder,
glória humana ou bem-estar económico.
108. Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo,
mas convido as comunidades a completarem e a enriquecerem estas
perspectivas a partir da consciência dos desafios próprios e das
comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que,
todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade
actual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como
outros são a esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a
sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente os
mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a
aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas tendências da
humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos
encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são
fonte de vida no mundo actual.
109.
Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem
perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não
deixemos que nos roubem a força missionária!
110. Depois de considerar alguns desafios da realidade actual, quero
agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer
época e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem
o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma
«primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de
evangelização».
Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João Paulo II
afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial,
então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e
progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus
Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta».
Isto é válido para todos.
111. A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da
evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e
hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus.
Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na
Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e
evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão
institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de
compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa
livre e gratuita de Deus.
112. A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia.
Não há acção humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão
grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si.
Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus
filhos, para nos transformar e tornar capazes de responder com a
nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo como
sacramento da salvação oferecida por Deus.
Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como instrumento
da graça divina, que opera incessantemente para além de toda e
qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as
reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira
palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem de
Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta
iniciativa divina, nos podemos tornar também – com Ele e n'Ele –
evangelizadores».
O princípio da primazia da graça deve ser um farol que
ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização.
113. Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente
anuncia, é para todos,
e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de
todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres
isolados.
Ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem
por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa
trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana
supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja.
Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um
grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os
povos» (Mt 28, 19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na
Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque todos sois um só em
Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria de dizer àqueles que
se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos
indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo,
e fá-lo com grande respeito e amor!
114.
Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande
projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio
da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este
nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter
respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho.
A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos
possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
115. Este Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos
quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um instrumento
precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que
existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma
determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus
membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com
Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum
povo.
Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura
com legítima autonomia.
Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua
natureza, necessita absolutamente da vida social»
e mantém contínua
referência à sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se
relacionar com a realidade. O ser humano está sempre culturalmente
situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas».
A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de
quem o recebe.
116. Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade
inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida
diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades culturais.
Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo
fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E
assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não
dispõe de um único modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na
fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o
cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos
vários povos onde for acolhido e se radicar».
Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a
própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e
mostra «a beleza deste rosto pluriforme».
Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito
Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e
presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja
«introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade»,
porque «cada cultura oferece formas e valores positivos que podem
enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido».
Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas,
torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna
com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a
unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho,
que transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na
comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua
unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo
de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre
o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada
riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é
uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai. A evangelização
reconhece com alegria estas múltiplas riquezas que o Espírito gera
na Igreja. Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num
cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas
culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao
desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não
se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural.
Por isso, na evangelização de novas culturas ou de culturas que não
acolheram a pregação cristã, não é indispensável impor uma
determinada forma cultural, por mais bela e antiga que seja,
juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que anunciamos,
sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja,
caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode
mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118.
Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente
«desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo
partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os
missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para
garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas
legítimas e apropriadas a cada cultura».
Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao
exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos
europeus num determinado momento da história, porque a fé não se
pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma
cultura.
É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da
redenção de Cristo.
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a
força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de
Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível «in
credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não
encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na
verdade e condu-lo à salvação.
Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a
totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus
fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A
presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade
com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las
intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para
expressá-las com precisão.
120. Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus
tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos
baptizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau
de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e
seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por
agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas
receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar um novo
protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se
num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu
compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou
verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito
tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe
dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário
na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus;
não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre
que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos
disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de
terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de
alegria: «Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana,
logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e
muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido às palavras da
mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro
com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus
era o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores.
Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um
aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do
Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos
evangelizem constantemente; isto não significa que devemos renunciar
à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que
corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos
chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico
do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua
proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida.
O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem,
aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança,
isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição não
deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante
para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a
crescer. O testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a
oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha
alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…)
lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos
quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos,
agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da
sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de
dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração
transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas
situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face
aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e pai
da cultura onde está inserido».
Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de
transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova;
daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada
porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a
sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com
novas expressões que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se
evangeliza continuamente a si mesmo».
Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da
actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma
realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o
Espírito Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé
recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista
por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto de
revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um
impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade
popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres
e os simples podem experimentar»
e «torna as pessoas
capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o
sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé».
Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina,
assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e
que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que
o Espírito Santo explicita na piedade popular por sua iniciativa
gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de
cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos
chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular».
Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos
simples».
Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via
simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé,
acentua mais o credere in Deum que o credere
Deum.
É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da
Igreja e uma forma de ser missionários»;
comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do peregrinar:
«O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou
convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador».
Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o
olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da
conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida
teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos
pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente,
que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do
Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se
acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares
de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus,
não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da
divindade; são a manifestação duma vida teologal animada pela acção
do Espírito Santo, que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5,
5).
126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado,
subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos
subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário,
somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o
processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As
expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem
as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar
atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação
missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como
tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se
encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a
pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é
também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser
discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros
o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na
rua, na praça, no trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento
é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha
as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus
entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta
conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura
de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o
anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem,
entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a
sua amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e
testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que
esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas
vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum
testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o
próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta.
Se parecer prudente e houver condições, é bom que este encontro
fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione
com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais
claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi
posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus fala
realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de
ser transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas
ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente
invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria
impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é
o povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por
conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se
comunica apenas através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve
fazer-nos pensar que, nos países onde o cristianismo é minoria, para
além de animar cada baptizado a anunciar o Evangelho, as Igrejas
particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos
incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a
pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura
onde é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora
estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos
demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a
ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos
simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste
caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa
cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da
Igreja.
130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora também
com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar a Igreja.
Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que
o guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo
eclesial, atraídos para o centro que é Cristo, donde são canalizados
num impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade dum
carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar
harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos.
Uma verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de fazer
sombra sobre outras espiritualidades e dons para se afirmar a si
mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do
Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão,
mesmo que seja fadigosa, que um carisma se revela autêntica e
misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um
modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças entre as pessoas e as comunidades por vezes são
incómodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de
tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo
evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre
conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a
diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo,
realizar a unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos a
diversidade e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos
exclusivismos, provocamos a divisão; e, por outro lado, quando somos
nós que queremos construir a unidade com os nossos planos humanos,
acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não ajuda a
missão da Igreja.
132. O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas
profissionais, científicas e académicas. É o encontro entre a fé, a
razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a
credibilidade, uma apologética original
que ajude a criar as
predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando
algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio
da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de
evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez
assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito
para iluminar e renovar o mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por chegar
a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu
conjunto, a teologia – e não só a teologia pastoral – em diálogo com
outras ciências e experiências humanas tem grande importância para
pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade dos
contextos culturais e dos destinatários.
A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o
carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica, que
promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo
aos teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão
salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito
a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não
se contentem com uma teologia de gabinete.
134. As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e
desenvolver este compromisso de evangelização de modo
interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre
procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do
Evangelho, constituem uma contribuição muito válida para a
evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma
situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se
encontrar os caminhos adequados.
135. Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer
uma séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei
particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua
preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com este
ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A homilia é
o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de
encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis
lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os
próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a
pregar. É triste que assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma
experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com
a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança na pregação, que se funda na
convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros através do
pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana.
São Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o
Senhor quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10,
14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente.
De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45).
Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6,
2). Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1,
27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e
para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da
Igreja todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da
Palavra de Deus, principalmente no contexto da assembleia
eucarística, não é tanto um momento de meditação e de catequese,
como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se
proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente as
exigências da Aliança».
Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu contexto
eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais alto
do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A
homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o
Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua
comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de
Deus e também onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não
pôde dar fruto.
138. A homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não
corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e
significado à celebração. É um género peculiar, já que se trata de
uma pregação no quadro duma celebração litúrgica; por
conseguinte, deve ser breve e evitar que se pareça com uma
conferência ou uma lição. O pregador pode até ser capaz de manter
vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas assim a sua palavra
torna-se mais importante que a celebração da fé. Se a homilia se
prolonga demasiado, lesa duas características da celebração
litúrgica: a harmonia entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a
pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte
da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que
Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto exige que a
pregação oriente a assembleia, e também o pregador, para uma
comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto
requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para
que o Senhor brilhe mais que o ministro.
139. Dissemos que o povo de Deus, pela acção constante do Espírito
nele, se evangeliza continuamente a si mesmo. Que implicações tem
esta convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e
prega ao povo como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho
tem confiança de que tudo o que se lhe ensina é para seu bem, porque
se sente amado. Além disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que
Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações e aprende com
ele. O espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como
o filho nos seus diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige
e valoriza o que é bom; assim deve acontecer também na homilia. O
Espírito que inspirou os Evangelhos e actua no povo de Deus, inspira
também como se deve escutar a fé do povo e como se deve pregar em
cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã encontra, no coração da
cultura do povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se
deve dizer como para encontrar o modo mais apropriado para o dizer.
Assim como todos gostamos que nos falem na nossa língua materna,
assim também, na fé, gostamos que nos falem em termos da «cultura
materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac 7, 21.27), e
o coração dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é uma tonalidade
que transmite coragem, inspiração, força, impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do
Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através da
proximidade cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da
mansidão do estilo das suas frases, da alegria dos seus gestos.
Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver este
espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os
conselhos maçantes duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no
coração dos filhos.
141. Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor para
dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a
gente comum com ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o
segredo de Jesus esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além
das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho, porque
aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus
prega com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito,
bendiz o Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai,
Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios
e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10,
21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o seu povo,
e compete ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade.
Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica
através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não
consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão
no diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e também
a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação
entre os corações que se verifica na homilia e que deve ter um
carácter quase sacramental: «A fé surge da pregação, e a pregação
surge pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a
verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se trata de
verdades abstractas ou de silogismos frios, porque se comunica
também a beleza das imagens que o Senhor utilizava para incentivar a
prática do bem. A memória do povo fiel, como a de Maria, deve ficar
transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração, esperançado na
prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que
toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir a
síntese da mensagem evangélica, e não ideias ou valores soltos. Onde
está a tua síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer
luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há
entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e
difícil missão de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do
seu povo. O diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a
aliança entre ambos e estreita o vínculo da caridade. Durante o
tempo da homilia, os corações dos crentes fazem silêncio e deixam-No
falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma maneiras
directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem que alguém
sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois,
cada um possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra é,
essencialmente, mediadora e necessita não só dos dois dialogantes
mas também de um pregador que a represente como tal, convencido de
que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e
nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4,
5).
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas também
iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa
Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo
da sua história. A identidade cristã, que é aquele abraço baptismal
que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar, como filhos
pródigos – e predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai
misericordioso que nos espera na glória. Fazer com que o nosso povo
se sinta, de certo modo, no meio destes dois abraços é a tarefa
difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão importante que convém
dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e
criatividade pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a propor um
itinerário de preparação da homilia. Trata-se de indicações que,
para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno
sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo
privilegiado a este precioso ministério. Alguns párocos sustentam
frequentemente que isto não é possível por causa de tantas
incumbências que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que
todas as semanas se dedique a esta tarefa um tempo pessoal e
comunitário suficientemente longo, mesmo que se tenha de dar menos
tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no Espírito
Santo que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa e criativa.
Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1), com
todas as próprias capacidades, para que possam ser utilizadas por
Deus. Um pregador que não se prepara não é «espiritual»: é desonesto
e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
146. O primeiro passo, depois de invocar o Espírito Santo, é prestar
toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento da
pregação. Quando alguém se detém procurando compreender qual é a
mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade».
É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos
transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os
depositários, os arautos e os servidores».
Esta atitude de humilde e deslumbrada veneração da Palavra
exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com um
santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um texto
bíblico, faz falta paciência, pôr de parte toda a ansiedade e
atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação gratuita. Há que
pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar
noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um
texto bíblico, se aquilo que se quer obter são resultados rápidos,
fáceis ou imediatos. Por isso, a preparação da pregação requer amor.
Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem pressa às coisas ou às
pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que quis falar.
A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o tempo que for
necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo
escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender
adequadamente o significado das palavras que lemos. Quero
insistir em algo que parece evidente, mas que nem sempre é tido em
conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três mil anos, a
sua linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais que
nos pareça termos entendido as palavras, que estão traduzidas na
nossa língua, isso não significa que compreendemos correctamente
tudo o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os
vários recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção
às palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o
dinamismo próprio dum texto, considerar o lugar que ocupam os
personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender todos os
pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a
mensagem principal, a mensagem que confere estrutura e
unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível que
também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso
será apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não
conseguirão mobilizar os outros. A mensagem central é aquela que o
autor quis primariamente transmitir, o que implica identificar não
só uma ideia mas também o efeito que esse autor quis produzir. Se um
texto foi escrito para consolar, não deveria ser utilizado para
corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser
utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar algo sobre
Deus, não deveria ser utilizado para explicar várias opiniões
teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço
missionário, não o utilizemos para informar sobre as últimas
notícias.
148. É verdade que, para se entender adequadamente o sentido da
mensagem central dum texto, é preciso colocá-lo em ligação com o
ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja. Este é um
princípio importante da interpretação bíblica, que tem em conta que
o Espírito Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira, e
que, nalgumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade
de Deus a partir da experiência vivida. Assim se evitam
interpretações equivocadas ou parciais, que contradizem outros
ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não significa enfraquecer
a acentuação própria e específica do texto que se deve pregar. Um
dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não
poder transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver uma grande
familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer
o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa
de se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que
ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele
uma nova mentalidade».
Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o nosso ardor na
preparação da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o amor
pela Palavra que pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente,
a maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da
Palavra».
Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a
Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está
vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de
pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao povo fiel de
Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt 12, 34). As
leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no coração do
povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com
os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam
iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos
aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os
deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus
irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres, sabendo
que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser
pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra
e fazê-la carne na sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá
na actividade tão intensa e fecunda que é «comunicar aos outros o
que foi contemplado».
Por tudo isto, antes de preparar concretamente o que vai dizer na
pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por
essa Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra viva
e eficaz, que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e
do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos
e intenções do coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor
pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas:
«Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe
falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles
vissem o invisível».
151. Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos
de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do
Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável é que o
pregador esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o
salvou, de que o seu amor tem sempre a última palavra. À vista de
tanta beleza, sentirá muitas vezes que a sua vida não lhe dá
plenamente glória e desejará sinceramente corresponder melhor a um
amor tão grande. Todavia, se não se detém com sincera abertura a
escutar esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua vida, que
o interpele, exorte, mobilize, se não dedica tempo para rezar com
esta Palavra, então na realidade será um falso profeta, um
embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que
reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá
dar Jesus Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas
o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se
de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar
pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar
realmente através do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando
posse de todo o seu ser. O Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é
quem «hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada um dos
evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na
sua boca as palavras que ele sozinho não poderia encontrar».
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor
nos quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo
Espírito: designamo-la por «lectio divina». Consiste na
leitura da Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir
que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está
separada do estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem
central do texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para
procurar descobrir aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer
à sua própria vida. A leitura espiritual dum texto deve partir do
seu sentido literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o
texto dizer o que lhe convém, o que serve para confirmar as suas
próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas
mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para
proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca
devemos esquecer-nos de que, por vezes, «também Satanás se disfarça
em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom
perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me diz este
texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que
me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou
então: «De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai?
E porque me atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é normal ter
tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado
e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é começar a
pensar naquilo que o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar
à própria vida. Acontece também começar a procurar desculpas, que
nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes
pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda
não estamos em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a
perderem a alegria do encontro com a Palavra, mas isso significaria
esquecer que ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém
compreende e sabe esperar como Ele. Deus convida sempre a dar um
passo mais, mas não exige uma resposta completa, se ainda não
percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos
com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante
dos seus olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer, e
peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para
descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um
contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo. Desta
forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as
maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caracterizam este ou aquele aglomerado humano», prestando atenção
«ao povo concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo
aos problemas que apresenta».
Trata-se de relacionar a mensagem do texto bíblico com uma situação
humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que
precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma
atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e
pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler
nos acontecimentos a mensagem de Deus»,
e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer.
Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas
circunstâncias».
Então a preparação da pregação transforma-se num exercício de discernimento
evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito –
«um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência
humana frequente, como, por exemplo, a alegria dum reencontro, as
desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a
incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.;
mas faz falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que
isso realmente tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos que
nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe, nem
convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse; para
isso, já existem os programas televisivos. Em todo o caso, é
possível partir de algum facto para que a Palavra possa repercutir
fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a atitudes
concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às
vezes, que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a
realidade na pregação, mas nem por isso se deixam interpelar
pessoalmente.
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que
devem dizer, mas descuidam o como, a forma concreta de
desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não os ouvem ou
não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a
forma adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a
evidente importância do conteúdo da evangelização não deve esconder
a importância dos métodos e dos meios da mesma evangelização».
A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude
profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus,
entregando-nos com todas as nossas capacidades e criatividade à
missão que Ele nos confia; mas também é um exímio exercício de amor
ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de má
qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se
preparar a pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê
conciso no teu falar: muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32,
8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos práticos
que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos
esforços mais necessários é aprender a usar imagens na pregação,
isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos para tornar
mais compreensível algo que se quer explicar, mas estes exemplos
frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as
imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer
transmitir. Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem
como algo familiar, próximo, possível, relacionado com a própria
vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem que se
quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direcção
do Evangelho. Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor,
deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e
dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara,
directa, adaptada».
A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser
linguagem que os destinatários compreendam, para não correr o risco
de falar ao vento. Acontece frequentemente que os pregadores usam
palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes, mas
que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há
palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não
é compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum
pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os
outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à
linguagem dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra,
deve-se escutar muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e
prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza são duas
coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco
clara a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela
sua falta de lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo.
Por isso, outro cuidado necessário é procurar que a pregação tenha
unidade temática, uma ordem clara e ligação entre as frases, de modo
que as pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar a lógica
do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o
que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer
melhor. E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um
valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento,
a crítica ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece
sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros
da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se
reúnam periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que
tornem mais atraente a pregação!
160. O mandato missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento
da fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir tudo quanto vos
tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê claramente que o
primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de
amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o que
implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem
para ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a
evangelização não deveria deixar que alguém se contente com pouco,
mas possa dizer com plena verdade: «Já não sou eu que vivo, mas é
Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este apelo ao crescimento fosse
interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação
doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou
como resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as
virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que
melhor nos identifica como discípulos: «É este o meu mandamento: que
vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É
evidente que, quando os autores do Novo Testamento querem reduzir a
mensagem moral cristã a uma última síntese, ao mais essencial,
apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem
ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está
o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São
Paulo, para quem o mandamento do amor não só resume a lei mas
constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre
plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como
a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a
vida cristã como um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos
faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros e
para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta os
cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a
Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8),
acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto, este caminho de resposta e crescimento aparece
sempre precedido pelo dom, porque o antecede aquele outro pedido do
Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A adopção
como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da
sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a condição
que torna possível esta santificação constante, que agrada a Deus e
Lhe dá glória. É deixar-se transformar em Cristo, vivendo
progressivamente «de acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
163. A educação e a catequese estão ao serviço deste crescimento. Já
temos à disposição vários textos do Magistério e subsídios sobre a
catequese, preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados.
Lembro a Exortação Apostólica Catechesi tradendae (1979), o Directório
Geral para a Catequese (1997) e outros documentos cujo conteúdo,
sempre actual, não é necessário repetir aqui. Queria deter-me apenas
nalgumas considerações que me parece oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na catequese tem um papel
fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o
centro da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de
renovação eclesial. O querigma é trinitário. É o fogo do
Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz crer em Jesus
Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a
misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar
sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para
te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar,
fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro» este anúncio,
não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se
esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o
primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal,
aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e
aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra,
durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos.
Por isso, também «o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na
consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado».
165. Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é
deixado de lado em favor duma formação supostamente mais «sólida».
Nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente
e mais sábio que esse anúncio. Toda a formação cristã é,
primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada
vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a
tarefa catequética, e permite compreender adequadamente o sentido de
qualquer tema que se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá
resposta ao anseio de infinito que existe em todo o coração humano.
A centralidade do querigma requer certas características do
anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que exprima o amor
salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que não
imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela
alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que
não reduza a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas
que evangélicas. Isto exige do evangelizador certas atitudes que
ajudam a acolher melhor o anúncio: proximidade, abertura ao diálogo,
paciência, acolhimento cordial que não condena.
166. Outra característica da catequese, que se desenvolveu nas
últimas décadas, é a iniciação mistagógica,
que significa essencialmente duas coisas: a necessária
progressividade da experiência formativa na qual intervém toda a
comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da
iniciação cristã. Muitos manuais e planificações ainda não se
deixaram interpelar pela necessidade duma renovação mistagógica, que
poderia assumir formas muito diferentes de acordo com o
discernimento de cada comunidade educativa. O encontro catequético é
um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma
ambientação adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos
eloquentes, da sua inserção num amplo processo de crescimento e da
integração de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário
de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à «via
da beleza (via pulchritudinis)».
Anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é
algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a
vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das
provações. Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira
beleza podem ser reconhecidas como uma senda que ajuda a
encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de fomentar um
relativismo estético,
que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade, bondade e
beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao
coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do
Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não amamos senão o
que é belo,
o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente
amável e atrai-nos para Si com laços de amor. Por isso, torna-se
necessário que a formação na via pulchritudinis esteja
inserida na transmissão da fé. É desejável que cada Igreja
particular incentive o uso das artes na sua obra evangelizadora, em
continuidade com a riqueza do passado, mas também na vastidão das
suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa
nova «linguagem parabólica».
É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos
símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas
formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais,
incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem
ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se
particularmente atraentes para os outros.
168. Relativamente à proposta moral da catequese, que convida a
crescer na fidelidade ao estilo de vida do Evangelho, é oportuno
indicar sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade,
de realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a nossa
denúncia dos males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos
em diagnósticos apocalípticos ou juízes sombrios que se comprazem em
detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos possam ver como
mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da beleza
que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e,
simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia,
descaradamente doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem
necessidade de um olhar solidário para contemplar, comover-se e
parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias. Neste
mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem
tornar presente a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu
olhar pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes,
religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento», para que todos
aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do
outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo
salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de
compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer
na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve
conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a
verdadeira liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham à
margem de Deus, sem se dar conta que ficam existencialmente órfãos,
desamparados, sem um lar para onde sempre possam voltar. Deixam de
ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram
indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O
acompanhamento seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie
de terapia que incentive esta reclusão das pessoas na sua imanência
e deixe de ser uma peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que
conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de
proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte
de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender
as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho.
Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que
ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do
coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um
verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o
gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição
de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é
que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno,
despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder
plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de
quanto Deus semeou na nossa própria vida. Mas sempre com a paciência
de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás de Aquino: alguém
pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das
virtudes «por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem.
Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre e
necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos
possam dificultar as operações desses hábitos virtuosos. Por
isso, faz falta «uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo
até chegar à plena apropriação do mistério».
Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as
pessoas sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e
responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma paciência
imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de
Deus».
172. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa
diante de Deus e a sua vida em graça é um mistério que ninguém pode
conhecer plenamente a partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que
se corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do reconhecimento
da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas sem
proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf. Mt 7,
1; Lc 6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não
transige com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida
a querer curar-se, a pegar no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar
a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar para anunciar o Evangelho.
A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e curar,
conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos
acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros
e habilita-nos a encontrar as formas para despertar neles a
confiança, a abertura e a vontade de crescer.
173. O acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue
no âmbito do serviço à missão evangelizadora. A relação de Paulo com
Timóteo e Tito é exemplo deste acompanhamento e desta formação
durante a acção apostólica. Ao mesmo tempo que lhes confia a missão
de permanecer numa cidade concreta para «acabar de organizar o que
ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os
critérios para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é
claramente distinto de todo o tipo de acompanhamento intimista, de
auto-realização isolada. Os discípulos missionários acompanham
discípulos missionários.
174. Não é só a homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus.
Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada,
meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é
fonte da evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente
na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa
continuamente evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se
torne cada vez mais o coração de toda a actividade eclesial».
A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia,
alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de
um autêntico testemunho evangélico na vida diária. Superámos já a
velha contraposição entre Palavra e Sacramento: a Palavra
proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no
Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para
todos os crentes.
É fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a
catequese e todos os esforços para transmitir a fé.
A evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus, e isto
exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos católicos
proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam
igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária.
Nós não procuramos Deus tacteando, nem precisamos de esperar que Ele
nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou, já não é o
grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo».
Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo.
«Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão
da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não
ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a
dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta
dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de
desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
177. O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no
próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o
compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma
repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica
descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita».
Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa
que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus.
Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter
qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser
humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em
Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as
relações sociais entre os homens».
Confessar que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que
Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos
sociais: «O Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da
mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes
humanas mais complexas e impenetráveis».
A evangelização procura colaborar também com esta acção libertadora
do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos
criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos
realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do coração do
Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente
exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação
do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a
amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da
pessoa e nas suas acções uma primeira e fundamental reacção:
desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e
um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura,
que convém considerar e meditar atentamente para tirar deles todas
as consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos habituamos
e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que
tenha real incidência na nossa vida e nas nossas comunidades. Como é
perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a
maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão,
está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós:
«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a
Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros,
tem uma dimensão transcendente: «Com a medida com que medirdes,
assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia
divina para connosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é
misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e
não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á
dado (...). A medida que usardes com os outros será usada convosco»
(Lc 6, 36-38). Nestes textos, exprime-se a absoluta
prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como um dos dois
mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o
sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento
espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por
isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão
constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua
própria essência».
Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota
inevitavelmente dessa natureza a caridade efectiva para com o
próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove.
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do
Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa
resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma
de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos
necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita»,
uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria
consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4,
43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que
Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de
fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso,
tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar
consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o
Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por
acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o
Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que
o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como
nos recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha
a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o
homem todo».
Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse
em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente
o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens».
É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho,
dado que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de
salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que
há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo
mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16,
15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa,
aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a
criação significa também todos os aspectos da vida humana, de tal
modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem
destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as
dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da
convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer
estranho».
A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico,
gera sempre história.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes
estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser
objecto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios
sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É
preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam
incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas».
Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o
direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à
vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige
uma promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que
a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para
preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade
dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à
plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso
usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos possam usufruir
delas. Por isso, a conversão cristã exige rever «especialmente tudo
o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a
religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde
das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar
num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da
Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé
autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre
um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a
terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela. Amamos este
magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que
o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e
esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade
e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem
deve ficar à margem na luta pela justiça».
Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a
preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não
deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de
Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em
campo social das demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na
reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões
sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei no
terceiro capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar
a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito
apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo
uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a
Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso
repetir aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante
situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o
pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um
valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa
missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com
objectividade, a situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes
questões que me parecem fundamentais neste momento da história.
Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão
determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social
dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se
aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo
desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos
de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que
possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar
docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta
percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o
clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no
Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na
verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E
agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se
solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram,
então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3,
15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus
para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu
projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo
tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de
solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente sobre a
nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma,
Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre
retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e,
vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é
que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava
a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não
pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a
clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor
do universo» (5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva
da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não
se trata de uma missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada
pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o
clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças».
Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos:
«Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto
a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e
promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais
simples e diários de solidariedade para com as misérias muito
concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes,
até mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais
do que alguns actos esporádicos de generosidade; supõe a criação
duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de
prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte
de alguns.
189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a
função social da propriedade e o destino universal dos bens como
realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos
bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem
melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a
decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções
e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a
outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma
mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes,
fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se
tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos
povos mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no
respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo
direito dos povos».
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como
justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou
dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a
cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta
é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples
facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor
desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem
renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais
liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros».
Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar
mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de
outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa
solidariedade que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do
seu destino»,
tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo
o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se
expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as
alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro,
especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas
rurais – sem terra, sem tecto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus
direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo
o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição
dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada
do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se
fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para
todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».
Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente
trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e
solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua
vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que
estão destinados ao uso comum.
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em
nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do
sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de
Deus sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da
Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago
ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos sair
triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que
hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não
pratica a misericórdia, será julgado sem misericórdia. Mas a
misericórdia não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São
Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais rico a
espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial
valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e
as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto
consiga prolongar a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma
perspectiva, a literatura sapiencial fala da esmola como exercício
concreto da misericórdia para com os necessitados: «A esmola livra
da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma
ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo
ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma
síntese no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa
caridade, porque o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4,
8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade dos Padres da
Igreja, tendo exercido uma resistência profética como alternativa
cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas
um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar
água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos
turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim,
quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de
misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é
oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem tão clara, tão directa, tão simples e eloquente
que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A
reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem
enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los
com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As
elaborações conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade
que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo
para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao
amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à
misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de
reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos.
Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com não
cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho
luminoso de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos
defensores da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência
ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de
injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações».
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para
discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2,
2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não
se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério
importante para que as comunidades paulinas não se deixassem
arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma
grande actualidade no contexto actual em que tende a desenvolver-se
um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem
sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que
nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a
sociedade descarta e lança fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos,
entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de
consumo e de distracção que esta sociedade oferece. Gera-se assim
uma espécie de alienação que nos afecta a todos, pois «alienada é a
sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e
de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a
constituição dessa solidariedade inter-humana».
197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto
que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho
da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a
nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação
perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num
presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres;
foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta
de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2,
24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e
trabalhou com suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar
o Reino, seguiam-No multidões de deserdados, pondo assim em
evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está sobre
Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4,
18). A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela
pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração:
«Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6,
20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer»,
ensinando que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25,
34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria
teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus
«manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles.
Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em
Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a
Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma
especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por
toda a Tradição da Igreja».
Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé
cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para
enriquecer-nos com sua pobreza».
Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito
para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas
suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos
nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite
a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no
centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo
neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas
também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher
a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em
programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em
movimento não é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada
ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo».
Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua
pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o seu bem.
Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo
de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor
autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não
por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente
da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a
outra, depende que lhe dê algo de graça».
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor»,
e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer
ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de
interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta
proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente
no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não
seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova
do Reino?»
Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio
é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de
afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da
comunicação diariamente nos apresenta».
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja
Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que
sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria
dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de
Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua
bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum
caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial
pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude
religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as
suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras
incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes
académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais.
Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias
dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades terrenas
para que toda a actividade humana seja transformada pelo Evangelho,
ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela
justiça social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a
Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido
evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos».
Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns
comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho
confiança na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos
que procureis, comunitariamente, novos caminhos para acolher esta
renovada proposta.
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não
pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma
mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas
crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas
emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas
provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os
problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados
e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social,
não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema
algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões
que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes
parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um
discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro
desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para
este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de
solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens,
molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que
se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que
exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que
estas palavras se tornam objecto duma manipulação oportunista que as
desonra. A cómoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa
vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação dum
empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente
o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste
mundo mais acessíveis a todos.
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do
mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o
crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões,
programas, mecanismos e processos especificamente orientados para
uma melhor distribuição das entradas, para a criação de
oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que
supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo
irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que
são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade
reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar
num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes
profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política,
tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais
preciosas da caridade, porque busca o bem comum.
Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das
micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno
grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais,
económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É
indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o
olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho
digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E
porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos?
Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência,
poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica que
ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem
comum social.
206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte
de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo
inteiro. Todo o acto económico duma certa envergadura, que se
realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro,
pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade
comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar
soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo
que a política local se satura de problemas por resolver. Se
realmente queremos alcançar uma economia global saudável,
precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de
interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o
bem-estar económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender
subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de
forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a
inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo
que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente
acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas
religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que
as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de
qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha palavra
não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas
procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade
individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas
cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais
humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por
esta terra.
209. Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa,
identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25,
40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a
cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e
«individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para
que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na
vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e
imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as
novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a
reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os
refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e
abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial para
mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de
todos. Por isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em
vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de criar
novas sínteses culturais. Como são belas as cidades que superam a
desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta
integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as
cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de
espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objecto das
diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de
Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4,
9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás
matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da
prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que
tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos
façamos de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para
todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e
aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda
e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de
exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores
possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre
elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de
heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas
famílias.
213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com
predilecção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes
de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder
fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo
legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para
ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos
nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica,
obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida
nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito
humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e
inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu
desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver
outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos
sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que
ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos
de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor
inviolável de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a
partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do ser humano
clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência
interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se
deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A
propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto
sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção
progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida
humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar
adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas
quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas
profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas
surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema
pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho
sofrimento?
215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à
mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me
ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente
beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa
realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos
rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um,
e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma
mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de
destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações
futuras.
Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há
vários anos, formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível
variedade de insectos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o
tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas
brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia
ao verde dos bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós,
suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou
transformar num baldio. (...) Depois de uma única noite de chuva,
observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te
que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como
poderão os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos outros
rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de
Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade
do povo e do mundo em que vivemos.
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus
menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera
ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as
outras. Também seria uma paz falsa aquela que servisse como desculpa
para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize
os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios
possam manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os
outros sobrevivem como podem. As reivindicações sociais, que têm a
ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e
os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de
construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma
minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por
cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus
privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma
voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do
equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na
busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais
perfeita entre os homens».
Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral
de todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e
variadas formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da
sua vida, configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um
povo e não como massa arrastada pelas forças dominantes.
Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação
na vida política é uma obrigação moral».
Mas, tornar-se um povo é algo mais, exigindo um processo
constante no qual cada nova geração está envolvida. É um trabalho
lento e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo até
se desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e
fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes
postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro
e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame
dos fenómenos sociais».
À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios que
orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um
projecto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser
um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo
inteiro.
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A
plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que
nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo,
faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre
diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num
espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura
do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos
abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro
princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é
superior ao espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão
pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência,
situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo
da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude
e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes,
se nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de
poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço
leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento
presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e
autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar
prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos
do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e
transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem
marcha atrás. Trata-se de privilegiar as acções que geram novos
dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os
desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos
importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo
actual, se preocupam realmente mais com gerar processos que
construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam
ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a
plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério
enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar
justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se
desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da
existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da
dita época».
225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização,
que exige ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e
a estrada longa. O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a
entender várias vezes aos seus discípulos que havia coisas que ainda
não podiam compreender e era necessário esperar o Espírito Santo
(cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13,
24-30) descreve um aspecto importante de evangelização que consiste
em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar
dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se
manifesta com o tempo.
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser
aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva,
os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada.
Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da
unidade profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam
adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar
com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam
prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas instituições as suas
próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se
impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar
o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e
transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os
pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas
diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que
têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os
outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade
social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida
no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo
de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as
tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que
gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no
outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as
preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
229. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou
em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e
espírito, pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta unidade e
reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,
14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a
paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os discípulos.
A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1,
20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos,
descobriremos que o primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar
esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade, a própria
vida sempre ameaçada pela dispersão dialéctica.
Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil
construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a
convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as
diversidades. Supera qualquer conflito numa nova e promissora
síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente
num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto
cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como
justamente ensinaram os Bispos da República Democrática do Congo: «A
diversidade das nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a
conversão dos corações e a reconciliação é que poderemos fazer
avançar o nosso país».
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a
realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por
separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da
imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio:
a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de
ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do
relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais
formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos
sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da
captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no
máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a
realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo
formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a
verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética.
Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por
que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas
são tão lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no
reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica;
outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma
racionalidade alheia à gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à
encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o
espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus
Cristo que veio em carne mortal é de Deus». (1 Jo 4, 2). O
critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando
encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a
valorizar a história da Igreja como história de salvação, a recordar
os nossos Santos que inculturaram o Evangelho na vida dos nossos
povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja, sem
pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se
quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério
impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e
caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em
prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia,
permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos
que não dão fruto, que esterilizam o seu dinamismo.
234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão.
É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa
mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista
o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas
coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o
primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e
globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os
fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e
aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre as
mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso
e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a
simples soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecados
por questões limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o
olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós.
Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário
mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar,
que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo,
mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que
conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade,
quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas
recebe sempre novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento.
Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que
esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e,
nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças
entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflecte a
confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade.
Tanto a acção pastoral como a acção política procuram reunir nesse
poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua
cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até
mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm
algo a oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na
ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a
totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que
verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade
ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a
pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos e operários,
empresários e artistas, incorpora todos. A «mística popular» acolhe,
a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em expressões de oração,
de fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa Nova é a
alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus
pequeninos. Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a
ovelha perdida e a reintegra no seu rebanho. O Evangelho é fermento
que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do monte,
iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de
totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto
não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as
dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da
mesa do Reino. O todo é superior à parte.
238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste
momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve
estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno
desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo
com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as
culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte
da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da
luz que a fé lhe dá»,
oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na
memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a
razão humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a
quantos não crêem e convida a razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está
aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais e
internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao
anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14),
a nova evangelização incentiva todo o baptizado a ser instrumento de
pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada.
É hora de saber como projectar, numa cultura que privilegie o
diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas
sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de
memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico
deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma
fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projecto de
poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que
se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se de um acordo para
viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao
Estado.
Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e
com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos,
desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na
busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias actuais, uma profunda humildade social.
241. No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem
soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as
várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor
correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao
fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da
existência humana, para transmitir convicções que possam depois
traduzir-se em acções políticas.
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção
evangelizadora que favorece a paz.
O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas,
formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das
ciências positivas».
A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso
responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os
outros saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que
eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e a
inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário,
procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé
provêm ambas de Deus»,
e não se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos
progressos científicos para os iluminar com a luz da fé e da lei
natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade
e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua
existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste
diálogo que abre novos horizontes ao pensamento e amplia as
possibilidades da razão. Também este é um caminho de harmonia e
pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências.
Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o
enorme potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das
ciências, mantendo-se com rigor académico no campo do seu objecto
específico, torna evidente uma determinada conclusão que a razão não
pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender que
uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi
suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em
certas ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objecto
formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que
extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que
se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um
diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.
244. O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus
pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade
do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as
suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade que
lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo
Baptismo, estão separados da sua plena comunhão».
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos
juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada
sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente para o que
procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem
algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os
pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós,
cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em
relhas de arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da
família humana. A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla,
Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça
Rowan Douglas Williams,
foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre
cristãos, sobretudo na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de
caminhos de unidade. Os missionários, nesses continentes, referem
repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem por causa
do escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas
convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das
verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de
anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não
recebeu o anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes.
Por isso, o esforço por uma unidade que facilite a recepção de Jesus
Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um dever forçado para se
transformar num caminho imprescindível da evangelização. Os sinais
de divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados pela
violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem
deveria ser um activo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as
coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na acção livre e
generosa do Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos
outros! Não se trata apenas de receber informações sobre os outros
para os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito semeou
neles como um dom também para nós. Só para dar um exemplo, no
diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a
possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da
colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade.
Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada
vez mais para a verdade e o bem.
247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança
com Deus nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus
são irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que partilha com o
Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera o
povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da própria
identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não
podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem
incluímos os judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos
para se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9).
Juntamente com eles, acreditamos no único Deus que actua na
história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada comum.
248. O diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da
vida dos discípulos de Jesus. O afecto que se desenvolveu leva-nos a
lamentar, sincera e amargamente, as terríveis perseguições de que
foram e são objecto, particularmente aquelas que envolvem ou
envolveram cristãos.
249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer
tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra
divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os
valores do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam
inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar
Jesus como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade que nos
permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos
mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como
compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela
justiça e o desenvolvimento dos povos.
250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar
o diálogo com os crentes das religiões não-cristãs, apesar dos
vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os
fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é
uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um
dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas.
Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana
ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a
eles, compartilhando as suas alegrias e penas».
Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de
ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir
juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um
critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se
procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do
aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas
condições sociais. Os esforços à volta dum tema específico podem
transformar-se num processo em que, através da escuta do outro,
ambas as partes encontram purificação e enriquecimento. Portanto,
estes esforços também podem ter o significado de amor à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar
o vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a
manter e intensificar as relações com os não-cristãos.
Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de
quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os
transcendem e dos quais não são donos. A verdadeira abertura implica
conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma
identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do
outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos».
Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo para
evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro e
negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com
generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo
inter-religioso apoiam-se e alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os
crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de
tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto e viver
integrados na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles
«professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o Deus único e
misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia».
Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos
cristãos; Jesus Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é
admirável ver como jovens e idosos, mulheres e homens do Islão são
capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar fielmente
nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma
profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de
Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder
com um compromisso ético e com a misericórdia para com os mais
pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a adequada
formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e
jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que sejam
capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as
preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as
convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e
respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal
como esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países
de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que
assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto e
viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão
gozam nos países ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo
violento que nos preocupam, o afecto pelos verdadeiros crentes do
Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações, porque o
verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a
toda a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita
iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus»
e, assim, «associados
ao mistério pascal de Jesus Cristo».
Devido, porém, à dimensão sacramental da graça santificante, a acção
divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas
que, por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do
caminho para Deus.
Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por
Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito suscita para
libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências
religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda
a parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar
as carências da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós,
cristãos, podemos tirar proveito também desta riqueza consolidada ao
longo dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as nossas
próprias convicções.
255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela
liberdade religiosa, considerada um direito humano fundamental.
Inclui «a liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira
e de manifestar publicamente a própria crença».
Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam
diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das
religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade
da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado
das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de
uma nova forma de discriminação e autoritarismo. O respeito devido
às minorias de agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de
maneira arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou
ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria
mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é
preciso distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os
intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em
generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam dos
defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de
distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes
religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão
para justificar acções discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se
os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente, esquecendo
que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado
para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre
novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a
sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será
razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque
nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios
profundamente humanistas que possuem um valor racional, apesar de
estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que,
não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam
sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a
sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como
preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na
construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da
criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos,
como o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem
dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da arte e da ciência,
e sobre a busca da transcendência».
Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro da
humanidade, procurei explicitar uma vez mais a incontornável
dimensão social do anúncio do Evangelho, para encorajar todos os
cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e acções.
259. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se
abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito
faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores
das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria
língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a
novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e
em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje,
bem apoiados na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de
ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer
evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas
sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste último capítulo, não vou oferecer uma síntese da
espiritualidade cristã, nem desenvolverei grandes temas como a
oração, a adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os quais
já possuímos preciosos textos do Magistério e escritos célebres de
grandes autores. Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza.
Limitar-me-ei simplesmente a propor algumas reflexões acerca do
espírito da nova evangelização.
261. Quando se diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se
habitualmente uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá
sentido à acção pessoal e comunitária. Uma evangelização com
espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como
uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se suporta como
algo que contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. Como
gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação
evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de
amor até ao fim e feita de vida contagiante! Mas sei que nenhuma
motivação será suficiente, se não arde nos corações o fogo do
Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma
evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja
evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões
espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que
venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para
fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.
262. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que
rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as
propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e
missionário, nem os discursos e acções sociais e pastorais sem uma
espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas parciais e
desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla
penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre um
espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade.
Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a
Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se
esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço e as
dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o
pulmão da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas
as instituições eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de
leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao
mesmo tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade
intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as
exigências da caridade, com a lógica da encarnação».
Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa
para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do
estilo de vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa
espiritualidade.
263. É salutar recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos
ao longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria,
cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande
resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais
difícil; temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império
Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela
justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da
história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si
mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos
ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou
outra; deriva mais da limitação humana que das circunstâncias. Por
isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente. Em vez
disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as
dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade,
proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que
nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
264. A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de
Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a
amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a
necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar
conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de
comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir
que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a
sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida
tíbia e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto,
deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que
descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente e lhe disse:
«Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48).
Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do
Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente
dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a
nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então
que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos»
(1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o
Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e
lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza
deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é
urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita
redescobrir, cada dia, que somos depositários dum bem que humaniza,
que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para
transmitir aos outros.
265. Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus
gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e,
finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa
vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo,
convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não
o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos
anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela
missão, porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às
necessidades mais profundas das pessoas, porque todos fomos
criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a amizade com Jesus
e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma adequada e
bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que essa
mensagem fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário
está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela
acção do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a
verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à liberação
do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva
da convicção de responder a tal ânsia». O entusiasmo na
evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um
tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que não
pode manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo
do ser humano e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não
passa de moda, porque é capaz de penetrar onde nada mais pode
chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito.
266. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal,
constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem.
Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se
está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa
ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar
com Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo
ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo,
adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa
procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer
unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se
torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido
para cada coisa. É por isso que evangelizamos. O verdadeiro
missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus
caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele.
Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma
pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega
missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar seguro do
que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está
convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.
267. Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele
ama. Em última instância, o que procuramos é a glória do Pai,
vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à glória da sua
graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com
perseverança, esta motivação deve superar toda e qualquer outra. O
movente definitivo, o mais profundo, o maior, a razão e o sentido
último de tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou
durante toda a sua existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com
todo o seu ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos
missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse: «A glória do
meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8).
Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não,
para além dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa
compreensão e das nossas motivações, evangelizamos para a maior
glória do Pai que nos ama.
268. A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos
povo: «Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1
Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso
também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das
pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria
superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma
paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado,
reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá
também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de
Jesus se alonga e dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu
povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer servir-Se de nós para
chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio do
povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se
compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos
introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos!
Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda
solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu
afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro,
quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10,
46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16),
sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11,
19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os
pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos
(cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o
culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por
este modelo, queremos inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos
a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material
e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que
estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na
construção de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por
obrigação, nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção
pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma
prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos
a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera
que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários
que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de
aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta
dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a
vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa
experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a
dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o
dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão
e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de
vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E
somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12,
21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem
pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros
superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os
Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2,
47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como
príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do
povo. Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre
várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras,
directas e contundentes, que não precisam de interpretações que as
despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa,
sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de
partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo
no coração do mundo.
272. O amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o
encontro em plenitude com Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama
o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2,
11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a
conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os
olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»,
e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina
incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e
agir».
Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a
intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para
receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos
com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo
sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o
outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em
consequência disto, se queremos crescer na vida espiritual, não
podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização
enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais,
torna-nos mais sensíveis para reconhecer a acção do Espírito,
faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo
tempo, um missionário plenamente devotado ao seu trabalho
experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca
os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o
bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do
coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está mais em dar
do que em receber» (Act 20, 35). Não se vive melhor fugindo
dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar,
fechando-se na comodidade. Isto não é senão um lento suicídio.
273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou
um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento
entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do
meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta
terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos
como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar,
vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira
autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que
decidiram, no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para
os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida
privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à
procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias
exigências. Deixará de ser povo.
274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente,
precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa
dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua
linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar,
mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e
reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura
infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus
Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente
da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso
afecto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só
pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É
maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando
derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!
275. No terceiro capítulo, reflectimos sobre a carência de
espiritualidade profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo,
na desconfiança. Algumas pessoas não se dedicam à missão, porque
crêem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é inútil
esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e
prazeres, se não vejo algum resultado importante?» Com esta
mentalidade, torna-se impossível ser missionário. Esta atitude é
precisamente uma desculpa maligna para continuar fechado na própria
comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita, no vazio egoísta.
Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não pode
viver sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância,
tornar-se-ia insuportável».
No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que
Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o
poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo
não ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14).
Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a
pregar, «o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16,
20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo, a
vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da nossa
esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que
nos confia.
276. A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de
vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a
aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força
sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe:
vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem.
Mas também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a
desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto.
Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível.
Haverá muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e
espalhar-se. Cada dia, no mundo, renasce a beleza, que ressuscita
transformada através dos dramas da história. Os valores tendem
sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade o ser humano
renasceu muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis. Esta
é a força da ressurreição, e cada evangelizador é um instrumento
deste dinamismo.
277. E continuamente aparecem também novas dificuldades, a
experiência do fracasso, as mesquinhices humanas que tanto ferem.
Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não nos dá
as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as
mudanças são lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado.
Todavia, não é a mesma coisa quando alguém, por cansaço, baixa
momentaneamente os braços e quando os baixa definitivamente dominado
por um descontentamento crónico, por uma acédia que lhe mirra a
alma. Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque, em
última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento de
reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa não
baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição.
Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela que há neste mundo,
fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama
verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir
misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem do mal com o seu
poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele
caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os
escolhidos, os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho
que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se
desenvolvendo-se aqui e além de várias maneiras: como a pequena
semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf. Mt 13,
31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13,
33), e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf. Mt 13,
24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que
aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo. A ressurreição
de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e,
ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do
Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não
ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança
viva!
279. Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza
interior, ou seja, da convicção de que Deus pode actuar em qualquer
circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque
«trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta
certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste
em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus
por amor, seguramente será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas
vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser
contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos,
mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que
não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde
nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde
nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas
fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula
pelo mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de
não termos obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a
missão não é um negócio nem um projecto empresarial, nem mesmo uma
organização humanitária, não é um espectáculo para que se possa
contar quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo
de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez
o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro
lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como
quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos com grande
dedicação, mas sem pretender ver resultados espectaculares. Sabemos
apenas que o dom de nós mesmos é necessário. No meio da nossa
entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos
braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente,
mas deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe
parecer, os nossos esforços.
280. Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida
confiança no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa
fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança generosa tem de ser
alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente. Ele
pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso
missionário. É verdade que esta confiança no invisível pode
causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não
sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes.
Mas não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo
Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo e permitindo que
Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser. O
Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em cada
momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente a
gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos
outros: é a intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande
evangelizador como São Paulo, para perceber como era a sua oração.
Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações,
sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no
coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos, assim, que interceder não
nos afasta da verdadeira contemplação, porque a contemplação que
deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude transforma-se também num agradecimento a Deus
pelos outros. «Antes de mais, dou graças ao meu Deus por todos vós,
por meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um
agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu
Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo
Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de
vós, dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar
incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão espiritual, de fé
profunda, que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E,
simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração
verdadeiramente solícito pelos outros. Deste modo, quando um
evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais generoso,
libertou-se da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e
partilhar a vida com os outros.
283. Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes
intercessores. A intercessão é como «fermento» no seio da Santíssima
Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas dimensões que
iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos dizer que o
coração de Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade
Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas
possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se
manifestem mais claramente no povo.
284.
Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo.
Ela reunia os discípulos para O invocarem (Act 1, 14), e
assim tornou possível a explosão missionária que se deu no
Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não
podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
285. Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático
encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a
seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento
crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia
confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a
seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19,
26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem
primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma
fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica
especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de
fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19,
28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo
conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos
sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios
do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o
ícone feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o
resto da sua descendência, isto é, os que observam os mandamentos de
Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta
ligação íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de
maneira diversa geram Cristo, foi maravilhosamente expressa pelo
Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras divinamente inspiradas, o
que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em
especial à Virgem Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é
igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo,
filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo do ventre
de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da
Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da
alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na
casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura.
Ela é a serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É
a amiga sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É
aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende
todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os
povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é
a missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo
da vida, abrindo os corações à fé com o seu afecto materno. Como uma
verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos
incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes títulos
marianos, geralmente ligados aos santuários, compartilha as
vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a formar
parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o
Baptismo para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim
a fé na acção materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É
lá, nos santuários, que se pode observar como Maria reúne ao seu
redor os filhos que, com grandes sacrifícios, vêm peregrinos para A
ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus para
suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego,
Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes:
«Não se perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua
Mãe?»
287. À Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de
que este convite para uma nova etapa da evangelização seja acolhido
por toda a comunidade eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e
caminha na fé,
e «a sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de
referência constante para a Igreja».
Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé,
rumo a uma destinação feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos
n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a mensagem de
salvação e para que os novos discípulos se tornem operosos
evangelizadores.
Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de
ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos
anos de Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do
Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil,
porém, perceber naquele início um particular aperto do coração,
unido a uma espécie de “noite da fé” – para usar as palavras de São
João da Cruz – como que um “véu” através do qual é forçoso
aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. Foi
deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu
na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu
itinerário de fé».
288. Há um estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja.
Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força
revolucionária da ternura e do afecto. N’Ela, vemos que a humildade
e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não
precisam de maltratar os outros para se sentir importantes.
Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque
«derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos
vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum
lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que conserva
cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2,
19). Maria sabe reconhecer os vestígios do Espírito de Deus tanto
nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem imperceptíveis.
É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida
diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em
Nazaré, mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à
pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação para ir ajudar os outros.
Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e de caminho
para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização.
Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a
Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e
torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos
diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima
esperança: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria,
avançamos confiantes para esta promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de
Novembro – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
– do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.
[Franciscus PP]
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