No dia 13 de
Maio deste ano de 1944, Alexandrina fora misticamente sepultada “num imenso
cemitério”, onde as aves vinham debicar as suas carnes primeiro e os seus ossos
depois, e por fim as suas cinzas, muitas vezes regadas e lavadas por uma chuva
de sangue que caía do alto. Este sofrimento era dolorosíssimo e, muitas vezes,
no auge da dor, a Beata Alexandrina implorava o auxílio do Céu.
Como lhe é
pedido que escreva os “sentimentos da sua alma”, e depois de ter escrito que
morrera para o mundo, ela faz esta reflexão cheia de místico bom senso e mesmo
de certo humor :“Ó meu Jesus, sinto a dor e não sou eu que sofro, faltou a vida
à dor que era minha”.
Seguido esta
mesma ideia, ela diz ainda, mais adiante : “Ó meu Deus, como posso eu falar duma
coisa que não existe ? Eu sou nada, vou falar da dor, da dor que não é minha, da
dor que não me pertence.”
Depois deste
longo monólogo, vem o “manquinho” perturbar este “filosofar” da Alexandrina e
lembrar-lhe que ele está sempre à espreita, sempre pronto a intervir para a
perturbar, no momento mesmo em que a Beata dizia ao Senhor que actualmente
estava mais tranquila porque o “mafarrico” “não tem vindo tão frequentes vezes”.
Não contente em
perturbá-la com os seus gestos obscenos, chama-lhe nomes feios, nomes que a
própria Alexandrina ignora na maior parte dos casos. Acusa-a de pecar quando
quer e quando isso lhe interessa, que é uma “fingida”, que engana toda a gente
e, como se isto não chegasse, fala-lhe também dos seus directores espirituais
empregando expressões e gestos obscenos.
Não podendo
mais, a “Doentinha de Balasar” chama Jesus em seu socorro e queixa-se desta
perseguição diabólica que tanto a faz sofrer, afirmando : “Entreguei-me a Ele
como escrava ; quero servi-lo, quero amá-lo e dar-lhe almas. Pecar, nunca, ó
Jesus, ó Mãezinha ! Sou vítima, sou vítima !”
Depois, mais
adiante, Alexandrina nos explicará as suas relações com o Espírito Santo e o que
a “pombinha” divina faz para a encorajar, para a ajudar na sua difícil missão...
“Entreguei-me a
Ele como escrava ; quero servi-lo, quero amá-lo e dar-lhe almas. Pecar, nunca, ó
Jesus, ó Mãezinha ! Sou vítima, sou vítima !”
Alexandrina não
gosta de escrever ou ditar os sentimentos da sua alma, mas deve obedecer aos
seus directores espirituais e a Jesus que quer que ela seja conhecida “até aos
confins da terra”.
“Que
repugnância, meu Jesus, em tudo que escrevo ! Se não fosse a obediência, não
escrevia nada apesar da grande necessidade que sinto de o fazer. Amo a
obediência, custe o que custar ; quero ser fiel, quero obedecer em tudo”.
* * * * *
« Morri, morri para
o mundo, morri para tudo. Deu o último suspiro aquele pequenino sopro de vida
que já há muito vinha a agonizar, desaparecendo de toda a força que o arrastava
pelo cemitério imenso. Até os próprios bichos desapareceram, aqueles que vinham
sobre as minhas cinzas e sobre outras que não eram minhas, mas que estavam ao
meu cuidado. Há dias que principiou a cair uma chuva de sangue, vinda do alto.
Choveu sangue e ainda continua a chover. A princípio banhou as cinzas. Depois
levou-as de tal forma até que desapareceram, já não existe nada. O sangue
continua a vir do alto ; cai sobre o que está limpo, já não tem mais que lavar.
— Ó meu Deus, como
posso eu falar duma coisa que não existe ! Eu sou nada, vou falar da dor, da dor
que não é minha, da dor que não me pertence. Ó meu Jesus, sinto a dor e não sou
eu que sofro, faltou a vida à dor que era minha. Vejo-a agora a sofrer de rasto,
faz-me lembrar a cobra quando lhe falta o veneno. Vejo esta dor envolta na lama
e no lodo tombando para um e outro lado. Essa vida que era dela está a viver
mais alta, deixou-a para não mais voltar. Vive lá em cima, muito lá em cima,
olhando a dor cá em baixo e olha-a com compaixão. Esta vida que vive no alto é
uma vida semelhante àquela vida de que falei no dia da Assunção da Mãezinha,
deste mesmo ano. Não sei exprimir melhor os meus sentimentos.
Ó Jesus, Vós sabeis
e compreendeis tudo ; eu não sei que vida é esta. Tende dó de mim, valei-me nos
meus combates, nas minhas lutas com Satanás. Ele continua a seduzir-me ao mal.
Quer instruir-me com as suas lições vergonhosas e maliciosas. Vede que tudo
sofro por Vosso amor e pelas almas. Vede que não quero pecar, não quero ferir o
Vosso divino Coração. Feri-lo sim, feri-lo sempre mas com setas de amor, não com
o pecado ; não quero ferir-vos, não quero desgostar-vos. Por Vossa bondade e
amor, ele não tem vindo tão frequentes vezes. Mas ai, meu Jesus, a manha dele !
Quando vem, vem mais furioso e desastrado. E faz sofrer tanto a minha pobre alma
quando me diz :
— Vês como és
tu que queres pecar e pecas quando queres ! Agora que sentes o teu corpo
desfalecido, entregas-te aos prazeres menos vezes. Vês como és tu em não eu ?
E insulta-me então
com todos os nomes feios e maus. Ameaça-me que vou ter uma noite de crimes e
depois demora-se a vir, deixando-me na alma desejos de pecar. Depois, quando
vem, lança-me em rosto esses sentimentos de manha alma para assim me afirmar
mais que sou eu que quero, que sou eu que peco.
— Meu Jesus, bem
sabeis que não quero. Ó Vós vedes como fico assustada quando o ouço ao longe com
as suas ameaças. Fico sempre aterrada a ver quando chega a hora do martírio.
Banhada em suor e lágrimas, recorro a Vós nos momentos mais graves. Jesus,
valei-me ! Mãezinha, mostrai que sois minha Mãe, entregai-me a Jesus como
vítima, quero desagravá-lo, quero reparar mas não quero pecar. Entreguei-me a
Ele como escrava ; quero servi-lo, quero amá-lo e dar-lhe almas. Pecar, nunca, ó
Jesus, ó Mãezinha ! Sou vítima, sou vítima !
No último ataque,
das 11 à meia noite desta mesma noite, banhada em suor chorei sentidas lágrimas.
O coração não podia resistir mais. Quantas vezes repeti :
— Sagrado Coração
de Jesus, tenho confiança em Vós ! Juro-vos que não quero pecar. Valei-me,
Mãezinha, valei-me lá do Céu.
O malvado punha-se
ao lado, dançava, batia palmas. Dizia-me que os meus escritos estavam na mão
dele, que ia ser uma vergonha em todo o Portugal. Eles não chegam mais à mão do
P. Humberto nem do P. Pinho ; e chamava-lhes nomes feios. Pronunciava também o
nome do Médico e dizia-me dele coisas feias. Desesperado, gritava ao longe :
— Não os
posso ver, tenho-lhes raiva, odeio-os !
Terminada a luta,
fiquei tristíssima, só com o receio de ter pecado.
— Ó Jesus, eu quero
confiar em Vós e na palavra de quem me dirige. Pobre de mim, se aqui confio e me
encorajo, ali desfaleço e fico duvidosa. Vinde, Mãezinha, em meu auxílio.
Valei-me, valei-me, Jesus.
Fiquei em paz.
Muito unida aos sacrários, contente por estar acordada, dizia :
— Jesus, quero
velar, quero amar pelos que estão a dormir. Quero sofrer, quero reparar pelos
que estão a pecar.
Assim passavam as
horas e eu estava em mim para falar com as personagens divinas da minha alma.
Sinto por tantas vezes a sua realeza divina dentro em mim ! Gosto tanto de viver
na solidão e no silêncio com estas Personagens ! Sinto que o divino Espírito
Santo no seu trono, no trono do meu coração, no meio do Pai e do filho, mas
acima deles, bate as suas asinhas brancas como para me despertar e dizer-me que
estão ali. Irradia-me com o seu amor, dá-me efusões do seu fogo divino, leva-me
a santas inspirações, move-me a praticar obras boas, obras de caridade e tantas
vezes com tanto sacrifício. Para quantas coisas sinto a sua acção divina. Quando
estou em êxtase com Jesus e Ele me manda escrever tudo, eu não chego a dizer-lhe
nada, mas fico triste por me lembrar que não sou capaz. E Ele, que tudo conhece,
diz-me logo :
— “Vai, que o
divino Espírito Santo está contigo, tens toda a sua luz divina”.
E é bem verdade !
Vou para escrever, lembro-me de tudo, compreendo tudo sem dificuldade. Sinto uma
luz que alumia todos os caminhos. O divino Espírito Santo ! Com a sua luz
vejo tantas coisas nas almas, ansiosas tantas vezes por mas dizerem e não
têm coragem.
Dá-me o Espírito
Santo conhecimento de tudo. E quantas vezes pressentimentos reais, como da vinda
de pessoas junto de mim, acontecimentos, etc. ... O divino Espírito San to é
fogo que me ilumina e eleva muitas vezes às alturas : perco-me nele, irradio-me
nele. Oh ! Quem me dera todas as almas conhecessem e sentissem nelas a presença
do Pai, do Filho e do Espírito Santo ! Meu Jesus, tenho tantas ânsias de Vos
amar ! Desfaleço com tantas saudades do Céu. Que tristeza viver aqui ! Tende dó
de mim ! Sinto-me tão ferida, e por pessoas que desconhecem ferir-me assim !
Assemelhai o meu coração ao Vosso. Por Vosso amor quero perdoar a todos, por
Vosso amor e por amor às almas aceito estes espinhos que tão profundamente ferem
a minha cabeça em tantas horas do dia. Se o mundo compreendesse a dor ! Se o
mundo compreendesse uma ofensa feita a Vós, não pecava, só Vos amava. Jesus,
dai-me amor sem fim, dai-me amor para todos. Dai-me força e coragem para eu
obedecer escrevendo tudo como me mandam. Que repugnância, meu Jesus, em tudo que
escrevo ! Se não fosse a obediência, não escrevia nada apesar da grande
necessidade que sinto de o fazer. Amo a obediência, custe o que custar ; quero
ser fiel, quero obedecer em tudo.
Muito obrigada, meu
Jesus, pelo alívio que me destes trazendo junto de mim quem tão bem compreende a
minha alma. Com os olhos fitos em Vós, embora sempre na cruz, pude respirar mais
fundo. Ó cruz, ó amor do meu Jesus, quero-te, quero-te, morro por ti. »
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