A Beata Alexandrina não precisa de receber lições sobre a Paixão de Jesus; basta ver o livro A Paixão de Jesus em Alexandrina Maria da Costa ou a sua Via Sacra (http://alexandrinabalasar.free.fr/via_sacra.htm). Mas a escola deixa a juventude em tal desconhecimento da poesia de tema religioso que se justifica colocar aqui este inspirado texto do primeiro dos nossos poetas.

Actualizámos a escrita sempre que tal não desfigurava o verso.

Ó sumo Deus, Tu mesmo Te condenas,
pelo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas!

Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantador da lei,
a fama a Ti se põe de meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; Tu, sumo Rei;
eu, só, furtei; Tu, com ladrões padeces;
a pena a Ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; Tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-Te, e Tu, por me ganhares,
Te dás aos homens baixos, que Te vendem,
só para os homens presos resgatares.

A Ti, que as almas soltas, a Ti prendem;
a Ti, sumo Juiz, ante juízes
te acusam, pelo erro dos que Te ofendem.

Chamam-Te malfeitor, não contradizes;
sendo Tu dos profetas a certeza,
dizem que quem Te fere profetizes.

 Riem-se de Ti; Tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem Tu vens ao mundo, Te despreza.

O teu rosto, de cuja formosura
se veste o Céu e o Sol resplandecente,
diante de quem muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banhado
cuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,
sobre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;

depois coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-No as chagas não curadas,
um tormento causando-Lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplendor ornadas, Lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas O levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.

E tu que passas, homem cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já co peso do madeiro.

Oh, não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, Cavaleiro sublimado!

 Que aquelas altas vozes que lá soam,
dos padres são que estão no Limbo escuro,
que já de louro e palma Vos coroam.

Todos Vos bradam que subais ao muro
da cidade infernal, e que arvoreis
em cima essa bandeira mui seguro.

 Ó santos Padres, não vos apresseis,
que muito mais a Deus que a vós custaram
essas duras prisões em que jazeis!

Aquelas mãos que o mundo edificaram,
aqueles pés, que pisam as estrelas,
com duríssimos pregos se encravaram.

Mas qual será a pessoa que as querelas
da angustiada Virgem contemplasse,
que não se mova a dor e a mágoa delas,

e que dos olhos seus não estilasse
tanta cópia de lágrimas ardentes
que carreiras no rosto assinalasse?

Oh, quem lhe vira os olhos refulgentes
desfazendo-se em lágrimas, regando
aquelas belas faces excelentes!

Quem a vira cos gritos ir tocando
as estrelas, a quem responde o Céu,
cos acentos dos Anjos retumbando!

Quem vira quando o claro rosto ergueu
a ver o Filho, que na Cruz pendia,
donde a nossa saúde descendeu!

Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão míseras e tristes
para o Céu, para a gente espalharia!

Pois que seria, Virgem, quando vistes
com fel nojoso e com vinagre amaro
matar a sede ao Filho que paristes?

Não era este o licor suave e claro
que, para o confortar, então daríeis
a quem Vos era, mais que a vida, caro.

Como, Virgem Senhora, não corríeis
a dar tetas puras ao Cordeiro
que padecer na Cruz com sede víeis?

Não só era esse, Senhora, o verdadeiro
poto, que vosso Filho desejava,
morrendo pelo mundo num madeiro;

mas era a salvação, que ali ganhava
para o mísero Adão, que ali bebia
na fonte, que do peito Lhe manava.

 Pois, ó pura e Santíssima Maria,
que enfim sentistes esta mágoa, quanto
a gravidade dela o requeria;

Dessa Fonte sagrada e peito santo
me alcançai üa gota, com que lave
a culpa, que me agrava e pesa tanto.

 Do licor salutífero e suave
me abrangei, com que mate a sede dura
deste mundo tão cego, torpe e grave.

Assim, Senhora, toda a criatura
que vive e viverá, que não conhece
a Lei do vosso Filho, santa e pura;

o falsíssimo herege, que carece
da graça, e com danado e falso esprito
perturba a Santa Igreja, que floresce;

o povo pertinaz, no antigo rito,
que só o desterro seu, que tanto dura,
lhe diz que é pena igual ao seu delito;

o torpe Ismaelita, que mistura
as leis, e com preceitos viciosos
na terra estende a seita falsa, impura;

os idólatras maus, supersticiosos,
vários de opiniões e de costume,
levados de conceitos fabulosos;

as mais remotas gentes, onde o lume
da nossa fé não chega, nem que tenham
religião alguma se presume;

assim todos, enfim, Senhora, venham
confessar um só Deus crucificado,
e por nenhum respeito se detenham.

Mas de todos o vício já passado,
o Seu nome co vosso, neste dia,
seja por todo mundo celebrado;
e respondam os Céus: JESUS, MARIA.

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