A ANUNCIAÇÃO EM S. LUCAS

O episódio da Anunciação decorre em Nazaré, que era um lugar ignorado, na Galileia, e que fica a norte de Israel. Deus é muito diferente dos homens: Ele parte do mais humilde, não precisa de Jerusalém ou de Roma.

Na narrativa há indispensáveis referências ao rei David, que nascera em Belém, mais de 100 km para sul. O Messias deveria de ser da descendência de David, como estava desde longe anunciado.

Intervêm directamente duas personagens: o Anjo Gabriel e a jovem Maria, que então teria uns 15 anos. Mas há uma terceira personagem, ausente, mas que não pode ser esquecida, José.

As jovens casavam (eram casadas…) a partir dos 12 anos, por isso não se estranhe que Maria tenha sido chamada para a maternidade por volta dos seus 15. S. Lucas refere-se a Maria também como Mariame. Ele deve-A ter conhecido pessoalmente, quando Ela era já idosa.

O anjo inicia o seu diálogo por uma saudação. Em português, como em latim, adoptou-se para essa saudação a forma ave, Ave Maria! No grego, em que S. Lucas escreve, figura a palavra chaire. Chaire, como ave, eram saudações comuns entre as pessoas gregas e romanas. À letra, chaire significa alegra-te. Os tempos messiânicos iniciam-se com este convite à alegria. Quando Jesus nasce, os anjos vão cantar também de alegria: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens!”

Entre os israelitas, em público, um homem não saudava uma mulher. Mas o anjo saúda Maria, não respeitando os hábitos humanos, e convida-A à alegria.

Comecemos agora a ler a narrativa, acompanhando essa leitura de alguns comentários.

O anjo Gabriel foi enviado da parte de Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma jovem, prometida em casamento a um homem chamado José, da casa de David. O nome da jovem era Maria. Entrando onde ela estava, o anjo disse-lhe:

- Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!

A palavra grega partenos, usada pelo evangelista para se referir a Maria, está aqui traduzida por jovem; virgem é palavra latina correspondente também a jovem solteira.

Nós repetimos “Ave Maria, cheia de graça!” Ficamos agora a saber que ave significa alegra-te. A expressão “cheia de graça”, no original grego, corresponde a “favorecida pela graça”. A diferença não é muita. Mas é uma saudação bonita e que implica já a seu modo um convite à maternidade divina, pois corresponderá à saudação dum noivo à sua amada. Deus chama já aqui Maria, implicitamente, para sua esposa, pois que a quer para Mãe do seu Filho. E Ele está com ela, portanto Ele tudo proverá.

Leiamos mais uma frase:

Ao ouvir as palavras, ela perturbou-se e reflectia no que poderia significar a saudação.

A noiva de José foi apanhada de surpresa; percebe de imediato que há planos divinos para Ela. Para Ela que tem uns 15 anos, não esqueçamos…

Mas o anjo continuou:

– Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus!

A “Cheia de graça”, a Imaculada, não tem que ter medo face aos planos de Deus: o anjo não vem ameaçador: Deus está definitivamente com Ela.

Depois deste começo, o anjo vai ser claro:

Eis que conceberás e darás à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo.

O Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai. Ele reinará na casa de Jacob pelos séculos e seu reino não terá fim.

A noiva de José, que neste momento já não é noiva dele (em S. Mateus, José pensa mesmo em afastar-se dela), pois Deus a chamou para Si, vai ser mãe, mas Mãe de Deus.

O anjo não A convidou para esta missão única, anunciou-Lha. O que é estranho! Como é que se pode anunciar isto a uma menina de 15 anos?

Dizer a Moisés que vá libertar o povo hebraico da escravatura do faraó não é a mesma coisa que dizer a uma menina de 15 anos que vai engravidar. Isso compromete-lhe a vida toda, no seu princípio e a partir do mais íntimo, do âmago dos seus sonhos femininos.

Trata-se dum chamamento divino. Vejamos outros chamamentos que encontramos na Bíblia.

S. Paulo, que perseguia a Igreja, foi convidado a ser um arauto do evangelho entre os pagãos. Repare-se porém: ele já era uma figura pública, só que vai continuar a sê-lo noutro sentido.

S. Pedro era pescador e é chamado a ser pescador de homens. O pequeno David era pastor e usava a funda e é com a sua funda de pastor que derrota Golias. Moisés era um príncipe egípcio (tido como tal) e recebe o encargo de dirigir a retirada dos judeus para a Palestina.

Em todos estes chamamentos, houve uma preparação prévia. A missão não era uma novidade radical, mas a continuação de algo precedente, embora num sentido novo.

Com a jovem Maria, passou-se sem dúvida algo semelhante: a Imaculada, a Cheia de Graça vivia uma entrega integral a Deus e agora recebe uma missão nova, mas dentro da radicalidade dessa entrega.

Recordemos duas frases já citadas:

O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David. Ele reinará na casa de Jacob pelos séculos e seu reino não terá fim.

É curioso notar como entra aqui o nome de David. Seria Maria descendente de David, que vivera mil anos antes? Se Ela não o é, como afirmar que Jesus é dessa descendência, se ele é filho de Maria e do Espírito Santo.

Entra aqui José. No mundo judaico, a paternidade biológica não era importante. Por isso José será o pai de Jesus. O pai efectivo. Vai ser assim naquele episódio da ida de Jesus ao Templo, aos onze anos. “Teu pai e eu andávamos à tua procura”, dirá Maria. É por José que Jesus é filho de David… E como David reinou sobre a Casa de Jacob, sobre o povo hebraico, também Jesus reinará, por direito familiar e dinástico.

Um dos grandes heróis da vida de S. Lucas – pois não esqueçamos que estamos a lidar com o Evangelho de Lucas – foi S. Paulo. Ao ouvirmos as palavras do anjo que definem o estatuto de Jesus, lembrámo-nos facilmente dalguns textos das cartas do Apóstolo dos Pagãos, em que ele atribui títulos a Jesus que não vêm da tradição hebraica, como Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura.

S. João chama-Lhe a Palavra e o Cordeiro de Deus; o Apocalipse declara-O o Alfa e o Ómega. Mas voltemos então ao texto de S. Lucas:

Maria perguntou ao anjo:

– Como acontecerá isso, pois não conheço homem?

Em resposta o anjo disse-lhe:

– O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; é por isso que o menino santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.

Serenamente, agora Maria pede uma explicação, razoável. E ela veio clara.

Quando o anjo diz que “o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”, lembra um pouco o que se lê num dos versículos iniciais da Bíblia: “O Espírito de Deus pairava sobre as águas”. O Espírito criador de Deus.

Há aqui como que um recomeço da obra criadora, de uns novos Céus e uma nova Terra.

S. Lucas, a concluir a narrativa da Anunciação, faz-nos ouvir estas palavras de Maria:

– Eis aqui a serva do Senhor. Aconteça comigo segundo tua palavra!

E conclui:

E o anjo afastou-se dela.

As palavras de Maria ao assumir-se como “serva do Senhor” causarão estranheza a algumas pessoas. Serva é escrava. Mas se nos lembrarmos do salmo que diz que o amor de Deus é eterno e que “é eterna a sua misericórdia”, começamos a ver que aquelas palavras têm um significado que não é o que lhe atribuiríamos à primeira. Ser serva do Senhor é entregar-se-lhe em total confiança, “porque Ele é bom!” Depois, Ele que faça o que for melhor.

O episódio de facto tem alguma continuação no mesmo evangelho, mais à frente.

Quando Isabel saúda Maria, declarando-a a mais bendita das mulheres e bendito o fruto do seu ventre, Maria irrompe num cântico de gratidão e de alegria que se continha já naquela frase em que se assumia como “serva do Senhor”:

A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito rejubila em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva.

Eis que de agora em diante me chamarão feliz todas as gerações, porque o Poderoso fez por mim grandes coisas: o seu nome é santo.

Isto é belíssimo. Uma espada trespassar-Lhe-á o coração, mas Ela confiará sempre, esperará sempre. O seu Senhor nunca Lhe falhará, e todas as gerações têm obrigação de A reconhecer como bem-aventurada.

E depois de manifestar a sua gratidão, Maria tece o louvor do Deus de Israel, que é o Deus que se revela a todos os povos:

A sua misericórdia passa de geração em geração para os que o temem.

Mostrou o poder de seu braço e dispersou os que se orgulham de seus planos.

Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.

Encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os de mãos vazias.

Acolheu Israel, seu servo, lembrando-se da sua misericórdia, conforme o que prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre.

Mais que um manual de bons costumes, a Bíblia é afinal um manual dos mais excelentes costumes.

Prof. José Ferreira

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