Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

OUTUBRO 1954

1º de Outubro de 1954 – Primeira sexta-feira

Não me permite o meu estado de saúde falar da minha alma. Ela sente necessidade de se abrir, de ter um apoio, de ter quem a compreenda, mas não posso. Tem que ela calar-se e sujeitar-se ao corpo; com os seus males não permite os seus desabafos. As minhas amarguras, os meus tormentos são grandes, infinitamente grandes. Eu tenho que sofrê-los sozinha. Eu perdi tudo da terra e do Céu. Apagou-se para mim a luz do paraíso e a luz do mundo. Perdi tudo, meu Deus, perdi tudo.

Assisti à Santa Missa e não assisti. Rezo pouco e esse pouco que rezo tenho de perguntar a mim mesma:

― A Santa Missa celebrou-se no meu quarto? Eu rezei ou não rezei? Pobrezinha! A inutilidade tudo roubou e eu fico como se nunca vivesse, a não ser para todas as maldades, para todos os vícios. Com estas coisas e muitas mais vivo a minha vida pavorosa e sempre passo pelo horto e pelo meu calvário.

Na aproximação do cimo da montanha, todas as feras vieram devorar-me a alma, a chupar-lhe o sangue, e não sei como, nem sei quem ficava em grande número preso às suas fibras. Repeti o meu “creio”; foi muito difícil. Tentei muito e raras vezes o fiz. Veio Jesus e num impulso o Seu amor fortaleceu-me mais e falou-me assim:

― “Vem, minha filha, eu estou contigo. Está contigo o Céu com toda a fortaleza.”

Neste momento, pela chaga do Seu Divino Coração, saiu um clarão tão grande e uns raios tão luminosos que irradiavam tudo. Pouco depois, de todas as Suas chagas divinas saíam raios que me vinham trespassar os pés e as mãos. Da Sua sacrossanta cabeça para a minha passava-se também um sol que me trespassava todo o cérebro; falando do primeiro clarão e raios que saíam do Seu Divino Coração, disse Jesus com toda a clareza:

― “Minha filha, à semelhança de Santa Margarida Maria, Eu quero que incendeies no mundo este amor tão apagado nos corações dos homens. Incendeia-o, incendeia-o. Eu quero dar, Eu quero dar o meu amor aos homens, Eu quero ser por eles amado. Eles não mo aceitam e não Me amam. Por ti quero que este amor seja incendiado em toda a humanidade, assim como por ti foi consagrado o mundo à minha Bendita Mãe. Faz, esposa querida, que se espalhe no mundo todo o amor dos Nossos Corações.”

― Como, Jesus, como? Trabalhar dessa forma, se ele não é aceite por Vós?! Como hão-de os homens recebê-lo por mim?!

― “Com a tua dor, com a tua dor, minha filha. só com ela as almas ficam agarradas às fibras da alma e depois se vão deixar os corações incendiar, incendiar no meu amor, no meu amor. Deixa que estes raios das minhas chagas divinas vão penetrar nas tuas chagas escondidas, nas tuas chagas místicas. Deixa que todo o meu bálsamo as suavize, assim como os espinhos da tua cabeça. Tu não vives a vida do mundo apesar de estares nele. Vives a minha vida divina.”

― Mas como senti-la, se ela é minha?

― “Tem coragem e confiança. Repete o teu “creio”. O teu Céu está perto. Vives a vida pública de Jesus. Fala às almas. Fala às almas!”

Fiquei sozinha sem um raio de luz, mas com a força e confiança para repetir a Jesus o meu “creio” e dizer mesmo sem O ver:

― Como tudo isto é lindo! Como os sois das Vossas chagas foram bálsamo para as minhas! Creio, Jesus, creio! Que lindo, que lindo foi isto!

Apareceu Jesus novamente. Das trevas fez nova luz e, infundindo o Seu Divino Coração no meu, disse-me:

― “Recebe a gota do meu Divino Sangue. Jesus repara sempre tudo o que a dor consome. É a vida de que tu vives. Fala às almas. És delas luz e farol. A tua dor ressuscita-as, e à semelhança da minha ressurreição elas vão vivendo para Mim, e o Divino Espírito Santo sobre ti desceu como sobre os Apóstolos e minha Mãe Santíssima. Veja-se a tua vida ao espelho divino, veja-se a tua vida em tudo semelhante à minha.

Brada ao mundo, convida o mundo à oração, à penitência, ao maior incêndio de amor para Mim. Ai dele, ai dele! Que será dele?! O que o espera,, se não atende a este pedido, a este apelo divino!...”

Logo desapareceu o meu Senhor, e eu fiz-Lhe os meus pedidos. Pedi-Lhe compaixão, pedi-Lhe misericórdia e repeti-Lhe o meu “creio” mais fortemente. Voltei à minha amargura, ao meu pão de cada dia.

8 de Outubro de 1954 – Sexta-feira

A vontade de Deus e o sacrifício! Quero em tudo fazer a vontade de Deus manifestada por quem te, o direito de mandar, mas custa-me tanto, tanto! É um sacrifício inaudito. As forças não me permitem. A alma sente a necessidade de se abrir, mas a pobre natureza apavorada tenta revoltar-se e não obedecer.

― Ó Jesus, tudo por Vosso amor. Todo o sacrifício é pouco e as almas valem muito mais do que tudo quanto sofri e possa a vir a sofrer. O amor de Jesus, o amor de Jesus, as almas, as almas! Que loucura, que loucura! É só o que eu vejo, é só o que eu quero! Não sou capaz de mostrar a minha dor. Digo muito e não digo nada.

A minha dor, a dor que não é minha, a dor que passa por mim, se eu olho para trás, todos os caminhos estão tapados. Nada chegou ao Céu. Parece que até não tenho a visão, nem o sentimento de que vivi. Nasceu a dor e a maldade; a dor não sei para quem foi, a maldade ficou em mim. Todos os vícios e crimes me pertencem.

Passei no domingo, dia 3, o décimo sexto aniversário da minha crucifixão. Tudo vivi, tudo recordei; tudo senti, mas de tal forma a derramar lágrimas, muitas lágrimas. Com os olhos na terra seria para mim um dos dias mais tristes da minha vida. Com eles no Céu, onde os fitei, todas as lágrimas enviei ao sacrário como actos de amor, e toda a visão de tão doloroso calvário, todos os espinhos que dele nasceram, ofereci ao Céu.

― As almas, as almas, ó Jesus, são Vossas. Eu por Vosso amor nada Vos quero negar, para que elas sejam salvas.

A inutilidade, como sempre habituada a todo me roubar, procedeu da mesma maneira. Depois de tanta angústia e de tão larga visão de sofrimento, fiquei pobrezinha, sem nada, a viver a minha eternidade, eternidade sem Deus, eternidade que não caminha, mas essa eternidade que me leva à canseira desses trabalhos de escavação que me dão os suores do corpo e da alma. No meio dos altos castelos e negras muralhas, em grandes tentações contra a fé, com a perda de Jesus e da Mãezinha, a sentir mesmo que Eles não existem, nem existe ninguém da terra; vejo o meu túmulo e o prado viçoso e florido que o rodeia.

Quanto mais digo, mais necessidade tenho de dizer, mas o livro do coração fecha-se para só ser lido à luz da eternidade. Que ignorância, meu Deus, que ignorância a minha. Não deixo de sentir a necessidade infinita de haver alguém que me console. Não deixo de sentir a dor infinita com a visão dos crimes de toda a humanidade. Apesar de tudo, quero-a, quero-a no meu coração.

Tive ontem um mimo de Jesus. Aceitei-o como vindo do Céu: uma carta do meu Paizinho espiritual. Ele compreendeu bem o estado da minha alma e a tudo me deu repostas confortantes e cheias de sabedoria. Foi um conforto para o meu horto e ainda hoje para o meu calvário. Sem viver para ele, sem querer nada dele, caminhei com mais fortaleza. Do meio da viagem em diante, caí no desfalecimento. Queria, tentava agarrar-me ao Céu, mas não houve nada a que pudesse segurar-me. Repeti o meu “creio” com muito custo. Dizia a Jesus o meu “creio”, “espero” e “confio”, mas a parecer uma mentira constante. A minha alma ia desfalecer. O sangue todo chupado e as suas fibras serviam de prisão para muita coisa, para muito alguém que a elas se prendiam. Sem querer e sem confiar, ou para melhor, sem sentir esses bons sentimentos, veio Jesus e chamou-me:

― “Minha filha, vem cá, vem, esposa minha, repete o teu “creio”, espera e confia. Jesus está contigo, está Deus, está o Senhor, está o Jesus com a Sua esposa amada. O teu “creio” sem sentimento é para os que não crêem na realidade. A tua morte é para dar vida, as tuas trevas são para dar luz com a qual as almas ressuscitam para a graça. Minha filha, minha filha, o mundo, o mundo, os pecadores, os pecadores não se convertem, não me escutam, não me atendem.”

Neste momento, os meus ouvidos ouviram uma tremenda trombeta aterradora, a terra em convulsões nas trevas mais pavorosas.

― Ó Jesus, ó Jesus, o que é isto, meu Amor?

― “É a trombeta da voz de Deus, são as convulsões da Sua justiça, são as trevas do pecado. Fala às almas, minha filha, fala às almas.

Minha Mãe, ó minha querida Mãe, vem, vem, não te demores, vem falar à nossa filhinha.”

Veio a Mãezinha do Rosário: vestia azul e branco; trazia nas mãos o rosário e, a terminá-lo, uma grande cruz dourada. Sentou-se, colocou-me no Seu regaço, enleou-me nas mãos o rosário e sobre o coração colocou-me a cruz. Jesus tinha desaparecido. Ela chamou-O com doçura:

― Meu Filho, meu filho, Jesus, vem, vem para junto de nós!

Jesus veio logo, sentou-se ao lado da Mãezinha, e esta continuou:

― Minha filha, vem comigo, vamos salvar o mundo, vamos converter os pecadores. Sobre o teu coração coloco esta cruz para te fazer sentir que é a cruz de salvação. Dor e cruz, abraça, abraça-as. Nas tuas mãos enleio o rosário. Fala dele, fala dele. Se soubesses quanto me tens consolado! Fala às almas, fala-lhes da Eucaristia, fala-lhes do rosário. Que elas se alimentem da carne, do Corpo de Cristo e do alimento da oração, do meu terço quotidiano.”

Cobriu-me de carícias e disse para Jesus:

― Fala, meu filho, fala.

― “Minha Mãe, minha Mãe, o mundo não me atende, não se converte.”

Foi tal a dor com que Jesus disse estas palavras que as lágrimas rebentaram nos Seus divinos olhos, nos da Mãezinha e nos meus. Eu limpei as de Jesus e as da Mãezinha, e a Mãezinha limpou as minhas.

― Tentamos, meu filho, tentamos com a Eucaristia, com o rosário e com a imolação da nossa vítima.

Desapareceu a Mãezinha. Ficou Jesus. Uniu o Seu Coração ao meu e fez passar a gota do Sangue.

― “Recebe, minha filha, a tua vida, recebe, recebe a gota do meu Sangue Divino lentamente. Coragem! Toda a tua vida já está escrita no Céu. Coragem! Mais um pouco na tua missão, na curta vida que te resta. Vida que jamais ficará marcada outra igual na história da Igreja. Fica na tua cruz. Insiste, insiste, minha filha, na oração e na penitência, uma vida pura para Mim. Acode às almas, para que elas ao menos não caiam nas penas eternas.”

Fugiu-me Jesus. Deixou-me na maior angústia e tristeza mortal a repetir-Lhe o meu “creio”, a fazer-Lhe todos os pedidos, a rogar-Lhe pelo mundo.

15 de Outubro de 1954 – Sexta-feira

Só o Céu vê, só ele pode avaliar o meu sacrifício. Não posso falar. A cada palavra que dou, parece que uma golfada de sangue me aflui aos lábios. Só por amor de Jesus e das almas é que eu faço tão grande sacrifício. Obedecer, quando se pode, não custa, mas quando é feito desta forma, num sofrimento indizível, é inaudito sacrifício. Os males do meu corpo são tão grandes e os da alma a debaterem-se com eles. Ó Céu, ó Céu, ó vida sem vida! Dizer as tentações que tenho sentido contra a fé, nunca, nunca o poderei fazer. Apenas levanto um bocadinho do véu a descobrir qualquer sombrazinha. Ai, meu Deus, que variedade de sofrimentos! Todos tão dolorosos e tremendos, mas, ai, Jesus, quanto custa viver a eternidade e não acreditar na eternidade. Tudo são espinhos e punhais a ferirem-me. A cruz que sobre o coração me colocou a Mãezinha tenho-a sentido tanto, tanto! É a cruz do coração. O rosário que me enrolou nas mãos sinto-o também. São cadeias que me prendem. Oh, que tristeza eu não poder rezar! O pouco que rezo é tão distraída e sem fé. Sinto que nada estou a fazer no mundo depois de perder Jesus e a Mãezinha. Desde que a eternidade não existe, uma tentação me tenta persuadir-me: que estou eu a fazer aqui sem gozar, sempre a sofrer? Para quê, para quê? Creio, Jesus, creio! Creio que existis! Que me importa o sentimento da mentira, se a Verdade sois Vós, ó Senhor, sois Vós, e a eternidade sois Vós?!

Nesta luta, desprezei todo o horto. Nada existe, nada houve, nada há. Assim, subi para o Calvário, sem fé, sem acreditar na eternidade e em tal tentação a querer suicidar-me a mim mesma! Parecia-me que queria liquidar a vida sem vida, fosse qual fosse o processo. Com que custo eu chamava por Jesus e pela Mãezinha e Lhes repetia o meu “creio”! Nas trevas da agonia e da morte, quis repeti-lo e não pude.

Veio Jesus, bradou-me alto e com doçura:

― “Minha filha, ó minha filha, a tua reparação é pelos sem fé, pelos sem Deus, pelos incrédulos. Tu reparas a Majestade Divina por tudo e por todos, por toda a variedade de pecados para que foste escolhida, para a missão mais nobre, mas a mais difícil. São tantas as almas que voltam para trás! Muitas logo no princípio, muitas que não chegam a meados dos seus caminhos. Querem tudo e nada Me dão. Querem reparar sem imolação e sem sacrifício. Se todos os mestres e sábios da Santa Igreja compreendessem seriamente, profundamente, a minha vida divina nas almas, muito mais seria amado, muito mais seria reparado. Coragem, minha filha; escuta a afirmação do teu Jesus, o Esposo da tua alma. A tua via é semelhante à da Santa Igreja. A Igreja sempre combatida, nunca vencida até ao fim dos séculos. A tua vida, a minha divina causa, sempre perseguida, adiada, combatida, há-de vencer, há-de triunfar até ao fim dos séculos e depois por toda a eternidade. Se pudesses ver, filha querida, toda a glória que foi dada ao Céu, as almas que salvaste, o bem que fizeste a toda a humanidade nestes 16 anos de crucifixão constante, morrerias com alegria deslumbrante.”

― Ó Jesus, ó Jesus, eu nunca compreendi o Vosso pedido quanto à crucifixão. Eu não sabia que se sofria e podia sofrer tanto. Ó Jesus, perdoai-me, mas com certeza que Vos dizia que não.

― “Preparei-te tão bem e tu tão bem me correspondeste. O teu amor a Jesus, o teu amor às almas levou-te a tudo. Tu amas Jesus, tu amas a Mãezinha e és por Nós amada. Deixa que a cruz que tens sobre o coração e o rosário das mãos, por Ela colocados, Eu os cinja mais e mais. Ó minha filha, dor e cruz, a Eucaristia e o rosário! A minha Mãe Santíssima e a vítima deste calvário, coragem, vamos a salvar o mundo! Fala às almas, fala do sacrário, para que Eu seja recebido muitas vezes. Fala do rosário, do amor do meu Divino Coração como meio de salvação.”

Fugiu Jesus e eu sozinha a repetir o meu “creio” dizia-Lhe:

― Falai, Jesus, em mim. Só por Vós poderá ser feito o bem às almas, aos pecadores, à pobre humanidade. Jesus, Jesus, eu creio, mas para que fugis?

Ele voltou, a sorrir:

― “Quanto mais te fujo, mais me procuras. Quanto mais as almas me fogem, por ti, pelo teu martírio vê, ao meu Divino Coração. Recebe a gota do meu Divino Sangue, a gota maravilhosa, prodigiosa, que te faz viver a vida do Céu, do Céu, do Céu que tão pertinho está para ti. Tem coragem, escora do meu Pai, tem coragem, luz e farol do mundo. O mundo é teu, acode-lhe, salva-o. Fala às almas.”

Neste “fala às almas” doloroso, desapareceu-me para sempre. A cruz ficou-me bem estampada no coração. Não está ao alto, está deitada. O rosário bem o fiquei a sentir, mas, ó meu Deus, ó meu Deus, em que martírio ficou logo a minha alma a fazer os meus pedidos a Jesus; repeti-Lhe fortemente:

― Creio, espero e confio, Jesus. Valei-me, amparai-me! Sou a Vossa vítima!

22 de Outubro de 1954 – Sexta-feira

Continua Jesus a pedir-me um mar infindo de sofrimento. Pobre de mim, que não sei sofrer e oferecer ao Céu esta vida sem vida, todo este martírio que não chega em mim a nascer. A morte tira-lhe ávida, a inutilidade rouba tudo, antes que nada me pertença. Ah, se eu abrisse a minha alma, só a eternidade chega para dizer o que lá vai. Aqui limito-me a fechá-la e abafá-la na dor.

Tive a Santa Missa. Foi morta também. Houve alguém que me confortou e deu sinais de todo o amparo, mas tudo em morreu. Que tudo seja para honra e glória do meu Senhor. Não posso dizer mais. Vou ver se consigo dizer as palavras do colóquio que tive com o meu Jesus.

Caminhei para o Calvário. Todos os degraus me falhavam. A cada passo caía e ficava desfalecida. Com indizível custo repetia o meu “creio” e “confio”. Sentia os suores de sangue na alma e de suores cobria-se-me o corpo. Não podia dar um passo. Uma voz cheia de bondade falou-me:

― “Coragem! Coragem! Levanta-te! Caminha!”

Depois de um bom espaço de tempo em que caminhei e voltei a desfalecer, a mesma voz do meu Jesus me dizia, enquanto a Sua mão santíssima me levantava:

― “Coragem, coragem, minha filha! Coragem, coragem. É o mundo a exigir este martírio incomparável. Coragem, minha filha. Fala às almas! Coragem, coragem! Oferece-te, dá-te toda ao meu Eterno Pai pelas almas. O mundo peca, está louco. A Majestade Divina é ultrajada. Oferece-te, dá-te toda a meu Eterno Pai.”

Neste momento, ficou Jesus, de repente, pregado na cruz e suspenso no ar um cálix que Ele fez que chegasse às minhas mãos. Para dentro do cálix caía um fontanário de sangue que saía da chaga do Seu divino Coração. Cena dolorosa, comovedora, que se gravou bem no meu coração.

― Pai Eterno, Pai Eterno, aceitai o Sangue Divino do Vosso filho Jesus. A ele junto as dores da Mãezinha e depois a minha entrega total, a minha imolação contínua. Aceitai, ó Pai eterno, o meu nada unido ao tudo. Afastai a Vossa justiça. Perdoai, perdoai ao mundo!

Jesus desceu da cruz. O sangue parou. O cálix desapareceu. Jesus continuou:

― “Fala às almas, minha filha. Eu falo pelos teus lábios. Manifesto a minha divina vontade. Fala às almas, fala às almas. Batei, voltai a bater. Martelai e remartelai, meus amigos, amigos da minha causa. Estou contente, mas não basta. Não percais tempo. Aproveitai o tempo. Batei, batei, martelai, remartelai. Que onda, que onda, que mar sem fim de vícios, de iniquidades! O mundo dorme, o mundo dorme. Batei, batei! Martelai, remartelai! Não deixeis que o mar dos vícios dê a morte eterna às almas.”

Fiquei sozinha. A morte e trevas tiraram-me tudo. Estava num pavor. Caída num bosque de todo o pavor, repetia o meu “creio” muitas vezes, muitas vezes, e ali caída me deixei estar à ordem de Jesus, abandonada a Ele. Tardou, mas voltou o meu Amado. Deu uns raiozinhos de luz à minha alma e disse-me:

― “Repete o teu”creio”, repete o teu “creio”. Os teus sofrimentos são escoras da justiça do Senhor. Vou dar-te o meu Sangue, o meu que faço teu, a minha vida que faço tua. É a vida do Céu que tu vives. É o Sangue de Jesus que te alimenta. Coragem! dá esta vida às almas. Coragem! Vai para o teu martírio. O Céu vem, o Céu chega. Jesus não falta.”

Desapareceu-me para sempre. Pedi-Lhe tudo sem O ver. Os meus pedidos pareciam ser sem fé. Juntei-lhes o meu “creio” e assim fiquei na cruz.

 

Nota – Há nove dias que vive num sofrimento indizível. Mal podia falar. Foi com muito sacrifício que ditou as palavras destas duas semanas.

 

29 de Outubro de 1954 – Sexta-feira

O meu mal continua. Não posso falar. Faço um sacrifício inaudito para ao menos dizer as palavras de Jesus.

Perdi o Sol da vida. Perdi o Sol da eternidade, que é Deus. Tudo é podridão. Tudo são trevas na terra. O Céu está fechado. Tudo são trevas também. Meu Deus, meu Deus, que perda total! Não sei como poder resistir a viver sem Jesus e a Mãezinha! Tinha tanto que dizer e nada mais digo. É este o meu viver. Foi este o meu calvário. Em espírito repetia o meu “creio”.

― Creio, Jesus, nas Vossa promessas. Creio na Vossa vida divina em mim. Juro-Vos que creio. Meu Deus, que tormento mentir ao Senhor!

Jesus não se demorou. Veio depressa ao meu encontro.

― “Minha filha, coragem! Minha filha, alerta! Escuta quem te chama. São as almas, minha filha, são as almas que pedem e exigem tal martírio. Coragem, minha filha! Não deixes o Sangue de Jesus perder-se. Alerta, minha filha, escuta: são as almas que sentem sobre si todo o rigor da justiça de meu Pai, são as almas prestes a cair no inferno e já a sentirem as labaredas das chamas eternas. Coragem! Acode-lhes, não deixes que elas caiam no inferno.”

Jesus dizia isto de voz tremida, como quem chora, e eu sentia a Sua dor infinita.

― Jesus, tudo faço com a Vossa graça. Para tudo me prontifico com o Vosso auxílio, mas não choreis e deixai que só eu sinta a Vossa dor.

Jesus deu-me para as mãos a cruz que pendia do rosário. Desta vez, não ficou enleado nas mãos. Ficou estendido e aberto. Alguém do lado oposto o sustentava. Jesus meteu-se ao meio do rosário, abrindo-o cada vez mais, e disse:

― “Firma nas tuas mãos a cruz. Cinge-a bem ao teu coração. A humanidade inteira vai ficar dentro do rosário. Fala às almas, minha filha. Fala-lhes do rosário e da Eucaristia! O terço, o terço, o rosário, o rosário! A Eucaristia, o meu Corpo e o meu Sangue! A Eucaristia, a Eucaristia, com as minhas vítimas, eis a salvação do mundo! Se Eu tivesse muitas almas generosas, se Eu tivesse muitas vítimas como a deste calvário, com toda a generosidade, com todo o heroísmo, num abandono total… mas não tenho, mas não tenho!”

Nesta ocasião, sem saber como, fui elevada ao alto. A cruz que tinha nas mãos ficou por detrás de mim como se nela estivesse crucificada. O meu coração ficou a ser um vaso que guardava sangue. De cada lado levantou-se uma escada, a qual ia terminar nos braços da cruz. A direita era a escada do rosário. A esquerda, a da Eucaristia. A da Eucaristia tinha mais ou menos a meio uma manada de espigas loiras e dois cachos de puras uvas. As almas subiam, subiam apressadamente, enchiam toda a largura das escadas. Passavam dos braços da cruz para dentro do vaso que continha o Sangue. Ali se banhavam, voavam mais ao alto e entravam no Céu. Oh! Como eu gostava que todos vissem isto! Disse Jesus:

― “Minha filha, a tua vida é uma pregação contínua: quando falas, quando sorris, quando choras e gemes mais sobrecarregada com o peso da cruz. É um puro exemplo para os grandes, para os humildes, para os sábios e doutores da Igreja. A tua dor leva as almas ao rosário, à Eucaristia. Com a tua dor elas sobem estas duas escadas de salvação, dor e sangue, dor e sangue, dor e sangue, dor e cruz, cruz de salvação. Elas passam depois ainda já no alto pelo cadinho do teu martírio. Depois de purificadas nos braços da cruz, voam ao Paraíso.”

Este quadro desapareceu. Ficou tudo em silêncio e em trevas.

― Onde estais, Jesus? Eu creio, eu creio em Vós que sois a Verdade infalível e não me enganais, meu amor.

Veio Jesus novamente:

― “Não te engano, minha filha. Estou contigo e contigo está minha Bendita Mãe. Era Ela do oposto a sustentar o rosário. Vamos, pois, acudir ao mundo e a salvar os pecadores. Recebe a gota do meu Divino Sangue. É ela que te fortalece e dá vida para dares vidas. No Céu verás os milhares, os milhões, os milhões de almas que por ti foram salvas! Coragem! O Céu para ti está pertinho e vais com esse rebanho infindo cantar os meus louvores para sempre.”

Jesus fugiu novamente. Repeti-Lhe o meu “creio”, mas sem coragem de Lhe fazer pedidos. O abandono foi tudo. Fiquei na cruz.

   

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