Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

marÇO 1945

1º de Março de 1945

Não tenho vida, não tenho sangue, tudo dei, tudo perdi. Dei tudo e parece-me que foi inútil. Sinto uma perda tão grande! Meu Deus, parece-me que não existo; existe a dor e é minha. Existe o mundo e necessita dela. A minha alma sente uma fome tão grande, mas esta fome é do mundo, é o mundo que vem alimentar-se à minha dor, é um mundo de feras a apanharem quanto mais podem o meu sofrimento. Nada é, nada sofro, em comparação do que a pobre humanidade necessita.

— Jesus, que sofrimento este!

Parece-me que estou a arrancar do meu peito o coração e a transformá-lo em pequeninas migalhinhas para dar ao mundo, para dar às almas. Queria levar a vida a mendigar corações para serem o alimento, a salvação dos pecadores. Queria bradar alto, muito alto, que a minha voz ecoasse em toda a humanidade:

— Ó mundo, ó mundo ingrato, sou tua, dou-me a ti por Jesus e pela querida Mãezinha. É por Eles que passo para ti o meu sangue, a minha vida; é por Eles que te quero, é por Eles que sou tua, é por Eles que te amo. Amo-te para te salvar, amo-te para a Jesus e à querida Mãezinha te entregar.

Ai de mim, não tenho que dar, não tenho mais que fazer. Que horrores se passam em mim, causados pela loucura, pelas ânsias insuportáveis de amar a Jesus e salvar a humanidade.

Na noite de 27, tive uma visão de espinhos que me causou enorme sofrimento e medo. Era um bosque de espinhos, só espinhos à minha frente; era um bosque fechado. Subiam a tanta altura, enleados uns nos outros que eu não lhes via o fim. Todos eles pendiam a cair sobre mim, muito grossos e extensos. Não soube o significado disto, nada compreendi. O que fiquei a sentir desde então é que estou toda envolta neles. A minha cama é de espinhos, a roupa que me cobre é de espinhos, a que visto são espinhos, eu mesma sou de espinhos. Tudo é dor, tudo é sangue, dor que me não pertence, sangue que não é meu. Estou no meio desse bosque, que ele mesmo é sangue, sangue que floresce e dá a vida a todos os espinhos. E sobre eles continua a cair sempre a mesma chuva orvalhosa de sangue. que espinhos tão reverdecidos! A minha alma sente que deles vão brotar uma nova chuva de botões brancos. Além destes espinhos, tenho recebido tantos cravados pelas criaturas e de quem menos esperava. Tem-me custado tanto encobrir as minhas lágrimas! Gostava que só Jesus as visse. Meu Deus, oh! quantas amarguras dentro em mim. Não posso ter nenhum apoio na terra, nada posso esperar daqui. Ai, até mesmo os que me são tão queridos, até desses tomou Jesus para Si a alegria e o conforto que me podiam dar. Sinto-me diante deles envergonhada, assustada como se os tivesse ofendido e contra eles praticado os maiores crimes.

O demónio continua a correr para mim como um cavalo sem freio. Vem louco para me insultar e convidar ao mal. Ouço dele o que nunca ouvi das criaturas, conheço dele o que nunca conheci do mundo. Não se disse, parece-me que sim:

— Tu não me satisfazes, convida mais demónios para pecarem comigo; quero o prazer, quero gozar.

Que horror, que horror parecer-me que dizia isto e que desviava para longe de mim o terço e a Mãezinha, que lhes escarrava e os calcava aos pés. Parece-me sempre que o maldito consegue de mim tudo quanto deseja e que ofendo o meu Jesus. No auge da dor, mais libertada dele, repeti muitas vezes:

— Não, não, não, meu Jesus, não quero pecar.

E, neste momento, veio Jesus tirar-me de sobre o abismo em que estava.

— Sim, sim, minha filha, não queres o pecado, queres o meu divino amor, e esse te dou na maior das abundâncias. Sim, sim, sim, minha filha, não queres o pecado, mas a salvação das almas, e só assim com esta reparação elas podem ser salvas, as que tão gravemente me ofendem nesta matéria. Ordeno-te, meu encanto, que vás para as tuas almofadas.

Uma força, vinda não sei de onde, nelas me colocou. Cansada de tanto lutar, banhada em suor, fui repetindo sempre: “amor, amor, sempre amor, meu Jesus; almas, todas as almas”. Não sei como o maldito se pode apresentar com caras tão feias, olhares aterradores e em forma de bichos de tanta variedade. Vêm até junto de mim como para me engolirem, alguns tão espraganudos! Ai, o que ele faz para nos tentar, para nos perder. Que pena não conhecerem todos as suas artes e manhas.

Hoje, logo de manhãzinha cedo, senti na minha alma, ouvi aos meus ouvidos fortes ruídos, grandes pancadas a abrirem-me a sepultura. Era tão funda! Que horror, é quinta-feira. Corre para mim a morte, a sepultura está pronta. Vem sobre mim o peso de todas as humilhações, nada há de mau que contra mim não digam. A minha alma já vê tudo o que vai tirar a vida do corpo. A minha sepultura é um poço, um abismo. Nada há em mim de alegria, tudo o que é belo e poderoso para mim é dor. Deitada na minha cama, pude admirar a grandeza do Criador. Vi pela janela as árvores, cobertas de flores. Que maravilha! A brancura delas transformava-se em noite na minha alma. Todas as pétalas das mesmas flores serviram de setas para em meu coração serem cravadas.

— O que fazer, meu Deus? Aceitar o que vem de Vós, a Vossa vontade, Senhor! Vou para a morte com os olhos fixos na Vossa cruz.

2 de Março de 1945 – Sexta-feira

De noite ainda, sem me lembrar o dia que era, lembrou-mo a minha alma. Senti-me na prisão, muito triste, sozinha, cansada e em grande abatimento. Sofria por me terem vendado os olhos, sofria por tanta ingratidão. Principiei a minha preparação para receber a visita do meu Jesus. Durante a preparação, já de dia, foram buscar-me à prisão. O meu rosto, sentia nele grandes escarros. Cá fora esperavam-me grandes multidões de gente. Meu Deus, o que ouvia de gargalhadas. De rua em rua, de casa em casa, no meio de grande algazarra, coberta de maus-tratos e interrogada por senhores absolutos, cheios de soberba, convencidos de que tudo podiam fazer. Em frente de tanta grandeza, oh! como eu era pequenina! Fui condenada, tomei a cruz; inclinada debaixo do seu peso, já quase só de rastos podia mover-me. E quantas vezes fui eu arrastada. Ai quantas lágrimas senti passarem-me no meu coração. Ao ser tratada tão cruelmente, repetia muitas vezes o coração: “amo-Vos, sofro por Vosso amor”. Levava a cruz e no cimo do calvário via a de Jesus; era um farol que entrava dentro em meu peito a iluminar tudo. Sentia-me atraída para ela; para a abraçar, para a possuir, ia caminhando. Cheguei ao calvário, estenderam-me nela. Quando me esticavam os braços e pernas para serem cravados, quando sentia que das feridas dos cravos corriam fontes de sangue, veio o demónio para mim, a correr desastradamente; veio redobrar o meu sofrimento. Disse-me que íamos gozar por palavras feiíssimas e depois calou-se, deixando-me a lutar com as suas falsas artes. Eu, cravada na cruz de pés e mãos, sem poder mover-me. Ai quanto sofri. Não podia lutar; fitava o meu Jesus crucificado.

— Meu amor, sofro por Vosso amor. Meu amor, sofro para Vos dar almas. Valei-me, Jesus, tende dó de mim. Mãezinha, eu não quero ofender-Vos.

Depois de muito lutar, principiou novamente o maldito a encher-me de nomes e a dizer-me:

— Eu não te tocava e nada te disse; és tu que queres pecar, és tu que queres o prazer.

Depois de satisfeitos os seus desejos, ou porque Nosso Senhor o obrigasse, ele deixou-me. Mas não me deixou a tristeza e a amargura; não me deixou o abandono; não me deixaram as lágrimas e a agonia da Mãezinha e os seus olhares dolorosos, cheios de compaixão por mim. Com que aflição, com que agonia eu bradei ao céu, sempre, sempre, até expirar: “Pai, meu Pai, porque me abandonaste?” Não era eu que bradava, era o meu coração; não era eu que o queria fazer, mas a força da dor e da agonia me obrigava. E, neste transe, veio Jesus, descia do céu para a terra, embebido numa nuvem; deu entrada no meu coração e disse-me:

— Minha filha, sol da terra, fogo dos corações, honra e alegria do céu. Sol que, com os seus raios brilhantes, aqueces e iluminas toda a humanidade. Fogo que abrasas e purificas os corações. Honra e alegria do céu, porque, ao ver a tua dor, ao ver o teu martírio, que já lá está escrito agora e por toda a eternidade, alegra-me, honra-me, glorifica-me. Todo o céu bendiz o meu santo nome, pela vítima imolada, pela vida das vidas, pela vítima das almas. Vim do céu, minha filha, desci do meu trono divino, vim ao meu palácio, ao meu céu da terra, subi ao trono da minha rainha. Venho da minha glória desabafar contigo as minhas mágoas. Diz-me, amada minha, queres consolar-me? Queres alegrar o meu divino coração tão triste? Queres dar-me tudo até a consolação que de mim devias receber? Fala-me, fala-me com a tua língua de ouro, o teu coração de fogo.

— Jesus, que me pedireis que eu não Vos dê? Conto sempre com a Vossa graça para com ela poder sofrer tudo e dar-Vos tudo o que de mim desejais. Viva eu sempre na tristeza e na amargura, para Vós, meu Jesus, viverdes só na consolação e na alegria.

— Ó meu anjo da terra, tu falas aqui e o que tu dizes escrevem os anjos no céu a letras de oiro e pedras preciosas. Vê o mundo, vê o lodo, vê a lama. A maldade que vai por aí! Olha como sofre o meu divino coração. Olha como está ferido. Já que de tão boa vontade, tão alegremente dás tudo, privo-te da minha alegria, da minha consolação, assim como te privei da consolação e alegria daqueles que te são queridos. Só receberás o meu conforto para poderes sofrer, para poderes vencer. Só receberás espinhos, de todos os lados espinhos: foi a visão que te mostrei. Viverás entre eles e entre eles expirarás. A tua alma pura romperá por entre eles, voará ao céu a arder de amor. É um anjo seráfico que voa à sua pátria. Os teus espinhos não são espinhos que secam, a tua dor cultiva o terreno desse bosque imenso que eu te mostrei; o teu sangue rega-os; são espinhos que brotam, são espinhos que dão rosas. Que jardim brilhantíssimo deles vai nascer. O orvalho que sobre esse jardim cai é orvalho de sangue, é maná celeste que vem abrilhantá-las, conservá-las, dar-lhes a vida. Tu partes para o céu, mas a tua graça, as tuas virtudes ficam na terra, é perfume que se estende a toda a humanidade. Tu partes para a Pátria e ficas comigo na Eucaristia; serás a pombinha eucarística que não abandona o seu ninho. É como a pombinha e pastorinha das almas que te quero pintar nas portinhas e cortinas dos meus sacrários. Assim o quero, minha filha, rainha do mundo, rainha dos corações. Quero, minha filha, tenho pressa, muita pressa que a tua vida seja conhecida; o mundo necessita disso. É por ti, através de ti que eu mostro o meu amor, a minha misericórdia, as ânsias que tenho de ver salvas as almas. Custa tanto o Pai castigar o filho que erra e se revolta contra ele. Como não há-de custar ao meu divino coração imolar, sacrificar a minha filha amada, a minha vítima inocente? Vê, ó mundo, a minha loucura e amor por ti. Aqueles que se opõem à minha divina causa, ao que se passa em ti, opõem-se contra mim, opõem-se à salvação das almas. Todo o teu martírio é por meu amor, é por amor às almas. Depressa, depressa a salvar, pelo que opero em ti, o mundo inteiro.

Quando Jesus dizia isto, dos Seus divinos olhos corriam lágrimas com toda a abundância. Eu disse:

— Meu Jesus, quero sofrer só eu e só eu quero chorar. Deixai-me na amargura, na tristeza infinda e ficai Vós numa alegria e consolação completa.

Jesus deixou de chorar, estreitou-me a Ele fortemente e retirou-se. Eu fiquei abraçada à minha cruz, mergulhada na minha dor.

3 de Março de 1945 – Primeiro sábado

Nesta noite, não sei as horas, apareceu-me o demónio vestido de sacerdote, com batina até aos pés. Era grande, muito grande, gordo – parecia um monstro. Atravessava diante de mim, mas não me fez outra coisa a não ser fazer-me sentir como se estivesse o fogo pegado na minha cama; parecia-me as labaredas estarem alastradas debaixo de mim. Fazia-me estremecer de medo. Quero o que Jesus quiser, mas, se houvesse a minha vontade, preferia mil vezes isto do que quando ele usa de outras manhas. Sinto todo o meu corpo dilacerado e em sangue, os espinhos penetram-me a alma, o coração, o corpo e todo o ser. Não posso abrir nem fechar meus olhos sem espinhos; não posso pensar sem espinhos, não posso mover-me sem espinhos. O meu leito e o quarto, onde habito, são de espinhos, e tudo está banhado em sangue. Pobre do meu coração, sangra de dor. E os meus lábios parecem estarem fechados, não posso ter um queixume, morro, morro abafada. Assim, nesta dor e amargura, fiz a minha preparação para a visita de Jesus ao meu coração, nesta manhã. Recordar-me que era o primeiro sábado causava-me tanta tristeza que me fazia pensar assim:

— Meu Jesus, não posso viver sem dúvidas. Que receio o meu! Vede as minhas preocupações, compadecei-Vos delas! Enganar não quero; o Vosso divino amor, as almas, isso, só isso me basta, meu Jesus.

Chegou a hora de O receber. À entrada de Jesus no meu quarto, pareceu-me que me cravaram uma punhalada no peito e foi ferir o coração. Tinha ânsias, tantas ânsias de O receber, mas o medo que tinha d’Ele, o horror ao êxtase não se explica. Momentos depois de Jesus baixar a mim, principiei a sentir a Sua divina presença e a dilatar-se o coração. O peito parecia levantar-se, ao mesmo tempo que o coração se dilatava. O meu amantíssimo Jesus principiou a dizer-me:

— Quero, minha filha, dilatar-te o coração, quero fazê-lo grande, grande como o meu divino amor. Recebe-o com toda a abundância, envolve-o no mundo que nele te  depositei. Transforma-o no meu divino amor. Dei-te e dou-te o meu divino amor, entreguei-te o mundo, quero tudo numa só coisa: quero amor, só amor. Resgatei-te com o meu sangue, és a nova resgatadora da humanidade. Escolhi-te para comigo continuares a obra mais bela, mais sublime, a obra do resgate, a salvação das almas. És Cristo crucificado, estás retratada em mim. Ao criar-te, vi em ti tudo isto; ao criar-te, logo te escolhi para a missão mais sagrada, mais sublime, para o que há de mais caro e agradável aos meus olhos divinos.

Estava a ouvir Jesus e faltava-me aquela luz, aquela alegria e consolação que quase sempre sentia. Disse-Lhe:

— Meu Jesus, de cada vez tenho mais dúvidas e fico persuadida que estou enganada. Que tristeza, que noite e receio de Vós.

— Não, minha pomba branca angelical. Não, minha pura, minha bela e encanto dos céus. Não te enganas, nunca o permiti nem permito. Foi isto mesmo que ontem te pedi. Alegro-me e consolo-me com a alegria que tu devias de mim receber. Não me negues tudo isto, não?

— Antes a morte e o inferno do que entristecer-Vos, meu Jesus. Sou a Vossa vítima, sou a Vossa escrava.

— Tu és o sol, sol brilhante, sol doirado que rompe as nuvens, para alumiar a terra. Eis os espinhos que te ferem, continuamente cairão sobre ti; entre eles viverás, entre eles morrerás. Tu és o sol, tu és a nuvem, nuvem negra, nuvem que assusta. O sol é para o mundo, a nuvem és tu, é tua, é para ti. Tu és o aguaceiro que sai das nuvens e dás à terra chuva de amor, pérolas de virtudes. Estás, minha filha, a percorrer os últimos caminhos; aproxima-se o teu fim neste desterro; aproxima-se a vida eterna, a tua verdadeira vida. Espera-te o céu com toda a alegria. Diz, minha filha, ao teu Paizinho que cai sempre sobre ele a abundância do meu amor. Que lhe prometo todas as minhas graças em todas as suas obras. Diz-lhe que são estes os caminhos dos que me são queridos, os caminhos dos meus eleitos. Ele vem junto de ti terminar a tua missão. Prometi milagre, se preciso fosse. Prometi castigo à companhia por o fazerem sofrer e se oporem à minha divina causa. Prometi e cumpri. Que pensem, que examinem se sim ou não. Diz ao teu médico que desempenhe a sua missão, a missão que lhe dei: cuidar do teu corpo, cuidar a sério. Cuidar de ti é cuidar de mim, trabalhar por ti é trabalhar por mim, é operar comigo milagres. Diz-lhe que não deixe dormir e que dê a conhecer que nem ele nem todos os que cuidam da minha divina causa dormem. Ela é minha, ela triunfa. Mas é necessário que ele diga umas palavrinhas humildes, mas que façam estremecer. Grande é a sua recompensa, grandes, muito grandes são as minhas divinas graças e o meu amor sobre ele e todos os que lhe são caros. Vem, minha Mãe, vem dar a nossa vida, o nosso amor a esta filhinha. Vem a estas trevas, vem suavizar esta dor.

Veio a Mãezinha, tomou-me em seus braços e Ela mesma lançou os meus sobre os Seus santíssimos ombros, abraçou-me, acariciou-me, cobriu-me de beijos, ao mesmo tempo que d’Ela sentia receber vida e conforto.

— Minha filha, filha e esposa do meu Jesus, a tua dor é vida, a tua dor é amor. Enche-te de mim, enche-te de Jesus. Dá o que de nós recebes aos que amas e te amam. Receberão de nós à medida que te amam e à medida que anseiam o nosso amor. Dá-lhes as nossas riquezas no teu sorriso, nos teus olhares, nos teus carinhos angélicos. Coragem, coragem, triunfas comigo e com o teu Jesus.

Estreitou-me Jesus entre o Seu divino Coração e o da Mãezinha.

— Estás, minha filha, numa prensa de amor.

Fiquei confortada, com mais vida, mas mergulhada em dor e amargura. Horas depois, voltei a sentir a Mãezinha tomar-me em seus braços e suavizou a minha amargura. Animei-me, mas não saí da minha dor. Fiquei entre espinhos, fiquei na cruz.

6 de Março de 1945

Desde o domingo passado, sinto-me mãe da humanidade, mãe extremosa; ao mesmo tempo, a dor vem de encontro a este amor, dor causada pelas desordens destes irmãos que sinto serem filhos meus.

Queria ir à frente de todos os governadores das nações a pedir-lhes a paz, para se reconciliarem uns com os outros. Mas queria uma paz feita de perdão duradouro, para não voltarem mais às mesmas desordens. Quantas vezes sinto uma ânsia tão grande de fazer isto, que me parece voar para junto deles. Para conseguir esta reconciliação, não pouparia o meu corpo aos maiores suplícios e sacrifícios, que me levassem de rasto de nação em nação, de fazer o que há de mais custoso. Queria tomar nas minhas mãos o Coração Santíssimo de Jesus, poder-lhes dizer: “vedes como está ferido! São os nossos pecados que assim o ferem!” Além dos espinhos, em que estou envolvida, sinto também agora e vejo com a minha alma os feixes de varas espinhosas com que estou a ser açoitada. Faz-me estremecer muitas vezes cada golpe que me fere o corpo e a alma. Desde sábado, tenho em mim um grande medo de Jesus, e, desde domingo, juntou-se em mim o medo da Mãezinha, com quem não me atrevo ter um desabafo, assim como aumenta o medo das pessoas que me são queridas. Desejo que o médico, que Padre Humberto venham ao pé de mim, mas ao mesmo tempo atormenta-me o medo da sua presença. Medo que desaparece para deixar lugar a uma indiferença, chegando a pensar que não falo com eles, e chego até a pensar se sim ou não existem no mundo.

Acabei a oferta dos assaltos do demónio pelas três almas por Jesus recomendadas. Deu-me um grande conforto a notícia de que uma dessas almas deu um grande passo para o bom caminho. Não sei, porém, ainda se deixou a má vida de todo.

Sinto-me cada vez mais próxima da morte, o que me causa grande horror por causa deste medo para com Jesus e a Mãezinha, e ver-me de mãos vazias de virtude e de amor.

Quando Jesus vem ao meu coração, sinto ser um corpo sem coração, sem língua para falar, não tenho nada com que possa louvar o meu Jesus nem agradecer-Lhe tantos miminhos e benefícios recebidos. Ainda sem acabar este dia, senti em mim não posso dizer se alegria se consolação, mas um pouco de alívio e conforto. Uma aragem serena passava em meu coração, e com o meu espírito mais desanuviado pude dizer: Deus seja louvado. Ainda bem que tenho quem compreenda a minha alma, tenho quem me vá encaminhando pelos caminhos de Jesus. Durou pouco este alívio. O medo dos que me eram mais queridos com a sua presença desapareceu para voltar fortemente pouco depois de eles se ausentarem. E que dor tão grande por ver que não lhes tinha dado a consolação de me verem mais alegre, como recompensa de tanto que fazem por mim. Não tive força para mais.

— Perdoai-me, perdoai-me, meu Jesus.

Como remate de tudo isto, veio um espinho disperso dos outros ferir agudamente o meu coração.

- Já sei, meu Jesus, seja tudo por Vosso amor. Sempre que eu tenho alguma coisa que possa servir-me de alívio, hei-de receber a mais algum espinho para profundamente me ferir. Bem-vindo seja o que vem das Vossas divinas mãos.

8 de Março de 1945

Sinto em mim um fogo ardente, queima-me em todos os sentidos; todo o meu corpo está numa fornalha viva. Tenho sede, tenho sede de Jesus. Tenho fome, muita fome das almas. Queria engolir o mundo. Sinto-me cada vez mais mãe dele. Que loucura a minha por aquilo que é engano, lodo e imundície. Sou mãe, mas oh! que louca mãe! Sou mãe que chora a perda de seus filhos, sou mãe que os não pode ver em tanta desordem, em tanta malícia e crimes.

— Ai, meu Jesus, o que hei-de eu fazer, o que posso eu fazer?

Sou mãe que chora tanto, mas lágrimas de sangue que banham toda a humanidade. Não posso resistir a tanta dor, não posso sossegar, quero salvar o mundo, quero sofrer tudo, quero dar por ele a vida. Numa hora em que as ânsias eram insuportáveis, levantei com custo os meus olhos para Jesus e disse-lhe:

— Jesus, Jesus, ai o mundo, ai o mundo, quero salvá-lo. Deixai-me entrar no Vosso Divino Coração com todos os que me são queridos; deixai-me entrar com todos os que me pertencem e às minhas orações se recomendam; deixai-me entrar com todos os sacerdotes e pecadores endurecidos; deixai-me entrar com todos aqueles que me têm ofendido; deixai-me entrar com a humanidade inteira; que ninguém fique fora do Vosso Coração Divino para dele passarmos à nossa Pátria, ao céu que para todos criastes. Quero amar-Vos e louvar-Vos com todos eternamente.

Continuam os meus medos para com as pessoas a quem mais estimo e para com Jesus e a Mãezinha querida. Que horror! Não só tenho medo de Jesus, medo que muitas vezes não me deixa levantar para Ele os meus olhos, mas mais ainda: fujo d’Ele, não quero ouvi-l’O, e até me parece que não queria que Ele existisse. Os crimes, o lodo de que estou coberta não podem ser vistos pelos Seus olhos divinos. Estou sempre a ser açoutada com as mesmas varas de espinhos; descarregam-nos sobre mim com toda a crueldade. Nada existe em mim que não seja ferido por eles. E a morte avizinha-se, e os homens não se apressam a dar-me o meu paizinho. Que tristeza! Não sabem o que é a dor. Não sabem quanto valem as luzes e conforto para uma alma.

— Perdoai-lhes, meu Jesus, eu espero em Vós, confio nas Vossas promessas divinas.

Durante esta noite, não sei se ainda era ontem ou se já pertencia a hoje, veio o demónio, veio desesperado, veio com todas as suas maldades, atormentou-me fortemente. Pegou o fogo e deixou em mim as suas manhas e, para disfarçar que não era ele, pôs-se ao largo. Só depois de eu muito lutar e de me parecer que tinha ofendido o meu Jesus tão gravemente é que ele se aproximou novamente a cobrir-me de insultos e a dar-me a afirmação de eu ter pecado. Estava num lago de suores na posição mais violenta que podia estar. Debaixo de mim um medonho abismo e muitos demónios em forma de esqueletos e de animais ferozes a atormentarem uma massa que lá estava. Ó meu Deus, que horror! Não podia falar nem gemer nem dar o mais pequeno movimento ao meu corpo. Pensei:

— Se me não valeis, meu Jesus, morro aqui. Valei-me, valei-me, vinde em meu auxílio.

Serenou tudo. Passados uns momentos, ouvi Jesus a dizer:

— Anjo celeste, anjo bendito, anjo que eu escolhi para guardares, guiares e amparares a minha vítima amada. Levanta-a, leva-a ao seu lugar.

No mesmo instante, sem me causar o mais pequeno incómodo, fiquei na minha posição. Mas logo em dúvidas e grande agonia. Jesus esteve em silêncio uns momentos e depois continuou:

— Não pecaste, minha filha: reparaste, consolaste, honraste o meu divino coração. Para as almas não sofrerem no inferno o que naquele abismo viste é que exijo de ti esta reparação. É fogo de vícios, são paixões, é a carne. Para reparar nesta matéria, só uma virgem inocente, só um enchente de fogo de amor pode apagar o enchente de vícios lodaçais. Tu és o brilho e encanto dos meus olhos. Sossega, sossega, não pecaste. Dá ao meu querido Padre Humberto a abundância do meu amor. Diz-lhe que estou com ele quando ora, quando trabalha, quando guia e encaminha para mim a tua alma. Dá-lhe por mim os meus agradecimentos.

Neste colóquio com Jesus, não tive medo d’Ele, mas logo depois voltei a sentir todo o meu martírio. De manhã cedo, principiei a sentir que Jesus chorava dentro em mim. Eu era a cidade de Jerusalém e era Jesus. Eu era o amor e a ingratidão. Do meu coração saíam para a cidade os mais doces e ternos olhares; eram olhares de chamamento, olhares de compaixão. Mas oh! o que eu via sair dali, que revolta contra mim. Ao cair da tarde, senti-me então reunida com os amigos. Ó meu Deus, o que se passou, que quadros tão diferentes. Eu era Jesus e contra o meu coração sentia inclinar-se alguém e eu era esse alguém. Eu era a mesa, eu era o pão e o vinho; eu era o cálice onde ele era deitado; eu era as taças onde se serviam os alimentos; eu era Judas, era tudo. Eu era a doçura e mansidão de Jesus; era o desespero e traição de Judas. Que noite, que santa noite, a maior de todas as noites, a noite do maior milagre, do maior amor de Jesus. O Seu Divino Coração estava preso àqueles que Lhe eram tão queridos. Para poder partir, tinha de ficar entre eles, para subir ao céu, tinha de ficar na terra; assim o obrigava o Seu amor divino. Sinto necessidade de esclarecer todas estas cenas, mas não posso, não sei. O olhar esgazeado do mau discípulo ficou gravado em meu coração e todo aquele silêncio profundo de saudosas despedidas. A amargura da minha alma não podia subir mais alto. E, para afirmar mais esta amargura, vieram os sofrimentos da terra causados. Juntei a dor ao sacrifício e quantas vezes em espírito, com os olhos fitos no céu, ofereci ao trono divino o cálice da minha amargura.

9 de Março de 1945

Cada momento que passa é para mim uma eternidade, parece-me estar sempre no mesmo sítio. O céu não chega. Só as sextas-feiras passam e voltam no mesmo momento; quase posso dizer que estão sempre presentes. Durante a noite, estive na agonia do horto. Que solidão tão triste! O céu parecia revoltar-se contra a terra ingrata. Eu ouvia o barulho da gente, o tilintar das armas. A quem quer que se chegou a mim, dentro em mim ouvi dizer-lhe:

― Amigo, a que vieste?

― Ó palavra, ó doce palavra! Ó doçura, ó meiguice, ó amor de Jesus!

Já lá vão umas poucas de horas, e tudo ficou gravado dentro em mim. O meu corpo está cansadíssimo; cansado do horto e da prisão, dos açoutes e dos espinhos e dos maus- tratos a caminho do calvário. O meu coração foi chagado antes ainda de sofrer a lança. Em todo o percorrer do caminho do calvário, jorrou sangue com abundância. Chegada lá, transformei-me em tudo: em montanha, cruz e Jesus. E em mim estava a Mãezinha, os dois corações unidos – o meu e o dela. Quantos sentimentos, quanta dor, quanto amor; amor que se estendia por toda a humanidade, amor que obrigava a tanta dor e agonia, a todo o sangue derramado. Ai, se eu pudesse mostrar tão claro como claro senti o que sofreu Jesus e a Mãezinha!

― Ó meu Deus, ó meu Deus, que agonia indizível!

Quando assim sofria, principiei a sentir na minha alma um bater de asas: desceu do alto, baixou a mim. Com os olhos da alma vi: era uma pomba cheia de alvura; fez do meu coração o seu ninho. Levantava-se, batia as asas, subia ao alto, descia a esvoaçar à minha volta e com o seu biquito dava-me vida e com o seu brilho dava-me luz. Voltava de novo a descansar no seu ninho. Nestes momentos, embebi-me toda naquele brilho, naquela luz, e a minha alma deixou de sofrer. E Jesus, o meu Jesus, principiou a dizer-me:

― És cheia de graça, minha filha, porque Jesus está contigo. És cheia de luz, pureza e amor, porque a ti desceu do céu agora o Espírito Santo. Já em ti habitava, mas agora como nunca baixou a ti, deixou o seu trono de glória e veio ao meu trono, ao meu paraíso, ao meu céu na terra. Veio ao ninho do teu coração. Desceu a ti como outrora desceu sobre os apóstolos. De hoje em diante, terás luz, toda a luz, para compreenderes e conheceres a grandeza do meu amor, o meu poder, a minha misericórdia e a gravidade da ofensa feita ao meu divino coração. És um livro de ciências, és o cofre onde estão depositadas todas as ciências divinas, tudo o que pertence ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Ó maravilha, ó prodígio sem igual!

― Ó meu Jesus, sim, quero conhecer a grandeza do Vosso amor, quero conhecer tudo o que me dizeis, porque assim o quereis. Mas ah! conhecer o pecado, a gravidade dele, tenho medo, meu Jesus, tenho medo de Vos ofender.

― Não, minha filha, não. És a minha esposa amada, quero-te pura, pura, digna de mim. É por isso que possuis as riquezas da Trindade Divina e as riquezas de Maria. Conhecerás o pecado como ofensa feita a mim, mas não na gravidade e maldade das criaturas. A tua vida é a vida de Cristo crucificado. Há quase vinte séculos que passou no mundo o Redentor e passa agora uma nova redentora escolhida por Ele. Agora, sim, que o mundo precisa dela. Não veio o salvador como novo resgate, mas escolheu a salvadora para a mesma obra continuar. Tudo podes, tudo possuis, porque estou contigo. Tenho grande anseio de a tua vida ser conhecida, mas não o pode ser sem grande dor, imolação e sacrifício. A dor é para ti, a glória é para mim, o proveito é para as almas. Chegou a hora, haja luz, faça-se luz. O mundo necessita, o mundo tem fome da minha vida oculta em ti. Pede oração, reparação, emenda de vida. Pede-a, pede-a, minha filha; não é feita sem ser pedida, não pode ser pedida sem os meus divinos desejos serem conhecidos. Depressa, depressa, penitência, reparação para o pecado da carne. A impureza é uma janela aberta que dá entrada a todos os pecados mortais. Converta-se o mundo. Ai dele, se rapidamente não se converte. Ai dele, ai de Portugal. Ditosa pátria, terra privilegiada pela protecção da Virgem e pela vítima que em si encerra as maravilhas e riquezas divinas sem igual. É teu o mundo, a ti o confiei, mas é mais teu Portugal, porque és o cofre das riquezas divinas que a ele vim colocar. Ó mundo, ó Portugal, vem depressa ao teu Deus, levanta-te do lodo, levanta-te dos teus crimes. Se assim não fizeres, depressa chorarás e gemerás debaixo do peso da justiça divina. Filhinha, minha esposa amada, o céu quer-te, anseia por ti, vem em breve buscar-te. E as virtudes da tua vida aqui na terra brilharão, cintilarão como estrelas no céu; espalharão seu brilho ao mundo inteiro, ao mundo que é teu. Vens para o céu, mas a tua bênção, o orvalho fecundo do teu amor cairão sempre sobre a terra, enquanto ela existir. Receberás tudo de mim para tudo às almas dares. És de Jesus, vives de Jesus, dás às almas o que é de Jesus.

― Obrigada, meu Jesus. Quero repetir a cada momento da minha vida, dia e noite sem cessar: sou a Vossa vítima, só a Vós quero consolar, só às almas quero salvar.

No mesmo momento em que Jesus me deixou, caí na minha dor; caí na noite e no meu doloroso martírio. Tudo aceito, porque quero consolar e amar o meu Jesus.

― Aceitai, Senhor, a minha desconsolação por não saber falar de Vós, por não saber levar ao Vosso Divino Coração todas as almas.

13 de Março de 1945

Desde sexta-feira, sinto na minha cabeça, entre o caco e o cérebro, uma grande luz, e a mesma luz com a mesma fortaleza reflecte-se no coração. Eu mesma sinto ser uma torre de altura sem igual, da qual essa luz ilumina o mundo inteiro. Esta luz nada num mar de dor, num mar de noite; o mar sou eu, a dor é minha, a noite também. A luz não me pertence, é do mundo, só para o mundo. Por vezes, fico cansada, desfaleço com o muito que esta luz me faz ver. Ai, meu Deus, o que vai pelo mundo, como ele corre louco para a perdição. Mas ele é meu, sinto-me tão mãe dele! Não posso aguentar esta perda, esta desordem. A minha alma vê-o por todos os caminhos da perdição. Ai, meu Deus, o que hei-de eu fazer? Já tudo dei e parece-me que tudo fiz para o salvar. Dei tudo e fiz tudo sem me sentir mãe e, agora, ai que dor a minha, não tenho mais que dar a Jesus por ele. Haverá alguém que compreenda esta dor! Tal qual eu sofro só Jesus, só Jesus.

― Ó corações, ó corações todos do mundo, se compreendêsseis como Jesus vos ama!

Sábado, já de noite, chegaram junto de mim pessoas muito queridas que me traziam do meu paizinho ordem de alívio para o meu sofrimento. Logo que entraram e ainda sem me dizerem nada, senti um alívio na alma, fiquei mais leve, clareou mais a noite que sentia na minha alma e suavizou a minha dor e amargura. Principiei a sentir impulsos para levantar-me; esforcei-me o mais possível para o não fazer. Momentos depois, sem dificuldades, movia as minhas mãos. E a um impulso mais forte não pude resistir e disse: “tem de ser” – e levantei-me. As dores do meu corpo foram também suavizadas. Não sentia alegria nem consolação, mas, se as sentisse, era o bastante. O meu coração subia para o alto, prendia-se a Jesus, e os meus olhares fixavam-se na imagem da Mãezinha. Em alguns momentos, parecia-me não viver na terra. E, nesta ocasião, veio Jesus e segredou-me:

― Minha filha, este alívio e conforto, que sentes na tua alma, são para provar que obedecesses ao teu paizinho, como se ele estivesse todo este tempo junto de ti a desempenhar a sua missão. É também para provar o meu amor aos que cuidam de ti e da minha divina causa. Dá-lhes amor, amor, todo o amor. Este alívio, que agora sentes, não é para o sentires quando tiveres a teu lado o teu paizinho, ele chegará para te confortar. Recebe amor, amor, todo o amor, goza do amor na tua dor.

Para dizer o que em mim se passou, como era sábado, ofereci o sacrifício à Mãezinha, em Sua honra. Em todo o domingo, mergulhada numa certa dor, uma dor suave, sem saber o que era alegria, mas podia conversar mais com Jesus e com a Mãezinha. O demónio não teve entrada, por isso foi um dia mais suave e mais confortante para mim. Na segunda-feira, ainda antes de receber o meu Jesus, chegou a Deolinda junto de mim e disse-me que na igreja lhe tinha pedido para visitar-me a pequena que tinha vivido connosco. Eu ansiava esta reconciliação, não pelo grito de a minha consciência me acusar culpada, mas porque entendia que entre pessoas piedosas não devia existir nada disto, pois seria motivo de mau exemplo e de desgostar a Jesus. Até esta ocasião, quando pensava se um dia viria a ver à minha frente quem tanto me tinha feito sofrer, embora irreflectidamente, sem o pensar, parecia-me que seria o mesmo que me darem uma punhalada no coração e me tirarem a vida. Tinha os desejos que isto acontecesse, mas tinha medo de não resistir. No momento em que minha irmã me disse isto, Jesus transformou-me a minha alma. Deixei de sentir o golpe que me parecia ser dado com a presença dessa pessoa. Fiquei indiferente a tudo, como se de nada me interessasse. Ao receber o meu Jesus, entreguei-Lhe o caso, para Ele resolver conforme a Sua divina vontade. Passei o dia em sobressalto, receosa sempre de não fazer a vontade de Nosso Senhor. E os sofrimentos foram aumentando. Hoje, veio-me a notícia, pouco depois de comungar, que, talvez ainda de manhã, tivesse de receber essa visita. Voltei-me para o Sagrado Coração de Jesus e disse-Lhe:

― Meu Jesus, fazei que a receba com a bondade e amor do Vosso Divino Coração. Dai-me a Vossa humildade, fazei que eu esqueça a dor que me causou, como quero que esqueçais a dor e a ingratidão que para Vós tenho tido. Ó Mãezinha, pela Vossa agonia junto à cruz, pelas Vossa dores, fazei que eu proceda de modo a dar toda a consolação a Jesus e o maior proveito para as almas.

Recebi-a com sorriso, com a maior mansidão possível. Tive de vencer-me, fazer muita violência sobre mim mesma. O coração sufocado, por vezes não podia falar nem respirar. Fiz-lhe compreender o seu mau procedimento e, quando me pediu desculpa e perdão, disse-lhe:

― Se Nosso Senhor não te castigar sem eu Lhe pedir, por eu Lhe pedir também, não te castiga. Eu quero esquecer tudo, como quero que Ele esqueça a minha ingratidão e a do mundo inteiro.

O meu coração encheu-se de compaixão por ela e de toda a alma lhe perdoei, via nela Nosso Senhor. Não tive um momento de alegria, parece que não foi comigo o que se passou. Fiquei triste por me lembrar que não cumpri as ordens de obediência, mas Jesus bem sabe o meu fim e que não estava nas minhas mãos.

Hoje, já os açoites das varas dos espinhos descarregam sobre mim com toda a força; parece a malhar sobre molhos de trigo verde para lhe ser tirado o grãozinho. O meu corpo está todo em sangue, todo ele é uma só chaga. As ondas do mar, que há dias sentia, levantaram-se em mim e contra mim continuam. Levantam-se, mas desfazem-se rapidamente.

― Mas, meu Deus, não sei o que anda ao longe. Sofre-se tanto por minha causa! A minha alma sente que sou tão falada! Eu queria sofrer sozinha. Eu não queria ser causa de dor para os outros, nem pedra de escândalo para ninguém. Velai, Jesus, velai por mim. Consolai-Vos e consolai a todos quantos por mim sofrem.

15 de Março de 1945

A minha vida é de queixumes.

— Ó meu Deus, ai que tristeza, oh! que dor a minha. Em que noite estou mergulhada! Que tenebrosa, que triste e tão cheia de horrores! Nunca mais, nunca mais, meu Jesus, poderei ver a luz, o brilho do sol. A minha alma vê o terminar deste vale de lágrimas: só em noite, sempre em noite. Nunca mais, meu Jesus, nunca mais poderei ouvir o gorjeio das avezinhas, cânticos e toques harmoniosos e todas as maravilhas do Senhor, sem sentir a alma em agonia e o coração a sangrar de dor.

Ai o fim da minha vida, como a minha alma o vê. Não terei mais um momento de alegria. Dor, trevas, morte e nada mais. Caminho vacilante, todo o terreno parece estar em falso. O pecado, a morte do pecado é o que me pertence. O amor a Jesus e às almas, o que sofro por Ele e para as salvar não é meu, não sei a quem pertence.

— Ó céu, quando chegarás? Quando poderei ver-Vos, meu Jesus, e ver a luz? Quando estarei livre de errar e de Vos ofender? Juntai, Jesus, ao Vosso amor os desejos que tenho de Vos amar. Uni a minha dor à Vossa e utilizai-Vos de tudo para as almas. Que chuva de dores e amarguras cai sobre mim. Eu não sofro, mas sofreis Vós. Eu não amo, mas amais-me Vós. Eu não vivo, só Vós viveis em mim. E, já que assim é, tomai esta vida, toda a dor e amor e dai a vida às almas; ressuscitai-as, Jesus, não posso consentir na sua perda. Jesus, Jesus, dai-me almas, dai-me corações. Sinto o meu corpo tão cansado e a minha alma tão ferida. É tão forte a descarga de açoites de varas espinhosas que caem sobre mim. Senhor, Jesus, morre o meu coração, falta-me a respiração, mas falha-me por Vosso amor. Os espinhos obrigam-me a cerrar os meus olhos e a ensurdecer meus ouvidos; não há lugar no meu corpo que eles não penetrem. Ai quanto sofro pelas almas que se perdem e pelas que estão no limbo. Remediai, Jesus, remediai estes males.

Sinto que esta torre, que em mim se levantou, está cada vez mais alta. O artista, encarregado da obra, não cessa de trabalhar. A que altura eu subi; pois vou subindo nesta torre, ou antes, sou a mesma torre. A luz sobe comigo. O cansaço de tanto ver faz-me desfalecer. A luz é do mundo, não é minha; é para o iluminar a ele e ao mesmo tempo para eu ver o mesmo mundo. Fica cá tanto em baixo! Sinto a distância do céu à terra. Ai como eu o vejo! Esta luz nada deixa oculto; vai penetrar ao mais íntimo e faz que eu penetro também. Ai que miséria nas almas. Ó que lodo encobre os corpos e alastra toda a humanidade. Que horror, que horror! Ó mundo, como eu te vejo. Quanto mais sobe a torre mais a luz dá luz, mais o mundo é lama e mais o meu coração se condói da terra. Não posso resistir a esta dor. É tal a compaixão que o prende a este exílio que parece que faísca lume e estende seus raios de amor de cima para baixo. Faz-me lembrar a compaixão de Jesus, a Sua misericórdia, o seu amor infinito. Queria dizer quanto Jesus nos ama, queria mostrar a Sua misericórdia tal qual a vejo, tal qual a sinto. Pobre de mim que nada digo.

E agora para onde caminho? Estou chegada à noite da quinta-feira. Vem a traição, a venda do que há de mais belo e inocente; a entrega, a falsa entrega. O amor do meu coração obriga-me a dizer palavras doces, palavras ternas; obriga-me a não negar um sorriso. Que doces convites a um coração de pedra, a um rochedo que não se move. Ó que dor! Já vejo o horto, já vejo a morte.

16 de Março de 1945

Fere-me tudo o que é do mundo, tudo me causa dor e agonia. As consolações e alegrias são para mim amarguras, são espinhos que me ferem. A dor uniu à morte; é o que vejo, é o que sinto unido à minha miséria.

— Que mais quereis de mim, meu Jesus? Poderei sofrer mais ainda? Eis aqui a escrava do Senhor. Sou, ó Jesus, e quero ser sempre a vítima do Vosso divino amor, a vítima das almas.

Durante a noite, cheguei a escutar se tinha o fogo pegado no soalho do meu quarto e na minha cama. Sentia os efeitos das chamas, e os meus ouvidos ouviam rumores de labaredas. Decorreram já muitas horas e o meu corpo ainda parece arder por dentro e por fora. A sede é negra, é abrasadora. O que será arder sempre no inferno, meu Deus! O que será a sede de Jesus pelas almas, quando a mais miserável das criaturas sofre assim!

Na manhãzinha de hoje, foram-me buscar à prisão; vinha de mãos atadas, mas mais atado ainda vinha o meu coração, nem podia palpitar nem os lábios abrirem-se-me para pronunciar palavra. Senti que alguém com amor louco, com amor de mãe, andava rua em rua, cega de dor, à minha procura, a ver onde podia encontrar-me. A algazarra era medonha. Vestida com vestes de rei, mas vestida por escárnio, puseram-me na mão uma cana. Que barbaridade contra mim. Era tão grande o número dos que procuravam inventar maior proeza nos sofrimentos, tratando-me mais cruelmente. No caminho do calvário, tudo eram gritos e vozearias atrás de mim. Não eram gritos de dor, mas de ódio e afronta. Havia alguém que chorava e se entristecia de mim; havia quem quisesse consolar-me, aliviar-me e curar-me as minhas chagas. Esse alguém causava-me ainda mais dor; era uma dor unida à minha dor, era uma dor que não podia suavizar a minha. A Mãezinha, a Mãezinha, quanto sofreu com Jesus. Na cruz, no calvário era Ele com Ela um só Coração, uma só alma, uma só dor, um só amor. Jesus abandonado, a Mãezinha abandonada por abandonado ver seu Filho. Se o mundo conhecesse e compreendesse isto, não pecava. Jesus estava na cruz, mas era dentro do meu coração. Ao bradar: “meu Pai, porque me abandonaste?”, dizia dentro em  Seu Coração:

— Vê, ó mundo, com as tuas maldades a que estado me reduziste.

Senti-O entregar a Sua alma ao Eterno Pai. Com que alegria ela deixou o Seu Santíssimo Corpo e com que alegria foi recebida no céu. Já em união com o meu Jesus, vi-O na cruz, mas dentro em mim a derramar do Seu Divino Coração, já então aberto, o resto do Seu preciosíssimo sangue e por fim gotas de água. Principiou a dizer-me:

— Arredado de mim. Minha filha, longe, muito longe, está o pecador endurecido e louco pelas paixões. Longe, muito longe, vivem os pecadores entregues ao vício e à carne, loucos e cegos de todos os vícios. Vem cá, minha filha, vem, minha pomba branca, receber do teu Jesus, Pai e Esposo, o remédio, a vida e a luz para os conduzires a mim.

Jesus uniu o Seu Divino Coração ao meu, assim como o Seu rosto santíssimo e lábios aproximou também dos meus. Acariciou-me e passou d’Ele para mim luz, amor, conforto e vida. Dava-me tudo o que possuía. E continuou:

— Vai, filhinha, medicina das almas, vai dar tudo isto; escolhi-te para a salvação delas, escolhi-te para amparo delas, escolhi-te para seres a sua luz. Dá-lha, arranca-as das trevas. Vai com o meu amor e a tua dor inigualável arrancá-las das garras de Satanás; estão presas no lodo e enleadas nos espinhos. Tu és a luz das luzes, a loucura, o amor dos amores.

— Ó meu Jesus, dai-me o que quiserdes, dai-me o que é Vosso, só com o que é Vosso eu posso roubá-las ao demónio; só com a luz do Vosso divino amor eu posso dar-lhes luz. Tenho sede, tenho sede, Jesus, de Vos dar almas, todas as almas.

— A tua sede é a minha, meu encanto: sacia-ma, tenho sede e fome de almas, é sede e fome do que causa a morte. Olha, estão tantas presas, enleadas naqueles espinhos! Se não fores lá tirá-las, lá morrem, de lá passam para o inferno.

— Já, já, meu Jesus, vou, quero ir lá desprendê-las, custe o que custar.

— Minha filha, mas deixas lá tuas carnes?

— Não importa, meu Jesus, quero salvá-las.

— Minha filha, perdes lá o teu sangue?

— Deixá-lo, meu Jesus, também Vós o perdestes até à última gota. Eu quero ir lá, custe o que custar, perca o que perder. Eu vou, Jesus, eu vou, ainda que naqueles espinhos se desfaçam e fiquem lá meus ossos. Pelo Vosso divino amor dou tudo e tudo dou pelas almas.

Que tormentosa foi a visão destes espinhos. Sem um grande auxílio, sem a força do céu, nunca, nunca se desprenderiam de lá tantas, tantas ovelhinhas.

— Ó pura, ó bela, ó vencedora das almas. Tu ostentas a bandeira da vitória. Tu és o lírio dos vales, flor mimosa dos prados. As tuas virtudes são lírios, são açucenas, flores do jardim angélico que adornam o trono da Majestade divina. Que bem fará às almas, quando a tua vida for conhecida, pregada e lida, a tua vida celeste, a tua vida sem igual. Oh! quanto eu anseio que a luz que de mim recebeste vá penetrar nos corações de toda a humanidade. Oh! como eu anseio que ela aprenda neste livro de virtudes e ciências divinas. Tenho, minha filha, um meio ainda, um remédio salutar para salvares muitas almas. Não o aplico já; devia-o aplicar para confusão e punição daqueles que se opõem à minha divina causa, prolongando por muito tempo o brilho da luz que escolhi para as almas. Mas para isso esperarei que venha o teu paizinho, porque necessitas de todo o amparo e conforto amiudadas vezes. Para eu me esconder é preciso que venha para junto de mim quem te ampare e guie. Todo o amparo da terra será pouco na última fase da tua vida. Recebe, minha filha, novamente, a luz e vida do Divino Espírito Santo.

Veio Ele, poisou sobre a minha cabeça; a minha alma vi-O bater as asas. Era uma pomba branca, mais branca do que a neve. Toda a minha cabeça era luz, veio à minha boca e, como os passarinhos a alimentarem seus filhos, meteu nela seu bico, batia as asas e esforçava-se por passar para mim tudo quanto possuía.

— Minha filha – dizia Jesus – é a tua vida, é a vida divina, a vida de que vives, a vida que eu quero que as almas vivam. É a vida da graça, da pureza e do amor. É luz que te ilumina, é a luz com que iluminas o mundo. É o brilho do céu, é a riqueza e o tesouro das almas.

— Obrigada, meu Jesus. Dai-me a graça de Vos ser fiel, dai-me a graça de corresponder ao Vosso divino amor. Dai-me a força que preciso para combater o demónio e salvar-Vos as almas.

20 de Março de 1945

— Ai, como eu vejo o mundo correr no caminho da perdição. Ó que dor tão tremenda, dor que é impossível explicar. Ser mãe, mãe que ama, sem haver igual amor, e ver a humanidade fugir-me; morrem todos os meus filhinhos. Morrem nos vícios, nos prazeres, nas loucuras do pecado. Eles, loucos pelo gozo, e eu, louca de amor por eles para os salvar.

A luz, que possuo, penetra tudo e em todos. A luz não é minha nem é para mim, mas com ela vejo a maior das desordens e misérias. Esta luz vê tudo o que vai na terra, e sinto que ela mesma se quer revoltar contra a mesma terra. Os seus raios não podem enfrentar o lodo e lama nojenta que ela contém. A terra, que em mim se levantou, vai subindo, subindo, caminha para o céu. Sinto que vai tão alta, mas os seus olhares não atingem o seu fim. Ela vai subindo e, como remate, com ela sobe a luz; e lá das alturas vê o mundo, ilumina o mundo, sobre ele espalha os seus raios, raios que tentam subir a si, por não poderem pensar no mundo. Queria dizer tanto a respeito desta luz, queria fazer-me compreender e não sei. E agora, pobre de mim, sinto-me em abandono total e completo; não tenho ninguém por mim nem na terra nem no céu. É o que sinto, mas confio que não é a realidade. Pela minha grande miséria, miséria sem igual, bem sei que o merecia. Da minha parte não tenho inimigos na terra, mas aqueles que me têm ofendido, embora sem o pensarem, pouca diferença fazem daqueles que são meus amigos e tão queridos do meu coração. Os que me feriram, sinto o seu desprezo e abandono, mas não os temo. Daqueles que tantos cuidados, carinhos e amor me têm dispensado, o que nunca pagarei aqui na terra, sinto o mesmo desprezo, abandono e uma indiferença que não sei a que comparar; e junta-se mais ainda o medo, o grande medo, por vezes aterrador. Sem encontrar amigos na terra, levanto os olhos para o céu; vejo-o fechado, escusado é bater, lá não tenho ninguém por mim, os seus gritos aflitivos não são ouvidos. Se até agora tinha medo de Jesus e ao seu chamamento divino fugia cada vez mais, a pontos de não querer ouvi-lO e querer-me esconder d’Ele, agora aterrada, sim, mas sinto-me obrigada a ir à sua santíssima presença. Mas, oh! Ele está como que envergonhado de mim. Sou obrigada a estar diante d’Ele; a minha alma sente-O e com os seus olhos vê-O diante de si. Mas agora não tem, como quando eu Lhe fugia, aquele chamamento cheio de doçura e amor. Agora é juiz recto, juiz que não revoga sentenças. Eu, cheia de medo, não O posso ver, e Ele, como que envergonhado de mim, põe diante do seu santíssimo rosto, como para encobri-lo, o seu braço divino. Que horror! Passo dias neste sentimento, nesta visão. Já quase cheguei a dizer: “meu Jesus, se é possível, aliviai-me”. Mas, sem terminar a frase, acrescentei: “meu Deus, ó meu Deus, a vossa divina vontade”. Parece-me que nada posso esperar do céu nem da terra. Ontem, dia de S. José, logo depois de receber o meu Jesus, desapareceram as trevas e a dor da minha alma. Senti-me não em gozo mas sim com mais luz e mais confortada. Que grande paz dentro de mim. Jesus falou-me:

— Minha filha, para provar quanto amo a obediência e quanto amo o meu querido pai S. José, livrei-te estes dias dos combates do demónio. Consentes que depois deste dia eles continuem? Necessito tanto deles para as almas cegas nos prazeres, enredadas nos caminhos da perdição!

— Sabeis, meu Jesus, que tudo quero e aceito, só o que eu não quero é pecar. Fazei de mim o que quiserdes, contanto que eu Vos dê o amor que desejais e salve as almas, todas as almas que ferem o Vosso divino coração.

— Minha filha, a tua sede é a sede que tenho delas. Tu corres para mim como o veado para a corrente da água. Quanto mais me possuis mais desejos tens de me possuíres. Quanto mais longe me sentires mais perto eu estou. Eu hei-de esconder-me em lugar, onde não me vejas nem sintas; mas então estou em ti, sou teu, mais teu do que nunca. Mas para isso é necessário um conforto assíduo. Dou o meu lugar, mas por pouco tempo; após isto, depressa chega o céu. Coragem, filhinha amada! A tua vida é semelhante à minha. É Cristo retratado na sua vítima amada. Salva-me as almas. Desejo tanto que o meu querido pai S. José seja conhecido e amado! Anseio que todos os esposos o imitem, as esposas imitem minha mãe santíssima, os filhos a mim. Queria que todos os lares, todas as casas fossem semelhantes à de Nazaré.

Calou-se Jesus, e pouco depois nadava num mar de dores que já estão ditas.

Hoje, quando fazia as minhas orações, acabrunhada pelos sofrimentos de alma e corpo, veio o demónio, veio desesperado. Insultou-me horrivelmente. Nomeou-me o nome de várias pessoas que afirmava pecarem comigo juntas com ele:

— Não tens pecado, porque não tens querido, agora queres. Não foi Deus que proibiu que eu viesse. Olha que Ele não tem céu para te dar. O céu é neste mundo, o gozo e o prazer.

Durante a luta, sempre que me foi possível, bradei ao céu. E, no tempo de maior perigo, repeti muitas vezes:

— Perdão, meu Jesus, perdão, meu amor, sou a Vossa vítima, sou a Vossa escrava, mas pecar não, não, meu Jesus.

Serenou a tempestade, mas eu fiquei a ser um verdadeiro inferno; via em mim todos os horrores que lá tem. E o maldito fez como Jesus tem feito. Pareceu-me que ele estava sentado no meu coração, muito encostado, descansadamente. E dizia-me:

— Habito aqui, pertence-me, é meu.

Que horror, que tremendo horror! Ser o demónio o senhor do meu coração, da alma e de todo o meu ser. Veio Jesus e disse:

— Aparta-te daqui, maldito, o senhor deste coração sou Eu, sempre fui, sou e serei. Sempre habitei nele, habito e habitarei; é minha na terra, é minha no céu por toda a eternidade. É minha esposa, é a minha vítima, é um cordeirinho imolado, é a minha pomba querida, prisioneira à minha semelhança nos sacrários, por meu amor e pelas almas.

O demónio fugiu espavorido sem deixar em mim sinais do inferno. Jesus transformou a minha alma; dos horrores, da escuridão passei à luz, à suavidade. Foi só tempo de reviver mais um pouco, para poder aguentar com o peso da cruz que tantas vezes vejo levantar à minha frente.

— Bendito seja, meu Jesus, tudo aquilo que me dais; sede em tudo a minha força e alegria no sofrimento.

22 de Março de 1945

Que mundo de espinhos! Não vejo nele lugar nenhum onde eles não existam. Tenho de calcá-los, pisá-los todos e mesmo assim amo-o loucamente, amo-o sem lhe pertencer. Ai, eu não sou dele e ele é meu. Não o posso ver, e o meu coração prende-se com cadeias inquebráveis de amor.

— Ó meu Deus, que ternura o meu coração sente pelo mundo.

Eu queria possuir todo o amor do céu para com ele levar o mundo inteirinho para o mesmo céu. Que dor esta, que dor a minha vê-lo a correr para a desgraça, para a perda eterna. Ai tantas almas leprosas, tantos corações negros e empedernidos; neles não reina Jesus, a eles não pode baixar.

— Ó Jesus, o que posso eu fazer? Aceitai o meu tormento e curai com ele as almas. Aceitai o meu sangue, purificai-o em Vós e levai-o depois a purificar as almas, para nelas habitardes, para a todas possuirdes.

Ai de mim, estou sozinha e nem ao menos posso contemplar o meu Jesus na cruz. O meu coração desaparece mergulhado em dor ao sentir o amor com que Ele nos ama e o que é uma ofensa feita ao Seu Divino Coração. Quero vidas, quero vidas para sacrificar, almas que desagravem a Jesus pelo muito que Ele é ofendido. Queria ir de rasto, com a língua a varrer o chão, prostrar-me diante de todos os pecadores, pedir-lhes para não pecarem mais, para não ofenderem o meu Jesus. Queria ser lançada ao fogo mais vivo e nele arder sempre, sempre, enquanto houvesse o pecado no mundo. Que quadro tão diferente, o amor de Jesus e a ingratidão dos homens!

— Meu Jesus, volto-me para um e outro lado, vejo tudo o que é miséria, só não vejo o que hei-de fazer pelo Vosso divino amor e salvar a humanidade. Estou cansada pelo que sinto em mim em ânsias de a abraçar. Queria em mim uma força irresistível para arrancá-la das garras de Satanás.

Durante a noite, veio o demónio. Oh! que furor diabólico. Lutei muito com ele e estive por tanto tempo em tanto perigo! Só com a graça de Jesus não pecarei; que ela me assista sempre. Insultou-me muito, de princípio, e depois calou-me enquanto a luta se prolongava. Não sei como ele conseguiu pôr em mim uma pena de ter gozado pouco, parecia-me que não havia prazeres no mundo que me satisfizessem. Ele principiou de novo:

— Querias gozar mais? Não estás satisfeita de prazeres? Agora não estou para mais.

Fiquei numa amargura indizível, a dor abafava-me. Depois de dizer a Jesus que não queria pecar, fiquei a repetir muitas vezes: “Jesus, Maria, José”. Ouvi uma voz, que me dizia:

— Ó vítima, ó esposa querida de Jesus, eu sou o teu anjo da guarda, anjo escolhido por Jesus para ter amparar e defender, pata te servir e guiar. Venho em nome do mesmo Jesus afirmar-te que não pecaste, não pecaste, e levar-te à tua costumada posição.

Fiquei logo nas minhas almofadas e, apesar de tão grande afirmação, a dor e o receio de ter pecado continuaram. Eu continuei a invocar os doces nomes de Jesus, Maria e José, não com o fim de nenhuma visão, pois nem nisso pensava, mas sim porque costumo invocar estes santos nomes centenas de vezes ao dia, mesmo em silêncio, quando estou acompanhada. Não sei as vezes que os tinha repetido e vi à minha frente Jesus, Maria, José, todos três sentados. Jesus estava no meio. Era modesta a habitação em que eles estavam, mas toda ela era iluminada pelo brilho que d’Eles saía. Oh! como era belo! A visão demorou pouco, depressa voltei ao meu martírio. Vejo os sofrimentos que me esperam e a dor que eles me causam, parece antecipar-me a morte. Sinto o corpo desfeito pelo cansaço. Nada adianta à minha dor o convívio dos amigos. Que negra ingratidão cai sobre mim. A minha alma suspira e agoniza. Triste quinta-feira, oh! o que me espera! Sinto e vejo o meu sangue que em breve vai correr do meu corpo. Já vejo a cruz.

23 de Março de 1945 – Sexta-feira

De manhãzinha, quando orava, de repente senti que a minha alma saiu duma escura prisão. O coração, de cansado, parecia dar a vida a cada instante e que uma fonte de sangue corria dele para fora. Sentia o sofrimento da traição e todos os que pela traição foram causados. No meio dos maus tratos, ao barulho e vozearias que me faziam o coração sentia um amor louco, um afecto indizível pelo mesmo traidor. Oh! se ele quisesse vir de novo a este coração! Se ele quisesse reconciliar-se! Caminhava, atropelada; caía, era arrastada por terra para um e outro lado, e aquele afecto, as prisões daquele amor continuavam; iam a tão longe aquelas prisões! Tinha olhos e não via, ouvidos e não ouvia, mas o coração via tudo, ouvia tudo, tudo sentia. Veio juntar-se a este sofrimento um combate do demónio. Depois das suas artes, palavras e acções más, dizia-me:

— Não ores, de nada te vale a oração. Quem assim peca tão gravemente não pode salvar-se. Não queiras passar por aquilo que não és.

O bom Jesus bem sabe que por graça e misericórdia d’Ele conheço a minha miséria, miséria sem igual. Neste momento, invoquei a S. José: “valei-me, valei-me”. Então é que o maldito se enfureceu e disse coisas feias contra mim e o meu querido S. José. Parecia-me que tinha pecado, mas muito gravemente, que estavam realizados os desejos de Satanás. Chamei por Jesus com toda a força do meu coração. Ele veio, o demónio fugiu e Jesus falou-me:

— Não basta, minha filha, acompanhares-me na minha paixão; não basta percorreres os caminhos do calvário, não basta seres o retrato de Cristo crucificado. Necessito desta reparação para as almas que vão loucas e perdidas nos caminhos da perdição. Anima-te, meu encanto, amor do meu coração, não pecaste, não pecaste.

Continuaram os meus sofrimentos. Pouco depois, levantou-se no meu coração o calvário, a cruz, Jesus nela, a Mãezinha e mais alguém, poucos mais: rodeavam todos o pé da cruz. Não faltava lá a Madalena com todo o amor a abraçá-la. Ah! se eu tivesse para Jesus o amor dela! A Mãezinha, com os olhos fitos em Jesus, com duas fontes de lágrimas a correrem-lhe pelo seu santíssimo rosto, agonizava com Ele. Os sofrimentos que causavam a Jesus os que estavam no calvário, mas arredados da cruz vinham bater todos ao Coração da Mãezinha. o meu coração era o Coração d’Ela, eu sentia-o cravado de setas. Ó que dor, ó que dor sem igual, que dor que causava a morte. Veio então Jesus dizer-me:

— Longe, muito longe, minha filha, estão as honras de compreender a minha vida divina nas almas. Que grande dor para o meu divino Coração! E daí vem o mal de ser tão pequenino o número das almas reparadoras, as que chegam à santidade, atingindo toda a perfeição. É tão grande o número das que são chamadas e tão pequenino o daquelas que perseveram e são fiéis ao meu chamamento divino. E sabes porquê? São tão poucos os meus discípulos que compreendem esta vida divina e as sabem guiar e sustentar até que cheguem a mim. A umas cortam-lhes as raízes, deitam-nas por terra e quantas vezes têm grandes quedas, vêm a praticar grandes crimes. A outras chega-lhes a sua maldade a levá-las por caminhos errados. A outras condenam-nas, dizendo que é falso o que é real, dizendo que é humano o que é divino. Minha filha, esposa minha, vê, amada do meu Divino Coração, vê a chaga tão profunda que tudo isto me causa. Como poderão ser salvos os pecadores, como poderá salvar-se toda a humanidade?

— Meu Jesus, só Vós o sabeis; aplicai Vós o remédio e tende duns e doutros compaixão.

— Ó vítima querida, vítima do meu divino amor, vítima das almas. O grande remédio, o melhor remédio está nas tuas mãos e não nas minhas. Aceitas o sofrimento que vou pedir-te? Não é para já, mas não demora.

— Aceito tudo, meu Jesus, mas quero ouvir dos Vossos divinos lábios a promessa de não me deixares um só momento, e que não permitis que eu Vos ofenda ou por desfalecimento ou por desânimo. Se mil infernos houvesse e eu mil corpos possuísse, queria um para arder eternamente em cada inferno e não queria desgostar-Vos com uma leve falta.

— Amor puro, amor abrasado é o teu, minha pomba amada.

Escuta então:

— Pouco depois da vinda do teu paizinho, vou deixar de te falar a não ser alguma vez à força da obediência. Não virei às sextas nem primeiros sábados. Não termina a tua paixão, mas continua sempre cessar. E então mais que nunca dolorosa. Só assim serás deveras completa. Ficarás pior do que os cegos que nunca conheceram a luz; eles nunca viram, mas acreditam que a luz existe. Tu ficarás como se em nada acreditasses. Necessitas dum amparo contínuo e de quem te afirme sempre que a luz existe, que os teus caminhos são os meus, os mais espinhosos, o calvário mais difícil de subir. Eu, escondido, sim, mas com minha bendita Mãe, nunca te abandonamos. Eu devia fazer isto já, ou já o ter feito para castigo daqueles que a tempo não estudaram a minha causa divina. Não o tomariam como castigo, mas sim aumentava as dificuldades. Uso sempre de bondade e da minha misericórdia, mas sempre a reinar em ti e a triunfar a minha causa divina. É a tua última fase e a mais dolorosa. Oh! que agonia será a tua. Assim ficarão escritas no livro da tua vida todas as maravilhas e ciências divinas; livro que nunca foi nem será igualado. Podem vir todos ao jardim, que eu cultivei, colher flores de virtudes, flores de caridade, flores de heroísmo, flores de toda a variedade, flores de pureza, flores de amor, flores de graça, flores de heroísmo, flores de toda a variedade. Vinde todos, colhei, são flores celestes. Depois disto, depressa chegará o céu. Que encantadora será a tua morte. Será a morte cheia da maior agonia, mas cheia do maior amor. Diz-me, minha filha, por quem me ofereces estes últimos sofrimentos da tua vida?

— Pelo que for da Vossa divina vontade, meu Jesus; é só isso o que eu quero.

— Minha amada, minha loucura, quero que me ofereças uma parte desses sofrimentos pelos sacerdotes, para os que possuem a luz divina e compreendem a minha vida nas almas a possuírem cada vez mais e compreenderem cada vez melhor e não terem outra vida a não ser a minha. Pelos que a não compreendem, para que a estudem e, não estudando nem a compreendendo, não tentem apagar a luz e matar essa mesma vida. E por todos aqueles que me ofendem gravemente. A outra parte oferece-ma pelo mundo inteiro, porque todo ele te pertence, porque to confiei. Podes pedir-me tudo o que quiseres e por todos. Os que te conhecem vão sentir a tua perda, que não chega a ser perda. Continuarás no céu com todo o poder junto do trono divino a dispensar-lhes todas as graças e a continuares a tua missão. Vai, filhinha, escrever tudo, para tudo tens toda a luz do Espírito Santo.

— Muito obrigada, meu Jesus, sede sempre a minha força.

27 de Março de 1945

Vejo cada vez mais profundo o abismo da minha dor. Meu Deus, que universo sem fim de martírio! Perdi o meu Jesus. São estes os sentimentos da minha alma. Já não O vejo diante de mim de mão no Seu santíssimo rosto, como há dias O via e sentia. Agora apenas sinto a perda d’Ele e o Seu poder e a Sua justiça sobre mim. Perder a Deus, perder a Deus, oh! que desgraça, oh! que martírio! Sinto a perda de Jesus e de todas as criaturas; sou sozinha, sem ninguém, ninguém por mim. A luz, que sobre mim sentia, foi subindo no cimo da torre que em mim se levantou. A torre subiu, subiu, chegou ao céu. A luz, que era do céu, para dentro do céu entrou, deixando ficar seus raios luminosos sempre no cimo da torre. Esses raios fazem que eu lá do alto continue a ver a humanidade desgraçada, a humanidade perdida. Pobre do meu coração estala de dor continuamente. Ai o mundo que eu tanto queria salvar.

— Ó meu Jesus, dizei-me o que posso fazer em favor dele.

Não posso lembrar-me que Jesus vai deixar de me falar. Não posso resistir! Atormenta-me ter de escrever o que se passa na minha alma, atormentam-me os colóquios que tenho com o meu Jesus, com o receio de mim mesma, de entrar alguma coisa minha. Mas oh! o que será de mim, quando Jesus se esconder deveras! Ah! se me dessem a escolher, se eu tivesse o meu querer, escolheria, quereria a primeira parte: os colóquios e escrever tudo, até dia e noite sem parar, se fosse possível. Sofro por vir Jesus falar-me e sofro horrivelmente por ir deixar-me.

— E quando será, meu Jesus? Eis aqui a escrava do Senhor. Meu Deus, quando e como quiseres. Sede comigo.

Em horas de grande amargura, quando sofria com essa perda de Jesus, uma voz me segredava:

— Mas já não tens de escrever, já não recebes as visitas do teu Jesus.

— Ó meu Deus, parece que preferia todos os sofrimentos e não ser privada do meu Jesus, do meu Amor, que é tão meu. É necessário que eu sofra? Estou pronta, meu Jesus. Consolai-Vos, salvem-se as almas. Quando me será dado o meu paizinho? Já é tarde para consolação da minha alma. Que ele venha, meu Jesus, para a realização das Vossas divinas promessas, para honra e glória Vossa e Maior consolação.

Lá vou para a morte, ela vai-se avizinhando.

— Oh! quando chegará o meu grande dia, o maior dia da minha vida?

A minha alma sente que o meu nome é tão falado. Pobre de mim, que tanto tenho procurado viver escondida e nada consigo. Sinto que sou falada e por tantos com desdém e até com rancor. Sinto que os nomes de pessoas, que me são tão queridas, sofrem por minha causa, são até enxovalhadas.

— Meu Jesus, tudo por Vosso amor. Que eu seja calcada, extremamente desprezada, para serdes Vós glorificado, amado e louvado.

O dia de hoje foi dia de grandes saudades, de tristes aniversários para mim. Três anos sem me alimentar e sem a minha querida crucifixão. Chorei com saudades dela e com saudades da alimentação. Não pude conter as lágrimas. A minha alma estava em paz, contente com os destinos e miminhos de Jesus. Com o todo o amor estreitei tudo ao meu coração, mas a minha pobre natureza não pôde resistir a tanta dor; as lágrimas deslizaram-se pela face, as quais aumentaram ainda mais a minha dor, por me lembrar que o meu Jesus se entristeceu com elas.

— Meu Deus, meu Deus, meu Jesus, as minhas lágrimas não são de desespero, são de amor, são lágrimas de resignação. Conformo-me com a Vossa vontade divina. Posso com esta dor e saudades pensar e sentir mais ao vivo o que são as Vossas saudades, as ânsias e fome das almas, a dor que elas Vos causam com a sua perda. Quero, Jesus, e amo tudo quanto Vos aprouver enviar-me.

O demónio veio, nesta manhã, tão malicioso e raivoso! Dizia ele que nada satisfazia as minhas paixões; para as satisfazer, chamou por mais demónios, para pecarem comigo em diversos pontos. Ó meu Deus, que grande horror! Obrigava-me a eu dizer: não quero orar, não quero o céu, quero pecar, quero gozar. Gritei com toda a força da minha alma, no momento do grande perigo, da grande dor, a dizer a Jesus: pecar não, não quero pecar. Neste transe, veio o meu Jesus:

— Sossega, filhinha, coragem, não pecaste. A cadeia mais forte e que mais almas prende a Satanás é a carne, é a impureza. Só a cadeia do maior amor e da maior pureza pode quebrá-la e arrancá-las das suas garras. É por isso que de ti exijo esta grande imolação e sacrifício. Lancei as minhas mãos divinas ao teu amor, à tua pureza. Repara, repara, consola-me, salva-me as almas. Confia, confia, não pecaste, não te deixo pecar.

No remate de todo o sofrimento deste dia, rezei o Magnificat como sinal do meu grande agradecimento a todos os miminhos de Jesus.

29 de Março de 1945

O mundo foge-me e com ele fogem-me as almas; não sei como conseguir prendê-lo. Morro de fome, morro de sede por elas. Que amor louco, que amor louco pelas almas. Queria dizer, queria mostrar o amor de Jesus pelos filhos Seus. Não sei mostrar, não sei dizê-lo, mas sei senti-lo e compreendê-lo. Jesus tem o Seu divino Coração em chamas; arde, arde continuamente por nós. O que é o amor de Jesus e a ingratidão das almas! Se eu pudesse abrir o meu coração e mostrar ao mundo as ternuras do amor divino! Ai, ai o mundo foge-me, o mundo perde-se, e eu não posso impedir a sua perda. Ao vê-lo correr para o abismo, ao vê-o correr para a perdição, caio de braços abertos, mas caio desfalecida. Dei tudo, fiz tudo e não evitei a sua perda. Sinto-me a lutar com a morte; a hora ainda não chegou, os sofrimentos eram para já ter morrido. É já noite e a minha alma sente como nunca que é a noite do amor, é a noite mais santa. Jesus vai partir e quer ficar entre nós. Que enleio de amor, que prisões do Seu Coração para os corações dos que Lhe são queridos! Que ansiedade de ir e de ficar! O meu coração experimenta tudo isto. Eu sou pão, sou vinho, sou hóstia, sou sacrário. Que noite rica, que noite bela! Os anjos desceram do céu a adorar tão grande mistério. Mas oh o que espera Jesus! Que traição, que falsas armadilhas tem a Seu lado! Vejo o Horto, vejo o sangue; tudo em silêncio, para só Jesus ouvir e sentir. E que despreocupação a dos queridos do Seu Coração! Pouco compreendem da dor e aflição de Jesus. O demónio fez-me um grande assalto. Caí sobre um grande abismo. Os meus ouvidos ouviram coisas tão graves, tão maliciosas! Só o demónio, só vindas do inferno! Uma parte do abismo era aterradora; a outra, aqui e além, tinha uns encantos falsos. O que será isto? – pensava eu. Lutei por muito tempo. E em tal cansaço, ó meu Deus! O demónio, aos pedaços, calava-se, para raivosamente me afirmar que não era ele, mas sim eu que queria pecar. O fogo da maldade parecia destruir tudo; destruía-me no prazer e no pecado. Ao sentir a dor que parece causar a morte, bradei com toda a minha alma, mas bradei muitas vezes: meu Jesus, pecar não, pecar não. O coração parecia não caber em mim, batia aflitivamente. Ouvi a voz do meu Jesus:

— Vai, minha filha, para as tuas almofadas. Sossega, sossega, não pecaste. Este abismo, que parecia ter alguns encantos, é daquelas almas que, para o mundo, a princípio encobrem os espinhos com rosas; e ao meu Divino Coração dão espinhos, só espinhos. Pecam e por algum tempo encobrem o seu pecado. Vão pecando, vão manchando as rosas, ficam os espinhos descarnados, todos os encantos desaparecem. Escandalizam o mundo, mergulham-se no abismo aterrador, lançam-se no lodo das paixões, ferem agudissimamente o meu Divino Coração. Queres consolar-me? Queres evitar a sua perda?

— Sim, meu Jesus. O pecado é a minha preocupação, é o espinho que mais me fere, só receio ofender-Vos.

— Guardo o teu corpo, guardo a tua alma, guardo em meu Coração o lírio da tua pureza. És bela, és pura, és vítima dos impuros. Repara, repara, meu querido encanto, és vítima do mundo.

Hoje mesmo, pareceu-me que desceu uma nuvem sobre mim, negra, negra, assustadora; envolveu-me toda nela. Tudo é noite da terra ao céu. Debaixo de mim está cruz e espinhos; à minha volta, cercam-me cruzes e espinhos; sobre mim cruzes e espinhos; tudo é noite, tudo são cruzes, tudo são espinhos, dor e sangue, morte no mundo e morte na eternidade. Parece que ouço os gemidos das almas e os urros dos demónios no inferno. Que horror, ó meu Deus!...

30 de Março de 1945 – Sexta-feira Santa

Envolta na mesma nuvem que ontem sobre mim desceu, principiei o dia de hoje, dia que só era noite e vida que só era morte. Faltavam-me as saudades por não receber o meu Jesus. Sofri mais nos dias passados com a lembrança de hoje não O receber do que hoje por não comungar. Sofria por sentir pouca pena. Indiferente a tudo, a minha alma sentiu, e o meu corpo também, que me levaram presa, e alguns por escárnio a ouvirem a opinião duma multidão de grande ralé e vil canalha que me condenavam à morte. Os meus ouvidos ouviam, a uma voz só, a palavra de “morra, condene-se”. Oh, que gritos os da multidão. Tomei a cruz, caí repetidas vezes; ia a cada passo a expirar. Caía e sobre mim ficava a cruz. Não por dó mas por receio, queriam alguém que a levasse. Houve quem caminhasse com ela, não por amor mas por ser mandado; mas mesmo assim quanto amor senti o meu coração dispensar-lhe. Que grande paga! O meu corpo ia entregue aos malfeitores, o meu espírito ia só em Deus. No calvário, o sangue corria por todas as feridas do meu corpo. Que horas tão agonizantes! Sentia na minha alma todos os suspiros que dava Jesus; todos os olhares, que Ele levantava ao céu, na minha alma foram gravados.  Momentos antes de Jesus expirar, só de longe a longe dava um suspiro. E nesse intervalo de tempo estava como se não tivesse vida. E a minha alma a sentir tudo isto. Oh! como era lindo! Que lições tão belas nos dá Jesus. Tão maltratado e tão cheio de ternura e amor. Ainda o Seu santíssimo corpo a sofrer na terra e a Sua alma santíssima a voar ao céu; voava e deixava cair para a terra bênçãos e chuvas de amor. Veio o meu Jesus, fez-me por algum tempo esquecer a dor. Começou o meu coração a dilatar-se e a arder em chamas.

— Venho, minha filha, felicitar-te, saudar-te, louvar-te pelo teu aniversário, pela tua vida tão cheia de maravilhas, tão rica de virtudes, tão rica de amor. A tua vida é de rios de ouro e minas de pedras preciosas. Nunca o mundo viu nem voltará a ver; és a vida das almas. É com esta riqueza que elas são resgatadas, que elas dão salvas.

— Falai, falai, meu Jesus, são para Vós as felicitações, as saudações e os louvores. O que faço eu sem Vós, meu Jesus? O que sou eu sem Vós? Podeis dizer, podeis falar, a grandeza é Vossa, a miséria é minha.

— Louvo-te pela tua fidelidade e correspondência às minhas graças divinas. Louvo-te pela tua reparação. Quantas vítimas escolhi e recebi uma recusa. Quantas chamei e não me escutaram. A quantas convidei a uma alta elevação para mim e nada consegui. Em ti consolei-me, de ti tudo recebi. Tu és o instrumento das almas, és a conquistadora de Cristo. Toda a tua vida é uma vida de maravilhas. Se pudesses ver as almas que por ti foram salvas! E ultimamente, nestes três anos do teu jejum! Que grande meio para acudir aos pecadores. Mostro aqui o meu poder, as minhas ânsias e o meu amor para com eles. Nada te disse no aniversário do teu jejum, para tirar da tua amargura toda a doçura para mim e todo o proveito para as almas. E vou já assim preparando-te par a tua última fase. Martírio acompanhado com o jejum será o maior meio, o último meio de salvação. Não será só riqueza de rios de ouro e minas preciosas, mas será um mundo de ouro, um mundo das mesmas pedras. O martírio subirá ao auge e o amor atingirá toda a altura. O amor a Jesus, a dor pelas almas, reparação sem igual. Recebe agora, minha filha, o sangue do meu Divino Coração; é a vida que necessitas, é a vida que dás às almas.

Vi o Coração Divino de Jesus a arder em chamas, a transbordar de amor. Unido aos meus lábios, sentia o sangue correr e o meu coração por muito tempo a dilatar-se.

— Minha filha, o céu louva-me por te ter criado, louva-me pela honra que me dás e louvor que já da terra recebo. O céu louva-me e sempre me louvará. Da terra já recebo louvores e dentro em breve todo o mundo me dará louvor pela minha vítima, pela nova redentora. Prepara-te, filhinha, vou-me dar a ti. É um sinal que mesmo escondido sempre em ti habito. Repara, desce o céu sobre ti. Dou-me a ti numa comunhão real, numa comunhão eucarística.

Desceu sobre mim a abóbada do céu.

— Que lindo, que lindo! – exclamei eu. Vale a pena, meu Jesus, sofrer e sofrer tudo para possuir o céu.

Eram tantos, tantos os anjos que batiam as asas e prestavam homenagens a Jesus. Desta vez não cantavam. Adoravam e inclinavam-se em sinal de reverência na presença de Jesus. Ele disse as palavras Ecce Agnus Dei e depois as de Corpus Domini Jesu Christi.

 

Nota - No dia 11 de Abril, pergunta-me: “o que querem dizer estas palavras? E as outras: Corpus Domini Jesu Christi?” Notei também que normalmente ela não sabe estas frases e, referindo-se a elas, diz: “aquelas palavras que Jesus disse na comunhão”.

 

Parece-me bem que estendi a língua para receber Jesus. Ficamos por uns momentos num silêncio profundo, numa união tão grande. Depois Jesus chamou pela Mãezinha.

— Mãe Bendita, vem saudar e acariciar a nossa filhinha, a nossa vítima.

Ela veio, tomou-me para o Seu regaço, cobriu-me de mimos e entrelaçou os seus santíssimos braços nos de Jesus, e estreitavam-me os dois ao mesmo tempo.

— Minha filha, flor mimosa do meu Jesus, amo-te, amo-te com Ele. Recebe todo o nosso amor. Saúdo-te pelo louvor, honra e almas que nos dás. Sofre, sofre contente. É a mãe que pede para os seus filhos, é a mãe que pede para os irmãos teus.

Beijava-me dum lado Jesus e do outro a Mãezinha. Jesus acrescentou:

— Vai, filhinha, vai escrever tudo. Para tudo o que disseres, tudo o que fizeres, terás sempre a luz do Divino Espírito Santo; é Ele que fala em ti.

— Obrigada, Jesus, obrigada, Mãezinha.

Fiquei logo duvidosa de tudo e mergulhada em tanta dor! De nada me valiam as pessoas queridas que me rodeavam. Vieram ainda espinhos tão agudos a ferirem-me. Por tudo bendisse ao Senhor e, como remate, rezei o Magnificat.